sermões
copyright Editora Hedra ltda Direitos cedidos à Andorinhas Editorial organização©
Iuri Pereira
edição Jorge Sallum coedição Suzana Salama editor assistente Paulo Henrique Pompermaier capa e projeto gráfico Lucas Kröeff Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP v658 Vieira, Antônio Sermões / Padre Antônio Vieira; Iuri Pereira (Organizador) – Rio de Janeiro: Andorinhas, 2021. ISBN 978-65-89777-03-8 (Livro do Estudante) ISBN 978-65-89777-01-4 (Manual do Professor) 1. Sermão. 2. Filosofia. 3. Religião. 4. Literatura portuguesa. I. Vieira, Antônio. II. Pereira, Iuri (Organizador). III. Título. cdd 869.5 Índice para catálogo sistemático I. Sermão : Literatura portuguesa Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166
Direitos reservados em língua portuguesa somente para o Brasil andorinhas editorial Rua Barão de Itapagipe, 365 (Apto 1006 Bloco 2) 20261-105 Rio de Janeiro rj 55 21 3174-6065 eliant@ig.com.br Foi feito o depósito legal.
sermões Padre Antônio Vieira Iuri Pereira (organização) 1ª edição
Rio de Janeiro
2022
Sumário
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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sermões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Sermão da Sexagésima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sermão de quarta-feira de cinza . . . . . . . . . . . . . . . . Sermão de Santo Antonio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sermão do Espírito Santo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sermão da Epifania . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sermão xiv do Rosário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sermão da Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel . Sermão dos Bons Anos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sermão de São José . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lágrimas de Heráclito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . 35 . . . . 75 . . . . 101 . . . . 141 . . . . 181 . . . . 247 . . . . 287 . . . . 325 . . . . 357 . . . . 377
paratexto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 391 Vida e obra do Padre Antônio Vieira . . . . . . . . . . . . . . . . . 393 » Sobre o autor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 393 » Sobre a obra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 394 » Sobre o gênero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 402
Apresentação
iuri pereira Os sermões presentes nesta edição foram escolhidos de acordo com os seguintes critérios: 1. centralidade na tradição crítica: por esse critério, qualquer edição de sermões de Vieira pareceria incompleta sem a presença de sermões como o Sermão da sexagésima, o Sermão de Santo Antonio (aos peixes), de 1654, e o Sermão da quarta-feira de cinza. 2. representatividade cronológica: por esse critério, foram escolhidos sermões pregados no início da atividade pastoral de Vieira, como o Sermão xiv da série dedicada ao rosário mariano, de 1633, e discursos do final de sua vida, como o Lágrimas de Heráclito, de 1674. 3. relevância temática: por esse critério, selecionamos sermões como o do Espírito Santo, que traz a famosa alegoria que opõe dois tipos de pessoas, umas semelhantes a estátuas de mármore, e outras a estátuas de murta, e o xiv do rosário, por trazer uma justificativa teológica para a escravização de pessoas negras trazidas de diversos lugares da África, em termos providencialistas.
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sermões 4. desenvoltura crítico-argumentativa, excelência da imaginação poética e da expressão: por esse critério escolhemos sermões como o Sermão de Santo Antonio (aos peixes), de 1654, que é comparável às grandes realizações poética do Século de Ouro, de Gôngora a Cervantes, no que se refere à exploração dos recursos expressivos da alegoria, e o da Sexagésima, que desempenha argumentos críticos, poéticos, retóricos e teológicos que podem exemplificar os mais ricos e refinados sistemas argumentativos da filosofia do período, de Galileu a Gracián. 5. limitação numérica: o número de sermões reunidos aqui atende à expectativa de um leitor ou de uma leitora iniciante, que queira fazer seu primeiro contato com o pensamento de Vieira, e de um leitor ou leitora que deseje aprofundar-se na leitura da obra do jesuíta.
breves notas aos sermões i. Sermão da sexagésima
O Sermão da Sexagésima, pregado na Capela Real, em Lisboa, em 1655, é dos mais célebres por ser um sermão que tematiza a própria atividade do pregador, analisando as formas pelas quais as palavras do sermão realizam a comunhão. Esse sermão foi escolhido por Vieira para abrir a edição que ele organizou e até hoje é o primeiro sermão quase obrigatório, pois, como o autor justifica, “para que possais ir desenganados com o Sermão, tratarei nele uma matéria de grande peso e importância. Servirá como de prólogo aos Sermões que vos hei de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma.” Vieira introduz uma diferença entre pregar sem deslocar-se e pregar nos confins do mundo: Índia, China e Japão. Índia, aqui, inclui a costa do Estado do Brasil, que é capi8
apresentação tania da Coroa Portuguesa no ultramar. No dia do acerto de contas final, os primeiros seriam julgados pelas palavras que disseram, os outros seriam julgados pelas palavras e pelos passos que tiveram de dar para proferi-las. Aqui aparece um recurso expressivo que podemos chamar de agudo, adjetivo que designa, no período de Vieira, um pensamento rebuscado, visionário das relações obscuras entre as coisas e as palavras, que é a exploração da homofonia entre as palavras “passo” e “paço”. Enquanto o passo é atributo dos padres missionários, que vão para longe resgatar as almas condenadas, o paço, ou seja, o palácio ou a corte da monarquia, será atributo dos padres que escolhem ficar na Metrópole. O prêmio espiritual de quem se dedica às missões é maior, porque estes escolhem o caminho mais árduo para realizar o ideal cristão de conversão universal. Quem fica na Metrópole escolhe o caminho fácil e confortável, escolhe ficar onde pode viver em pleno conforto, habitando boas residências, entre pessoas conhecidas que falam o mesmo idioma. Mas escolhe também um ambiente de corrupção moral, de vaidade, de dissimulação, de sensualidade e de luxúria, aceitando conviver com esse rol de tentações constantes. Vieira desenvolve uma alegoria agrícola muito presente em discursos religiosos. A semeadura é a pregação, a semente é a palavra e a colheita, ou messe, é o resultado da catequese, ou seja, a conversão da audiência. O sermão investiga as razões da assimetria entre a semeadura e a colheita e propõe que a semente encontra obstáculos na natureza: espinhos, pedras, pássaros e pessoas: “todas as criaturas do mundo se armaram contra esta sementeira”. Exemplificando o pensamento categórico do jesuíta, cada um desses obstáculos inviabiliza o crescimento da semente por meio de diferentes ações: os espinhos afogam-nas, as pedras secam-nas, os pássaros as comem e as pessoas as pisam. Aqui 9
sermões está uma parte da força persuasiva do pensamento de Vieira: as construções simétricas, que tem em si mesmas valor de verdade ao desenvolver-se no discurso como uma partitura ou um mosaico ou um silogismo, revelando a racionalidade da criação, com sua conclusão simples, “como queríamos demonstrar”. Desenvolvendo a alegoria, Vieira transfere as qualidades dos objetos da natureza para as pessoas, afirmando que existem homens homens, homens brutos, homens tronco e homens pedra e faz o retrato das dificuldades dos missionários do Maranhão: Tudo isto padeceram os semeadores Evangélicos da Missão do Maranhão de doze anos a esta parte. Houve Missionários afogados, porque uns se afogaram na boca do grande Rio das Amazonas: houve Missionários comidos, porque a outros comeram os bárbaros na Ilha dos Aruãs: houve Missionários mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos Tocantins, mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que andando vinte e dois dias perdido nas brenhas, matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. ii. Sermão da quarta-feira de cinza
O Sermão da quarta-feira de cinza, foi pregado em Roma, na Igreja de Santo Antonio dos Portugueses, em 1672. Nele, Vieira explica um ponto do livro do Gênesis bíblico: “tu és pó, e em pó te converterás”. Por que a Bíblia diz que somos pó, se somos seres humanos?: A Igreja diz-me, e supõe que sou homem: logo não sou pó. O homem é uma substância vivente, sensitiva, racional. O pó vive? Não. Pois como é pó o vivente? O pó sente? Não. Pois como é pó o sensitivo? O pó entende e discorre? Não. Pois como é pó o racional? Enfim, se me concedem que sou homem: Memento homo, como me pregam que sou pó: Quia pulvis es?
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apresentação Vieira parte de um argumento que remete à essência: nada é aquilo que parece ser, mas aquilo que já foi e aquilo que vai se tornar: “se foi terra, e há de ser terra, é terra; se foi nada, e há de ser nada, é nada, porque tudo o que vive neste mundo é o que foi e o que há de ser. Só Deus é o que é.” Como se explica o argumento de que já fomos pó? Recorrendo à narrativa do Gênesis, que explica que o primeiro homem, Adão, foi criado do barro, barro é terra e terra é pó, logo, antes de ser humano, Adão era pó. O próximo movimento associa esse argumento moral à vida humana, reativando a doutrina do desengano, que nos lembra de nossa alma imortal, essência eterna recoberta pelo corpo físico: Pó levantado, lembra-te outra vez que hás de ser pó caído, e que tudo há de cair e ser pó contigo. Estátua de Nabuco: ouro, prata, bronze, ferro, lustre, riqueza, fama, poder, lembra-te que tudo há de cair de um golpe, e que então se verá o que agora não queremos ver: que tudo é pó, e pó de terra.
“Lembre-se de que vai morrer” é um dos lugares-comuns morais muito usados no século xvii ibérico. A mortalidade e a imortalidade são condições que nunca podem ser esquecidas pelo fiel católico. A condição mortal de nosso corpo, dependente do tempo, nos remete à condição imortal de nossa alma, na eternidade. iii. Sermão de Santo Antonio (aos peixes)
O Sermão de Santo Antonio (aos peixes) foi pregado no Maranhão no ano de 1654. Um dos mais admirados sermões de Vieira, desenvolve-se inteiramente por meio de uma alegoria que equipara pessoas e peixes. Parte do pressuposto de que a terra está cheia de corrupção e glosa uma citação da Bíblia, segundo a qual Jesus afirmara que os pregadores são o sal da terra. O sal é usado na conservação de alimentos para evitar que apodreçam, e o uso é transferido me11
sermões taforicamente ao trabalho dos missionários. A palavra de Deus difundida pelos padres seria o sal que evitaria a corrupção das pessoas, metaforizadas como a terra ou o solo onde a semente da palavra pode frutificar quando encontra as condições ideias. Para Vieira, ou o sal não produz o efeito esperado ou a terra rejeita esses efeitos. Como em muitos outros, neste sermão o tema é moral e se debruça sobre a análise das causas pelas quais a palavra de Deus tão abundantemente administrada produz tão poucos frutos: Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja, e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a esta terra para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que tenho colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado dele, vós o sabeis e eu por vós o sinto.
Explorando um tema correlato, o habitat dos peixes, o mar, elemento tão importante na vida portuguesa dos séculos xvi e xvii, Vieira se vale de séries metafóricas ou alegóricas que exploram esse velho lugar-comum que associa o mar e a vida: O leme da natureza humana é o alvedrio, o piloto é a razão: mas quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos precipitados do alvedrio? Neste leme, porém, tão desobediente e rebelde, mostrou a língua de Antônio quanta força tinha, como rêmora, para domar a fúria das paixões humanas.
Cabe ressaltar aqui o extraordinário trecho em que o jesuíta aproveita uma experiência pessoal direta ocorrida no Pará, que serve como argumento “natural” em seu sermão. A partir desse argumento, há um torneio extremamente inventivo: um peixe, a quem o sermão é dirigido, ensina uma lição de moral ao jesuíta, sensível e racional, como 12
apresentação em uma demonstração da validade de todo o sermão, que afirma que os peixes, seres brutos e insensíveis, mostram mais prudência do que as pessoas: Quero acabar este discurso dos louvores e virtudes dos peixes com um, que não sei se foi ouvinte de Santo Antônio e aprendeu dele a pregar. A verdade é que me pregou a mim, e se eu fora outro, também me convertera. Navegando de aqui para o Pará (que é bem não fiquem de fora os peixes da nossa costa), vi correr pela tona da água de quando em quando, a saltos, um cardume de peixinhos que não conhecia; e como me dissessem que os Portugueses lhe chamavam quatro-olhos, quis averiguar ocularmente a razão deste nome, e achei que verdadeiramente têm quatro olhos, em tudo cabais e perfeitos. Dá graças a Deus, lhe disse, e louva a liberalidade de sua divina providência para contigo; pois às águias, que são os linces do ar, deu somente dois olhos, e aos linces, que são as águias da terra, também dois; e a ti, peixezinho, quatro. Mais me admirei ainda, considerando nesta maravilha a circunstância do lugar. Tantos instrumentos de vista a um bichinho do mar, nas praias daquelas mesmas terras vastíssimas, onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos! Oh quão altas e incompreensíveis são as razões de Deus, e quão profundo o abismo de seus juízos!
Na conclusão do sermão, Vieira desdobra a alegoria, mostrando para o público que estava falando da corrupção humana, figurando as pessoas e seus vícios como peixes e suas características: Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo 13
sermões é andarem buscando os homens como hão de comer e como se hão de comer.
O uso do tema da antropofagia e a atribuição da antropofagia aos brancos em relação uns aos outros é muito ousado, porque se trata da categoria mais desumanizadora da descrição dos povos da costa da América Portuguesa e mais ainda dizer que o verdadeiro açougue em que as pessoas são devoradas é a sociedade organizada branca e cristã e não as matas habitadas pelo gentio selvagem. Vieira é guia moral de sua audiência, por isso seu sermão desengana ao desnudar o vício e a surdez, a cobiça e a avareza, a gula bestial e a ambição desenfreada com um simples ditado popular: “À vista deste exemplo, peixes, tomai todos na memória esta sentença: Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem.” iv. Sermão do Espírito Santo
O Sermão do Espírito Santo foi pregado no Maranhão em 1657. No Sermão da sexagésima, Vieira pretende que o público saia desenganado do pregador, mostrando que o sermão não é feito para seu autor mostrar sua capacidade como letrado, mas para que o público possa, através do sermão, desenganar-se de si mesmo e corrigir sua conduta. O sermão foi pregado na véspera da partida de uma expedição de resgate de indígenas: Primeiramente nesta missão do Rio das Amazonas, que amanhã parte (e que Deus seja servido levar e trazer tão carregada de despojos do céu, como esperamos, e com tanto remédio para a terra, como se deseja) que português vai de escolta, que não vá fazendo ofício de apóstolo? Não só são apóstolos os missionários, senão também os soldados e capitães, porque todos vão buscar gentio e trazê-los ao lume da fé e ao grêmio da Igreja.
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apresentação No Sermão do Espírito Santo, Vieira dá outra razão para o público não se deixar iludir pela beleza da expressão verbal, que é só instrumento, e se fixar no sentido pastoral do discurso, que é o resultado almejado: “O Espírito Santo vos ensinará o que eu vos tenho dito, porque o pregador, ainda que seja Cristo, diz: o que ensina é o Espírito Santo.” O pregador não pode se vangloriar pelo efeito de seu sermão porque em suas palavras atua o Espírito Santo instilando a luz da Graça de sua presença no sacramento da comunhão. A Graça é uma atividade divina pela qual Deus envia benefícios, muitas vezes figurados em forma de fachos de luz, que criam uma disposição interna na alma e na consciência católicas para a percepção da presença de Deus na experiência temporal. O Espírito Santo ilumina com sua Graça o interior da pessoa, enquanto as palavras ressoam em seu exterior sensível, operando uma colaboração que instala a virtude católica: Por que vos parece que apareceu o Espírito Santo hoje sobre os apóstolos, não só em línguas, mas em línguas de fogo? Porque as línguas falam, o fogo alumia. Para converter almas, não bastam só palavras: são necessárias palavras e luz. Se quando o pregador fala por fora, o Espírito Santo alumia por dentro, se quando as nossas vozes vão aos ouvidos, os raios da sua luz entram ao coração, logo se converte o mundo.
O tema das virtudes do pregador também é tratado nesse sermão, em termos das qualidades necessárias aos missionários, que precisam de sabedoria e amor, mas em quantidades diferentes a depender de sua audiência. Aqui, Vieira propõe um germe de pedagogia católica: Porque para ensinar homens infiéis e bárbaros, ainda que é muito necessária a sabedoria, é muito mais necessário o amor. Para ensinar, sempre é necessário amar e saber, porque quem não ama não quer, e quem não sabe não pode; mas esta necessidade de 15
sermões sabedoria e amor não é sempre com a mesma igualdade. Para ensinar nações fiéis e políticas, é necessário maior sabedoria que amor; para ensinar nações bárbaras e incultas, é necessário maior amor que sabedoria.
Ocorre também a recorrência de um tema presente no Sermão da Sexagésima e no Sermão de Santo Antonio (aos peixes): deve-se pregar universalmente, a todas as criaturas, até mesmo a selvagens canibais: “Se é necessário amor para ser pastor de ovelhas que comem no prado e bebem no rio, que amor será necessário para ser pastor de ovelhas, que talvez comem os pastores e lhes bebem o sangue?” Pode-se ler nesse sermão uma justificativa bíblica para o trabalho dos missionários, quando Vieira remete à passagem da vida de Jesus em que ele teria enviado seus apóstolos para missões de conversão pelo mundo. Também é relevante a referência a São Tomé, que aparece nas cartas dos jesuítas desde que Manoel da Nóbrega iniciou essa correspondência em 1549: Repreendeu Cristo aos discípulos da incredulidade e dureza de coração, com que não tinham dado crédito aos que o viram ressuscitado, e sobre esta repreensão os mandou que fossem pregar por todo o mundo. A S. Pedro coube-lhe Roma e Itália; a S. João, a Ásia Menor; a São Tiago, Espanha; a S. Mateus, Etiópia; a S. Simão, Mesopotâmia; a S. Judas Tadeu, o Egito; aos outros, outras províncias, e finalmente a Santo Tomé esta parte da América em que estamos, a que vulgar e indignamente chamaram Brasil. Agora pergunto eu: e por que nesta repartição coube o Brasil a Santo Tomé e não a outro apóstolo? Ouvi a razão.
Nesse sermão, Vieira vai formular a célebre alegoria da estátua de mármore e da estátua de murta. Essa alegoria é uma atualização da também famosa metáfora da página em branco, com a qual os primeiros jesuítas caracterizaram, equivocadamente, o indígena da América Portuguesa, que 16
apresentação seria como uma página em branco pronta para receber a escrita católica. Mais tarde, os padres descobrem que nessa página era fácil de escrever, mas que o texto não se fixava: “Outros gentios são incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são incrédulos. Em outros gentios a incredulidade é incredulidade, e a fé é fé; nos brasis a mesma fé ou é, ou parece incredulidade.” Em nome de sua popularidade, reproduzimos abaixo o parágrafo da famosa alegoria: Os que andastes pelo mundo, e entrastes em casas de prazer de príncipes, veríeis naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dois gêneros de estátuas muito diferentes, umas de mármore, outras de murta. A estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas, depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos, mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve. Se deixa o jardineiro de assistir, em quatro dias sai um ramo que lhe atravessa os olhos, sai outro que lhe descompõe as orelhas, saem dois que de cinco dedos lhe fazem sete, e o que pouco antes era homem, já é uma confusão verde de murtas. Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na doutrina da fé. Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados; resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas, uma vez rendidos, uma vez que receberam a fé, ficam nela firmes e constantes, como estátuas de mármore: não é necessário trabalhar mais com elas. Há outras nações, pelo contrário (e estas são as do Brasil), que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam 17
sermões à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não veem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que não deem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez, que lhes decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidade. E só desta maneira, trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura dos ramos.
Outro grande obstáculo da conversão dos povos da América Portuguesa é a diversidade dos idiomas, que são incontáveis. O tema do aprendizado das línguas estrangeiras como barreira à conversão de povos distantes é muito recorrente nas cartas dos jesuítas, por isso é importante ressaltar as reflexões de Vieira a esse propósito: Manda Portugal missionários à China, império vastíssimo, dividido em quinze províncias, capaz cada uma de muitos reinos; mas a língua, ainda que desconhecida, é também uma […]. Manda Portugal missionários ao Mogor, à Pérsia, ao Preste João, impérios grandes, poderosos, dilatados, e dos maiores do mundo; mas cada um de uma só língua.
Enquanto na costa do Estado do Brasil, as línguas são tantas, que o mito da Torre de Babel, com a multiplicação das línguas, não se compara em variedade: E vem-lhe curto também o nome de Babel, porque na Torre de Babel, como diz S. Jerônimo, houve somente setenta e duas línguas, e as que se falam no Rio das Almazonas são tantas e tão diversas, que se lhes não sabe o nome nem o número. As conhecidas até o ano de [1]639, no descobrimento do Rio de Quito, eram cento e cinquenta.
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apresentação Além dessa dificuldade, as línguas locais são tão estranhas e difíceis, que aprendê-las é tarefa quase milagrosa, como o próprio Vieira pode testemunhar: Por vezes me aconteceu estar com o ouvido aplicado à boca do bárbaro, e ainda do intérprete, sem poder distinguir as sílabas, nem perceber as vogais ou consoantes de que se formavam, equivocando-se a mesma letra com duas e três semelhantes, ou compondo-se (o que é mais certo) com mistura de todas elas: umas tão delgadas e sutis, outras tão duras e escabrosas, outras tão interiores e escuras, e mais afogadas na garganta que pronunciadas na língua; outras tão curtas e subidas, outras tão estendidas e multiplicadas, que não percebem os ouvidos mais que a confusão, sendo certo, em todo rigor, que as tais línguas não se ouvem, pois se não ouve delas mais que o sonido, e não palavras desarticuladas e humanas […]. Que será aprender o nheengaiba, o juruuna, o tapajó, o teremembé, o mamaiana, que só os nomes parece que fazem horror?
As mulheres são muito raramente referidas nos escritos dos séculos xvi e xvii sobre a colonização da América, por isso uma passagem notável nesse sermão é aquela em que Vieira ressalta o papel das mulheres na catequese, chamando-as de apóstolas: E se eu agora dissesse que nesta conquista, assim como os homens fazem ofício de apóstolos na campanha, assim o podem fazer as mulheres em suas casas? Diria o que já disseram grandes autores: eles na campanha trazendo almas para a Igreja, fazem ofício de apóstolos; e elas em suas casas, doutrinando seus escravos e escravas, fazem ofícios de apóstolas. Não é o nome nem a gramática minha; é do doutíssimo Salmeirão, o qual chamou às Marias: Apostolorum apostolas: Apóstolas dos apóstolos.
Outra passagem muito interessante é aquela em que Vieira, sempre utilizando referências bíblicas, fala da catequese em termos de morte e devoração. Isso porque, no-
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sermões vamente, o tema da antropofagia é muito sensível e desumanizador, mesmo usado como metáfora. Ainda mais, Vieira parece fazer referências à antropofagia ritual praticada por alguns povos, para os quais o ritual representa a assimilação de uma qualidade estranha, que, paradoxalmente, reforça os vínculos internos de cada povo ou tribo. Finalmente, Vieira evidencia a extrema violência da implantação dos hábitos católicos entre os povos originários, cujas identidades culturais devem ser extirpadas: […] o modo de converter feras em homens, é matando-as e comendo-as, e não há coisa mais parecida ao ensinar e doutrinar que o matar e o comer. Para uma fera se converter em homem há de deixar de ser o que era e começar a ser o que não era, e tudo isto se faz matando-a e comendo-a: matando-a, deixa de ser o que era, porque, morta, já não é fera; comendo-a, começa a ser o que não era, porque, comida, já é homem. E porque Deus queria que S. Pedro convertesse em homens, e homens fiéis, todas aquelas feras que lhe mostrava, por isso a voz do céu lhe dizia que as matasse e as comesse. v. Sermão da epifania
O Sermão da epifania foi pregado na Capela Real, em Lisboa, em1662. Seu tema e “o mistério próprio deste dia é a vocação da gentilidade à fé”. Na ocasião em que foi proferido, estavam os jesuítas de volta à Metrópole depois de serem expulsos da colônia por tentarem, segundo o texto, defender a liberdade dos índios. Neste sentido, o sermão pode ser visto como parte de um processo judicial: “Assim permitiu a divina Providência que eu em tal forma, e as pessoas reverendas de meus companheiros, viéssemos remetidos aos olhos desta corte, para que ela visse e não duvidasse de crer o que doutro modo pareceria incrível.” Vieira retoma a narrativa do nascimento de Jesus, que recebeu a visita dos três reis magos. Os intérpretes da Bíblia 20
apresentação afirmaram que os três reis representariam as três partes do mundo conhecido: África, Ásia e Europa. Então, o jesuíta se pergunta por que a América não estaria nessa representação das partes do mundo. Argumenta que o cristianismo teria duas vocações, a primeira no tempo de Cristo, foi uma vocação para a conversão do Oriente, e a segunda nos tempos de Vieira, foi uma vocação para que o rei de Portugal convertesse todo o Ocidente: […] assim aconteceu no descobrimento do Mundo Novo. Desapareceu a terra antiga, porque a terra dali por diante já não era a que tinha sido, senão outra muito maior, muito mais estendida e dilatada em novas costas, em novos cabos, em novas ilhas, em novas regiões, em novas gentes, em novos animais, em novas plantas. Da mesma maneira o céu também começou a ser outro. Outros astros, outras figuras celestes, outras alturas, outras declinações, outros aspectos, outras influências, outras luzes, outras sombras, e tantas outras coisas todas outras.
Nesse sermão, Vieira, que foi perseguido por seus próprios compatriotas cristãos, afirma que entende a razão da ruptura protestante, e que ela mostrava como é injusto que uns se achem melhores do que outros por serem mais brancos. O jesuíta critica desta forma os colonos que, por se entenderem como brancos, se julgam melhores do que os índios, julgados como negros: Já considerei algumas vezes por que permitiu a divina Providência, ou ordenou a divina Justiça, que aquelas terras e outras vizinhas fossem dominadas dos hereges do Norte. E a razão me parece que é porque nós somos tão pretos em respeito deles, como os índios em respeito de nós e era justo que, pois fizemos tais leis, por ela se executasse em nós o castigo. Como se dissera Deus: já que vós fazeis cativos a estes, porque sois mais brancos que eles, eu vos farei cativos de outros, que sejam também mais brancos que vós. A grande sem razão desta injustiça declarou Salomão em nome alheio com uma demonstração muito natural. Introduz a etiopisa, 21
sermões mulher de Moisés, que era preta, falando com as senhoras de Jerusalém, que eram brancas, e por isso a desprezavam, e diz assim: Filiae Jerusalem, nolite considerare quod fusca sum, quia decoloravit me sol: Se me desestimais porque sois brancas, e eu preta, não considereis a cor, considerai a causa: considerai que a causa desta cor é o sol, e logo vereis quão inconsideradamente julgais. As nações, umas são mais brancas, outras mais pretas, porque umas estão mais vizinhas, outras mais remotas do sol. E pode haver a maior inconsideração do entendimento, nem maior erro do juízo entre homens, que cuidar eu que hei de ser vosso senhor, porque nasci mais longe do sol, e que vós haveis de ser meu escravo, porque nascestes mais perto?
Arrematando sua contundente crítica à ação dos colonos que sequestram e escravizam indígenas, Vieira mais uma vez se refere ao canibalismo, mas o canibalismo representado pela cobiça dos colonos brancos, que são verdadeiros comedores de índios e índias: Vede que razão esta para se ouvir com ouvidos católicos, e para se articular e apresentar diante de um tribunal ou rei cristão! Não nos podemos sustentar doutra sorte, senão com a carne e sangue dos miseráveis índios! Então eles são os que comem gente? Nós, nós somos os que os imos comer a eles. Esta era a fome insaciável dos maus criados de Jó. vi. Sermão xiv da série Maria, rosa mística
O Sermão xiv do Rosário de Maria, pregado em 1633, em uma irmandade de escravizados de um engenho, é o primeiro sermão conhecido de Vieira e o próprio autor se declara como jovem noviço: “Mas que fará cercado das mesmas obrigações [de pregar o rosário de Maria], tantas e tão grandes, quem não só falto de semelhante espírito, mas novo, ou noviço, no exercício e na arte, é esta a primeira vez que subido indignamente a tão sagrado lugar, há de falar dele em público?” 22
apresentação O sermão foi pregado no dia da festa de São João Evangelista, mas também é dedicado à Virgem Maria e aos escravizados devotos do rosário: […] esta mesma será a matéria do Sermão, dividido também em três partes. Na primeira veremos com novo nascimento nascido de Maria a Jesus; na segunda com outro novo nascimento nascido de Maria a S. João; e na terceira, também com novo nascimento nascidos de Maria aos Pretos seus devotos.
O rosário é uma sequência de 150 orações da Ave-Maria que são calculadas por meio de um terço ou rosário de contas. O rosário se baseia na meditação sobre os mistérios, que são de três tipos: gozosos, dolorosos e gloriosos. No Sermão xiv, Vieira faz uma interpretação providencialista do sofrimento de negros e negras sequestrados e escravizados nos engenhos da América Portuguesa. Hoje, nós tendemos a compreender a interpretação religiosa como uma forma de atenuar a consciência de culpa dos opressores de populações africanas e indígenas escravizadas e desumanizadas: De maneira que vós os Pretos, que tão humilde figura fazeis no mundo, e na estimação dos homens, por vosso próprio nome, e por vossa própria nação, estais escritos e matriculados nos livros de Deus, e nas Sagradas Escrituras: e não com menos título, nem com menos foro, que de Filhos da Mãe do mesmo Deus: Et Populus Aethiopum hii fuerunt illic.
Por mais repulsivo que nos pareça, precisamos nos esforçar por compreender a visão de Vieira como parte de um mundo no qual a superioridade técnica e moral da cultura europeia sobre a cultura dos povos ameríndios, superioridade autoatribuída, era razão suficiente para que uns povos exercessem o império sobre outros, a pretexto de retirá-los das trevas do paganismo e trazê-los à luz da Igreja Católica. No século xxi, o mesmo argumento e a mesma presunção de superioridade são usados para justificar guerras motiva23
sermões das pela simples cobiça. Nesse sentido, o trecho a seguir patenteia a ideologia religiosa que coloca a vida da alma como valor muito acima da vida temporal e corporal, justificando os sofrimentos presentes do corpo em termos de prêmios a ser recebidos pela eternidade após a morte: Oh! se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e a sua Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre! Dizei-me: vossos pais, que nasceram nas trevas da gentilidade, e nela vivem e acabam a vida sem lume da Fé, nem conhecimento de Deus, aonde vão depois da morte? Todos, como já credes e confessais, vão ao inferno, e lá estão ardendo e arderão por toda a eternidade.
Para os homens e mulheres escravizados nos engenhos da América Portuguesa, o inferno começou bem antes da morte e dispensou a colaboração do Diabo, porque foram as pessoas que escravizaram umas às outras. vii. Sermão da visitação de Nossa Senhora
O Sermão da visitação de Nossa Senhora foi pregado na Bahia, em 1638, por ocasião de uma vitória obtida contra os holandeses que investiram na tomada de conquistas portuguesas, se estabeleceram em Pernambuco e chegaram em 1640 até a Ilha de São Luís, no Maranhão: “Muitos dias há que esta nossa cidade festeja a ilustre vitória com que Deus lhe fez mercê de se defender tão gloriosamente do poder do inimigo comum, com que se viu sitiada.” O assunto desse sermão é notadamente político, por causa dessa circunstância grave, de confronto e resistência ao inimigo europeu. Após a vitória, Vieira dirigindo-se à cidade da Bahia, apela para que a cidade pense nos pobres e miseráveis, nas viúvas e órfãos: “E isto mesmo é o que eu digo à Bahia, não só enquanto composta da parte política 24
apresentação e civil, senão também da militar: que a primeira parte dos despojos da nossa vitória seja dos pobres enfermos e feridos deste hospital, e dos que a mesma guerra, pela morte dos pais, ou maridos, fez órfãos e viúvas”. O assunto faz com que o sermão ganhe tonalidades épicas, ao descrever a cidade inteira em vigília e união defendendo-se do assédio militar: Lembremo-nos agora de nós. Quem visse interiormente a Bahia naqueles quarenta dias e quarenta noites em que esteve sitiada, mais a julgaria, na contínua oração, por uma Tebaida de anacoretas que por um povo e comunidade civil, divertida em tantos outros ofícios e exercícios. Nos conventos religiosos, nas igrejas públicas, nas casas e famílias particulares, todos oravam. Os pais, os filhos, e quantos podiam menear as armas, assistiam com Josué na campanha; e as mães, as filhas, e todo o outro sexo ou idade imbele, orando continuamente pelas vidas daqueles que por instantes temiam lhes entrassem pelas portas ou mal feridos ou mortos. O estrondo das batarias inimigas e nossas, espertando com a evidência e temor do perigo os ânimos, não lhes permitia quietação nem sossego; e então a Bahia, como propriamente Bahia de Todos os Santos, invocando a intercessão e auxílio de todos, não por intervalos, como Moisés, mas perpetuamente e sem cessar, batia as muralhas do céu. viii. Sermão dos bons anos
O Sermão dos bons anos foi pregado em Lisboa, em 1641. Assim como o Sermão à visitação de Nossa Senhora, é um sermão de argumento político, que celebra a Restauração da Monarquia Portuguesa ocorrida em 1640: Será pois a matéria e empresa do sermão esta: Felicidades de Portugal, juízo dos anos que vem. Digo dos anos, e não do ano, porque quem tem obrigação de dar bons-anos, não satisfaz com um só, senão com muitos. Funda-me o pensamento o mesmo
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sermões Evangelho, que parece o desfavorecia; porque toda a matéria e sentido dele é um prognóstico de felicidades futuras.
Pode-se perceber pela citação acima, que este sermão também toma para si uma destinação profética, pela qual se diagnosticaria as felicidades futuras do reino. Vieira expressa o longo constrangimento de Portugal, que foi anexado pela Coroa de Castela entre 1580 e 1640: E se oito dias de esperar pela redenção, e ainda três dias, é tanto tempo; quanto seria, ou quanto pareceria, não três dias, nem oito dias, não três anos, nem oito anos, senão sessenta anos inteiros nos quais Portugal esteve esperando sua redenção, debaixo de um cativeiro tão duro e tão injusto!
Em seguida, o jesuíta explica as razões de o domínio estrangeiro ter sido tão extenso em termos de humildade e prudência: Se Portugal se levantara enquanto Castela estava vitoriosa, ou, quando menos, enquanto estava pacífica, segundo o miserável estado em que nos tinham posto, era a empresa mui arriscada, eram os dias críticos e perigosos; mas como a Providência Divina cuidava tão particularmente de nosso bem, por isso ordenou que se dilatasse nossa restauração tanto tempo, e que se esperasse a ocasião oportuna do ano de quarenta [1640], em que Castela estava tão embaraçada com inimigos, tão apertada com guerras de dentro e de fora; para que, na diversão de suas impossibilidades, se lograsse mais segura a nossa resolução. Dilatou-se o remédio, mas segurou-se o perigo.
A revelação profética de Vieira exige que se compreenda um modo de entender a História diferente do nosso. Para Vieira, passado e futuro são partes reversíveis de uma realidade espiritual que não está sujeita ao tempo, a eternidade: Acabou-se o Evangelho, e eu tenho acabado o sermão. Mas vejo que me estão caluniando e arguindo, porque não provei o que prometi. Prometi fazer neste sermão um juízo dos anos que vem, e 26
apresentação eu não fiz mais que referir os sucessos dos anos passados. Mostrei a razão das profecias, as dilações da esperança e oportunidade do tempo, o acerto dos decretos, a propriedade e merecimento do nome, e tudo isto é história do que foi, e não prognóstico do que há de ser. Ora, ainda que o não pareça, eu me tenho desempenhado do que prometi, e todo este discurso foi um prognóstico certo e um juízo infalível dos anos que vem. Tudo o que disse, ou foram profecias cumpridas, ou benefícios manifestos da mão de Deus: e em profecias e benefícios começados, o mesmo é referir o passado, que prognosticar e segurar o futuro.
O Tempo histórico reversível permite que Vieira leia na História do passado a profecia do presente, que confirma e relança outra profecia para outro futuro, que será por sua vez reversível a este presente, que, no futuro, será passado. A crítica chama este procedimento de interpretação figural. Para a Igreja Católica, a Bíblia é um livro revelado que contém a História verdadeira, que é sagrada. Essa História verdadeira é recoberta pela História cronológica, que é a interpretação humana da sucessão dos fatos sociais: […] como se começaram a cumprir as profecias em sua restauração, assim as levará Deus por diante e lhes dará o cumprimento gloriosíssimo que elas prometam. Até agora era necessária pia afeição para dar fé às nossas profecias, mas já hoje basta o discurso e boa razão, por que os efeitos presentes das passadas são nova profecia dos futuros.
A última passagem que destaco, é uma fortíssima exortação à resistência nacionalista, ao ímpeto conquistador, comparável à famosa passagem em que o personagem Gaunt faz um elogio à Inglaterra na peça Henrique ii, de Shakespeare. Também destaco a referência à ideia do Orbe Católico, ideal político de origem europeia de um mundo inteiro católico: Grande ânimo, valentes soldados, grande confiança, valorosos Portugueses, que assim como vencestes felizmente estes inimigos, 27
sermões assim haveis de vencer todos os demais; que, como são vitórias dadas por Deus, este pouco sangue que derramastes em fé de seu poderoso braço, é prognóstico certíssimo do muito que haveis que derramar vencedores; não digo sangue de católicos, que espero em Deus que se hão de desapaixonar muito cedo nossos competidores e que em vosso valor e em seu desengano hão de estudar a verdade de nossa justiça; mas sangue de hereges na Europa, sangue de mouros na África, sangue de gentios na Ásia e na América, vencendo e sujeitando todas as partes do Mundo a um só império, para todas em uma coroa as meterem gloriosamente debaixo dos pés do sucessor de S. Pedro. ix. Sermão de S. José
O Sermão de S. José, pregado na cidade de Lisboa em 1642, é um sermão celebrativo dedicado ao aniversário do rei Dom João iv, apenas dois anos após a Restauração da Monarquia. O pregador começa com uma questão que, como costuma acontecer, será rapidamente respondida por meio de uma consulta à Bíblia: qual seria o dia mais feliz, o do nascimento ou o da morte? A resposta encontrada é que o dia mais feliz é o da morte. A partir dessa abertura, Vieira vai conciliar os dois dias que se unem na mesma celebração: o dia da morte do patriarca São José, pai de Jesus, e do nascimento do rei Dom João iv. Após dar exemplos narrativos retirados da Bíblia sobre o nascimento misterioso de Jesus, Vieira interpretará o rei Dom João iv como alguém destinado, como um novo messias, a conduzir Portugal para a glória. Nesse sermão, Vieira identifica Dom João iv ao rei Encoberto, mito messiânico muito difundido, que restauraria a soberania de Portugal: Sendo, pois, estes dois reis nascidos ambos reis, ambos redentores e ambos encobertos, o primeiro, como diz a profecia de Isaías: Vere tu es Deus absconditus, Deus Israel Salvator: O segundo,
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apresentação prometido pela profecia e tradição de Santo Isidoro a Espanha, não com outro nome ou antonomásia, senão a do Encoberto. x. Lágrimas de Heráclito
Lágrimas de Heráclito, discurso pronunciado em Roma diante da rainha da Suécia e de séquito de religiosos e cortesãos em 1674, não é um sermão, mas um exercício acadêmico, no sentido em que o pensavam e praticavam as sociedades de corte da Europa seiscentista. Trata-se de um divertimento intelectual cortesão, de uma controvérsia fictícia, inventada para que dois letrados engenhosos exibissem seus recursos de erudição e argumentação defendendo ou atacando um tema filosófico ou mitológico. O tema clássico escolhido opõe dois personagens que reagem de maneiras opostas ao desconcerto do mundo, Heráclito só chora e Demócrito só ri. Antonio Vieira e o padre Jerônimo Cataneo foram os convidados a disputar qual dos dois tinha mais razão. Vale citar a descrição do mundo corrompido feita por Vieira, que se referia ao mundo antigo testemunhado por Heráclito, mas, ao mesmo tempo, descrevia a corrupção do mundo do próprio Vieira, no fim do século xvii, e que serve para descrever ainda a desgraça social que testemunhamos no século xxi: Que é este mundo, senão um mapa universal de misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças, de mortes? E à vista de um teatro imenso, tão trágico, tão funesto, tão lamentável, aonde cada reino, cada cidade e cada casa continuamente mudam a cena, onde cada sol que nasce é um cometa, cada dia que passa um estrago, cada hora e cada instante mil infortúnios, que homem haverá (se acaso é homem) que não chore? Se não chora, mostra que não é racional; e se ri, mostra que também são risíveis as feras.
Em um mundo como aquele, ninguém poderia rir, ainda mais alguém com fama de sábio como Demócrito. Então, 29
sermões por que Demócrito ri? Responde Vieira que Demócrito não ri, porque quem sempre ri, não ri nunca: Que Demócrito não risse eu o provo: Demócrito ria sempre; logo nunca ria. A consequência parece difícil, e é evidente. O riso, como dizem todos os filósofos, nasce da novidade e da admiração, e cessando a novidade, ou a admiração, cessa também o riso; e como Demócrito se ria dos ordinários desconcertos do mundo, e o que é ordinário, e se vê sempre, não pode causar admiração nem novidade, segue-se que nunca ria rindo sempre, pois não havia matéria que lhe motivasse o riso.
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sermões
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Sermão da Sexagésima
Pregado na Capela Real Este Sermão pregou o Autor no ano 1655 vindo da Missão do Maranhão, onde achou as dificuldades que nele se apontam: as quais vencidas, com novas ordens Reais voltou logo para a mesma Missão Semen est verbum Dei.2 S. Lucas, viii, 11.
i E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe.
2. Lc 8[:11] [Esta é, pois, a parábola: a semente é a palavra de Deus.] 35
sermões Ecce exiit qui seminat, seminare.3 Diz Cristo que saiu o pregador evangélico a semear a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também faz caso do sair: Exiit, porque no dia da messe hão-nos de medir a semeadura e hão-nos de contar os passos. O Mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes-ão a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura e hão-lhes de contar os passos. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais passos: Exiit seminare. Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo que o semeador do Evangelho saiu, porém não diz que tornou porque os pregadores evangélicos, os homens que professam pregar e propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que tornem. Aqueles animais de Ezequiel,4 que tiravam pelo carro triunfal da glória de Deus e significavam os pregadores do Evangelho, que propriedades tinham? Nec revertebantur, cum ambularent:5 Uma vez que iam, não tornavam. As rédeas por que se governavam era o ímpeto do espírito, como diz o mesmo texto; mas esse espírito tinha im3. Mt 13:3 [E falou-lhe de muitas coisas por parábolas, dizendo: Eis que o semeador saiu a semear.] 4. S. Gregor. ibi. 5. Ez 1:12 [E cada qual andava diante do seu rosto; para onde o Espírito havia de ir, iam; não se viravam quando andavam.] 36
sermão da sexagésima pulsos para os levar, não tinha regresso para os trazer; porque sair para tornar, melhor é não sair. Assim arguís com muita razão, e eu também assim o digo. Mas pergunto: E se esse semeador evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado; se se armassem contra ele os espinhos; se se levantassem contra ele as pedras, e se lhe fechassem os caminhos, que havia de fazer? Todos estes contrários que digo e todas estas contradições experimentou o semeador do nosso Evangelho. Começou ele a semear (diz Cristo), mas com pouca ventura. Uma parte do trigo caiu entre espinhos, e afogaram-no os espinhos: Aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae suffocaverunt illud. Outra parte caiu sobre pedras, e secou-se nas pedras por falta de humidade: Aliud cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat humorem. Outra parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e comeram-no as aves: Aliud cecidit secus viam, et conculcatum est, et volucres coeli comederunt illud. Ora vede como todas as criaturas do Mundo se armaram contra esta sementeira. Todas as criaturas quantas há no Mundo se reduzem a quatro géneros: criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que se não armasse contra o semeador? Nenhuma. A natureza insensível o perseguiu nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a sensitiva nas aves, a racional nos homens. E notai a desgraça do trigo, que onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedras secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no; e os homens? Pisaram-no: Conculcatum est. (Ab hominibus, diz a Glossa). Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo Mundo, disse-lhes desta maneira: Euntes in mundum universum,
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sermões praedicate omni creaturae:6 Ide, e pregai a toda a criatura. Como assim, Senhor⁈ Os animais não são criaturas⁈ As árvores não são criaturas⁈ As pedras não são criaturas⁈ Pois hão os Apóstolos de pregar às pedras⁈ Hão-de pregar aos troncos⁈ Hão-de pregar aos animais⁈ Sim, diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os Apóstolos iam pregar a todas as nações do Mundo, muitas delas bárbaras e incultas, haviam de achar os homens degenerados em todas as espécies de criaturas: haviam de achar homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras. E quando os pregadores evangélicos vão pregar a toda a criatura, que se armem contra eles todas as criaturas⁈ Grande desgraça! Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido e trigo pisado. Trigo mirrado: Natum aruit, quia non habebat humorem; trigo afogado: Exortae spinae suffocaverunt illud; trigo comido: Volucres caeli comederunt illud; trigo pisado: Conculcatum est. Tudo isto padeceram os semeadores evangélicos da missão do Maranhão de doze anos a esta parte. Houve missionários afogados, porque uns se afogaram na boca do grande rio das Amazonas; houve missionários comidos, porque a outros comeram os bárbaros na ilha dos Aroãs; houve missionários mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos Tocantins, mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que andando vinte e dois dias perdido nas brenhas matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe quadra bem o Natum aruit, quia non habebat hu6. Mc 16:15 [E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura.] 38
sermão da sexagésima morem! E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos dos homens: Conculcatum est! Não me queixo nem o digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara o digo, só pela seara o sinto. Para os semeadores, isto são glórias: mirrados sim, mas por amor de vós mirrados; afogados sim, mas por amor de vós afogados; comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e perseguidos sim, mas por amor de vós perseguidos e pisados. Agora torna a minha pergunta: E que faria neste caso, ou que devia fazer o semeador evangélico, vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que não. Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumentos com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrás? Não por certo. No mesmo texto de Ezequiel com que arguistes, temos a prova. Já vimos como dizia o texto, que aqueles animais da carroça de Deus, quando iam não tornavam: Nec revertebantur, cum ambularent.7 Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz o mesmo texto que aqueles animais tornavam, e semelhança de um raio ou corisco: Ibant et revertebantur in similitudinem fulguris coruscantis.8 Pois se os animais iam e tornavam à semelhança de um raio, como diz o texto que quando iam não tornavam? Porque quem vai e volta como um raio, não torna. Ir e voltar como raio, não é tornar, é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho. Não o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira perda; continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade, que nesta quarta e última parte do trigo se restauraram 7. Ez 1:12 [E cada qual andava diante do seu rosto; para onde o Espírito havia de ir, iam; não se viravam quando andavam.] 8. Ez 1:14 [E os animais corriam e tornavam, à semelhança dos relâmpagos.] 39
sermões com vantagem as perdas do demais: nasceu, cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicara cento: Et fecit fructum centuplum. Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que grande exemplo me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças a sementeira, porque, ainda que se perderam os primeiros trabalhos, lograr-se-ão os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador, porque, depois de perder a primeira, a segunda e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já que se perderam as três partes da vida, já que uma parte da idade a levaram os espinhos, já que outra parte a levaram as pedras, já que outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta e última parte, este último quartel da vida, porque se perderá também? Porque não dará fruto? Porque não terão também os anos o que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Porque não terá também o seu Outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são as venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o Mundo. Será bem que o Mundo morra à fome? Será bem que os últimos dias se passem em flores? Não será bem, nem Deus quer que seja, nem há-de ser. Eis aqui porque eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o pregador. Mas para que possais ir desenganados com o sermão, tratarei nele uma matéria de grande peso e importância. Servirá como de prólogo aos sermões que vos hei-de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma.
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sermão da sexagésima
ii semen est verbum dei O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas, com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações bons ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade e abundância, que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum. Este grande frutificar da palavra de Deus é o em que reparo hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz suspenso e confuso, depois que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me contentara com que frutificasse um por cento. Se com cada cem sermões se convertera e emendara um homem, já o Mundo fora santo. Este argumento de fé, fundado na autoridade de Cristo, se aperta ainda mais na experiência, comparando os tempos passados com os presentes. Lede as histórias eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias de admiráveis efeitos da pregação da palavra de Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de vida, tanta reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas e vaidades do Mundo; os reis renunciando os ceptros e as coroas; as mocidades e as genti41
sermões lezas metendo-se pelos desertos e pelas covas; e hoje? Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que é isto? Assim como Deus não é hoje menos omnipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, que aprendais a ouvir.
iii Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o co42
sermão da sexagésima nhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus? Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas três? A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? Porque o sol e a chuva são as influências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos.9 Se Deus dá o seu sol e 9. Mt 5:45 [para que sejais filhos do Pai que está nos céus; porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons e a chuva desça sobre justos e injustos.] 43
sermões a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci? 10 disse o mesmo Deus por Isaías. Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo. Os ouvintes, ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et natum fecit fructum centuplum. De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão fecunda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus, ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E por que? Os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes, porque vêm 10. Is 5:4 [Que mais se podia fazer à minha vinha, que eu lhe não tenha feito? E como, esperando eu que desse uvas boas, veio a produzir uvas bravas?] 44
sermão da sexagésima só a ouvir subtilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a picar a quem os não pica. Aliud cecidit inter spinas: O trigo não picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou a vós, e não é assim; vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são piores, porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisés abrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae.11 Induratum est cor Pharaonis.12 E com os ouvintes de entendimentos agudos e os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais rebeldes, é tanta a força da divina palavra, que, apesar da agudeza, nasce nos espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras. Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho de não cortar os espinhos e de não arrancar as pedras antes de semear, mas de indústria deixou no campo as pedras e os espinhos, para que se visse a força do que semeava. É tanta a força da divina palavra, que, sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta a força da divina palavra, que, sem arrancar nem abrandar pedras, nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos, corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confi11. Nm 20:11 [Então, Moisés levantou a sua mão e feriu a rocha duas vezes com a sua vara, e saíram muitas águas; e bebeu a congregação e os seus animais.] 12. Ex 7:13 [Porém, o coração de Faraó se endureceu, e não os ouviu, como o Senhor tinha dito.] 45
sermões ança! Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos! Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeador do Céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem e esses mesmos espinhos o coroem.13 Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste Mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa, nem por indisposição dos ouvintes. Supostas estas duas demonstrações; suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara, que fica por parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, por que não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, por que não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa nossa.
iv Mas como em um pregador há tantas qualidades, e em uma pregação tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistirá esta culpa? No pregador podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa que é, a ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos no Evangelho. Vamo-las examinando uma por uma e buscando esta causa. 13. Mt 27:51 [E eis que o véu do templo se rasgou em dois, de alto a baixo; e tremeu a terra, e fenderam-se as pedras.]; Petrae Scissae Sunt. Mat 27:29 [E, tecendo uma coroa de espinhos, puseram-lha na cabeça e, em sua mão direita, uma cana; e, ajoelhando diante dele, o escarneciam, dizendo: Salve, Rei dos judeus!] Corovam de Spinis Posverunt Super Caput Ejin. 46
sermão da sexagésima Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela circunstância da pessoa? Será porque antigamente os pregadores eram santos, eram varões apostólicos e exemplares, e hoje os pregadores são eu e outros como eu? Boa razão é esta. A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? É o conceito que de sua vida têm os ouvintes. Antigamente convertia-se o Mundo, hoje porque se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas não ferem. A funda de David derrubou o gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a pedra: Infixus est lapis in fronte ejus.14 As vozes da harpa de David lançavam fora os demónios do corpo de Saul, mas não eram vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão: David tollebat citharam, et per-
14. 1Rs 17:49 [E Davi meteu a mão no alforje, e tomou dali uma pedra, e com a funda lha atirou, e feriu o filisteu na testa; e a pedra se lhe cravou na testa, e caiu sobre o seu rosto em terra.] 47
sermões cutiebat manu sua.15 Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar que é falar, faz-se com a boca; o pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus frutificou cento por um. Que quer isto dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram cem palavras? Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede se podem ser só palavras! Quis Deus converter o Mundo, e que fez? Mandou ao Mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus, enquanto Deus, é palavra de Deus, não é obra de Deus: Genitum, non factum. O Filho de Deus, enquanto Deus e Homem, é palavra de Deus e obra de Deus juntamente: Verbum caro factum est.16 De maneira que até de sua palavra desacompanhada de obras não fiou Deus a conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do Mundo. Verbo Divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras veem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. No Céu ninguém há que não ame a Deus, nem possa deixar de o amar. Na terra há tão poucos que o amem, todos o ofendem. Deus não é o mesmo, e tão digno de ser amado no Céu e na Terra? Pois como no Céu obriga e necessita a todos a o amarem, e na terra não? A razão é porque Deus no Céu é Deus visto; Deus na terra é Deus ouvido. No Céu entra o conhecimento de Deus à alma 15. 1Rs 16:23 [E sucedia que, quando o espírito mau, da parte de Deus, vinha sobre Saul, Davi tomava a harpa e a tocava com a sua mão; então, Saul sentia alívio e se achava melhor, e o espírito mau se retirava dele.] 16. Jo 1:14 [E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade.] 48
sermão da sexagésima pelos olhos: Videbimus eum sicut est;17 na terra entra-lhe o conhecimento de Deus pelos ouvidos: Fides ex auditu;18 e o que entra pelos ouvidos crê-se, o que entra pelos olhos necessita. Viram os ouvintes em nós o que nos ouvem a nós, e o abalo e os efeitos do sermão seriam muito outros. Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao pretório de Pilatos, conta como a Cristo o fizeram rei de zombaria, diz que tomaram uma púrpura e lha puseram aos ombros; ouve aquilo o auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de espinhos e que lha pregaram na cabeça; ouvem todos com a mesma atenção. Diz mais que lhe ataram as mãos e lhe meteram nelas uma cana por ceptro; continua o mesmo silêncio e a mesma suspensão nos ouvintes. Corre-se neste espaço uma cortina, aparece a imagem do Ecce Homo; eis todos prostrados por terra, eis todos a bater no peito, eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as bofetadas. Que é isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo o que descobriu aquela cortina, tinha já dito o pregador. Já tinha dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coroa e daqueles espinhos, já tinha dito daquele ceptro e daquela cana. Pois se isto então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? Porque então era Ecce Homo ouvido, e agora é Ecce Homo visto; a relação do pregador entrava pelos ouvidos a representação daquela figura entra pelos olhos. Sabem, Padres pregadores, porque fazem pouco abalo os nossos sermões? Porque não pregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos. Porque convertia o Baptista tantos pecadores? Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Baptista 17. Jo 3:2 [Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não é manifestado o que havemos de ser. Mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele; porque assim como ele é o veremos.] 18. 17 Rm 10:16 [:17] [De sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus.] 49
sermões pregavam penitência: Agite poenitentiam.19 Homens, fazei penitência, e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis, aqui está o homem que é o retrato da penitência e da aspereza. As palavras do Baptista pregavam jejum e repreendiam os regalos e demasias da gula; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem que se sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Baptista pregavam composição e modéstia, e condenavam a soberba e a vaidade das galas; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem vestido de peles de camelo, com as cordas e cilício à raiz da carne. As palavras do Baptista pregavam despegos e retiros do Mundo, e fugir das ocasiões e dos homens; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui o homem que deixou as cortes e as sociedades, e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem uma coisa e veem outra, como se hão-de converter? Jacob punha as varas manchadas diante das ovelhas quando concebiam, e daqui procedia que os cordeiros nasciam manchados.20 Se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos as nossas manchas, como hão-de conceber virtudes? Se a minha vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras vão já refutadas nas minhas obras, se uma coisa é o semeador e outra o que semeia, como se há-de fazer fruto? Muito boa e muito forte razão era esta de não fazer fruto a palavra de Deus; mas tem contra si o exemplo e experiência de Jonas.21 Jonas fugitivo de Deus, desobediente, 19. Mt 3:2 [e dizendo: Arrependei-vos, porque é chegado o Reino dos céus.] 20. Gn 30:39 [E concebia o rebanho diante das varas, e as ovelhas davam crias listradas, salpicadas e malhadas.] Factun que est ut aves intuerentur virgas et parerent maculosa. 21. Jn [1:]1-4 [E veio a palavra do Senhor a Jonas, filho de Amitai, dizendo: Levanta-te, vai à grande cidade de Nínive e clama contra ela, porque a sua malícia subiu até mim. E Jonas se levantou para fugir de 50
sermão da sexagésima contumaz, e, ainda depois de engolido e vomitado, iracundo, impaciente, pouco caritativo, pouco misericordioso, e mais zeloso e amigo da própria estimação que da honra de Deus e salvação das almas, desejoso de ver subvertida a Nínive e de a ver subverter com seus olhos, havendo nela tantos mil inocentes; contudo este mesmo homem com um sermão converteu o maior rei, a maior corte e o maior reinado do Mundo, e não de homens fiéis senão de gentios idólatras. Outra é logo a causa que buscamos. Qual será?
v Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afectado, um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razão é também esta. O estilo há-de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit, qui seminat, seminare. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes tudo é arte: na música tudo se faz por compasso, na arquitectura tudo se faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geometria tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte, caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho. Caía o trigo nos espinhos e nascia: Aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae. Caía o trigo nas pedras e nascia: Aliud cecidit super petram, et ortum. Caía o trigo na terra boa e nascia: Aliud cecidit in terram bonam, et natum. Ia o trigo caindo e ia nascendo. diante da face do Senhor para Társis; e, descendo a Jope, achou um navio que ia para Társis; pagou, pois, a sua passagem e desceu para dentro dele, para ir com eles para Társis, de diante da face do Senhor. Mas o Senhor mandou ao mar um grande vento, e fez-se no mar uma grande tempestade, e o navio estava para quebrar-se.] 51
sermões Assim há-de ser o pregar. Hão-de cair as coisas e hão-de nascer; tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo. Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa! Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martírio; uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados; só atados não vêm! Há tal tirania? Então no meio disto, que bem levantado está aquilo! Não está a coisa no levantar, está no cair: Cecidit. Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há-de ter três modos de cair: há-de cair com queda, há-de cair com cadência, há-de cair com caso. A queda é para as coisas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as coisas, porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar; hão-de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hão-de ser escabrosas nem dissonantes; hão-de ter cadência. O caso é para a disposição, porque há-de ser tão natural e tão desafectada que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit. Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que houve no Mundo. E qual foi ele? O mais antigo pregador que houve no Mundo foi o céu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum, diz David.22 Suposto que o céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter: palavras. Sim, tem, diz o mesmo David; tem palavras e tem sermões; e mais, muito bem ouvidos. Non sunt loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum.23 E quais são estes sermões e estas palavras do céu? As palavras são as 22. Sl 18:1[:2] [Os céus manifestam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos.] 23. Sl 18:4 [Não é uma palavra nem uma linguagem, cuja voz não possa perceber.] 52
sermão da sexagésima estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há-de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo.24 Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte há-de estar branco, da outra há-de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão-de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão-de dizer subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão-de estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos do céu o estilo da disposição, e também o das palavras. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há-de ser o estilo da pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para sua lavoura e o mareante para sua navegação e o matemático para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler nem escrever, entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: estrelas que todos veem, e muito poucos as medem.
24. Jz 5:20 [Desde os céus pelejaram; até as estrelas desde os lugares dos seus cursos pelejaram contra Sísera.] 53
sermões Sim, Padre; porém esse estilo de pregar não é pregar culto. Mas fosse! Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. E possível que somos portugueses e havemos de ouvir um pregador em português e não havemos de entender o que diz⁈ Assim como há Lexicon para o grego e Calepino para o latim, assim é necessário haver um vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomara para os nomes próprios, porque os cultos têm desbaptizados os santos, e cada autor que alegam é um enigma. Assim o disse o Ceptro Penitente, assim o disse o Evangelista Apeles, assim o disse a Águia de África, o Favo de Claraval, a Púrpura de Belém, a Boca de Ouro. Há tal modo de alegar! O Ceptro Penitente dizem que é David, como se todos os ceptros não foram penitência; o Evangelista Apeles, que é S. Lucas; o Favo de Claraval, S. Bernardo; a Águia de África, Santo Agostinho; a Púrpura de Belém, S. Jerónimo; a Boca de Ouro, S. Crisóstomo. E quem quitaria ao outro cuidar que a Púrpura de Belém é Herodes, que a Águia de África é Cipião, e que a Boca de Ouro é Midas? Se houvesse um advogado que alegasse assim a Bártolo e Baldo, havíeis de fiar dele o vosso pleito? Se houvesse um homem que assim falasse na conversação, não o havíeis de ter por néscio? Pois o que na conversação seria necedade, como há-de ser discrição no púlpito? Boa me parecia também esta razão; mas como os cultos pelo pulido e estudado se defendem com o grande Nazianzeno, com Ambrósio, com Crisólogo, com Leão, e pelo escuro e duro, com Clemente Alexandrino, com Tertuliano, com Basílio de Selêucia, com Zeno Veronense e outros, não podemos negar a reverência a tamanhos autores, posto que desejáramos, nos que se prezam de beber destes rios, a sua profundidade. Qual será logo a causa de nossa queixa? 54
sermão da sexagésima
vi Será pela matéria ou matérias que tomam os pregadores? Usa-se hoje o modo que chamam de apostilar o Evangelho, em que tomam muitas matérias, levantam muitos assuntos e quem levanta muita caça e não segue nenhuma não é muito que se recolha com as mãos vazias. Boa razão é também esta. O sermão há-de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso Cristo disse que o lavrador do Evangelho não semeara muitos géneros de sementes, senão uma só: Exiit, qui seminat, seminare semen. Semeou uma semente só, e não muitas, porque o sermão há-de ter uma só matéria, e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste género. Como semeiam tanta variedade, não podem colher coisa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto e se navega tão pouco. Um assunto vai para um vento, outro assunto vai para outro vento; que se há-de colher senão vento? O Baptista convertia muitos em Judeia; mas quantas matérias tomava? Uma só matéria: Parate viam Domini:25 a preparação para o Reino de Cristo. Jonas converteu os Ninivitas; mas quantos assuntos tomou? Um só assunto: Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur:26 a subversão da cidade. De maneira 25. Mt 3:3 [Porque este é o anunciado pelo profeta Isaías, que disse: Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas.] 26. Jn 3:4 [E começou Jonas a entrar pela cidade caminho de um dia, e pregava, e dizia: Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida.] 55
sermões que Jonas em quarenta dias pregou um só assunto; e nós queremos pregar quarenta assuntos em uma hora! Por isso não pregamos nenhum. O sermão há-de ser de uma só cor, há-de ter um só objecto, um só assunto, uma só matéria. Há-de tomar o pregador uma só matéria, há-de defini-la para que se conheça, há-de dividi-la para que se distinga, há-de prová-la com a Escritura, há-de declará-la com a razão, há-de confirmá-la com o exemplo, há-de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão-de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar, há-de responder às dúvidas, há-de satisfazer às dificuldades, há-de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários, e depois disto há-de colher, há-de apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de acabar. Isto é sermão, isto é pregar; e o que não é isto, é falar de mais alto. Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discursos, mas esses hão-de nascer todos da mesma matéria e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede: Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há-de ser o sermão: há-de ter raízes fortes e sólidas, porque há-de ser fundado no Evangelho; há-de ter um tronco, porque há-de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco hão-de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos não hão-de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão-de ser vestidos e ornados de palavras. Há-de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios; há-de ter flores, que são as sentenças; e por remate de tudo isto, há-de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há-de ordenar o sermão. De maneira que há-de haver frutos, há-de haver flores, há-de haver varas, há-de haver folhas, há-de haver ramos, mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se tudo são troncos, 56
sermão da sexagésima não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são maravalhas. Se tudo são folhas, não é sermão, são verças. Se tudo são varas, não é sermão, é feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não pode ser; porque não há frutos sem árvore. Assim que nesta árvore, à que podemos chamar árvore da vida, há-de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos; mas tudo isto nascido e formado de um só tronco, e esse não levantado no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: Seminare semen. Eis aqui como hão-de ser os sermões, eis aqui como não são. E assim não é muito que se não faça frutos com eles. Tudo o que tenho dito pudera demonstrar largamente, não só com os preceitos dos Aristóteles, dos Túlios, dos Quintilianos, mas com a prática observada do príncipe dos oradores evangélicos: S. João Crisóstomo, S. Basílio Magno, S. Bernardo. S. Cipriano, e com as famosíssimas orações de S. Gregório Nazianzeno, mestre de ambas as Igrejas. E posto que nestes mesmos Padres, como em Santo Agostinho, S. Gregório e muitos outros, se acham os Evangelhos apostilados com nomes de sermão e homilias, uma coisa é expor, e outra pregar; uma ensinar e outra persuadir. E desta última é que eu falo, com a qual tanto fruto fizeram no Mundo Santo António de Pádua e S. Vicente Ferrer. Mas nem por isso entendo que seja ainda esta a verdadeira causa que busco.
vii Será porventura a falta de ciência que há em muitos pregadores? Muitos pregadores há que vivem do que não colheram e semeiam o que não trabalharam. Depois da sentença de Adão, a terra não costuma dar fruto, senão a quem come o seu pão com o suor do seu rosto. Boa razão parece também esta. O pregador há-de pregar o seu e não 57
sermões o alheio. Por isso diz Cristo que semeou o lavrador do Evangelho o trigo seu: Semen suum. Semeou o seu e não o alheio, porque o alheio e o furtado não é bom para semear, ainda que o furto seja de ciência. Comeu Eva o pomo da ciência, e queixava-me eu antigamente desta nossa mãe; já que comeu o pomo, por que lhe não guardou as pevides? Não seria bem que chegasse a nós a árvore, já que nos chegaram os encargos dela? Pois porque não o fez assim Eva? Porque o pomo era furtado, e o alheio é bom para comer, não é bom para semear: é bom para comer, porque dizem que é saboroso; não é bom para semear, porque não nasce. Alguém terá experimentado que o alheio lhe nasce em casa, mas esteja certo, que se nasce, não há-de deitar raízes, e o que não tem raízes não pode dar fruto. Eis aqui por que muitos pregadores não fazem fruto; porque pregam o alheio, e não o seu: semen suum. O pregar é entrar em batalha com os vícios; e armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ninguém deram vitória.27 Quando David saiu a campo com o gigante, ofereceu-lhe Saul as suas armas, mas ele não as quis aceitar. Com as armas alheias ninguém pode vencer, ainda que seja David. As armas de Saul só servem a Saul, e as de David a David; e mais aproveita um cajado e uma funda própria, que a espada e a lança alheia. Pregador que peleja com as armas alheias, não hajais medo que derribe gigante. Fez Cristo aos Apóstolos pescadores de homens,28 que foi ordená-los de pregadores; e que faziam os Apóstolos? Diz o texto que estavam reficientes retia sua: refazendo as redes suas; eram as redes dos Apóstolos, e não eram alheias. Notai: retia sua. Não diz que eram suas porque as compra27. Pátroclo com as armas de Aquiles foi vencido e morto. 28. Mt 4:21 [:19) [e disse-lhes: Vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homens.] Fadam vos Piscatores Hominum. 58
sermão da sexagésima ram, senão que eram suas porque as faziam; não eram suas porque lhes custaram o seu dinheiro, senão porque lhes custavam o seu trabalho. Desta maneira eram as redes suas; e porque desta maneira eram suas, por isso eram redes de pescadores que haviam de pescar homens. Com redes alheias ou feitas por mãos alheias, podem-se pescar peixes, homens não se podem pescar. A razão disto é porque nesta pesca de entendimentos só quem sabe fazer a rede sabe fazer o lanço. Como se faz uma rede? Do fio e do nó se compõe a malha; quem não enfia nem ata, como há-de fazer rede? E quem não sabe enfiar nem sabe atar, como há-de pescar homens? A rede tem chumbada que vai ao fundo, e tem cortiça que nada em cima da água. A pregação tem umas coisas de mais peso e de mais fundo, e tem outras mais superficiais e mais leves; e governar o leve e o pesado, só o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é cortiça. As razões não hão-de ser enxertadas, hão-de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento. Veio o Espírito Santo sobre os Apóstolos, e quando as línguas desciam do Céu, cuidava eu que se lhes haviam de pôr na boca; mas elas foram-se pôr na cabeça. Pois porque na cabeça e não na boca, que é o lugar da língua? Porque o que há-de dizer o pregador, não lhe há-de sair só da boca; há-lhe de sair pela boca, mas da cabeça. O que sai só da boca para nos ouvidos; o que nasce do juízo penetra e convence o entendimento. Ainda têm mais mistério estas línguas do Espírito Santo. Diz o texto que não se puseram todas as línguas sobre todos os Apóstolos, senão cada uma sobre cada um: Apparuerunt dispertitae linguae tanquam ignis, seditque
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sermões supra singulos eorum.29 E porque cada uma sobre cada um, e não todas sobre todos? Porque não servem todas as línguas a todos, senão a cada um a sua. Uma língua só sobre Pedro, porque a língua de Pedro não serve a André; outra língua só sobre André, porque a língua de André não serve a Filipe; outra língua só sobre Filipe, porque a língua de Filipe não serve a Bartolomeu, e assim dos mais. E senão, vede-o no estilo de cada um dos Apóstolos, sobre que desceu o Espírito Santo. Só de cinco temos escrituras; mas a diferença com que escreveram, como sabem os doutos, é admirável. As penas todas eram tiradas das asas daquela pomba divina; mas o estilo tão diverso, tão particular e tão próprio de cada um, que bem mostra que era seu. Mateus fácil, João misterioso, Pedro grave, Jacob forte, Tadeu sublime, e todos com tal valentia no dizer, que cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio e cada razão um triunfo. Ajuntai a estes cinco S. Lucas e S. Marcos, que também ali estavam, e achareis o número daqueles sete trovões que ouviu S. João no Apocalipse. Locuta sunt septem tonitrua voces suas.30 Eram trovões que falavam e desarticulavam as vozes, mas essas vozes eram suas: Voces suas; suas, e não alheias, como notou Ansberto: Non alienas, sed suas. Enfim, pregar o alheio é pregar o alheio, e com o alheio nunca se fez coisa boa. Contudo eu não me firmo de todo nesta razão, porque do grande Baptista sabemos que pregou o que tinha pregado Isaías, como notou S. Lucas, e não com outro nome, senão de sermões: Praedicans baptismum poenitentiae in remissionem peccatorum, sicut scriptum est in libro sermonun 29. At 2:3 [E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles.] 30. Ap 10:3 [e clamou com grande voz, como quando brama o leão; e, havendo clamado, os sete trovões fizeram soar as suas vozes.] 60
sermão da sexagésima Isaiae prophetae.31 Deixo o que tomou Santo Ambrósio de S. Basílio, S. Próspero e Beda de Santo Agostinho, Teofilato e Eutímio de S. João Crisóstomo.
viii Será finalmente a causa, que há tanto buscamos, a voz com que hoje falam os pregadores? Antigamente pregavam bradando, hoje pregam conversando. Antigamente a primeira parte do pregador era boa voz e bom peito. E verdadeiramente, como o Mundo se governa tanto pelos sentidos, podem às vezes mais os brados que a razão. Boa era também esta, mas não a podemos provar com o semeador, porque já dissemos que não era ofício de boca. Porém o que nos negou o Evangelho no semeador metafórico, nos deu no semeador verdadeiro, que é Cristo. Tanto que Cristo acabou a parábola, diz o Evangelho que começou o Senhor a bradar: Haec dicens clamabat.32 Bradou o Senhor, e não arrazoou sobre a parábola, porque era tal o auditório, que fiou mais dos brados que da razão. Perguntaram ao Baptista quem era? Respondeu ele: Ego vox clamantis in deserto:33 Eu sou uma voz que anda bradando neste deserto. Desta maneira se definiu o Baptista. A definição do pregador cuidava eu que era: voz que arrazoa e não voz que brada. Pois porque se definiu o Baptista pelo bradar e não pelo arrazoar; não pela razão, senão pelos 31. Lc 3:3 [:3-4] [E percorreu toda a terra ao redor do Jordão, pregando o batismo de arrependimento, para o perdão dos pecados, como está escrito no livro das palavras de Isaías profeta: Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor; endireitai as suas veredas.] 32. Lc 8:8 [E outra caiu em boa terra e, nascida, produziu fruto, cento por um. Dizendo ele estas coisas, clamava: Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça.] 33. Jo 1:23 [Disse: Eu sou a voz do que clama no deserto: Endireitai o caminho do Senhor, como disse o profeta Isaías.] 61
sermões brados? Porque há muita gente neste mundo com quem podem mais os brados que a razão, e tais eram aqueles a quem o Baptista pregava. Vede-o claramente em Cristo. Depois que Pilatos examinou as acusações que contra ele se davam, lavou as mãos e disse: Ego nullam causam invenio in homine isto:34 Eu nenhuma causa acho neste homem. Neste tempo todo o povo e os escribas bradavam de fora, que fosse crucificado: At illi magis clamabant, crucifigatur.35 De maneira que Cristo tinha por si a razão e tinha contra si os brados. E qual pôde mais? Puderam mais os brados que a razão. A razão não valeu para o livrar, os brados bastaram para o pôr na Cruz. E como os brados no Mundo podem tanto, bem é que bradem alguma vez os pregadores, bem é que gritem. Por isso Isaías chamou aos pregadores nuvens: Qui sunt isti, qui ut nubes volant? 36 A nuvem tem relâmpago, tem trovão e tem raio: relâmpago para os olhos, trovão para os ouvidos, raio para o coração; com o relâmpago alumia, com o trovão assombra, com o raio mata. Mas o raio fere a um, o relâmpago a muitos, o trovão a todos. Assim há-de ser a voz do pregador: um trovão do Céu, que assombre e faça tremer o Mundo. Mas que diremos à oração de Moisés? Concrescat ut pluvia doctrina mea: fluat ut ros eloquim meum? 37 Desça minha doutrina como chuva do céu, e a minha voz e as minhas palavras como orvalho que se destila brandamente 34. Lc 23:14 [Haveis-me apresentado este homem como pervertedor do povo; e eis que, examinando-o na vossa presença, nenhuma culpa, das de que o acusais, acho neste homem.] 35. Mt 27:23 [O governador, porém, disse: Mas que mal fez ele? E eles mais clamavam, dizendo: Seja crucificado!] 36. Is 60:8 [Quem são estes, que voam como nuvens, e como pombas para os seus pombais?] 37. Dt 32:2 [Goteje a minha doutrina como a chuva, destile o meu dito como o orvalho, como chuvisco sobre a erva e como gotas de água sobre a relva.] 62
sermão da sexagésima e sem ruído. Que diremos ao exemplo ordinário de Cristo, tão celebrado por Isaías: Non clamabit neque audietur vox ejus foris? 38 Não clamará, não bradará, mas falará com uma voz tão moderada que se não possa ouvir fora. E não há dúvida que o praticar familiarmente, e o falar mais ao ouvido que aos ouvidos, não só concilia maior atenção, mas naturalmente e sem força se insinua, entra, penetra e se mete na alma. Em conclusão que a causa de não fazerem hoje fruto os pregadores com a palavra de Deus, nem é a circunstância da pessoa: Qui seminat; nem a do estilo: seminare; nem a da matéria: semen; nem a da ciência: suum; nem a da voz: clamabat. Moisés tinha fraca voz;39 Amós tinha grosseiro estilo;40 Salomão multiplicava e variava os assuntos;41 Balaão não tinha exemplo de vida;42 o seu animal não tinha ciência; e contudo todos estes, falando, persuadiam e convenciam. Pois se nenhuma destas razões que discorremos, nem todas elas juntas são a causa principal nem bastante do pouco fruto que hoje faz a palavra de Deus, qual diremos finalmente que é a verdadeira causa?
38. Is 42:2 [Não clamará, não se exaltará, nem fará ouvir a sua voz na praça.] 39. Ex 4:10 (Voce gracili, segundo os Setenta.) [Então, disse Moisés ao Senhor: Ah! Senhor! Eu não sou homem eloquente, nem de ontem, nem de anteontem, nem ainda desde que tens falado ao teu servo; porque sou pesado de boca e pesado de língua.] 40. Am 1:1 [As palavras de Amós, que estava entre os pastores de Tecoa, o que ele viu a respeito de Israel, nos dias de Uzias, rei de Judá, e nos dias de Jeroboão, filho de Joás, rei de Israel, dois anos antes do terremoto.] 41. Eclesiastes, Capítulo 1. 42. Números, Capítulos 22 e 23. 63
sermões
ix As palavras que tomei por tema o dizem: Semen est verbum Dei. Sabeis, Cristãos, a causa por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como dizia) é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores não são palavras de Deus, que muito que não tenham a eficácia e os efeitos da palavra de Deus? Ventum seminabunt, et turbinem colligent,43 diz o Espírito Santo: Quem semeia ventos, colhe tempestades. Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é vaidade, se não se prega a palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de correr tormenta, em vez de colher fruto? Mas dir-me-eis: Padre, os pregadores de hoje não pregam do Evangelho, não pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus? Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus: Qui habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere,44 disse Deus por Jeremias. As palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavras do Demónio. Tentou o Demónio a Cristo a que fizesse das pedras pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore Dei.45 Esta sentença era 43. Os 8:7 [Porque semearam ventos e segarão tormentas; não há seara; a erva não dará farinha; se a der, tragá-Ia-ão os estrangeiros.] 44. Jr 23:28 [O profeta que teve um sonho, que conte o sonho; e aquele em quem está a minha palavra, que fale a minha palavra, com verdade. Que tem a palha com o trigo? — diz o Senhor.] 45. Mt 4:4 [Ele, porém, respondendo, disse: Está escrito: Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.] 64
sermão da sexagésima tirada do capítulo viii do Deuteronómio. Vendo o Demónio que o Senhor se defendia da tentação com a Escritura, leva-o ao Templo, e alegando o lugar do salmo xc, diz-lhe desta maneira: Mitte te deorsum; scriptum est enim, quia angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis: 46 Deita-te daí abaixo, porque prometido está nas Sagradas Escrituras que os anjos te tomarão nos braços, para que te não faças mal. De sorte que Cristo defendeu-se do Diabo com a Escritura, e o Diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras são palavra de Deus; pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo, como toma o Diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido, e o Diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido; e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido são palavras de Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do Diabo. As mesmas palavras que, tomadas no sentido em que Deus as disse, são defesa, tomadas no sentido em que Deus as não disse, são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o Diabo derribar a Cristo, e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo do templo. O pináculo do templo é o púlpito, porque é o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no templo: no deserto, tentou-o com a gula; no monte, tentou-o com a ambição; no templo, tentou-o com as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja, e que em muitas partes tem derribado dela, senão a Cristo, a sua fé. Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo indignos verdadeiramente de tão sagrado nome), dizei-me: esses assuntos inúteis que tantas vezes levantais, essas empresas 46. Sl 90:11 [Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos.] 65
sermões ao vosso parecer agudas que prosseguis, achaste-las alguma vez nos Profetas do Testamento Velho, ou nos Apóstolos e Evangelistas do Testamento Novo, ou no autor de ambos os Testamentos, Cristo? É certo que não, porque desde a primeira palavra do Génesis até à última do Apocalipse, não há tal coisa em todas as Escrituras. Pois se nas Escrituras não há o que dizeis e o que pregais, como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais: nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os Padres da Igreja? É esse o sentido da mesma gramática das palavras? Não, por certo; porque muitas vezes as tomais pelo que toam e não pelo que significam, e talvez nem pelo que toam. Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras de Deus, que nos queixamos que não façam fruto as pregações? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer dizer o que elas dizem⁈ E então ver cabecear o auditório a estas coisas, quando devíamos de dar com a cabeça pelas paredes de as ouvir! Verdadeiramente não sei de que mais me espante, se dos nossos conceitos, se dos vossos aplausos! Oh, que bem levantou o pregador! Assim é; mas que levantou? Um falso testemunho ao texto, outro falso testemunho ao santo, outro ao entendimento e ao sentido de ambos. Então que se converta o Mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus⁈ Se a alguém parecer demasiada a censura, ouça-me. Estava Cristo acusado diante de Caifás, e diz o Evangelista S. Mateus que por fim vieram duas testemunhas falsas: Novissime venerunt duo falsi testes.47 Estas testemunhas referiram que ouviram dizer a Cristo que, se os Judeus des47. Mt 26:60 [e não o achavam, apesar de se apresentarem muitas testemunhas falsas, mas, por fim, chegaram duas.] 66
sermão da sexagésima truíssem o templo, ele o tornaria a reedificar em três dias. Se lermos o Evangelista S. João, acharemos que Cristo verdadeiramente tinha dito as palavras referidas. Pois se Cristo tinha dito que havia de reedificar o templo dentro em três dias, e isto mesmo é o que referiram as testemunhas, como lhes chama o Evangelista testemunhas falsas: Duo falsi testes? O mesmo S. João deu a razão: Loquebatur de templo corporis sui.48 Quando Cristo disse que em três dias reedificaria o templo, falava o Senhor do templo místico de seu corpo, o qual os Judeus destruíram pela morte e o Senhor o reedificou pela ressurreição; e como Cristo falava do templo místico e as testemunhas o referiram ao templo material de Jerusalém, ainda que as palavras eram verdadeiras, as testemunhas eram falsas. Eram falsas, porque Cristo as dissera em um sentido, e eles as referiram em outro; e referir as palavras de Deus em diferente sentido do que foram ditas, é levantar falso testemunho a Deus, é levantar falso testemunho às Escrituras. Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes ouço dizer que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouço dizer que são palavras vossas, o que são imaginações minhas, que me não quero excluir deste número! Que muito logo que as nossas imaginações e as nossas vaidades e as nossas fábulas não tenham a eficácia de palavra de Deus! Miseráveis de nós, e miseráveis dos nossos tempos! Pois neles se veio a cumprir a profecia de S. Paulo: Erit tempus, cum sanam doctrinam non sustinebunt: 49 Virá tempo, diz S. Paulo, em que os homens não sofrerão a doutrina sã. Sed ad sua desideria coacervabunt sibi magistros prurientes auribus. Mas para seu apetite terão grande número de pregado48. Jo 2:21 [Mas ele falava do templo do seu corpo.] 49. Tm 4:3 [Porque virá tempo em que não sofrerão a sã doutrina; mas, tendo comichão nos ouvidos, amontoarão para si doutores conforme as suas próprias concupiscências.] 67
sermões res feitos a montão e sem escolha, os quais não façam mais que adular-lhes as orelhas. A veritate quidem auditum avertent, ad fabulas autem convertentur. Fecharão os ouvidos à verdade, e abri-los-ão às fábulas. Fábula tem duas significações: quer dizer fingimento e quer dizer comédia; e tudo são muitas pregações deste tempo. São fingimento, porque são subtilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; são comédia, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes. Uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente era acabarem-se as comédias em Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se; passaram do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareça em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Séneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do Mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros e muito mais sólidos, do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um poeta profano e gentio, que nas pregações de um orador cristão, e muitas vezes, sobre cristão, religioso! Pouco disse S. Paulo em lhe chamar comédia, porque muitos sermões há que não são comédia, são farsa. Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao Mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos ásperos, são de penitência; e todos, desde o dia que os professamos, mortalhas); a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio; e quando este se rompeu, que é o que se ouve? Se neste auditório estivesse um estrangeiro que nos não conhecesse e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajos e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta 68
sermão da sexagésima do Céu; que cada palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto e com as ações havia de fazer em pó e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. E nós que é o que vemos? Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afectada e muito polida, e logo começar com muito desgarro, a quê? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades destas. Não é isto farsa mais digna de riso, se não fora tanto para chorar? Na comédia o rei veste como rei e fala como rei; o lacaio veste como lacaio e fala como lacaio; o rústico veste como rústico e fala como rústico; mas um pregador, vestir como religioso e falar como… não o quero dizer, por reverência do lugar. Já que o púlpito é teatro, e o sermão comédia se quer, não faremos bem a figura? Não dirão as palavras com o vestido e com o ofício? Assim pregava S. Paulo, assim pregavam aqueles patriarcas que se vestiram e nos vestiram destes hábitos? Não louvamos e não admiramos o seu pregar? Não nos prezamos de seus filhos? Pois porque não os imitamos? Porque não pregamos como eles pregavam? Neste mesmo púlpito pregou S. Francisco Xavier, neste mesmo púlpito pregou S. Francisco de Borja; e eu, que tenho o mesmo hábito, porque não pregarei a sua doutrina, já que me falta o seu espírito?
x Dir-me-eis o que a mim me dizem, e o que já tenho experimentado, que, se pregamos assim, zombam de nós os ouvintes, e não gostam de ouvir. Oh, boa razão para um servo de Jesus Cristo! Zombem e não gostem embora, e façamos nós nosso ofício! A doutrina de que eles zombam, a 69
sermões doutrina que eles desestimam, essa é a que lhes devemos pregar, e por isso mesmo, porque é mais proveitosa e a que mais hão mister. O trigo que caiu no caminho comeram-no as aves. Estas aves, como explicou o mesmo Cristo, são os demónios, que tiram a palavra de Deus dos corações dos homens: Venit diabolus, et tollit verbum de corde ipsorum! Pois por que não comeu o Diabo o trigo que caiu entre os espinhos, ou o trigo que caiu nas pedras, senão o trigo que caiu no caminho? Porque o trigo que caiu no caminho: conculcatum est ab hominibus: pisaram-no os homens; e a doutrina que os homens pisam, a doutrina que os homens desprezam, essa é a de que o Diabo se teme. Dessoutros conceitos, dessoutros pensamentos, dessoutras subtilezas que os homens estimam e prezam, dessas não se teme nem se acautela o Diabo, porque sabe que não são essas as pregações que lhe hão-de tirar as almas das unhas. Mas daquela doutrina que cai: Secus viam: daquela doutrina que parece comum: Secus viam; daquela doutrina que parece trivial: Secus viam; daquela doutrina que parece trilhada: Secus viam; daquela doutrina que nos põe em caminho e em via da nossa salvação (que é a que os homens pisam e a que os homens desprezam), essa é a de que o Demónio se receia e se acautela, essa é a que procura comer e tirar do Mundo; e por isso mesmo essa é a que deviam pregar os pregadores, e a que deviam buscar os ouvintes. Mas se eles não o fizerem assim e zombarem de nós, zombemos nós tanto de suas zombarias como dos seus aplausos. Per infamiam et bonam famam,50 diz S. Paulo: O pregador há-de saber pregar, com fama e sem fama. Mais diz o Apóstolo: Há-de pregar com fama e com infâmia. Pregar o pregador para ser afamado, isso é mundo:
50. 2Cor 15:27 [6:8] [entre a glória e a ignomínia, entre a infâmia e o bom nome; como deconhecidos, embora conhecidos.] 70
sermão da sexagésima mas infamado, e pregar o que convém, ainda que seja com descrédito de sua fama, isso é ser pregador de Jesus Cristo. Pois o gostarem ou não gostarem os ouvintes! Oh que advertência tão digna! Que médico há que repare no gosto do enfermo, quando trata de lhe dar saúde? Sarem e não gostem; salvem-se e amargue-lhes, que para isso somos médicos das almas. Quais vos parece que são as pedras sobre que caiu parte do trigo do Evangelho? Explicando Cristo a parábola, diz que as pedras são aqueles que ouvem a pregação com gosto: Hi sunt, qui cum gaudio suscipiunt verbum. Pois será bem que os ouvintes gostem e que no cabo fiquem pedras⁈ Não gostem e abrandem-se; não gostem e quebrem-se; não gostem e frutifiquem. Este é o modo com que frutificou o trigo que caiu na boa terra: Et fructum afferunt in patientia, conclui Cristo. De maneira que o frutificar não se ajunta com o gostar, senão com o padecer; frutifiquemos nós, e tenham eles paciência. A pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atónito, sem saber parte de si, então é a pregação qual convém, então se pode esperar que faça fruto: Et fructum afferunt in patientia. Enfim, para que os pregadores saibam como hão-de pregar e os ouvintes a quem hão-de ouvir, acabo com um exemplo do nosso Reino, e quase dos nossos tempos. Pregavam em Coimbra dois famosos pregadores, ambos bem conhecidos por seus escritos; não os nomeio, porque os hei-de desigualar. Altercou-se entre alguns doutores da Universidade qual dos dois fosse maior pregador; e como não há juízo sem inclinação, uns diziam este, outros aquele. Mas um lente, que entre os mais tinha maior autoridade, concluiu desta maneira: Entre dois sujeitos tão grandes não me atrevo a 71
sermões interpor juízo; só direi uma diferença, que sempre experimento: quando ouço um, saio do sermão muito contente do pregador; quando ouço outro, saio muito descontente de mim. Com isto tenho acabado. Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saíeis do sermão muito contentes do pregador; agora quisera eu desenganar-vos tanto, que saíreis muito descontentes de vós. Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões: não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições e, enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, descontentem-se embora de nós. Si hominibus placerem, Christus servus non essem,51 dizia o maior de todos os pregadores, S. Paulo: Se eu contentara aos homens, não seria servo de Deus. Oh, contentemos a Deus, e acabemos de não fazer caso dos homens! Advirtamos que nesta mesma Igreja há tribunas mais altas que as que vemos: Spectaculum facti sumus Deo, angelis et hominibus.52 Acima das tribunas dos reis, estão as tribunas dos anjos, está a tribuna e o tribunal de Deus, que nos ouve e nos há-de julgar. Que conta há-de dar a Deus um pregador no Dia do Juízo? O ouvinte dirá: Não mo disseram; mas o pregador? Vae mihi, quia tacui: 53 Ai de mim, que não disse o que convinha! Não seja mais assim, 51. Gl 1:10 [Porque, em suma, é a aprovação dos homens que eu procuro, ou a de Deus? Porventura é aos homens que eu pretendo agradar? Se agradasse ainda aos homens, não seria servo de Cristo.] 52. 1Cr 4:9 [Porque entendo que Deus nos expôs a nós, Apóstolos, como os últimos, como destinados à morte porque somos dados em espetáculo ao mundo, e aos anjos, e aos homens.] 53. Is 6:5 [Então disse eu: Ai de mim que me calei, porque sou um homem de lábios impuros, e habito no meio de um povo que tem os seus também impuros, e vi com os meus olhos o rei, o Senhor dos exércitos.] 72
sermão da sexagésima por amor de Deus e de nós! Estamos às portas da Quaresma, que é o tempo em que principalmente se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vícios. Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas, contra os ódios, contra as ambições, contra as invejas, contra as cobiças, contra as sensualidades. Veja o Céu que ainda tem na terra quem se põe da sua parte. Saiba o Inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus, e saiba a mesma terra que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto: Et fecit fructum centuplum.
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Sermão de quarta-feira de cinza
Em Roma, na Igreja de S. Antônio dos Portugueses, ano de 1672 Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverentis.2
i Duas coisas prega hoje a Igreja a todos os mortais, ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. Mas uma de tal maneira certa e evidente, que não é necessário entendimento para crer; outra de tal maneira certa e dificultosa, que nenhum entendimento basta para a alcançar. Uma é presente, outra futura, mas a futura veem-na os olhos, a presente não a alcança o entendimento. E que duas coisas enigmáticas são estas? Pulvis es, tu in pulverem reverteris: Sois pó, e em pó vos haveis de converter. Sois pó, é a presente; em pó vos haveis de converter, é a futura. O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, veem-no os olhos; o pó presente, o pó que somos, nem os olhos o veem, nem o entendimento o alcança. Que me diga a Igreja que hei de ser pó: Jn pulverem reverteris, não é necessário fé nem entendimento para o crer. Naquelas sepulturas, ou abertas ou 2. [Jó 10:9] [Peço-te que te lembres de que, como barro, me formaste, e de que ao pó me farás tornar.] 75
sermões cerradas, o estão vendo os olhos. Que dizem aquelas letras? Que cobrem aquelas pedras? As letras dizem pó, as pedras cobrem pó, e tudo o que ali há é o nada que havemos de ser: tudo pó. Vamos, para maior exemplo e maior horror, a esses sepulcros recentes do Vaticano. Se perguntardes de quem são pó aquelas cinzas, responder-vos-ão os epitáfios, que só as distinguem: Aquele pó foi Urbano, aquele pó foi Inocêncio, aquele pó foi Alexandre, e este que ainda não está de todo desfeito, foi Clemente. De sorte que para eu crer que hei de ser pó, não é necessário fé, nem entendimento, basta a vista. Mas que me diga e me pregue hoje a mesma Igreja, regra da fé e da verdade, que não só hei de ser pó de futuro, senão que já sou pó de presente: Pulvis es? Como o pode alcançar o entendimento, se os olhos estão vendo o contrário? É possível que estes olhos que veem, estes ouvidos que ouvem, esta língua que fala, estas mãos e estes braços que se movem, estes pés que andam e pisam, tudo isto, já hoje é pó: Pulvis es? Argumento à Igreja com a mesma Igreja: Memento homo. A Igreja diz-me, e supõe que sou homem: logo não sou pó. O homem é uma substância vivente, sensitiva, racional. O pó vive? Não. Pois como é pó o vivente? O pó sente? Não. Pois como é pó o sensitivo? O pó entende e discorre? Não. Pois como é pó o racional? Enfim, se me concedem que sou homem: Memento homo, como me pregam que sou pó: Quia pulvis es? Nenhuma coisa nos podia estar melhor que não ter resposta nem solução esta dúvida. Mas a resposta e a solução dela será a matéria do nosso discurso. Para que eu acerte a declarar esta dificultosa verdade, e todos nós saibamos aproveitar deste tão importante desengano, peçamos àquela Senhora, que só foi exceção deste pó, se digne de nos alcançar graça. Ave Maria.
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sermão de qarta-feira de cinza
ii Enfim, senhores, não só havemos de ser pó, mas já somos pó: Pulvis es. Todos os embargos que se podiam pôr contra esta sentença universal são os que ouvistes. Porém como ela foi pronunciada definitiva e declaradamente por Deus ao primeiro homem e a todos seus descendentes, nem admite interpretação, nem pode ter dúvida. Mas como pode ser? Como pode ser que eu que o digo, vós que o ouvis, e todos os que vivemos sejamos já pó: Pulvis es? A razão é esta. O homem, em qualquer estado que esteja, é certo que foi pó, e há de tornar a ser pó. Foi pó, e há de tomar a ser pó? Logo é pó. Porque tudo o que vive nesta vida, não é o que é: é o que foi e o que há de ser. Ora vede. No dia aprazado em que Moisés e os magos do Egito haviam de fazer prova e ostentação de seus poderes diante de eI rei Faraó, Moisés estava só com Arão de uma parte, e todos os magos da outra. Deu sinal o rei, mandou Moisés a Arão que lançasse a sua vara em terra, e converteu-se subitamente em uma serpente viva e tão temerosa, como aquela de que o mesmo Moisés no deserto se não dava por seguro. Fizeram todos os magos o mesmo: começam a saltar e a ferver serpentes, porém a de Moisés investiu e avançou a todas elas intrépida e senhorilmente, e assim, vivas como estavam, sem matar nem despedaçar, comeu e engoliu a todas. Refere o caso a Escritura, e diz estas palavras: Devoravit virga Aaron virgas eorum: 3 a vara de Arão comeu e engoliu as dos egípcios. Aqui reparo. Parece que não havia de dizer a Vara, senão a Serpente. A vara não tinha boca para comer, nem dentes para mastigar, nem garganta para engolir, nem estômago para recolher tanta multidão de serpentes. A serpente, em que a vara se converteu, sim, porque era um 3. Ex 7:12 [Porque cada um lançou sua vara, e tornaram-se em serpentes; mas a vara de Arão tragou as varas deles.] 77
sermões dragão vivo, voraz e terrível, capaz de tamanha batalha e de tanta façanha. Pois, por que diz o texto que a vara foi a que fez tudo isto, e não a serpente? Porque cada um é o que foi e o que há de ser. A vara de Moisés, antes de ser serpente, foi vara, e depois de ser serpente, tornou a ser vara; a serpente que foi vara e há de tornar a ser vara não é serpente, é vara: Virga Aaron. E verdade que a serpente naquele tempo estava viva, e andava, e comia, e batalhava, e vencia, e triunfava, mas como tinha sido vara, e havia de tornar a ser vara, não era o que era: era o que fora e o que havia de ser: Virga. Ah! serpentes astutas do mundo, vivas e tão vivas! Não vos fieis da vossa vida nem da vossa viveza; não sois o que cuidais nem o que sois: sois o que fostes e o que haveis de ser. Por mais que vós vejais agora um dragão coroado e vestido de armas douradas, com a couda levantada e retorcida açoitando os ventos, o peito inchado, as asas estendidas, o colo encrespado e soberbo, a boca aberta, dentes agudos, língua trifitricada, olhos cintilantes, garras e unhas rompentes, por mais que se veja esse dragão já tremular na bandeira dos lacedemônios, já passear nos jardins das hespérides,já guardar os tesouros de Midas, ou seja dragão volante entre os meteoros, ou dragão de estrelas entre as constelações, ou dragão de divindade afetada entre as hierarquias, se foi vara, e há de ser vara, é vara; se foi terra, e há de ser terra, é terra; se foi nada, e há de ser nada, é nada, porque tudo o que vive neste mundo é o que foi e o que há de ser. Só Deus é o que é, mas por isso mesmo. Por isso mesmo. Notai. Apareceu Deus ao mesmo Moisés nos desertos de Midiã; manda-o que leve a nova da liberdade ao povo cativo, e perguntando Moisés quem havia de dizer que o mandava, para que lhe dessem crédito, respondeu Deus e definiu-se:
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sermão de qarta-feira de cinza Ego sum qui sum: 4 Eu sou o que sou. Dirás que o que é te manda: Qui est misit me ad vos? Qui est? O que é? E que nome, ou que distinção é esta? Também Moisés é o que é, também Faraó é o que é, também o povo, com que há de falar, é o que é. Pois se este nome e esta definição toca a todos e a tudo, como a toma Deus só por sua? E se todos são o que são, e cada um é o que é, por que diz Deus não só como atributo, senão como essência própria da sua divindade: Ego sum qui sum: Eu sou o que sou? Excelentemente S. Jerônimo, respondendo com as palavras do Apocalipse: Qui est, et qui erat, et qui venturus est.5 Sabeis por que diz Deus: Ego sum qui sum? Sabeis por que só Deus é o que é? Porque só Deus é o que foi e o que há de ser. Deus é Deus, e foi Deus, e há de ser Deus; e só quem é o que foi e o que há de ser, é o que é: Qui est, et qui erat, et qui venturus est. Ego sum qui sum. De maneira que quem é o que foi e o que há de ser, é o que é, e este é só Deus. Quem não é o que foi e o que há de ser, não é o que é: é o que foi e o que há de ser: e esses somos nós. Olhemos para trás: que é o que fomos? Pó. Olhemos para diante: que é o que havemos de ser? Pó. Fomos pó e havemos de ser pó? Pois isso é o que somos: Pulvis es. Eu bem sei que também há deuses da terra, e que esta terra onde estamos foi a pátria comum de todos os deuses, ou próprios, ou estrangeiros. Aqueles deuses eram de diversos metais; estes são de barro, ou cru ou mal cozido, mas deuses. Deuses na grandeza, deuses na majestade, deuses no poder, deuses na adoração, e também deuses no nome: Ego dixi, Dii estis.6 Mas se houver, que pode haver, se houver al4. Ex 3:14 [E disse Deus a Moisés: Eu sou o que sou. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou a vós.] 5. Ap 1:4 [João, às sete igrejas que estão na Ásia: Graça e paz seja convosco da parte daquele que é, e que era, e que há de vir, e da dos sete Espíritos que estão diante do seu trono.] 6. Sl 81:6 [Eu disse: sois deuses, e todos filhos do Altíssimo.] 79
sermões gum destes deuses que cuide ou diga: Ego sum qui sum, olhe primeiro o que foi e o que há de ser. Se foi Deus, e há de ser Deus, é Deus: eu o creio e o adoro; mas se não foi Deus, nem há de ser Deus, se foi pó, e há de ser pó, faça mais caso da sua sepultura que da sua divindade. Assim lho disse e os desenganou o mesmo Deus que lhes chamou deuses: Ego dixi, Dii estis. Vos outem sicut homines moremini.7 Quem foi pó e há de ser pó, seja o que quiser e quanto quiser, é pó: Pulvis es.
iii Parece-me que tenho provado a minha razão e a consequência dela. Se a quereis ver praticada em próprios termos, sou contente. Praticaram este desengano dois homens que sabiam mais de nós que nós: Abraão e Jó, com outro memento como o nosso, dizia a Deus: Memento quaeso, quod sicuit lutum feceris me, et in pulverem deduces me.8 Lembrai-vos, Senhor, que me fizestes de pó, e que em pó me haveis de tornar. Abraão, pedindo licença ou atrevimento para falar a Deus: Loquar ad Dominum, cum sim pulvis et cinis: 9 Falar-vos-ei, Senhor, ainda que sou pó e cinza. Já vedes a diferença dos termos que não pode ser maior, nem também mais natural ao nosso intento. Jó diz que foi pó e há de ser pó; Abraão não diz que foi, nem que há de ser, senão que já é pó: Cum sim pulvis et cinis. Se um destes homens fora morto e outro vivo, falavam muito propriamente, porque todo o vivo pode dizer: Eu fui pó, e hei de ser pó; e um morto, se falar, havia de dizer: Eu já sou pó. Mas Abraão que disse isto, não estava morto, senão vivo, 7. Sl 81:7 [Mas vós como homens morrereis, e caireis como um príncipe qualquer.] 8. Jó 10:9 [Peço-te que te lembres de que, como barro, me formaste, e de que ao pó me farás tornar.] 9. Gn 18:27 [E respondeu Abraão, dizendo: Eis que, agora, me atrevi a falar ao Senhor, ainda que sou pó e cinza.] 80
sermão de qarta-feira de cinza como Jó; e Abraão e Jó não eram de diferente metal, nem de diferente natureza. Pois se ambos eram da mesma natureza, e ambos estavam vivos, como diz um que já é pó, e outro não diz que o é, senão que o foi e que o há de ser? Por isso mesmo. Porque Jó foi pó e há de ser pó, por isso Abraão é pó. Em Jó falou a morte, em Abraão falou a vida, em ambos a natureza. Um descreveu-se pelo passado e pelo futuro, o outro definiu-se pelo presente; um reconheceu o efeito, o outro considerou a cousa; um disse o que era, o outro declarou o porquê. Porque Jó e Abraão e qualquer outro homem foi pó, por isso já é pó. Fostes pó e haveis de ser pó como Jó? Pois já sois pó como Abraão: Cum sim pulvis et cinis. Tudo temos no nosso texto, se bem se considera, porque as segundas palavras dele não só contêm a declaração, senão também a razão das primeiras. Pulvis es: sois pó. E por quê? Porque in pulverem mverteris: porque fostes pó e haveis de tomar a ser pó. Esta é a força da palavra reverteris, a qual não só significa o pó que havemos de ser; senão também a pó que somos. Por isso não diz: convertetis, converter-vos-eis em pó, senão: reverteris, tomareis a ser o pó que fostes. Quando dizemos que os mortos se convertem em pó, falamos impropriamente, porque aquilo não é conversão, é reversão: reverteris. É tornar a ser na morte a pó que somos no nascimento; é tornar a ser na sepultura a pó que somos no campo damasceno. E porque somos pó e havemos de tomar a ser pó: Ia pulverem neverteris, por isso já somos pó: Pulvis es. Não é exposição minha, senão formalidade do mesmo texto, com que Deus pronunciou a sentença de morte contra Adão: Donec reverteris in terram de qua sumptus es: quia pulvis es:10 Até que tomes a ser a tenra de que fostes formado, porque és pó. De maneira que a razão e o porquê de 10. Gn 3:19 [No suor do teu rosto, comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado, porquanto és pó e em pó te tornarás.] 81
sermões sermos pó: Qutíapulvis es, é porque somos pó, e havemos de tomar a ser pó: Donec revertaris in terram de qua sumptus es. Só parece que se pode opor ou dizer em contrário, que aquele donec: até que, significa tempo em meio entre o pó que somos e o pó que havemos de ser, e que neste meio tempo não somos pó. Mas a mesma verdade divina que disse: donec, disse também: pulvis es. E a razão desta consequência está no reverteris, porque a reversão com que tornamos a ser a pó que fomos começa circularmente, não do último senão do primeiro ponto da vida. Notai. Esta nossa chamada vida não é mais que um círculo que fazemos de pó a pó: do pó que fomos ao pó que havemos de ser. Uns fazem o círculo maior, outros menor, outros mais pequeno, outros mínimo: De utero transíatus ad tumulum:11 Mas, ou a caminho seja largo, ou breve, ou brevíssimo, como é círculo de pó a pó, sempre e em qualquer parte da vida somos pó. Quem vai circularmente de um ponto para o mesmo ponto, quanto mais se aparta dele tanto mais se chega para ele; e quem quanto mais se aparta mais se chega, não se aparta. O pó que foi nosso princípio, esse mesmo, e não outro, é o nosso fim, e porque caminhamos circularmente deste pó para este pó, quanto mais parece que nos apartamos dele, tanto mais nos chegamos para ele; o passo que nos aparta, esse mesmo nos chega; o dia que faz a vida, esse mesmo a desfaz. E como esta roda que anda e desanda juntamente sempre nos vai moendo, sempre somos pó. Por isso, quando Deus intimau a Adão a reversão ou revolução deste circulo: Donec revertaris, das premissas: pó foste, e pó serás, tirou por consequência: pó és: Quia pulvis es. Assim que desde o primeiro instante da vida até o último nos devemos persuadir e assentar conosco,
11. Jó 10:19 [Então, fora como se nunca houvera sido; e desde o ventre seria levado à sepultura!] 82
sermão de qarta-feira de cinza que não só somos e havemos de ser pó, senão que já a somos, e por isso mesmo. Foste pó e hás de ser pó? És pó: Pulvis es.
iv Ora, suposto que já somos pó, e não pode deixar de ser, pois Deus o disse, perguntar-me-eis e com muita razão, em que nos distinguimos logo os vivos dos mortos? Os mortos são pó, nós também somos pó: em que nos distinguimos uns dos outros? Distinguimo-nos os vivos dos mortos, assim como se distingue o pó do pó. Os vivos são pó levantado, os mortos são pó caído: os vivos são pó que anda, os mortos são pó que jaz: Hic jacet. Estão essas praças no verão cobertas de pó; dá um pé-de-vento, levanta-se o pó no ar, e que faz? O que fazem os vivos, e muitos vivos. Não aquieta o pó, nem pode estar queda: anda, corre, voa, entrapar esta rua, sai por aquela; já vai adiante, já torna atrás; tudo enche, tudo cobre, tudo envolve, tudo perturba, tudo cega, tudo penetra, em tudo e por tudo se mete, sem aquietar, nem sossegar um momento, enquanto o vento dura. Acalmau o vento, cai o pó, e onde o vento parou, ali fica, ou dentro de casa, ou na rua, ou em cima de um telhado, ou no mar; ou no rio, ou no monte, ou na campanha. Não é assim? Assim é. E que pó, e que vento é este? O pó somos nós: Quia pulvis es; o vento é a nossa vida: Quia ventus es vita mea.12 Deu o vento, levantou-se o pó; parou a vento, caiu. Deu o vento, eis o pó levantado: esses são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído: estes são os mortos. Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado, os mortos pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade. Esta é a distinção, e não há outra. 12. Jó 7:7 [Lembra-te de que a minha vida é como o vento; os meus olhos não tornarão a ver o bem.] 83
sermões Nem cuide alguém que é isto metáfora ou comparação, senão realidade experimentada e certa. Forma Deus de pó aquela primeira estátua, que depois se chamou carpa de Adão. Assim o diz o texto original: Formavit Deus hominem de pulvere terrae.13 A figura era humana e muito primorosamente delineada, mas a substância ou a matéria não era mais que pó. A cabeça pó, o peito pó, os braços pó, os olhos, a boca, a língua, o coração, tudo pó. Chega-se pais Deus à estátua, e que fez? Inspiravit in faciem ejus: 14 Assoprou-a. E tanto que o vento do assopro deu no pó: Et factus est homo in animam viventem: eis o pó levantado e vivo; já é homem,já se chama Adão. Ah! pó, se aquietaras e pararas aí! Mas pó assoprada, e com vento, como havia de aquietar? Ei-la abaixa, ei-lo acima, e tanto acima, e tanto abaixo, dando uma tão grande volta, e tantas voltas. Já senhor do universo, já escravo de si mesma; já só, já acompanhado; já nu, já vestido; já coberta de folhas; já de peles; já tentada, já vencido; já homiziada, já desterrada; já pecador, já penitente, e para maior penitência, pai, chorando os filhos, lavrando a terra, recolhendo espinhos por frutos, suando, trabalhando, lidando, fatigando, com tantos vaivéns do gosto e da fortuna, sempre em uma roda viva. Assim andou levantado o pó enquanto durou o vento. O vento durou muito, porque naquele tempo eram mais largas as vidas, mas alfim parou. E que lhe sucedeu no mesmo ponto a Adão? O que sucede ao pó. Assim como o vento a levantou, e o sustinha, tanto que o vento parou, caiu. Pó levantado, Adão vivo; pó caído, Adão morto: Et mortus est. Este foi o primeiro pó, e o primeiro vivo, e o primeiro condenado à morte, e esta é a diferença que há de vivos 13. Gn 2:7 [E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra e soprou em seus narizes o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.] 14. Gn 2:7 [E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra e soprou em seus narizes o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.] 84
sermão de qarta-feira de cinza a mortos, e de pó a pó. Por isso na Escritura o morrer se chama cair, e o viver levantar-se. O morrer cair: Vos outem sicut hominas moriemini, et sicut unus de principibus cadetis.15 O viver, levantar-se: Adolescens, tibi dico, surget.16 Se levantados, vivos; se caídos, mortos; mas ou caídos ou levantados, ou mortos, ou vivos, pó: os levantados pó da vida, os mortos pó da morte. Assim a entendeu e notou Davi, e esta é a distinção que fez quando disse: Jn pulvere mortis deduxisti me: Levastes-me, Senhor, ao pó da morte. Não bastava dizer: Jn pulverem deduxisti, assim como: In pulverem reverteris? Se bastava; mas disse com maior energia: Ia pulverem mortis: ao pó da morte, porque há pó da morte, e pó da vida: os vivos, que andamos em pé, somos o pó da vida: Pulvis es; os mortos, que jazem na sepultura, são o pó da morte: In pulverem reverteris.
v À vista desta distinção tão verdadeira e deste desengano tão certo, que posso eu dizer ao nosso pó senão o que lhe diz a Igreja: Memento homo. Dois mementos hei de fazer hoje ao pó: um memento ao pó levantado, outro memento ao pó caído; um memento ao pó que somos, outro memento ao pó que havemos de ser; um memento ao pó que me ouve, outra memento ao pó que não pode ouvir. O primeiro será o memento dos vivos, o segundo o dos mortos. Aos vivos, que direi eu? Diga que se lembre o pó levantado que há de ser pó caído. Levanta-se o pó com a vento da vida, e muito mais como vento da fortuna; mas lembre-se o pó que o vento da fortuna não pode durar mais que o vento 15. Sl 81:7 [Mas vós como homens morrereis, e caireis como um príncipe qualquer.] 16. Lc 7:14 [E, chegando-se, locou o esquife (e os que o levavam pararam) e disse: Jovem, eu te digo: Levanta-te.] 85
sermões da vida, e que pode durar muito menos, porque é mais inconstante. O vento da vida por mais que cresça, nunca pode chegar a ser bonança; o vento da fortuna, se cresce, pode chegar a ser tempestade, e tão grande tempestade que se afogue nela o mesmo vento da vida. Pó levantado, lembra-te outra vez que hás de ser pó caído, e que tudo há de cair e ser pó contigo. Estátua de Nabuco: ouro, prata, bronze, ferro, lustre, riqueza, fama, poder, lembra-te que tudo há de cair de um golpe, e que então se verá o que agora não queremos ver: que tudo é pó, e pó de terra. Eu não me admiro, senhores, que aquela estátua em um momento se convertesse toda em pó: era imagem de homem; isso bastava. O que me admira e admirou sempre é que se convertesse, como diz o texto, em pó de terra: In favilíam aestivae areae.17 A cabeça da estátua não era de ouro? Pois porque se não converte o ouro em pó de ouro? O peito e os braços não eram de prata? Porque se não converte a prata em pó de prata? O ventre não era de bronze, e ademais de ferro? Porque se não converte o bronze em pó de bronze e o ferro em pó de ferro? Mas o ouro, a prata, a bronze, o ferro, tudo em pó de terra? Sim. Tudo em pó de terra. Cuida a ilustre desvanecida que é de ouro, e todo esse resplendor, em caindo, há de ser pó, e pó de terra. Cuida o rico inchado que é de prata, e toda essa riqueza em caindo há de ser pó, e pó de terra. Cuida o robusto que é de bronze, cuida o valente que é de ferro, um confiado, outro arrogante, e toda essa fortaleza, e toda essa valentia em caindo há de ser pó, e pó de terra: In favilíam aestivae areae. Senhor pó: Nimium ne crede colori. A pedra que desfez em pó a estátua, é a pedra daquela sepultura. Aquela pedra, é como a pedra do pintor, que mói todas as cores, e todas 17. Dn 2:35 [Então, foi juntamente esmiuçado o ferro, o barro, o cobre, a prata e o ouro, os quais se fizeram como a pragana das eiras no estio, e o vento os levou, e não se achou lugar algum para eles; mas a pedra que feriu a estátua se fez um grande monte e encheu toda a terra.] 86
sermão de qarta-feira de cinza as desfaz em pó. O negro da sotaina, o branco da cota, o pavonaço do mantelete, o vermelho da púrpura, tudo ali se desfaz em pó. Adão quer dizer ruber, o vermelho, porque o pó da campa damasceno, de que Adão foi formado, era vermelho, e parece que escolheu Deus o pó daquela cor tão prezada, para nela, e com ela, desenganar a todas as cores. Desengane-se a escarlata mais fina, mais alta e mais coroada, e desenganem-se daí abaixo todas as cores, que todas se hão de moer naquela pedra e desfazer em pó, e o que é mais, todas em pó da mesma cor. Na estátua o ouro era amarelo, a prata branca, o bronze verde, o ferro negro, mas tanto que a tocou a pedra, tudo ficou da mesma cor, tudo da cor da terra: In favilíam aestivae areae. O pó levantado, como vão, quis fazer distinções de pó a pó, e porque não pôde distinguir a substância, pôs a diferença nas cores. Porém a morte, como vingadora de todos os agravos da natureza, a todas essas cores faz da mesma cor, para que não distinga a vaidade e a fortuna os que fez iguais a razão. Ouvi a Santo Agostinho: Respice sepulchra et vide quis dominus, quis servus, quis poupei; quis dives? Discerne, si potes, regem a vincto, fartem a debili, pulchrum a deformit. Abri aquelas sepulturas, diz Agostinho, e vede qual é ali o senhor e qual o servo; qual é ali o pobre e qual o rico? Discerne, si potes: distingui-me ali, se podeis, o valente do fraco, o formoso do feio, o rei coroado de ouro do escravo de Argel carregado de ferros? Distingui-los? Conhecei-los? Não por certo. O grande e o pequeno, o rico e o pobre, o sábio e o ignorante, o senhor e o escravo, o príncipe e o cavador, o alemão e o etíope, todos ali são da mesma cor. Passa Santo Agostinho da sua África à nossa Roma, e pergunta assim: Ubi sunt quos ambiebant civium potentatus? Ubi insuperabiles imperatores? Ubi exercituum duces? Ubi satrapae et tyranni?. Onde estão os cônsules romanos? Onde estão aqueles imperadores e capitães famosos, que 87
sermões desde o Capitólio mandavam o mundo? Que se fez dos Césares e dos Pampeus, dos Mários e dos Silas, dos Cipiões e dos Emílios? Os Augustos, os Cláudios, os Tibérios, os Vespasianos, os Titos, os Trajanos, que é deles? Nunc omnia pulvis: tudo pó; Nunc omnia favillae: tudo cinza; Nunc in poucis versibus eorum memoria est: não resta de todos eles outra memória, mais que os poucos versos das suas sepulturas. Meu Agostinho, também esses versos que se liam então, já os não há: apagaram-se as letras, comeu o tempo as pedras; também as pedras morrem: Mors etiam saxis, nominibus que veni Oh! que memento este para Roma! Já não digo como até agora: lembra-te homem que és pó levantado e hás de ser pó caído. O que digo é: lembra-te Roma que és pó levantado, e que és pó caído juntamente. Olha Roma daqui para baixo, e ver-te-ás caída e sepultada debaixo de ti; olha Roma de lá para cima, e ver-te-ás levantada e pendente em cima de ti. Roma sobre Roma, e Roma debaixo de Roma. Nas margens do Tibre, a Roma que se vê para cima, vê-se também para baixo; mas aquilo são sombras. Aqui a Roma que se vê em cima, vê-se também embaixo, e não é engano da vista, senão verdade; a cidade sobre as ruínas, o corpo sobre o cadáver, a Roma viva sobre a morta. Que coisa é Roma senão um sepulcro de si mesma? Embaixo as cinzas, em cima a estátua; embaixo os ossos, em cima o vulto. Este vulto, esta majestade, esta grandeza é a imagem, e só a imagem, da que está debaixo da terra. Ordenou a Providência divina que Roma fosse tantas vezes destruída, e depois edificada sobre suas ruínas, para que a cabeça do mundo tivesse uma caveira em que se ver. Um homem pode-se ver na caveira de outro homem; a cabeça do mundo não se podia ver senão na sua própria caveira. Que é Roma levantada? A cabeça do mundo. Que é Roma caída? A caveira do mundo. Que são esses pedaços de Termas e Coliseus senão os ossos rotos e truncados desta grande caveira? 88
sermão de qarta-feira de cinza E que são essas colunas, essas agulhas desenterradas, senão os dentes, mais duros, desencaixadas dela! Oh! que sisuda seria a cabeça do mundo se se visse bem na sua caveira! Nabuco, depois de ver a estátua convertida em pó, edificou outra estátua. Louco! Que é o que te disse o profeta? Tu rex es caput: 18 Tu, rei, és a cabeça da estátua. Pois se tu és a cabeça, e estás viva, olhe a cabeça viva para a cabeça defunta, olhe a cabeça levantada para a cabeça caída, olhe a cabeça para a caveira. Oh! se Roma fizesse o que não soube fazer Nabuco! Oh! se a cabeça da mundo olhasse para a caveira do mundo! A caveira é maior que a cabeça para que tenha menos lugar a vaidade, e maior matéria a desengana. Isto fui, e isto sou? Nisto parou a grandeza daquele imenso todo, de que hoje sou tão pequena parte? Nisto parou. E a pior é, Roma minha, se me dás licença para que tu diga, que não há de parar só nisto. Este destroça e estas ruínas que vês tuas, não são as últimas: ainda te espera outra antes do fim do mundo profetizada nas Escrituras. Aquela Babilônia de que fala S. João, quando diz na Apocalipse: Cedidit, cedidit Babylon,19 é Roma, não pela que hoje é, senão pela que há de ser. Assim o entendem S. Jerônimo, Santo Agostinho, S. Ambrósia, Tertuliano, Ecumênio, Cassiadara, e outros Padres, a quem seguem concordemente intérpretes e teólogos. Roma, a espiritual, é eterna, porque Portae infrri non praevalebunt adversus eam,20 Mas Roma, a temporal, sujeita está 18. Dn 2:38 [E, onde quer que habitem filhos de homens, animais do campo e aves do céu, ele tos entregou na tua mão e fez que dominasses sobre todos eles; tu és a cabeça de ouro.] 19. Ap 14:8 [E outro anjo seguiu, dizendo: Caiu! Caiu Babilônia, aquela grande cidade que a todas as nações deu a beber do vinho da ira da sua prostituição!] 20. Mt 16:18 [Pois também eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.] 89
sermões como as outras metrópoles das monarquias, e não só sujeita, mas condenada à catástrofe das coisas mudáveis e aos eclipses do tempo. Nas tuas ruínas vês a que foste, nos teus oráculos lês a que hás de ser, e se queres fazer verdadeiro juízo de ti mesma pelo que foste e pelo que hás de ser, estima a que és. Nesta mesma roda natural das coisas humanas, descobriu a sabedoria de Salomão dois espelhos recíprocos, que podemos chamar do tempo, em que se vê facilmente o que foi e o que há de ser. Quid est quod fuit? Ipsum quod futu rum est. Quid est quod factun est? Ipsum quod faciendunt est.21 Que é o que foi? Aquilo mesma que há de ser. Que é o que há de ser? Aquilo mesmo que foi. Ponde estes dois espelhos um defronte do outro, e assim como os raios do ocaso ferem o oriente e os do oriente o ocaso, assim, por reverberação natural e recíproca, achareis que no espelho da passada se vê o que há de ser, e no do futuro o que foi. Se quereis ver o futuro, lede as histórias e olhai para o passado; se quereis ver o passado, lede as profecias e olhai para o futuro. E quem quiser ver o presente, para onde há de olhar? Não o disse Salomão, mas eu o direi. Diga que olhe juntamente para um e para outro espelho. Olhai para o passado e para o futuro, e vereis o presente. A razão ou consequência é manifesta. Se no passado se vê o futuro, e no futuro se vê o passado, segue-se que no passado e no futuro se vê o presente, porque o presente é o futuro do passado, e o mesmo presente é o passado do futuro. Quid est quod fuit? Ipsum quod futurum est Quid est quod est? Ipsum quod fuit et quod futurum est. Roma, o que foste, isso hás de ser; e o que foste, e o que hás de ser, isso és. Vê-te bem nestes dois espelhos do tempo, e conhecer-te-ás. E se a verdade deste desengana tem lugar
21. Ecl 1:9 [Que é que foi? É o mesmo que há de ser. Que é o que se fez? O mesmo que se há de fazer.] 90
sermão de qarta-feira de cinza nas pedras, quanto mais nos homens. No passado foste pó? No futuro hás de ser pó? Logo, no presente és pó: Pulvis es.
vi Este foi o memento dos vivos; acaba com o memento dos mortos. Aos vivos disse: lembre-se o pó levantado que há de ser pó caído. Aos mortos digo: lembre-se o pó caído que há de ser pó levantado. Ninguém morre para estar sempre morto; por isso a morte nas Escrituras se chama sana. Os vivos caem em terra com o sono da morte: os mortos jazem na sepultura dormindo, sem movimento nem sentido, aquele profundo e dilatado letargo; mas quando o pregão da trombeta final os chamar o juízo, todos hão de acordar e levantar-se outra vez. Então dirá cada um com Davi: Ego dormivi, et soporatus sum, et exurrexi.22 Lembre-se pois o pó caído que há de ser pó levantado. Este segundo memento é muito mais terrível que o primeiro. Aos vivos disse: Memento homo quia pulvis es, et in pulverem reverteris; aos mortos digo com as palavras trocadas, mas com sentido igualmente verdadeiro: Memento pulvis quia homo es, et in hominem reverteris: lembra-te pó que és homem, e que em homem te hás de tornar. Os que me ouviram já sabem que cada um é o que foi e o que há de ser. Tu que jazes nesta sepultura, sabe-o agora. Eu vivo, tu estás morto; eu falo, tu estás mudo; mas assim como eu sendo homem, porque fui pó, e hei de tornar a ser pó, sou pó, assim tu, sendo pó, porque foste homem, e hás de tornar a ser homem, és homem. Morre a águia, morre a fênix, mas a águia morta não é águia, a fênix morta é fênix. E por que? A águia morta não é águia porque foi águia, mas não há de tornar a ser águia. A fênix morta é fênix, porque foi fênix, e há de 22. Sl 3:6 [Deitei-me, e estive sepultado no sono; levantei-me, porque o Senhor me ampara.] 91
sermões tornar a ser fênix. Assim és tu que jazes nessa sepultura. Morto sim, desfeito em cinzas sim, mas em cinzas como as da fênix. A fênix desfeita em cinzas é fênix, porque foi fênix, e há de tornar a ser fênix. E tu desfeito também em cinzas és homem, porque foste homem, e hás de tornar a ser homem. Não é a proposição, nem comparação minha, senão da Sabedoria e Verdade eterna. Ouçam os mortos a um morto que melhor que todos os vivos conheceu e pregou a fé da imortalidade. In nidulo meo morias,; et sicut phoenix multiplicabo dies meos: 23 Morrerei no meu ninho, diz Jó, e como fênix multiplicarei os meus dias. Os dias soma-os a vida, diminui-os a morte e multiplica-os a ressurreição. Por isso Jó como vivo, como morto e como imortal se compara à fênix. Bem pudera este grande herói, pois chamou ninho à sua sepultura, comparar-se à rainha das aves, como rei que era. Mas falando de si e conosco naquela medida em que todos somos iguais, não se comparou à águia, senão à fênix, porque o nascer águia é fortuna de poucos, o renascer fênix é natureza de todos. Todos nascemos para morrer, e todos morremos para ressuscitar. Para nascer antes de ser, tivemos necessidade de pai e mãe que nos gerasse; para renascer depois de morrer, como a fênix, o mesmo pó em que se corrompeu e desfez o corpo, é o pai e a mãe de que havemos de tornar a ser gerados. Putredini dixi: pater meus es, mater mea, et soror mea vermibus.24 Sendo pois igualmente certa esta segunda metamorfose, como a primeira, preguemos também aos mortos, como pregou Ezequiel,25 para que nos ouçam mortos e vivos. Se dissermos aos vivos: lembra-te homem que és pó, 23. In Textu Graeco Jó 29:18 [E dizia: no meu ninho expirarei e multiplicarei os meus dias como a areia.] 24. Jó 17:14 [se à corrupção clamar: tu és meu pai; e aos bichos: vós sois minha mãe e minha irmã.] 25. Ez 37:4 [Então, me disse: Profetiza sobre estes ossos e dize-lhes: Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor.] 92
sermão de qarta-feira de cinza porque foste pó, e hás de tornar a ser pó, brademos com a mesma verdade aos mortos que já são pó; lembra-te pó que és homem porque foste homem, e hás de tornar a ser homem: Memento pulvis quia homo es, et in hominem reverteris. Senhores meus, não seja isto cerimônia: falemos muito seriamente, que o dia é disso. Ou cremos que somos imortais, ou não. Se o homem acaba com o pó, não tenho que dizer; mas se o pó há de tornar a ser homem, não sei o que vos diga, nem o que me diga. A mim não me faz medo o pó que hei de ser; faz medo o que há de ser o pó. Eu não temo na morte a morte, temo a imortalidade; eu não temo hoje o dia de cinza, temo hoje o dia de Páscoa, porque sei que hei de ressuscitar, porque sei que hei de viver para sempre, porque sei que me espera uma eternidade, ou no céu, ou no inferno. Scio enim quod Redemptor meus vivit, et in novissimo die de terra surrecturus sum:26 Scio, diz. Notai. Não diz: Creio, senão, Scio, sei. Porque a verdade e certeza da imortalidade do homem não só é fé, senão também ciência. Por ciência e por razão natural a conheceram Platão, Aristóteles e tantos outros filósofos gentios. Mas que importava que o não alcançasse a razão onde está a fé? Que importa a autoridade dos homens onde está o testemunho de Deus? O pó daquela sepultura está clamando: De terra surrecturus sum, et rursum circundabor pelle mea, et in carne mea videbo Deum meum, quem visurus sum ego ipse, et oculi mei conspecturi sunt, et non alius.27 Este homem, este corpo, estes ossos, esta carne, esta pele, estes olhos, este eu, e não ou26. Jó 19:25 [Porque eu sei que o meu Redentor vive, e que por fim se levantará sobre a terra.] 27. Jó 19:26 [:25-27] [Porque eu sei que o meu redentor vive, e que no último dia ressurgirei da terra e depois de consumida a minha pele, ainda em minha carne verei a Deus. Eu mesmo o verei, e os meus olhos o hão de contemplar, e não outro; esta é a esperança que está depositada no meu peito.] 93
sermões tro, é o que há de morrer? Sim; mas reviver e ressuscitar à imortalidade. Mortal até o pó, mas depois do pó, imortal. Credis hoc? Utique, Domine.28 Pois que efeito faz em nós este conhecimento da morte, e esta fé da imortalidade? Quando considero na vida que se usa, acho que não vivemos como mortais, nem vivemos como imortais. Não vivemos como mortais, porque tratamos das coisas desta vida como se esta vida fora eterna. Não vivemos como imortais, porque nos esquecemos tanto da vida eterna, como se não houvera tal vida. Se esta vida fora imortal, e nós imortais, que havíamos de fazer, senão o que fazemos? Estai comigo. Se Deus, assim como fez um Adão, fizera dois, e o segundo fora mais sisudo que o nosso, nós havíamos de ser mortais como somos, e os filhos de outro Adão haviam de ser imortais. E estes homens imortais, que haviam de fazer neste mundo? Isto mesmo que nós fazemos. Depois que não coubessem no Paraíso, e se fossem multiplicando, haviam-se de estender pela terra, haviam de conduzir de todas as partes do mundo todo o bom, precioso e deleitoso que Deus para eles tinha criado, haviam de ordenar cidades e palácios, quintas, jardins, fontes, delícias, banquetes, representações, músicas, festas, e tudo aquilo que pudesse formar uma vida alegre e deleitosa. Não é isto o que nós fazemos? E muito mais do que eles haviam de fazer, porque o haviam de fazer com justiça, com razão, com modéstia, com temperança; sem luxo, sem soberba, sem ambição, sem inveja; e com concórdia, com caridade, com humanidade. Mas como se ririam de nós, e como pasmariam de nós aqueles homens imortais. Como se ririam das nossas loucuras, como pasmariam da nossa cegueira, vendo-nos tão ocupados, tão solíci28. Jo 11:26 [:25-26J [e todo aquele que vive e crê em mim nunca morrerá. Crês tu isso? Ela disse-lhe: Sim, Senhor, eu creio que tu és o Cristo, filho de Deus vivo, que vieste a este mundo.] 94
sermão de qarta-feira de cinza tos, tão desvelados pela nossa vidazinha de dois dias, e tão esquecidos, e descuidados da morte, como se fôramos tão imortais como eles! Eles sem dor, nem enfermidade; nós enfermos e gemendo; eles vivendo sempre, nós morrendo; eles não sabendo o nome à sepultura, nós enterrando uns a outros; eles gozando o mundo em paz, e nós fazendo demandas e guerras pelo que não havemos de gozar. Homenzinhos miseráveis, haviam de dizer, homenzinhos miseráveis, loucos, insensatos; não vedes que sois mortais? Não vedes que haveis de acabar amanhã? Não vedes que vos hão de meter debaixo de uma sepultura, e que de tudo quanto andais afanando e adquirindo, não haveis de lograr mais que sete pés de terra? Que doidice, que cegueira é logo a vossa? Não sendo como nós, quereis viver como nós? Assim é. Morimur ut mortales, vivimus ut imortales: 29 morreremos como mortais que somos, e vivemos como se fôramos imortais. Assim o dizia Sêneca gentio à Roma gentia. Vós a isto dizeis que Sêneca era um estóico. E não é mais ser cristão que ser estóico? Sêneca não conhecia a imortalidade da alma; o mais a que chegou foi a duvidá-la, e contudo entendia isto.
vii Ora, senhores, já que somos cristãos, já que sabemos que havemos de morrer e que somos imortais, saibamos usar da morte e da imortalidade. Tratemos desta vida como mortais, e da outra como imortais. Pode haver loucura mais rematada, pode haver cegueira mais cega que empregar-me todo na vida que há de acabar, e não tratar da vida que há de durar para sempre? Cansar-me, afligir-me, matar-me pelo que forçosamente hei de deixar, e do que hei de lograr ou perder para sempre, não fazer nenhum caso! Tantas diligências para esta vida, nenhuma diligência para a outra 29. Sêneca. De consolat. ad Marciam. Ep. 57 et Ep. 117. 95
sermões vida? Tanto medo, tanto receio da morte temporal, e da eterna nenhum temor? Mortos, mortos, desenganai estes vivos. Dizei-nos que pensamentos e que sentimentos foram os vossos quando entrastes e saístes pelas portas da morte? A morte tem duas portas: Qui exaltas me de portis mortis.30 Uma porta de vidro, por onde se sai da vida, outra porta de diamante, por onde se entra à eternidade. Entre estas duas portas se acha subitamente um homem no instante da morte, sem poder tornar atrás, nem parar, nem fugir, nem dilatar, senão entrar para onde não sabe, e para sempre. Oh! que transe tão apertado! Oh! que passo tão estreito! Oh! que momento tão terrível! Aristóteles disse que entre todas as coisas terríveis, a mais terrível é a morte. Disse bem mas não entendeu o que disse. Não é terrível a morte pela vida que acaba, senão pela eternidade que começa. Não é terrível a porta por onde se sai; a terrível é a porta por onde se entra. Se olhais para cima, uma escada que chega até o céu; se olhais para baixo, um precipício que vai parar no inferno, e isto incerto. Dormindo Jacó sobre uma pedra, viu aquela escada que chegava da terra até o céu, e acordou atônito gritando: Terribilis est locus iste! 31 Oh que terrível lugar é este! E por que é terrível, Jacó? Non est híc aliud nisi domus Dei et porta caeli: Porque isto não é outra coisa senão a porta do céu. Pois a porta do céu a porta da bem-aventurança é terrível? Sim. Porque é uma porta que se pode abrir e que se pode fechar. E aquela porta, que se abriu para as cinco virgens prudentes, e que se fechou para as cinco néscias: Et clausa est janua.32 30. Sl 9:15 [:14] [Tem compaixão de mim, Senhor; vê a aflição que sofro da parte dos meus inimigos; arranca-me das portas da morte.] 31. Gn 18:17 [28:17] [E, cheio de pavor, disse: Quão terrível é este lugar! Não há aqui outra coisa senão a casa de Deus e a porta do céu.] 32. Mt 25:10 [E, tendo elas ido comprá-lo, chegou o esposo, e as que estavam preparadas entraram com ele para as bodas, e fechou-se a porta.] 96
sermão de qarta-feira de cinza E se esta porta é terrível para quem olha só para cima, quão terrível será para quem olhar para cima e mais para baixo? Se é terrível para quem olha só para o céu, quanto mais terrível será para quem olhar para o céu e para o inferno juntamente? Este é o mistério de toda a escada, em que Jacó não reparou inteiramente, como quem estava dormindo. Bem viu Jacó que pela escada subiam e desciam anjos, mas não reparou que aquela escada tinha mais degraus para descer que para subir: para subir era escada da terra até o céu, para descer era escada do céu até o inferno; para subir era escada por onde subiram anjos a ser bem-aventurados, para descer era escada por onde desceram anjos a ser demônios. Terrível escada para quem não sobe, porque perde o céu e a vista de Deus, e mais terrível para quem desce, porque não só perdeu o céu e a vista de Deus, mas vai arder no inferno eternamente. Esta é a visão mais que terrível que todos havemos de ver; este o lugar mais que terrível por onde todos havemos de passar, e por onde já passaram todos os que ali jazem. Jacó jazia sobre a pedra; ali a pedra jaz sobre Jacó, ou Jacó debaixo da pedra. Já dormiram o seu sono: Dormierunt somnum suum;33 já viram aquela visão; já subiram ou desceram pela escada. Se estão no céu ou no inferno, Deus o sabe; mas tudo se averiguou naquele momento. Oh! que momento, torno a dizer, oh! que passo, oh! que transe tão terrível! Oh que temores, oh! que aflição, oh! que angústias! Ali, senhores, não se teme a morte, teme-se a vida. Tudo o que ali dá pena, é tudo o que nesta vida deu gosto, e tudo o que buscamos por nosso gosto, muitas vezes com tantas penas. Oh! que diferentes parecerão então todas as coisas desta vida! Que verdades, que desenganos, que luzes tão claras de tudo o que neste mundo nos cega! Nenhum 33. Sl 75:6 [Os de coração esforçado foram despojados, dormem o seu sono, e desfaleceram as mãos de todos os valentes.] 97
sermões homem há naquele ponto que não desejara muito uma de duas: ou não ter nascido, ou tornar a nascer de novo, para fazer uma vida muito diferente. Mas já é tarde, já não há tempo: Quia tempus non erit amplius.34 Cristãos e senhores meus, por misericórdia de Deus ainda estamos em tempo. É certo que todos caminhamos para aquele passo, é infalível que todos havemos de chegar, e todos nos havemos de ver naquele terrível momento, e pode ser que muito cedo. Julgue cada um de nós, se será melhor arrepender-se agora, ou deixar o arrependimento para quando não tenha lugar, nem seja arrependimento. Deus nos avisa, Deus nos dá estas vozes; não deixemos passar esta inspiração, que não sabemos se será a última. Se então havemos de desejar em vão começar outra vida, comecemo-la agora: Dixi: nunc caepi.35 Comecemos de hoje em diante a viver como quereremos ter vivido na hora da morte. Vive assim como quiseras ter vivido quando morras. Oh! que consolação tão grande será então a nossa, se o fizermos assim! E pelo contrário, que desconsolação tão irremediável e tão desesperada, se nos deixarmos levar da corrente, quando nos acharmos onde ela nos leva! E possível que me condenei por minha culpa e por minha vontade, e conhecendo muito bem o que agora experimento sem nenhum remédio? É possível que por uma cegueira de que me não quis apartar, por um apetite que passou em um momento, hei de arder no inferno enquanto Deus for Deus? Cuidemos nisto, cristãos, cuidemos nisto. Em que cuidamos, e em que não cuidamos? Homens mortais, homens imortais, se todos os dias podemos morrer, se cada dia nos imos chegando mais à morte, e ela a nós, não se acabe com este 34. Ap 10:6 [e jurou por aquele que vive para todo o sempre, o qual criou o céu e o que nele há, e a terra e o que nela há, e o mar e o que nele há, que não haveria mais demora.] 35. Sl 76:11 [Então eu digo: Esta é a minha dor: está mudada a destra do Altíssimo.] 98
sermão de qarta-feira de cinza dia a memória da morte. Resolução, resolução uma vez, que sem resolução nada se faz. E para que esta resolução dure e não seja como outras, tomemos cada dia uma hora em que cuidemos bem naquela hora. De vinte e quatro horas que tem o dia, por que se não dará uma hora à triste alma? Esta é a melhor devoção e mais útil penitência, e mais agradável a Deus, que podeis fazer nesta quaresma. Tomar uma hora cada dia, em que só por só com Deus e conosco cuidemos na nossa morte e na nossa vida. E porque espero da vossa piedade e do vosso juízo que aceitareis este bom conselho, quero acabar deixando-vos quatro pontos de consideração para os quatro quartos desta hora. Primeiro: quanto tenho vivido? Segundo: como vivi? Terceiro: quanto posso viver? Quarto: como é bem que viva? Torno a dizer para que vos fique na memória: Quanto tenho vivido? Como vivi? Quanto posso viver? Como é bem que viva? Memento homo?
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Sermão de Santo Antonio
Pregado na Cidade de S. Luís do Maranhão, ano de 1654. Esse Sermão (que todo é alegórico) pregou o Autor três dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino, a procurar o remédio da salvação dos Índios, pelas causas que se apontam no i Sermão do i Tomo. E nele tocou os pontos de doutrinas (posto que perseguida) que mais necessários eram ao bem espiritual, e temporal daquela terra, como facilmente se pode entender das mesmas alegorias.
Vos estis sal terrae.2 Mt, 5.
2. Mt 5[:13] [Vós sois o sal da terra; e, se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais presta, senão para se lançar fora e ser pisado pelos homens.] 101
sermões
i Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal! Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há e fazer a este sal e que se há e fazer a esta terra? O que se há e fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus.3 Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há e fazer, é lançá-lo fora como inútil para que seja pisado de todos. Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a não pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça que o pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor 3. Mt 5:13 [Vós sois o sal da terra; e, se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais presta, senão para se lançar fora e ser pisado pelos homens.] 102
sermão de santo antonio de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o contrário. Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra que se não deixa salgar, que se lhe há de fazer? Este ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no Evangelho; mas temos sobre ele a resolução do nosso grande português Santo Antônio, que hoje celebramos, e a mais galharda e gloriosa resolução que nenhum santo tomou. Pregava Santo Antônio em Itália na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande Antônio? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas Antônio com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés a que se não pegou nada da terra não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, Antônio pregava e eles ouviam. Se a Igreja quer que preguemos de Santo Antônio sobre o Evangelho, dê-nos outro. Vos estis sal terrae: É muito bom texto para os outros santos doutores; mas para Santo Antônio vem-lhe muito curto. Os outros santos doutores da 103
sermões Igreja foram sal da terra; Santo Antônio foi sal da terra e foi sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para tomar hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no pensamento que, nas festas dos santos, é melhor pregar como eles, que pregar deles. Quanto mais que o são da minha doutrina, qualquer que ele seja tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo Antônio em Arimino, que é força segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja, e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a esta terra para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que tenho colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado dele, vós o sabeis e eu por vós o sinto. Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo Antônio, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria, quer dizer, Domina maris: Senhora do mar; e posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.
ii Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há de converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa não falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins.
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sermão de santo antonio Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações do vosso pregador Santo Antônio, como também as devem ter as de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar. Assim o diz o grande Doutor da Igreja S. Basílio: Non carpere solum, reprehendereque possumus pisces, sed sunt in illis, et quae prosequenda sunt imitatione: Não só há que notar, diz o Santo, e que repreender nos peixes, senão também que imitar e louvar. Quando Cristo comparou a sua Igreja à rede de pescar, Sagenae missae in mare,4 diz que os pescadores recolheram os peixes bons e lançaram fora os maus: Elegerunt bonos in vasa, malos autem foras miserunt.5 E onde há bons e maus, há que louvar e que repreender. Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas virtudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos. Começando pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem vos pudera eu dizer que entre todas as criaturas viventes e sensitivas, vós fostes as primeiras que Deus criou. A vós criou primeiro que as aves do ar, a vós primeiro que aos animais da terra e a vós primeiro que ao mesmo homem. Ao homem deu Deus a monarquia e o domínio de todos os ani4. Mt 13:47 [Igualmente, o Reino dos céus é semelhante a uma rede lançada ao mar e que apanha toda qualidade de peixes.] 5. Mt 13:48 [E, estando cheia, a puxam para a praia e, assentando-se, apanham para os cestos os bons; os ruins, porém, lançam fora.] 105
sermões mais dos três elementos, e nas provisões em que o honrou com estes poderes, os primeiros nomeados foram os peixes: Ut praesit piscibus maris et volatilibus caeli, et bestiis, universaeque terrae.6 Entre todos os animais do Mundo, os peixes são os mais e os peixes os maiores. Que comparação têm em número as espécies das aves e as dos animais terrestres com as dos peixes? Que comparação na grandeza o elefante com a baleia? Por isso Moisés, cronista da criação, calando os nomes de todos os animais, só a ela nomeou pelo seu: Creavit Deus cete grandia.7 E os três músicos da fornalha da Babilónia o cantaram também como singular entre todos: Benedicite, cete et omnia quae moventur in aquis, Domino.8 Estes e outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó peixes; mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a adulação, e não para o púlpito. Vindo pois, irmãos, às vossas virtudes, que são as que só podem dar o verdadeiro louvor, a primeira que se me oferece aos olhos hoje, é aquela obediência com que, chamados, acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca de seu servo Antônio. Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes e grande afronta e confusão para os homens! Os homens perseguindo a Antônio, 6. Gn 1:26 [E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se move sobre a terra.] 7. Gn 1:21 [E Deus criou as grandes baleias, e todo réptil de alma vivente que as águas abundantemente produziram conforme as suas espécies, e toda ave de asas conforme a sua espécie. Eviu Deus que era bom.] 8. Dn 3:79 [Monstros e tudo o que se move nas águas, bendizei o Senhor; louvai-o e exaltai-o por todos os séculos.] 106
sermão de santo antonio querendo-o lançar da terra e ainda do Mundo, se pudessem, porque lhes repreendia seus vícios, porque lhes não queria falar à vontade e condescender com seus erros, e no mesmo tempo os peixes em inumerável concurso acudindo à sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando com silêncio e com sinais de admiração e assenso (como se tiveram entendimento) o que não entendiam. Quem olhasse neste passo para o mar e para a terra, e visse na terra os homens tão furiosos e obstinados e no mar os peixes tão quietos e tão devotos, que havia de dizer? Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras. Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão. Muito louvor mereceis, peixes, por este respeito e devoção que tivestes aos pregadores da palavra de Deus, e tanto mais quanto não foi só esta a vez em que assim o fizestes. Ia Jonas, pregador do mesmo Deus, embarcado em um navio, quando se levantou aquela grande tempestade; e como o trataram os homens, como o trataram os peixes? Os homens lançaram-no ao mar a ser comido dos peixes, e o peixe que o comeu, levou-o às praias de Nínive, para que lá pregasse e salvasse aqueles homens. É possível que os peixes ajudam à salvação dos homens, e os homens lançam ao mar os ministros da salvação⁈ Vede, peixes, e não vos venha vanglória, quanto melhores sois que os homens. Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra. Mas porque nestas duas ações teve maior parte a omnipotência que a natureza (como também em todas as milagrosas que obram os homens) passo às virtudes naturais e próprias vossas. Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os animais, se não domam nem domesticam. Dos animais terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo 107
sermões tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem conosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e nos recreia; e até as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele. Os autores comumente condenam esta condição dos peixes, e a deitam à pouca docilidade ou demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que, se não fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre! Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes; faça-lhes bufonarias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o cão de lhes roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com grades de ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis só convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das portas a dentro tendes o exemplo de toda esta verdade, o qual vos quero lembrar, porque há filósofos que dizem que não tendes memória.
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sermão de santo antonio No tempo de Noé sucedeu o dilúvio que cobriu e alagou o Mundo, e de todos os animais quais livraram melhor? Dos leões escaparam dois, leão e leoa, e assim dos outros animais da terra; das águias escaparam duas, fêmea e macho, e assim das outras aves. E dos peixes? Todos escaparam, antes não só escaparam todos, mas ficaram muito mais largos que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar. Pois se morreram naquele universal castigo todos os animais da terra e todas as aves, porque mão morreram também os peixes? Sabeis porquê? Diz Santo Ambrósio: porque os outros animais, como mais domésticos ou mais vizinhos, tinham mais comunicação com os homens, os peixes viviam longe e retirados deles. Facilmente pudera Deus fazer que as águas fossem venenosas e matassem todos os peixes, assim como afogaram todos os outros animais. Bem o experimentais na força daquelas ervas com que, infeccionados os poços e lagos, a mesma água vos mata; mas como o dilúvio era um castigo universal que Deus dava aos homens por seus pecados, e ao Mundo pelos pecados dos homens, foi altíssima providência da divina Justiça que nele houvesse esta diversidade ou distinção, para que o mesmo Mundo visse que da companhia dos homens lhe viera todo o mal; e que por isso os animais que viviam mais perto deles, foram também castigados e os que andavam longe ficaram livres. Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. Perguntando um grande filósofo qual era a melhor terra do Mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais longe. Se isto vos pregou também Santo Antônio (e foi este um dos benefícios de que vos exortou a dar graças ao Criador), bem vos pudera alegar consigo, que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens. Para fugir dos homens deixou a casa de seus pais e se recolheu a uma religião, onde professasse perpétua clausura. E porque nem aqui o deixavam os que ele tinha deixado, primeiro deixou 109
sermões Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal. Para fugir e se esconder dos homens mudou o hábito, mudou o nome, e até a si mesmo se mudou, ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota, com que não fosse conhecido nem buscado, antes deixado de todos, como lhe sucedeu com seus próprios irmãos no capítulo geral de Assis. De ali se retirou a fazer vida solitária em um ermo, do qual nunca saíra, se Deus como por força o não manifestara e por fim acabou a vida em outro deserto, tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.
iii Este é, peixes, em comum o natural que em todos vós louvo, e a felicidade de que vos dou o parabém, não sem inveja. Descendo ao particular, infinita matéria fora se houvera de discorrer pelas virtudes de que o Autor da natureza a dotou e fez admirável em cada um de vós. De alguns somente farei menção. E o que tem o primeiro lugar entre todos, como tão celebrado na Escritura, é aquele santo peixe de Tobias a quem o texto sagrado não dá outro nome que de grande, como verdadeiramente o foi nas virtudes interiores, em que só consiste a verdadeira grandeza. Ia Tobias caminhando com o anjo S. Rafael, que o acompanhava, e descendo a lavar os pés do pó do caminho nas margens de um rio, eis que o investe um grande peixe com a boca aberta em ação de que o queria tragar. Gritou Tobias assombrado, mas o anjo lhe disse que pegasse no peixe pela barbatana e o arrastasse para terra; que o abrisse e lhe tirasse as entranhas e as guardasse, porque lhe haviam de servir muito. Fê-lo assim Tobias, e perguntando que virtude tinham as entranhas daquele peixe que lhe mandara guardar, respondeu o anjo que o fel era bom para sarar da cegueira e o coração para lançar fora os demônios: Cordis 110
sermão de santo antonio eius particulam, si super carbones ponas, fumus eius extricat omne genus daemoniorum: et fel valet ad ungendos oculos, in quibus fuerit albugo, et sanabuntur.9 Assim o disse o anjo, e assim o mostrou logo a experiência, porque, sendo o pai de Tobias cego, aplicando-lhe o filho aos olhos um pequeno do fel, cobrou inteiramente a vista; e tendo um demônio, chamado Asmodeu, morto sete maridos a Sara, casou com ela o mesmo Tobias; e queimando na casa parte do coração, fugiu dali o Demônio e nunca mais tornou. De sorte que o fel daquele peixe tirou a cegueira a Tobias, o velho, e lançou os demônios de casa a Tobias, o moço. Um peixe de tão bom coração e de tão proveitoso fel, quem o não louvará mais? Certo que se a este peixe o vestiram de burel e o ataram com uma corda, parecia um retrato marítimo de Santo Antônio. Abria Santo Antônio a boca contra os hereges, e enviava-se a eles, levado do fervor e zelo da fé e glória divina. E eles que faziam? Gritavam como Tobias e assombravam-se com aquele homem e cuidavam que os queria comer. Ah homens, se houvesse um anjo que vos revelasse qual é o coração desse homem e esse fel que tanto vos amarga, quão proveitoso e quão necessário vos é! Se vós lhe abrísseis esse peito e lhe vísseis as entranhas, como é certo que havíeis de achar e conhecer claramente nelas que só duas cousas pretende de vós, e convosco: uma é alumiar e curar vossas cegueiras, e outra lançar-vos os demônios fora de casa. Pois a quem vos quer tirar as cegueiras, a quem vos quer livrar dos demônios perseguis vós⁈ Só uma diferença havia entre Santo Antônio e aquele peixe: que o peixe abriu a boca contra quem se lavava, e Santo Antônio abria a sua contra 9. Tb 6:8 [:8-9] [E o anjo, respondendo-lhe, disse: Se tu puseres um pedacinho de teu coração sobre brasas acesas, o seu fumo afugenta a toda a casta de demônios, tanto do homem como da mulher, de sorte que não tornam mais a chegar a eles. E o fel é bom para untar os olhos que têm algumas névoas, e sararão.] 111
sermões os que se não queriam lavar. Ah moradores do Maranhão, quanto eu vos pudera agora dizer neste caso! Abri, abri estas entranhas; vede, vede este coração. Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não vos prego a vós, prego aos peixes. Passando dos da Escritura aos da história natural, quem haverá que não louve e admire muito a virtude tão celebrada da rêmora? No dia de um santo menor, os peixes menores devem preferir aos outros. Quem haverá, digo, que não admire a virtude daquele peixezinho tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder, que não sendo maior de um palmo, se pega ao leme de uma nau da Índia, apesar das velas e dos ventos, e de seu próprio peso e grandeza, a prende e amarra mais que as mesmas âncoras, sem se poder mover, nem ir por diante? Oh se houvera uma rêmora na terra, que tivesse tanta força como a do mar, que menos perigos haveria na vida e que menos naufrágios no Mundo! Se alguma rêmora houve na terra, foi a língua de Santo Antônio, na qual, como na rêmora, se verifica o verso de São Gregório Nazianzeno: Lingua quidem parva est, sed viribus omnia vincit. O Apóstolo Santiago, naquela sua eloquentíssima Epístola, compara a língua ao leme da nau e ao freio do cavalo. Uma e outra comparação juntas declaram maravilhosamente a virtude da rêmora, a qual, pegada ao leme da nau, é freio da nau e leme do leme. E tal foi a virtude e força da língua de Santo Antônio. O leme da natureza humana é o alvedrio, o piloto é a razão: mas quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos precipitados do alvedrio? Neste leme, porém, tão desobediente e rebelde, mostrou a língua de Antônio quanta força tinha, como rêmora, para domar a fúria das paixões humanas. Quantos, correndo fortuna na nau Soberba, com as velas inchadas do vento e da mesma soberba (que também é vento), se iam desfazer nos baixos, que já rebentavam por proa, se a língua de Antônio, como rêmora, não tivesse mão no leme, até que as velas se amainassem, como mandava a 112
sermão de santo antonio razão, e cessasse a tempestade de fora e a de dentro? Quantos, embarcados na nau Vingança, com a artilharia abocada e os botafogos acesos, corriam infunados a dar-se batalha, onde se queimariam ou deitariam a pique se a rêmora da língua de Antônio lhes dão detivesse a fúria, até que, composta a ira e ódio, com bandeiras de paz se salvassem amigavelmente? Quantos, navegando na nau Cobiça, sobrecarregada até às gáveas e aberta com o peso por todas as costuras, incapaz de fugir, nem se defender, dariam nas mãos dos corsários com perda do que levavam e do que iam buscar, se a língua de Antônio os não fizesse parar, como rêmora, até que, aliviados da carga injusta, escapassem do perigo e tomassem porto? Quantos, na nau Sensualidade, que sempre navega com cerração, sem sol de dia, nem estrelas de noite, enganados do canto das sereias e deixando-se levar da corrente, se iriam perder cegamente, ou em Sila, ou em Caribdes, onde não aparecesse navio nem navegante, se a rêmora da língua de Antônio os não contivesse, até que esclarecesse a luz e se pusessem em vista. Esta é a língua, peixes, do vosso grande pregador, que também foi rêmora vossa, enquanto o ouvistes; e porque agora está muda (posto que ainda se conserva inteira) se veem e choram na terra tantos naufrágios. Mas para que da admiração de uma tão grande virtude vossa, passemos ao louvor ou inveja de outra não menor, admirável é igualmente a qualidade daquele outro peixezinho, a que os latinos chamaram torpedo. Ambos estes peixes conhecemos cá mais de fama que de vista; mas isto têm as virtudes grandes, que quanto são maiores, mais se escondem. Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a boia sobre a água, e em lhe picando na isca o torpedo começa a lhe tremer o braço. Pode haver maior, mais breve e mais admirável efeito? De maneira que, num momento, passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço do pescador. Com 113
sermões muita razão disse que este vosso louvor o havia de referir com inveja. Quem dera aos pescadores do nosso elemento, ou quem lhes pusera esta qualidade tremente, em tudo o que pescam na terra! Muito pescam, mas não me espanto do muito; o que me espanta é que pesquem tanto e que tremam tão pouco. Tanto pescar e tão pouco tremer! Pudera-se fazer problema; onde há mais pescadores e mais modos e traças de pescar, se no mar ou na terra? E é certo que na terra. Não quero discorrer por eles, ainda que fora grande consolação para os peixes; baste fazer a comparação com a cana, pois é o instrumento do nosso caso. No mar, pescam as canas, na terra, as varas, (e tanta sorte de varas); pescam as ginetas, pescam as bengalas, pescam os bastões e até os ceptros pescam, e pescam mais que todos, porque pescam cidades e reinos inteiros. Pois é possível que, pescando os homens cousas de tanto peso, lhes não trema a mão e o braço⁈ Se eu pregara aos homens e tivera a língua de Santo Antônio, eu os fizera tremer. Vinte e dois pescadores destes se acharam acaso a um sermão de Santo Antônio, e às palavras do Santo os fizeram tremer a todos de sorte que todos, tremendo, se lançaram a seus pés; todos, tremendo, confessaram seus furtos; todos, tremendo, restituíram o que podiam (que isto é o que faz tremer mais neste pecado que nos outros); todos enfim mudaram de vida e de ofício e se emendaram. Quero acabar este discurso dos louvores e virtudes dos peixes com um, que não sei se foi ouvinte de Santo Antônio e aprendeu dele a pregar. A verdade é que me pregou a mim, e se eu fora outro, também me convertera. Navegando de aqui para o Pará (que é bem não fiquem de fora os peixes da nossa costa), vi correr pela tona da água de quando em quando, a saltos, um cardume de peixinhos que não conhecia; e como me dissessem que os Portugueses lhe chamavam quatro-olhos, quis averiguar ocularmente a razão deste nome, e achei que verdadeiramente têm quatro 114
sermão de santo antonio olhos, em tudo cabais e perfeitos. Dá graças a Deus, lhe disse, e louva a liberalidade de sua divina providência para contigo; pois às águias, que são os linces do ar, deu somente dois olhos, e aos linces, que são as águias da terra, também dois; e a ti, peixezinho, quatro. Mais me admirei ainda, considerando nesta maravilha a circunstância do lugar. Tantos instrumentos de vista a um bichinho do mar, nas praias daquelas mesmas terras vastíssimas, onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos! Oh quão altas e incompreensíveis são as razões de Deus, e quão profundo o abismo de seus juízos! Filosofando, pois, sobre a causa natural desta providência, notei que aqueles quatro olhos estão lançados um pouco fora do lugar ordinário, e cada par deles, unidos como os dois vidros de um relógio de areia, em tal forma que os da parte superior olham direitamente para cima, e os da parte inferior direitamente para baixo. E a razão desta nova arquitetura, é porque estes peixinhos, que sempre andam na superfície da água, não só são perseguidos dos outros peixes maiores do mar, senão também de grande quantidade de aves marítimas, que vivem naquelas praias; e como têm inimigos no mar e inimigos no ar, dobrou-lhes a natureza as sentinelas e deu-lhes dois alhos, que direitamente olhassem para cima, para se vigiarem das aves, e outros dois que direitamente olhassem para baixo, para se vigiarem dos peixes. Oh que bem informara estes quatro olhos uma alma racional, e que bem empregada fora neles, melhor que em muitos homens! Esta é a pregação que me fez aquele peixezinho, ensinando-me que, se tenho fé e uso da razão, só devo olhar direitamente para cima, e só direitamente para baixo: para cima, considerando que há Céu, e para baixo, lembrando-me que há Inferno. Não me alegou para isso passo da Escritura; mas então me ensinou o que quis dizer David em um, que eu não entendia: Averte oculos meos, 115
sermões ne videant vanitatem.10 Voltai-me, Senhor, os olhos, para que não vejam a vaidade. Pois David não podia voltar os seus olhos para onde quisesse⁈ Do modo que ele queria, não. Ele queria voltados os seus olhos, de modo que não vissem a vaidade, e isto não o podia fazer neste Mundo, para qualquer parte que voltasse os olhos, porque neste Mundo tudo é vaidade: Vanitas vanitatum et omnia vanitas.11 Logo, para não verem os olhos de David a vaidade, havia-lhos de voltar Deus de modo que só vissem e olhassem para o outro Mundo em ambos seus hemisférios; ou para o de cima, olhando direitamente só para o Céu, ou para o de baixo, olhando direitamente só para o Inferno. E esta é a mercê que pedia a Deus aquele grande profeta, e esta a doutrina que me pregou aquele peixezinho tão pequeno. Mas ainda que o Céu e o Inferno se não fez para vós, irmãos peixes, acabo, e dou fim a vossos louvores, com vos dar as graças do muito que ajudais a ir ao Céu, e não ao Inferno, os que se sustentam de vós. Vós sois os que sustentais as Cartuxas e os Buçacos, e todas as santas famílias, que professam mais rigorosa austeridade; vós os que a todos os verdadeiros cristãos ajudais a levar a penitência das quaresmas; vós aqueles com que o mesmo Cristo festejou a Páscoa as duas vezes que comeu com seus discípulos depois de ressuscitado. Prezem-se as aves e os animais terrestres de fazer esplêndidos e custosos os banquetes dos ricos, e vós gloriai-vos de ser companheiros do jejum e da abstinência dos justos! Tendes todos quantos sois tanto parentesco e simpatia com a virtude, que, proibindo Deus no jejum a pior e mais grosseira carne, concede o melhor e mais delicado peixe. E posto que na semana só dois se chamam vossos, nenhum dia 10. Sl 11 [118]:37 [Desvia os meus olhos de contemplarem a vaidade e vivifica-me no teu caminho.] 11. Ecl 1:2 [Vaidade de vaidades! diz o pregador, vaidade de vaidades! tudo vaidade.] 116
sermão de santo antonio vos é vedado. Um só lugar vos deram os astrólogos entre os signos celestes, mas os que só de vós se mantêm na terra, são os que têm mais seguros os lugares do Céu. Enfim, sois criaturas daquele elemento, cuja fecundidade entre todos é própria do Espírito Santo: Spiritus Domini foecundabat aquas.12 Deitou-vos Deus a bênção, que crescêsseis e multiplicásseis; e para que o Senhor vos confirme essa bênção, lembrai-vos de não faltar aos pobres com o seu remédio. Entendei que no sustento dos pobres tendes seguros os vossos aumentos. Tomai o exemplo nas irmãs sardinhas. Porque cuidais que as multiplica o Criador em número tão inumerável? Porque são sustento de pobres. Os solhos e os salmões são muito contados, porque servem à mesa dos reis e dos poderosos; mas o peixe que sustenta a fome dos pobres de Cristo, o mesmo Cristo os multiplica e aumenta. Aqueles dois peixes companheiros dos cinco pães do deserto, multiplicaram tanto, que deram de comer a cinco mil homens. Pois se peixes mortos, que sustentam os pobres, multiplicam tanto, quanto mais e melhor o farão os vivos! Crescei, peixes, crescei e multiplicai, e Deus vos confirme a sua bênção.
iv Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram 12. Gn 1:5 [:20] [E disse Deus: Produzam as águas abundantemente répteis de alma vivente; e voem as aves sobre a face da expansão dos céus.] 117
sermões os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros. Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens. Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão de comer e como se hão de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o 118
sermão de santo antonio não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra. Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo estava Job, quando dizia: Quare persequimini me, et carnibus meis saturamini?13 Porque me perseguis tão desumanamente, vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne? Quereis ver um Job destes? Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido. E para que vejais como estes comidos na terra são os pequenos, e pelos mesmos modos com que vós comeis no mar, ouvi a Deus queixando-se deste pecado: Nonne cognoscent omnes, qui operantur iniquitatem, qui devorunt plebem meam, ut cibum panis? 14 Cuidais, diz Deus, que não há de vir tempo em que conheçam e paguem o seu merecido aqueles que cometem a maldade? E que maldade é esta, à qual Deus singularmente chama maldade, como se não houvera outra no Mundo? E quem são aqueles que a cometem? A maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são os maiores, que comem os pequenos: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. Nestas palavras, pelo que vos 13. Jó 19:22 [Por que me perseguis assim como Deus, e da minha carne vos não fartais? ] 14. Sl 13:4 [Não terão conhecimento os obreiros da iniquidade, que comem o meu povo como se comessem pão? Eles não invocam ao Senhor.] 119
sermões toca, importa, peixes, que advirtais muito outras tantas cousas, quantas são as mesmas palavras. Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente a sua plebe: Plebem meam, porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos. E não só diz que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui devorant. Porque os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos senão que devoram e engolem os povos inteiros: Qui devorant plebem meam. E de que modo os devoram e comem? Ut cibum panis: não como os outros comeres, senão como pão. A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. Parece-vos bem isto, peixes? Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que não, e com olhardes uns para os outros, vos estais admirando e pasmando de que entre os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os maiores comeis os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão também de noite, às claras e às escuras, como também fazem os homens. Se cuidais, porventura, que estas injustiças entre vós se toleram e passam sem castigo, enganais-vos. Assim como 120
sermão de santo antonio Deus as castiga nos homens, assim também por seu modo as castiga em vós. Os mais velhos, que me ouvis e estais presentes, bem vistes neste Estado, e quando menos ouviríeis murmurar aos passageiros nas canoas, e muito mais lamentar aos miseráveis remeiros delas, que os maiores que cá foram mandados, em vez de governar e aumentar o mesmo Estado, o destruíram; porque toda a fome que de lá traziam, a fartavam em comer e devorar os pequenos. Assim foi; mas, se entre vós se acham acaso alguns dos que, seguindo a esteira dos navios, vão com eles a Portugal e tornam para os mares pátrios, bem ouviriam estes lá no Tejo que esses mesmos maiores que cá comiam os pequenos, quando lá chegam, acham outros maiores que os comam também a eles. Este é o estilo da divina justiça tão antigo e manifesto, que até os Gentios o conheceram e celebraram: Vos quibus rector maris, atque terrae Ius dedit magnum necis, atque vitae; Ponite inflatos, tumidosque vultus; Quidquid a vobis minor extimescit, Maior hoc vobis dominus minatur.
Notai, peixes, aquela definição de Deus: Rector maris atque terrae. Governador do mar e da terra: para que não duvideis que o mesmo estilo que Deus guarda com homens na terra, observa também convosco no mar. Necessário é logo que olheis por vós e que não façais pouco caso da doutrina que vos deu o grande Doutor da Igreja Santo Ambrósio, quando, falando convosco, disse: Cave nedum alium insequeris, incidas in validiorem : Guarde-se o peixe que persegue o mais fraco para o comer, não se ache na boca do mais forte, que o engula a ele. Nós o vemos aqui cada dia. Vai o xaréu correndo atrás do bagre, como o cão após a lebre, e não vê o cego que lhe vem nas costas o tubarão com quatro ordens de dentes, que o há de engolir de um bocado. E o que com maior elegância vos disse também Santo Agostinho: Praedo minoris fit praeda maioris. Mas não bastam, 121
sermões peixes, estes exemplos para que acabe de se persuadir a vossa gula, que a mesma crueldade que usais com os pequenos tem já aparelhado o castigo na voracidade dos grandes? Já que assim o experimentais com tanto dano vosso, importa que de aqui por diante sejais mais repúblicos e zelosos do bem comum, e que este prevaleça contra o apetite particular de cada um, para que não suceda que, assim como hoje vemos a muitos de vós tão diminuídos, vos venhais a consumir de todo. Não vos bastam tantos inimigos de fora e tantos perseguidores tão astutos e pertinazes, quantos são os pescadores, que nem de dia nem de noite deixam de vos pôr em cerco e fazer guerra por tantos modos⁈ Não vedes que contra vós se emalham e entralham as redes, contra vós se tecem as nassas, contra vós se torcem as linhas, contra vós se dobram e farpam os anzóis, contra vós as fisgas e os arpões? Não vedes que contra vós até as canas são lanças e as cortiças armas ofensivas? Não vos basta, pois, que tenhais tantos e tão armados inimigos de fora, senão que também vós de vossas portas a dentro o haveis de ser mais cruéis, perseguindo-vos com uma guerra mais que civil e comendo-vos uns aos outros? Cesse, cesse já, irmãos peixes, e tenha fim algum dia esta tão perniciosa discórdia; e pois vos chamei e sois irmãos, lembrai-vos das obrigações deste nome. Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e muito amigos todos, grandes e pequenos, quando vos pregava Santo Antônio? Pois continuai assim, e sereis felizes. Dir-me-eis (como também dizem os homens) que não tendes outro modo de vos sustentar. E de que se sustentam entre vós muitos que não comem os outros? O mar é muito largo, muito fértil, muito abundante, e só com o que bota às praias pode sustentar grande parte dos que vivem dentro nele. Comerem-se uns animais aos outros é voracidade e sevícia, e não estatuto da natureza. Os da terra e do ar, 122
sermão de santo antonio que hoje se comem, no princípio do Mundo não se comiam, sendo assim conveniente e necessário para que as espécies se multiplicassem. O mesmo foi (ainda mais claramente) depois do dilúvio, porque, tendo escapado somente dois de cada espécie, mal se podiam conservar, se comessem. E finalmente no tempo do mesmo dilúvio, em que todos viveram juntos dentro na arca, o lobo estava vendo o cordeiro, o gavião a perdiz, o leão o gamo, e cada um aqueles em que se costuma cevar; e se acaso lá tiveram essa tentação, todos lhe resistiram e se acomodaram com a ração do paiol comum que Noé lhes repartia. Pois se os animais dos outros elementos mais cálidos foram capazes desta temperança, porque o não serão os da água? Enfim, se eles em tantas ocasiões, pelo desejo natural da própria conservação e aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós também; ou fazei a virtude sem necessidade e será maior virtude. Outra cousa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto me lastima em muitos de vós é aquela tão notável ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água, e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e fica preso e boqueando, até que, assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida? Dir-me-eis que o mesmo fazem os homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e por que? Porque houve quem os engodou e lhes fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe por isco na ponta desses piques, desses chuços e dessas espadas 123
sermões dois retalhos de pano, ou branco, que se chama hábito de Malta, ou verde, que se chama de Avis ou vermelho, que se chama de Cristo e de Santiago; e os homens, por chegarem a passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois que sucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali, ou noutra ocasião ficou morto; e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros. Por este exemplo vos concedo, peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão, ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos, nem esta ambição de hábitos. Mas nem por isso vos negarei que também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honrada e mais ignoradamente. Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê? Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um mestre de navio de Portugal com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhes passou a era e não têm gasto; e que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra: dá-lhes uma sacadela e dá-lhes outra, com que cada vez lhes sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que querem parecer, todos esfaimados aos trapos, e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano, e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida. Isto não é encarecimento. Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas nem as baixelas, nem as joias; pois em que se vai e despende toda a vida? No triste farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo o ano. Não é isto, meus peixes, grande loucura dos homens com que vos escusais? Claro está que sim; nem vós o podeis 124
sermão de santo antonio negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por dois retalhos de pano, quem tem obrigação de se vestir; vós, a quem Deus vestiu do pé até à cabeça, ou de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de escamas prateadas e doiradas, vestidos que nunca se rompem, nem gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar com as modas; não é maior ignorância e maior cegueira deixardes-vos enganar ou deixardes-vos tomar pelo beiço com duas tirinhas de pano? Vede o vosso Santo Antônio, que pouco o pode enganar o Mundo com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de que aquela idade tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia de cônego regrante; e depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda. Com aquela corda e com aquele pano, pescou ele muitos, e só estes se não enganaram e foram sisudos.
v Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós. E começando aqui pela nossa costa: no mesmo dia em que cheguei a ela, ouvindo os roncadores e vendo o seu tamanho, tanto me moveram o riso como a ira. É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar⁈ Se, com uma linha de coser e um alfinete torcido, vos pode pescar um aleijado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais. Dizei-me: o espadarte porque não ronca? Porque, ordinariamente, quem tem muita espada, tem pouca língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer roncadores e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam. S. Pedro, a quem muito bem conheceram vossos antepassados, tinha tão boa espada, que ele só avançou 125
sermões contra um exército inteiro de soldados romanos; e se Cristo lha não mandara meter na bainha, eu vos prometo que havia de cortar mais orelhas que a de Malco. Contudo, que lhe sucedeu naquela mesma noite? Tinha roncado e barbateado Pedro que, se todos fraqueassem, só ele havia de ser constante até morrer se fosse necessário; e foi tanto pelo contrário, que só ele fraqueou mais que todos, e bastou a voz de uma mulherzinha para o fazer tremer e negar. Antes disso já tinha fraqueado na mesma hora em que prometeu tanto de si. Disse-lhe Cristo no horto que vigiasse, e vindo de aí a pouco a ver se o fazia, achou-o dormindo com tal descuido, que não só o acordou do sono, senão também do que tinha blasonado: Sic non potuisti una hora vigilare mecum? 15 Vós, Pedro, sois o valente que havíeis de morrer por mim, e não pudestes uma hora vigiar comigo? Pouco há, tanto roncar, e agora tanto dormir? Mas assim sucedeu. O muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir nela. Pois que vos parece, irmãos roncadores? Se isto sucedeu ao maior pescador, que pode acontecer ao menor peixe? Medi-vos, e logo vereis quão pouco fundamento tendes de blasonar, nem roncar. Se as baleias roncaram, tinha mais desculpa a sua arrogância na sua grandeza. Mas ainda nas mesmas baleias não seria essa arrogância segura. O que é a baleia entre os peixes, era o gigante Golias entre os homens. Se o rio Jordão e o mar de Tiberíades têm comunicação com o Oceano, como devem ter, pois dele manam todos, bem deveis de saber que este gigante era a ronca dos Filisteus. Quarenta dias contínuos esteve armado no campo, desafiando a todos os arraiais de Israel, sem haver quem se lhe atrevesse; e no cabo, que fim teve toda aquela arrogância? Bastou um pastorzi15. Me 14:37 [E, chegando, achou-os dormindo e disse a Pedro: Simão, dormes? Não podes vigiar uma hora? ] 126
sermão de santo antonio nho com um cajado e uma funda, para dar com ele em terra. Os arrogantes e soberbos tomam-se com Deus; e quem se toma com Deus, sempre fica debaixo. Assim que, amigos roncadores, o verdadeiro conselho é calar e imitar a Santo Antônio. Duas cousas há nos homens, que os costumam fazer roncadores, porque ambas incham: o saber e o poder. Caifás roncava de saber: Vos nescitis quidquam.16 Pilatos roncava de poder: Nescis quia potestatem habeo? 17 E ambos contra Cristo. Mas o fiel servo de Cristo, Antônio, tendo tanto saber, como já vos disse, e tanto poder, como vós mesmos experimentastes, ninguém houve jamais que o ouvisse falar em saber ou poder, quanto mais blasonar disso. E porque tanto calou, por isso deu tamanho brado. Nesta viagem, de que fiz menção, e em todas as que passei a Linha Equinocial, vi debaixo dela o que muitas vezes tinha visto e notado nos homens, e me admirou que se houvesse estendido esta ronha e pegado também aos peixes. Pegadores se chamam estes de que agora falo, e com grande propriedade, porque sendo pequenos, não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos costados. que jamais os desferram. De alguns animais de menos força e indústria se conta que vão seguindo de longe aos leões na caça, para se sustentarem do que a eles sobeja. O mesmo fazem estes pegadores, tão seguros ao perto como aqueles ao longe; porque o peixe grande não pode dobrar a cabeça, nem voltar a boca sobre os que traz às costas, e assim lhes sustenta o peso e mais a fome. Este modo de vida, mais astuto que generoso, se acaso se passou e pegou de um elemento a outro, sem dúvida que o aprenderam os peixes do alto, depois que os nossos Portugueses o navegaram; 16. Jo 11:49 [E Caifás, um deles, que era sumo sacerdote naquele ano, lhes disse: Vós nada sabeis.] 17. Jo 19:10 [Disse-lhe, pois, Pilatos: Não me falas a mim? Não sabes tu que tenho poder para te crucificar e tenho poder para te soltar?] 127
sermões porque não parte vice-rei ou governador para as Conquistas, que não vá rodeado de pegadores, os quais se arrimam a eles, para que cá lhes matem a fome, de que lá não tinham remédio. Os menos ignorantes, desenganados da experiência, despegam-se e buscam a vida por outra via; mas os que se deixam estar pegados à mercê e fortuna dos maiores, vem-lhes a suceder no fim o que aos pegadores do mar. Rodeia a nau o tubarão nas calmarias da Linha com os seus pegadores às costas, tão cerzidos com a pele, que mais parecem remendos ou manchas naturais, que os hóspedes ou companheiros. Lançam-lhe um anzol de cadeia com a ração de quatro soldados, arremessa-se furiosamente à presa, engole tudo de um bocado, e fica preso. Corre meia companha a alá-lo acima, bate fortemente o convés com os últimos arrancos; enfim, morre o tubarão, e morrem com ele os pegadores. Parece-me que estou ouvindo a S. Mateus, sem ser apóstolo pescador, descrevendo isto mesmo na terra. Morto Herodes, diz o Evangelista, apareceu o Anjo a José no Egipto, e disse-lhe que já se podia tornar para a pátria, porque eram mortos todos aqueles que queriam tirar a vida ao Menino: Defuncti sunt enim qui quaerebant animam Pueri.18 Os que queriam tirar a vida a Cristo menino, eram Herodes e todos os seus, toda a sua família, todos os seus aderentes, todos os que seguiam e pendiam da sua fortuna. Pois é possível que todos estes morressem juntamente com Herodes⁈ Sim: porque em morrendo o tubarão, morrem também com ele os pegadores: Defuncto Herode, defuncti sunt qui quaerebant animam Pueri. Eis aqui, peixinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida que escolhes-
18. Mt 2:20 [dizendo: Levanta-te, e toma o menino e sua mãe, e vai para a terra de Israel, porque já estão mortos os que procuravam a morte do menino.] 128
sermão de santo antonio tes. Tomai o exemplo nos homens, pois eles o não tomam em vós, nem seguem, como deveram, o de Santo Antônio. Deus também tem os seus pegadores. Um destes era David, que dizia: Mihi autem adhaerere Deo bonum est.19 Peguem-se outros aos grandes da terra, que eu só me quero pegar a Deus. Assim o fez também Santo Antônio; e senão, olhai para o mesmo Santo, e vede como está pegado com Cristo e Cristo com ele. Verdadeiramente se pode duvidar qual dos dois é ali o pegador: e parece que é Cristo, porque o menor é sempre o que se pega ao maior, e o Senhor fez-se tão pequenino, para se pegar a Antônio. Mas Antônio também se fez menor, para se pegar mais a Deus. Daqui se segue, que todos os que se pegam a Deus, que é imortal, seguros estão de morrer como os outros pegadores. E tão seguros, que ainda no caso em que Deus se fez homem e morreu, só morreu para que não morressem todos os que se pegassem a ele: Si ego me quaeritis, sinite hos abire.20 Se me buscais a mim, deixai ir a estes. E posto que deste modo só se podem pegar os homens, e vós, meus peixezinhos, não, ao menos devereis imitar aos outros animais do ar e da terra, que quando se chegam aos grandes e se amparam do seu poder, não se pegam de tal sorte que morram juntamente com eles. Lá diz a Escritura daquela famosa árvore, em que era significado o grande Nabucodonosor, que todas as aves do céu descansavam sobre os seus ramos e todos os animais da terra se recolhiam à sua sombra, e uns e outros se sustentavam de seus frutos: mas também diz que, tanto que foi cortada esta árvore, as aves voaram e os outros animais 19. Sl 72:2 [:1-2] [Verdadeiramente, bom é Deus para com Israel, para com os limpos de coração. Quanto a mim, os meus pés quase que se desviaram; pouco faltou para que escorregassem os meus passos.] 20. Jo 18:8 [Jesus respondeu: Já vos disse que sou eu; se, pois me buscais a mim, deixai ir estes.] 129
sermões fugiram. Chegai-vos embora aos grandes; mas não de tal maneira pegados, que vos mateis por eles, nem morrais com eles. Considerai, pegadores vivos, como morreram os outros que se pegaram àquele peixe grande, e porquê. O tubarão morreu porque comeu, e eles morreram pelo que não comeram. Pode haver maior ignorância que morrer pela fome e boca alheia? Que morra o tubarão porque comeu, matou-o a sua gula; mas que morra o pegador pelo que não comeu, é a maior desgraça que se pode imaginar! Não cuidei que também nos peixes havia pecado original. Nós os homens, fomos tão desgraçados, que outrem comeu e nós o pagamos. Toda a nossa morte teve princípio na gulodice de Adão e Eva; e que hajamos de morrer pelo que outrem comeu, grande desgraça! Mas nós lavamo-nos desta desgraça com uma pouca de água, e vós não vos podeis lavar da vossa ignorância com quanta água tem o mar. Com os voadores tenho também uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes. Se acaso vos não conheceis, olhai para as vossas espinhas e para as vossas escamas, e conhecereis que não sois aves, senão peixes, e ainda entre os peixes não dos melhores. Dir-me-eis, voador, que vos deu Deus maiores barbatanas que aos outros de vosso tamanho. Pois porque tivestes maiores barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas asas⁈ Mas ainda mal, porque tantas vezes vos desengana o vosso castigo. Quisestes ser melhor que os outros peixes, e por isso sois mais mofino que todos. Aos outros peixes, do alto mata-os o anzol ou a fisga, a vós sem fisga nem anzol, mata-vos a vossa presunção e o vosso capricho. Vai o navio navegando e o marinheiro dormindo, e o voador toca na vela ou na 130
sermão de santo antonio corda, e cai palpitando. Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os a isca; ao voador mata-o a vaidade de voar, e a sua isca é o vento. Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha e viver, que voar por cima das entenas e cair morto! Grande ambição é que, sendo o mar tão imenso, lhe não basta a um peixe tão pequeno todo o mar, e queira outro elemento mais largo. Mas vedes, peixes, o castigo da ambição. O voador fê-lo Deus peixe, e ele quis ser ave, e permite o mesmo Deus que tenha os perigos de ave e mais os de peixe. Todas as velas para ele são redes, como peixe, e todas as cordas, laços, como ave. Vê, voador, como correu pela posta o teu castigo. Pouco há nadavas vivo no mar com as barbatanas, e agora jazes em um convés amortalhado nas asas. Não contente com ser peixe, quiseste ser ave, e já não és ave nem peixe; nem voar poderás já, nem nadar. A natureza deu-te a água, tu não quiseste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo. Peixes, contente-se cada um com o seu elemento. Se o voador não quisera passar do segundo ao terceiro, não viera a parar no quarto. Bem seguro estava ele do fogo, quando nadava na água, mas porque quis ser borboleta das ondas, vieram-se-lhe a queimar as asas. À vista deste exemplo, peixes, tomai todos na memória esta sentença: Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem. Quem pode nadar e quer voar, tempo virá em que não voe nem nade. Ouvi o caso de um voador da terra: Simão Mago, a quem a arte mágica, na qual era famosíssimo, deu o sobrenome, fingindo-se que ele era o verdadeiro filho de Deus, sinalou o dia em que aos olhos de toda Roma havia de subir ao Céu, e com efeito começou a voar mui alto; porém a oração de S. Pedro, que se achava presente, voou mais depressa que ele, e caindo lá de cima o mago, não quis Deus que morresse logo, senão que aos olhos também de todos quebrasse, como quebrou, os pés. Não quero que repareis no castigo, se não no gênero dele 131
sermões Que caia Simão, está muito bem caído; que morra, também estaria muito bem morto, que o seu atrevimento e a sua arte diabólica o merecia. Mas que de uma queda tão alta não rebente, nem quebre a cabeça ou os braços, se não os pés⁈ Sim, diz S. Máximo, porque quem tem pés para andar e quer asas para voar, justo é que perca as asas e mais os pés. Elegantemente o Santo Padre: Ut qui paulo ante volare tentaverat, subito ambulare non posset; et qui pennas assumpserat, plantas amitteret. Se Simão tem pés e quer asas, pode andar e quer voar; pois quebrem-se-lhe as asas para que não voe, e também os pés, para que não ande. Eis aqui, voadores do mar, o que sucede aos da terra, para que cada um se contente com o seu elemento. Se o mar tomara exemplo nos rios, depois que Ícaro se afogou no Danúbio não haveria tantos Ícaros no Oceano. Oh alma de Antônio, que só vós tivestes asas e voastes sem perigo, porque soubestes voar para baixo e não para cima! Já S. João viu no Apocalipse aquela mulher cujo ornato gastou todas as luzes ao Firmamento, e diz que lhe foram dadas duas grandes asas de águia: Datae sunt mulieri alae duae aquilae magnae.21 E para quê? Ut volaret in desertum: Para voar ao deserto. Notável cousa, que não debalde lhe chamou o mesmo Profeta grande maravilha. Esta mulher estava no Céu: Signum magnum apparauit in caelo, mulier amicta sole. Pois se a mulher estava no Céu e o deserto na terra, como lhe dão asas para voar ao deserto? Porque há asas para subir e asas para descer. As asas para subir são muito perigosas, as asas para descer muito seguras; e tais foram as de Santo Antônio. Deram-se à alma de Santo Antônio duas asas de águia, que foi aquela duplicada sabedoria natural 21. Ap 2:14 [12:14] [E foram dadas à mulher duas asas de grande águia, para que voasse para o deserto, ao seu lugar, onde é sustentada por um tempo, e tempos, e metade de um tempo, fora da vista da serpente.] 132
sermão de santo antonio e sobrenatural tão sublime, como sabemos. E ele que fez? Não estendeu as asas para subir, encolheu-as para descer; e tão encolhidas que, sendo a Arca do Testamento, era reputado, como já vos disse, por leigo e sem ciência. Voadores do mar (não falo com os da terra), imitai o vosso santo pregador. Se vos parece que as vossas barbatanas vos podem servir de asas, não as estendais para subir, porque vos não suceda encontrar com alguma vela ou algum costado; encolhei-as para descer, ide-vos meter no fundo em alguma cova; e se aí estiverdes mais escondidos, estareis mais seguros. Mas já que estamos nas covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão polvo, contra o qual têm suas queixas, e grandes, não menos que S. Basílio e Santo Ambrósio. O polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja latina e grega, que o dito polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta traição do polvo primeiramente em se vestir ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores a que está pegado. As cores, que no camaleão são gala, no polvo são malícia; as figuras, que em Proteu são fábula, no polvo são verdade e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo: e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra. E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição, vai passando desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas? Não fizera mais, porque não fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com os bra133
sermões ços fez o sinal, e o polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é verdade que foi traidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras. O polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a primeira traição e roubo que faz, é a luz, para que não distinga as cores. Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor! Oh que excesso tão afrontoso e tão indigno de um elemento tão puro, tão claro e tão cristalino como o da água, espelho natural não só da terra, senão do mesmo céu! Lá disse o Profeta por encarecimento, que nas nuvens do ar até a água é escura: Tenebrosa aqua in nubibus aeris.22 E disse nomeadamente nas nuvens do ar, para atribuir a escuridade ao outro elemento, e não à água; a qual em seu próprio elemento é sempre clara, diáfana e transparente, em que nada se pode ocultar, encobrir nem dissimular. E que neste mesmo elemento se crie, se conserve e se exercite com tanto dano do bem público um monstro tão dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão conhecidamente traidor! Vejo, peixes, que pelo conhecimento que tendes das terras em que batem os vossas mares, me estais respondendo e convindo, que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito maiores e mais perniciosas traições. E sobre o mesmo sujeito que defendeis, também podereis aplicar aos semelhantes outra propriedade muito própria; mas pois vós a calais, eu também a calo. Com grande confusão, porém, vos confesso tudo, e muito mais do que dizeis, pois não o posso negar. Mas ponde os olhos em Antônio, vosso pregador, e vereis nele o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou engano. E sabei tam22. Sl 17:12 [Vestiu-se de trevas, como de um véu, como de um manto, de água tenebrosa e densas nuves.] 134
sermão de santo antonio bém que para haver tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente ser português, não era necessário ser santo. Tenho acabado, irmãos peixes, os vossos louvores e repreensões, e satisfeito, como vos prometi, às duas obrigações do sal, posto que do mar, e não da terra: Vos estis sal terrae. Só resta fazer-vos uma advertência muito necessária, para os que viveis nestes mares. Como eles são tão esparcelados e cheios de baixios, bem sabeis que se perdem e dão à costa muitos navios, com que se enriquece o mar e a terra se empobrece. Importa, pois, que advirtais, que nesta mesma riqueza tendes um grande perigo, porque todos os que se aproveitam dos bens dos naufragantes, ficam excomungados e malditos. Esta pena de excomunhão, que é gravíssima, não se pôs a vós senão aos homens, mas tem mostrado Deus por muitas vezes, que quando os animais cometem materialmente o que é proibido por esta lei, também eles incorrem, por seu modo, nas penas dela, e no mesmo ponto começam a definhar, até que acabam miseravelmente. Mandou Cristo a S. Pedro que fosse pescar, e que na boca do primeiro peixe que tomasse, acharia uma moeda, com que pagar certo tributo. Se Pedro havia de tomar mais peixe que este, suposto que ele era o primeiro, do preço dele e dos outros podia fazer o dinheiro com que pagar aquele tributo, que era de uma só moeda de prata, e de pouco peso. Com que mistério manda logo o Senhor que se tire da boca deste peixe e que seja ele o que morra primeiro que os demais? Ora estai atentos. Os peixes não batem moeda no fundo do mar, nem têm contratos com os homens, donde lhes possa vir dinheiro; logo, a moeda que este peixe tinha engolido, era de algum navio que fizera naufrágio naqueles mares. E quis mostrar o Senhor que as penas que S. Pedro ou seus sucessores fulminam contra os homens que tomam os bens dos naufragantes, também os peixes por seu modo as incorrem morrendo primeiro que os outros, e com o mesmo di135
sermões nheiro que engoliram atravessado na garganta. Oh que boa doutrina era esta para a terra, se eu não pregara para o mar! Para os homens não há mais miserável morte, que morrer com o alheio atravessado na garganta; porque é pecado de que o mesmo S. Pedro e o mesmo Sumo Pontífice não pode absolver. E posto que os homens incorrem a morte eterna, de que não são capazes os peixes, eles contudo apressam a sua temporal, como neste caso, se materialmente, como tenho dito, se não abstêm dos bens dos naufragantes.
iv Com esta última advertência vos despido, ou me despido de vós, meus peixes. E para que vades consolados do sermão, que não sei quando ouvireis outro, quero-vos aliviar de uma desconsolação mui antiga, com que todos ficastes desde o tempo em que se publicou o Levítico. Na lei eclesiástica ou ritual do Levítico, escolheu Deus certos animais que lhe haviam de ser sacrificados; mas todos eles ou animais terrestres ou aves, ficando os peixes totalmente excluídos dos sacrifícios. E quem duvida que esta exclusão tão universal era digna de grande desconsolação e sentimento para todos os habitadores de um elemento tão nobre, que mereceu dar a matéria ao primeiro sacramento? O motivo principal de serem excluídos os peixes, foi porque os outros animais podiam ir vivos ao sacrifício, e os peixes geralmente não, senão mortos; e cousa morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem chegue aos seus altares. Também este ponto era muito importante e necessário aos homens, se eu lhes pregara a eles. Oh quantas almas chegam àquele altar mortas, porque chegam e não têm horror de chegar, estando em pecado mortal! Peixes, dai muitas graças a Deus de vos livrar deste perigo, porque melhor é não chegar ao sacrifício, que chegar morto. Os outros animais ofereçam 136
sermão de santo antonio a Deus o ser sacrificados; vós oferecei-lhe o não chegar ao sacrifício; os outros sacrifiquem a Deus o sangue e a vida; vós sacrificai-lhe o respeito e a reverência. Ah peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade! Quanto melhor me fora não tomar a Deus nas mãos, que tomá-lo indignamente! Em tudo o que vos excedo, peixes, vos reconheço muitas vantagens. A vossa bruteza é melhor que a minha razão e o vosso instinto melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com as palavras; eu lembro-me, mas vós não ofendeis a Deus com a memória; eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade. Vós fostes criados por Deus, para servir ao homem, e conseguis o fim para que fostes criados; a mim criou-me para o servir a ele, e eu não consigo o fim para que me criou. Vós não haveis de ver a Deus, e podereis aparecer diante dele muito confiadamente, porque o não ofendestes; eu espero que o hei de ver; mas com que rosto hei de aparecer diante do seu divino acatamento, se não cesso de o ofender? Ah que quase estou por dizer que me fora melhor ser como vós, pois de um homem que tinha as mesmas obrigações, disse a Suma Verdade, que melhor lhe fora não nascer homem: Si natus non fuisset homo ille. E pois os que nascemos homens, respondemos tão mal às obrigações de nosso nascimento, contentai-vos, peixes, e dai muitas graças a Deus pelo vosso. Benedicite, cete et omnia quae moventur in aquis, Domino: Louvai, peixes, a Deus, os grandes e os pequenos, e repartidos em dois coros tão inumeráveis, louvai-o todos uniformemente. Louvai a Deus, porque vos criou em tanto número. Louvai a Deus, que vos distinguiu em tantas espécies; louvai a Deus, que vos vestiu de tanta variedade e formosura; louvai a Deus, que vos habilitou de todos os instrumentos necessários à vida; louvai a Deus, que vos deu um 137
sermões elemento tão largo e tão puro; louvai a Deus, que, vindo a este Mundo, viveu entre vós, e chamou para si aqueles que convosco e de vós viviam; louvai a Deus, que vos sustenta; louvai a Deus, que vos conserva; louvai a Deus, que vos multiplica; louvai a Deus, enfim, servindo e sustentando ao homem, que é o fim para que vos criou; e assim como no princípio vos deu sua bênção, vo-la dê também agora. Amen. Como não sois capazes de Glória, nem de Graça, não acaba o vosso Sermão em Graça e Glória.
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Sermão do Espírito Santo
Pregado na Cidade de São Luís do Maranhão, na Igreja da Companhia de Jesus, em ocasião que partia ao Rio das Amazonas uma grande Missão dos mesmos Religosos.
Ille vos docebil omnia, quaecumque dixero vobis.2 Jo, 14.
i A sexta vez é hoje, que no ano presente e nos dois passados me ouvis pregar este mesmo mistério. Mas não será esta somente a sexta vez em que vós e eu experimentamos o pouco fruto com que esta terra responde ao que se devera esperar de tão continuada cultura. Se a doutrina que se semeia nela fora nossa, achada estava a causa na fraqueza de nossas razões, no desalento de nossos afetos e na eficácia mal viva de nossas palavras; mas não é assim: Sermonem quem audistis non est meus, sed ejus qui misit me, Patris:3 O sermão que ouvistes não é meu, senão do Eterno Padre 2. Jo 14:[26] [Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito.] 3. Jo 14:24 [Quem não me ama não guarda as minhas palavras; e a palavra que estais ouvindo não é minha, mas do Pai, que me enviou.] 141
sermões que me mandou ao mundo (diz Cristo neste Evangelho) e o mesmo podem dizer todos os pregadores, ao menos os que ouvis deste lugar. Os sermões, as verdades, a doutrina que pregamos não é nossa, é de Cristo. Eles a disse, os evangelistas a escreveram, nós a repetimos. Pois, se estas repetições são tantas e tão continuadas, e a doutrina que pregamos não é nossa, senão de Cristo, como fazem tão poucos progressos nela, e como aprendem tão pouco os que a ouvem? Nas palavras que propus temos a verdadeira resposta desta tão nova admiração. Ille vos docebit omnia quaecumque dixero vobis.4 O Espírito Santo, diz Cristo, vos ensinará tudo o que eu vos tenho dito. Notai a diferença dos termos, e vereis quanto vai de dizer a ensinar. Não diz Cristo: o Espírito Santo vos dirá o que eu vos tenho dito; nem diz: o Espírito Santo vos ensinará o que eu vos tenho ensinado; mas diz: O Espírito Santo vos ensinará o que eu vos tenho dito, porque o pregador, ainda que seja Cristo, diz: o que ensina é o Espírito Santo. Cristo diz: Quaecumque dixero vobis; o Espírito Santo ensina: Ille vos docebit omnia. O mestre na cadeira diz para todos, mas não ensina a todos. Diz para todos, porque todos ouvem; mas não ensina a todos, porque uns aprendem, outros não. E qual é a razão desta diversidade, se o mestre é o mesmo e a doutrina a mesma? Porque, para aprender, não basta só ouvir por fora: é necessário entender por dentro. Se a luz de dentro é muita, aprende-se muito; se pouca, pouco; se nenhuma, nada. O mesmo nos acontece a nós. Dizemos, mas não ensinamos, porque dizemos por fora; só o Espírito Santo ensina, porque alumia por dentro: Ministeria forinsecus adjutoria sunt, cathedram in caelo habet, quia corda do4. Jo 14:26 [Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito.] 142
sermão do espírito santo cet, diz Santo Agostinho. Por isso até o mesmo Cristo, pregando tanto, converteu tão pouco. Se o Espírito Santo não alumia por dentro, todo o dizer, por mais divino que seja, é dizer: Quaecumque dixero vobis; mas se as vozes exteriores são assistidas dos raios interiores da sua luz, logo qualquer que seja o dizer, e de quem quer que seja, é ensinar, porque só o Espírito Santo é o que ensina: Ille vos docebit. Por que vos parece que apareceu o Espírito Santo hoje sobre os apóstolos, não só em línguas, mas em línguas de fogo? Porque as línguas falam, o fogo alumia. Para converter almas, não bastam só palavras: são necessárias palavras e luz. Se quando o pregador fala por fora, o Espírito Santo alumia por dentro, se quando as nossas vozes vão aos ouvidos, os raios da sua luz entram ao coração, logo se converte o mundo. Assim sucedeu em Jerusalém neste mesmo dia. Sai S. Pedro do cenáculo de Jerusalém, assistido deste fogo divino, toma um passo do profeta Joel, declara-o ao povo, e, sendo o povo a que pregava aquele mesmo povo obstinado e cego, que poucos dias antes tinha crucificado a Cristo, foram três mil os que naquela pregação o confessaram por verdadeiro Filho de Deus e se converteram à fé. Oh! admirável eficácia da luz do Espírito Santo! Oh! notável confusão vossa e minha! Um pescador, com uma só pregação e com um só passo da Escritura, no dia de hoje converte três mil infiéis, e eu, no mesmo dia, com cinco e com seis pregações, com tantas Escrituras, com tantos argumentos, com tantas razões, com tantas evidências, não posso persuadir um cristão. Mas a causa é porque eu falo e o Espírito Santo, por falta de disposição nossa, não alumia. Divino Espírito, não seja a minha indignidade a que impeça a estas almas, por amor das quais descestes do céu à terra, o fruto de vossa santíssima vinda: Veni Sancte Spiritus, et emitte caelitus lucis tuae radium: Vinde, Senhor, e mandai-nos do céu um raio eficaz de vossa luz: não pelos nossos merecimentos, que conhece143
sermões mos quão indignos são, mas pela infinita bondade vossa, e pela intercessão de vossa esposa santíssima. Ave Maria.
ii Ille vos docebit omnia. Diz Cristo aos apóstolos que o Espírito Santo os ensinará. E ser Cristo, ser o Filho de Deus o que diz estas palavras, faz segunda dificuldade à inteligência e razão delas. Ao Filho de Deus, que é a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, atribui-se a sabedoria; ao Espírito Santo, que é a terceira Pessoa, o amor; e suposto isto parece que a Pessoa do Espírito Santo havia de encomendar o ofício de ensinar à Pessoa do Filho, e não o Filho ao Espírito Santo. Que o amor encomende o ensinar à sabedoria, bem está; mas a sabedoria encomendar o ensinar ao amor: Ille vos docebit? Neste caso sim. Porque para ensinar homens infiéis e bárbaros, ainda que é muito necessária a sabedoria, é muito mais necessário o amor. Para ensinar, sempre é necessário amar e saber, porque quem não ama não quer, e quem não sabe não pode; mas esta necessidade de sabedoria e amor não é sempre com a mesma igualdade. Para ensinar nações fiéis e políticas, é necessário maior sabedoria que amor; para ensinar nações bárbaras e incultas, é necessário maior amor que sabedoria. A segunda Pessoa, o Filho, e a terceira, o Espírito Santo, ambas vieram ao mundo a ensinar e salvar almas; mas a missão do Filho foi a uma nação fiel e política, e a missão do Espírito Santo foi principalmente a todas as nações incultas e bárbaras. A missão do Filho foi só a uma nação fiel e política, porque foi só aos filhos de Israel, como o mesmo Senhor disse: Non sum missus nisi ad oves quae perierunt domus Israel.5 A missão do Espírito Santo foi principalmente às nações incultas e bárbaras, porque foi para 5. Mt 15:24 [E ele, respondendo, disse: Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel.] 144
sermão do espírito santo todas as nações do mundo, que por isso desceu e apareceu em tanta diversidade de línguas: Apparuerunt dispertitae linguae.6 E como a primeira missão era para uma nação política, e a segunda para todas as nações bárbaras, por isso foi muito conveniente que à primeira viesse uma Pessoa divina, a quem se atribui, não o amor, senão a sabedoria, e que à segunda viesse outra pessoa, também divina, a quem se atribui, não a sabedoria, senão o amor. Para ensinar homens entendidos e políticos, pouco amor é necessário: basta muita sabedoria; mas para ensinar homens bárbaros e incultos, ainda que baste pouca sabedoria, é necessário muito amor. Desceu hoje o Espírito Santo em línguas, para formar aos apóstolos mestres e pregadores, mas mestres e pregadores de quem? O mesmo Cristo que os mandou pregar o disse: Euntes in mundum universum, praedicate Evangelium omni creaturae:7 Ide por todo o mundo, e pregai a toda a criatura. A toda a criatura, Senhor? É reparo de S. Gregório papa. Bem sei eu que são criaturas os homens, mas os brutos animais, as árvores e as pedras também são criaturas. Pois, se os apóstolos hão de pregar a todas as criaturas, hão de pregar também aos brutos? Hão de pregar também aos troncos? Hão de pregar também às pedras? Também, diz Cristo: Omni creaturae; não porque houvessem os apóstolos de pregar às pedras, e aos troncos, e aos brutos, mas porque haviam de pregar a todas as nações e línguas bárbaras e incultas do mundo, entre as quais haviam de achar homens tão irracionais como os brutos, e tão insensíveis como os troncos, e tão duros e estúpidos como as pedras. E para um apóstolo se pôr a ensinar e abrandar uma pedra, 6. At 2:3 [E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles.] 7. Mc 16:15 [E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura.] 145
sermões para se pôr a ensinar e moldar um tronco, para se pôr a ensinar e meter em juízo um bruto, vede se é necessário muito amor de Deus. Em um deles o veremos. Poucos dias antes de Cristo mandar aos apóstolos a pregar pelo mundo, fez esta pergunta a S. Pedro: Simon Joannis, diligis me plus his? 8 Etiam, Domine, tu scis quia amo te: Senhor, bem sabeis vós que vos amo. Ouvida a resposta, torna Cristo a fazer segunda vez a mesma pergunta: Simon Joannis, diligis me plus his? Pedro, amas- me mais que todos estes? Respondeu S. Pedro, com a mesma submissão e encolhimento, que bem sabia o Senhor, que o amava: Tu scis quia amo te. Ouvida a mesma resposta segunda vez, torna Cristo terceira vez a repetir a mesma pergunta, e diz o texto que se entristeceu São Pedro: Contristatus est Petrus, quia dixit ei tertio, amas me? Entristeceu-se Pedro, porque Cristo lhe perguntou a terceira vez se o amava. E verdadeiramente que a matéria e a instância era muito para dar cuidado. Quando eu li estas palavras a primeira vez, pareceu-me que seria este exame de amor tão repetido, para Cristo mandar a S. Pedro que fosse a Jerusalém, que entrasse pelo palácio de Caifás, e que, no mesmo lugar onde o tinha negado, se desdissesse publicamente, e confessasse a vozes que seu Mestre era o verdadeiro Messias e Filho de Deus verdadeiro, e, que se por isso o quisessem matar e queimar, que se deixasse tirar a vida e fazer em cinza. Para isto cuidava eu que eram estas perguntas e estes exames tão repetidos do amor de S. Pedro. Mas depois que o santo respondeu na mesma forma a terceira vez, que amava, o que o Senhor
8. Jo 21:15 [E, depois de terem jantado, disse Jesus a Simão Pedro: Simão, filho de Jonas, amas-me mais do que estes? E ele respondeu: Sim, Senhor; tu sabes que te amo. Disse-lhe: Apascenta os meus cordeiros.] Pedro, amas- me mais que todos estes? Respondeu o santo: 146
sermão do espírito santo lhe disse foi: Pasce oves meas:9 Pois, Pedro, já que me amas tanto, mostra-o em apascentar as minhas ovelhas. Agora me admiro eu deveras. Pois, para apascentar as ovelhas de Cristo tanto aparato de exames de amor de Deus? Uma vez, se me amas, e outra vez, se me amas, e terceira vez, se me amas? E não só, se me amas, senão, se me amas mais que todos? Sim. Ora vede. As ovelhas que S. Pedro havia de apascentar, eram as nações de todo o mundo, as quais Cristo queria trazer e ajuntar de todo ele, e fazer de todas um só rebanho, que é a Igreja, debaixo de um só pastor, que é S. Pedro: Et alias oves habeo, quae non sunt ex hoc ovili, et illas opportet me adducere, et vocem meam audient, et fiet unum ovile et unus Pastor.10 De maneira que o rebanho que Cristo encomendou a S. Pedro não era rebanho feito, senão que se havia de fazer, e as ovelhas não eram ovelhas mansas, senão que se haviam de amansar: eram lobos, eram ursos, eram tigres, eram leões, eram serpentes, eram dragões, eram áspides, eram basiliscos, que por meio da pregação se haviam de converter em ovelhas. Eram nações bárbaras e incultas, eram nações feras e indômitas, eram nações cruéis e carniceiras, eram nações sem humanidade, sem-razão, e muitas delas sem lei, que por meio da fé e do Batismo se haviam de fazer cristãs; e para apascentar e amansar semelhante gado, para doutrinar e cultivar semelhantes gentes, é necessário muito cabedal de amor de Deus, é necessário amar a Deus: Diligis me, e mais amar a Deus: Diligis me, e mais amar a Deus: Diligis 9. Jo 21:17 [Disse-lhe terceira vez: Simão, filho de Jonas, amas-me? Simão entristeceu-se por lhe ter dito terceira vez: Amas-me? Edisse-lhe: Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que eu te amo. Jesus disse-lhe: Apascenta as minhas ovelhas.] 10. Jo 10:16 [Ainda tenho outras ovelhas que não são deste aprisco; também me convém agregar estas, e elas ouvirão a minha voz, e haverá um rebanho e um Pastor.] 147
sermões me, e não só amar a Deus uma, duas e três vezes, senão amá-lo mais que todos: Diligis me plus his? Quando as ovelhas que Cristo encomendava a S. Pedro foram mansas e domésticas, ainda era necessário muito amor para suportar o trabalho de as guardar. Exemplo seja Jacó, pastor de Labão e amante de Raquel, de quem diz a Escritura que sofria tão levemente o que sofria, porque amava tão grandemente como amava: Prae amoris magnitudine.11 E se, para guardar ovelhas mansas, é necessário amor, e muito amor, que será para ir tirar das brenhas ovelhas feras, para as amansar e afeiçoar aos novos pastos, para as acostumar à voz do pastor e à obediência do cajado, e sobretudo para desprezar os perigos de se confiar de suas garras e dentes, enquanto são ainda feras, e não ovelhas. Se é necessário amor para ser pastor de ovelhas que comem no prado e bebem no rio, que amor será necessário para ser pastor de ovelhas, que talvez comem os pastores e lhes bebem o sangue? Por isso Cristo examina três vezes de amor a S. Pedro, por isso o Espírito Santo, Deus de amor, vem hoje a formar estes pastores e estes mestres, e por isso o Mestre divino passa hoje os seus discípulos da Escola da Sabedoria para a Escola do Amor: Ille vos docebit.
iii Aplicando agora esta doutrina universal ao particular da terra em que vivemos, digo que, se em outras terras é necessário aos apóstolos, ou aos sucessores do seu ministério, muito cabedal de amor de Deus para ensinar, nesta terra, e nestas terras é ainda necessário muito mais amor de Deus que em nenhuma outra. E por quê? Por dois princípios: o 11. Gn 29:20 [Assim, serviu Jacó sete anos por Raquel; e foram aos seus olhos como poucos dias, pelo muito que a amava.] 148
sermão do espírito santo primeiro, pela qualidade das gentes; o segundo, pela dificuldade das línguas. Primeiramente, pela qualidade da gente, porque a gente destas terras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo. Bastava por prova a da experiência, mas temos também (quem tal cuidara!) a do Evangelho. A forma com que Cristo mandou pelo mundo a seus discípulos, diz o evangelista S. Marcos que foi esta: Exprobavit incredulitatem eorum, et duritiam cordis, quia iis, qui viderant eum resurrexisse, non crediderunt, et dixit illis: Euntes in mundum universum praedicate Evangelium omni creaturae:12 Repreendeu Cristo aos discípulos da incredulidade e dureza de coração, com que não tinham dado crédito aos que o viram ressuscitado, e sobre esta repreensão os mandou que fossem pregar por todo o mundo. A S. Pedro coube-lhe Roma e Itália; a S. João, a Ásia Menor; a São Tiago, Espanha; a S. Mateus, Etiópia; a S. Simão, Mesopotâmia; a S. Judas Tadeu, o Egito; aos outros, outras províncias, e finalmente a Santo Tomé esta parte da América em que estamos, a que vulgar e indignamente chamaram Brasil. Agora pergunto eu: e por que nesta repartição coube o Brasil a Santo Tomé e não a outro apóstolo? Ouvi a razão. Notam alguns autores modernos que notificou Cristo aos apóstolos a pregação da fé pelo mundo, depois de os repreender da culpa da incredulidade, para que os trabalhos que haviam de padecer na pregação da fé fossem também em satisfação e como em penitência da mesma incredulidade e dureza de coração que tiveram em não quererem crer: Exprobavit incredulitatem eorum, et duritiam cordis, 12. Mc 16:14-15 [Finalmente apareceu aos onze, estando eles assentados juntamente, e lançou-lhes em rosto a sua incredulidade e dureza de coração, por não haverem crido nos que o tinham visto já ressuscitado. Edisse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura.] 149
sermões et dixit illis: Euntes in mundum universum. E como Santo Tomé, entre todos os apóstolos, foi o mais culpado da incredulidade, por isso a Santo Tomé lhe coube, na repartição do mundo, a missão do Brasil, porque, onde fora maior a culpa, era justo que fosse mais pesada a penitência. Como se dissera o Senhor: os outros apóstolos, que foram menos culpados na incredulidade, vão pregar aos gregos, vão pregar aos romanos, vão pregar aos etíopes, aos árabes, aos armênios, aos sarmatas, aos citas; mas Tomé, que teve a maior culpa, vá pregar aos gentios do Brasil, e pague a dureza de sua incredulidade com ensinar à gente mais bárbara e mais dura. Bem o mostrou o efeito. Quando os portugueses descobriram o Brasil, acharam as pegadas de Santo Tomé estampadas em uma pedra, que hoje se vê nas praias da Bahia; mas rasto, nem memória da fé que pregou Santo Tomé, nenhum acharam nos homens. Não se podia melhor provar e encarecer a barbaria da gente. Nas pedras, acharam-se rastos do pregador, na gente não se achou rasto da pregação; as pedras conservaram memórias do apóstolo, os corações não conservaram memória da doutrina. A causa por que as não conservaram, diremos logo, mas é necessário satisfazer primeiro a uma grande dúvida, que contra o que imos dizendo se oferece. Não há gentios no mundo que menos repugnem à doutrina da fé, e mais facilmente a aceitem e recebam, que os brasis; como dizemos logo, que foi pena da incredulidade de Santo Tomé o vir pregar a esta gente? Assim foi (e quando menos, assim pode ser) e não porque os brasis não creiam com muita facilidade, mas porque essa mesma facilidade com que crêem faz que o seu crer, em certo modo, seja como o não crer. Outros gentios são incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são incrédulos. Em outros gentios a incredulidade é incredulidade, e a fé é fé; nos brasis a mesma fé ou é, ou parece incredulidade. São os brasis como o pai daquele lunático do Evan150
sermão do espírito santo gelho, que padecia na fé os mesmos acidentes que o filho no juízo. Disse-lhe Cristo: Omnia possibilia sunt credenti:13 Que tudo é possível a quem crê. E eles respondeu: Credo, Domine, adjuva incredulitatem meam: Creio, Senhor, ajudai minha incredulidade. Reparam muito os santos nos termos desta proposição, e verdadeiramente é muito para reparar. Quem diz: creio, crê e tem fé; quem diz: ajudai minha incredulidade, não crê e não tem fé. Pois como era isto? Cria este homem, e não cria; tinha fé, e não tinha fé juntamente? Sim, diz o Venerável Beda: Uno eodemque tempore his, qui nondum perfecte crediderat, simul et credebat, et incredulus erat: No mesmo tempo cria e não cria este homem, porque era tão imperfeita a fé com que cria, que por uma parte parecia e era fé, e por outra parecia e era incredulidade: Uno eodemque tempore, et credebat, et incredulus erat. Tal é a fé dos brasis: é fé que parece incredulidade, e é incredulidade que parece fé; é fé, porque crêem sem dúvida e confessam sem repugnância tudo o que lhes ensinam, e parece incredulidade, porque, com a mesma facilidade com que aprenderam, desaprendem, e com a mesma facilidade, com que creram, descrêem. Assim lhe aconteceu a Santo Tomé com ele. Por que vos parece que passou Santo Tomé tão brevemente pelo Brasil, sendo uma região tão dilatada e umas terras tão vastas? É que receberam os naturais a fé que o santo lhes pregou com tanta facilidade e tão sem resistência nem impedimento, que não foi necessário gastar mais tempo com ele. Mas tanto que o santo apóstolo pôs os pés no mar (que este, dizem, foi o caminho por onde passou à Índia) tanto que o santo apóstolo, digamo-lo assim, virou as costas, no mesmo ponto se esqueceram os brasis de tudo quanto lhes tinha ensinado, e começaram a descrer ou a não fazer caso de quanto tinham 13. Mc 9:23 [E Jesus disse-lhe: Se tu podes crer; tudo é possível ao que crê.] 151
sermões crido, que é gênero de incredulidade mais irracional, que se nunca creram. Pelo contrário, na Índia pregou Santo Tomé àquelas gentilidades, como fizera às do Brasil: chegaram também lá os portugueses dali a mil e quinhentos anos, e que acharam? Não só acharam a sepultura e as relíquias do santo apóstolo, e os instrumentos de seu martírio, mas o seu nome vivo na memória dos naturais, e o que é mais, a fé de Cristo, que lhes pregara, chamando-se cristãos de Santo Tomé todos os que se estendem pela grande costa de Coromandel, onde o santo está sepultado. E qual seria a razão por que nas gentilidades da Índia se conservou a fé de Santo Tomé, e nas do Brasil não? Se as do Brasil ficaram desassistidas do santo apóstolo pela sua ausência, as da Índia também ficaram desassistidas dele pela sua morte. Pois, se naquelas nações se conservou a fé por tantos centos de anos, nestas por que se não conservou? Porque esta é a diferença que há de umas nações a outras. Nas da Índia, muitas são capazes de conservarem a fé sem assistência dos pregadores; mas nas do Brasil nenhuma há que tenha esta capacidade. Esta é uma das maiores dificuldades que tem aqui a conversão. Há- se de estar sempre ensinando o que já está aprendido, e há-se de estar sempre plantando o que já está nascido, sob pena de se perder o trabalho e mais o fruto. A estrela que apareceu no Oriente aos Magos guiou-os até o presépio, e não apareceu mais. Por quê? Porque muitos gentios do Oriente, e doutras partes do mundo, são capazes de que os pregadores, depois de lhes mostrarem a Cristo, se apartem dele e os deixem. Assim o fez S. Filipe ao eunuco da rainha Candace, de Etiópia: explicou-lhe a Escritura de Isaías, deu-lhe notícia da fé e divindade de Cristo, batizou-o no rio de Gaza, por onde passavam, e tanto que esteve batizado, diz o texto que arrebatou um anjo a S. Filipe, e que o não viu mais o eunuco: Cum autem ascendissent de aqua, Spiritus Domini rapuit Philippum, 152
sermão do espírito santo et amplius non vidit eum eunuchus.14 Desapareceu a estrela, e permaneceu a fé nos Magos; desapareceu S. Filipe, e permaneceu a fé no eunuco; mas esta capacidade, que se acha nos gentios do Oriente, e ainda nos de Etiópia, não se acha nos do Brasil. A estrela que os alumiar não há de desaparecer, sob pena de se apagar a luz da doutrina; o apóstolo que os batizar, não se há de ausentar, sob pena de se perder o fruto do Batismo. É necessário, nesta vinha, que esteja sempre a cana da doutrina arrimada ao pé da cepa, e atada à vide, para que se logre o fruto e o trabalho. Os que andastes pelo mundo, e entrastes em casas de prazer de príncipes, veríeis naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dois gêneros de estátuas muito diferentes, umas de mármore, outras de murta. A estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas, depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos, mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve. Se deixa o jardineiro de assistir, em quatro dias sai um ramo que lhe atravessa os olhos, sai outro que lhe descompõe as orelhas, saem dois que de cinco dedos lhe fazem sete, e o que pouco antes era homem, já é uma confusão verde de murtas. Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na doutrina da fé. Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados; resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas, uma vez rendidos, 14. At 8:39 [E, quando saíram da água, o Espírito do Senhor arrebatou a filipe, e não o viu mais o eunuco; e, jubiloso, continuou o seu caminho.] 153
sermões uma vez que receberam a fé, ficam nela firmes e constantes, como estátuas de mármore: não é necessário trabalhar mais com elas. Há outras nações, pelo contrário (e estas são as do Brasil), que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não veem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que não deem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez, que lhes decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidade. E só desta maneira, trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura dos ramos. Eis aqui a razão por que digo que é mais dificultosa de cultivar esta gentilidade, que nenhuma outra do mundo: se os não assistis, perde-se o trabalho, como o perdeu Santo Tomé; e para se aproveitar e lograr o trabalho, há de ser com outro trabalho maior, que é assisti-los; há-se de assistir e insistir sempre com ele, tornando a trabalhar o já trabalhado e a plantar o já plantado, e a ensinar o já ensinado, não levantando jamais a mão da obra, porque sempre está por obrar, ainda depois de obrada. Hão-se de haver os pregadores evangélicos na formação desta parte do mundo, como Deus se houve ou se há na criação e conservação de todo. Criou Deus todas as criaturas no princípio do mundo em seis dias, e, depois de as criar, que fez e que faz até hoje? Cristo o
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sermão do espírito santo disse: Pater meus usque modo operatur et ego operor:15 Desde o princípio do mundo até hoje não levantou Deus mão da obra, nem por um só instante; e com a mesma ação com que criou o mundo, o esteve sempre, e está, e estará conservando até o fim deles. E se Deus o não fizer assim, se desistir, se abrir mão da obra por um só momento, no mesmo momento perecerá o mundo, e se perderá tudo o que em tantos anos se tem obrado. Tal é no espiritual a condição desta nova parte do mundo, e tal o empenho dos que têm à sua conta a conversão e reformação dela. Para criar, basta que trabalhem poucos dias; mas para conservar, é necessário que assistam, e continuem, e trabalhem, não só muitos dias e muitos anos, mas sempre. E já pode ser que esse fosse o mistério com que Cristo disse aos apóstolos: Praedicate omni creaturae.16 Não disse: Ide pregar aos que remi, senão: Ide pregar aos que criei, porque o remir foi obra de um dia, o criar é obra de todos os dias. Cristo remiu uma só vez, e não está sempre remindo; Deus criou uma vez, e está sempre criando. Assim se há de fazer nestas nações: há-se-lhes de aplicar o preço da Redenção, mas não pelo modo com que foram remidas, senão pelo modo com que foram criadas. Assim como Deus está sempre criando o criado, assim os mestres e pregadores hão de estar sempre ensinando o ensinado, e convertendo o convertido, e fazendo o feito: o feito para que se não desfaça; o convertido, para que se não perverta; o ensinado, para que se não esqueça; e, finalmente, ajudando a incredulidade não incrédula, para que a fé seja fé não infiel: Credo, Domine: adjuva incredulitatem meam.17 E sendo tão forço15. Jo 5:17 [E Jesus lhes respondeu: Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também.] 16. Mc 16:15 [E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura.] 17. Mc 9:23 [E logo o pai do menino, clamando, com lágrimas, disse: Eu creio, Senhor! Ajuda a minha incredulidade.] 155
sermões samente necessária a assistência com estas gentes, e no seu clima, e no seu trato, e na sua miséria, e em tantos outros perigos e desamparos da vida, da saúde, do alívio, e de tudo o que pede ou sente o natural humano, vede se é necessário muito cabedal de amor divino para esta empresa, e se com razão entrega Cristo o magistério dela a um Deus, que, por afeto, e por efeitos, todo é amor: Ille vos docebit omnia.
iv A segunda circunstância que pede grande cabedal de amor de Deus é a dificuldade das línguas. Se o Espírito Santo descera hoje em línguas milagrosas, como antigamente, não tinha tanta dificuldade o pregar aos gentios; mas haverem-se de aprender essas línguas com estudo e com trabalho é uma empresa muito dificultosa, e que só um grande amor de Deus a pode vencer. Apareceu Deus em uma visão ao profeta Ezequiel, e, dando-lhe um livro, disse- lhe que o comesse, e que fosse pregar aos filhos de Israel tudo o que nele estava escrito: Comede volumen istud, et vadens loquere ad filios Israel.18 Abriu a boca o profeta, não se atrevendo a tocar no livro por reverência, comeu-o, e diz que lhe soube bem, e que o achou muito doce: Comedi illud, et factum est in ore meo sicut mel dulce.19 Se os homens pudessem comer os livros de um bocado, que facilmente se aprenderiam as ciências, e se tomaram as línguas? Oh! que fácil modo de aprender! Oh! que doce modo de estudar! Tal foi o modo com que Deus, em um momento, antigamente ensinava os profetas, e com que hoje o Espírito Santo, em outro momento, ensinou 18. Ez 3:1 [Depois, me disse: Filho do homem, come o que achares; come este rolo, e vai, e fala à casa de Israel.] 19. Ez 3:3 [E disse-me: Filho do homem, dá de comer ao teu ventre e enche as tuas entranhas deste rolo que eu te dou. Então, o comi, e era na minha boca doce como o mel.] 156
sermão do espírito santo os apóstolos, achando-se de repente doutos nas ciências, eruditos nas Escrituras, prontos nas línguas, que tudo isto se lhes infundiu naquele repente em que desceu sobre eles o Espírito Santo: Factus est repente de caelo sonus, tanquam advenientis Spiritus.20 Mas haver de comer os livros folha a folha, haver de levar as ciências bocado a bocado, e às vezes com muito fastio, haver de mastigar as línguas nome por nome, verbo por verbo, sílaba por sílaba, e ainda letra por letra, por certo que é coisa muito dura e muito desabrida, e muito para amargar, e que só o muito amor de Deus a pode fazer doce. Assim o aludiu Deus ao mesmo profeta Ezequiel neste mesmo lugar, com termos bem particulares e bem notáveis. Vade ad domum Israel, et loqueris verba mea ad eos, non enim ad populum profundi sermonis et ignotae linguae tu mitteris, neque ad populos multos profundi sermonis et ignotae linguae, quorum non possis audire sermones.21 Ide, Ezequiel, pregai o que vos tenho dito aos filhos de Israel, e, para que não repugneis a missão, nem vos pareça que vos mando a uma empresa muito dificultosa, adverti aonde ides e aonde não ides. Adverti que ides pregar a um povo da vossa própria nação e de vossa própria língua, que o entendeis e vos entende: Ad domum Israel; e adverti que não ides pregar a gente de diferente nação e diferente língua, nem menos a gentes de muitas e diferentes nações, e muitas e diferentes línguas, o que nem vós as entendais, nem elas vos entendam: Non enim ad populum profundis sermonis et ignotae lin20. At 2:2 [e, de repente, veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados.] 21. Ez 3:4-6 [E disse-me: Filho do homem, vai, e entra na casa de Israel, e dize-lhe as minhas palavras. Porque tu não és enviado a um povo de estranha fala, nem de língua difícil, mas à casa de Israel; nem a muitos povos de estranha fala e de língua difícil, cujas palavras não possas entender; se eu aos tais te enviara, certamente te dariam ouvidos.] 157
sermões guae tu mitteris, neque ad populos multos profundi sermonis et ignotae linguae, quorum non possis audire sermones. De sorte, se bem advertis, que distingue Deus no ofício de pregar três gêneros de empresas: uma fácil, outra dificultosa, outra dificultosíssima. A fácil é pregar à gente da própria nação e da própria língua: Vade ad filios Israel; a dificultosa é pregar a uma gente de diferente língua e diferente nação: Ad populum projundi sermonis et ignotae linguae; a dificultosíssima é pregar a gentes não de uma só nação e uma só língua diferente, senão de muitas e diferentes nações, e muitas e diferentes línguas, desconhecidas, escuras, bárbaras, e que se não podem entender: Ad populos multos profundi sermonis et ignotae linguae, quorum non possis audire sermones. À primeira destas três empresas mandou Deus ao profeta Ezequiel, e a todos os outros profetas antigos, os quais todos, exceto quando muito Jonas e Jeremias, pregaram a gente da sua nação e da sua língua. A segunda e a terceira empresa ficou guardada para os apóstolos e pregadores da lei da graça, e entre eles particularmente para os portugueses, e entre os portugueses, mais em particular ainda, para os desta conquista, em que são tantas, tão estranhas, tão bárbaras e tão nunca ouvidas, nem conhecidas, nem imaginadas as línguas. Manda Portugal missionários ao Japão, onde há cinquenta e três reinos, ou sessenta, como outros escrevem; mas a língua, ainda que desconhecida, é uma só: Ad populum profundi sermonis et ignotae linguae. Manda Portugal missionários à China, império vastíssimo, dividido em quinze províncias, capaz cada uma de muitos reinos; mas a língua, ainda que desconhecida, é também uma: Ad populum profundi sermonis et ignotae linguae. Manda Portugal missionários ao Mogor, à Pérsia, ao Preste João, impérios grandes, poderosos, dilatados, e dos maiores do mundo; mas cada um de uma só língua: Ad populum profundi sermonis et ignotae linguae. Porém os missionários que Portugal 158
sermão do espírito santo manda ao Maranhão, posto que não tenha nome de império nem de reino, são verdadeiramente aqueles que Deus reservou para a terceira, última e dificultosísssima empresa, porque vem pregar a gentes de tantas, tão diversas e tão incógnitas línguas, que só uma coisa se sabe delas, que é não terem número: Ad populos multos profundi sermonis et ignotae linguae, quorum non possis audire sermones. Pela muita variedade das línguas, houve quem chamou ao Rio das Almazonas rio Babel; mas vem-lhe tão curto o nome de Babel, como o de rio. Vem-lhe curto o nome de rio, porque verdadeiramente é um mar doce, maior que o Mar Mediterrâneo no comprimento e na boca. O Mar Mediterrâneo no mais largo da boca tem sete léguas, e o Rio das Almazonas oitenta; o Mar Mediterrâneo, do Estreito de Gilbraltar até as praias da Síria, que é a maior longitude, tem mil léguas de comprido, e o Rio das Almazonas, da cidade de Belém para cima, já se lhe tem contado mais de três mil, e ainda se lhe não sabe princípio. Por isso os naturais lhe chamam Pará, e os portugueses Maranhão, que tudo quer dizer mar, e mar grande. E vem-lhe curto também o nome de Babel, porque na Torre de Babel, como diz S. Jerônimo, houve somente setenta e duas línguas, e as que se falam no Rio das Almazonas são tantas e tão diversas, que se lhes não sabe o nome nem o número. As conhecidas até o ano de 639, no descobrimento do Rio de Quito, eram cento e cinquenta. Depois se descobriram muitas mais, e a menor parte do rio, de seus imensos braços, e das nações que os habitam, é o que está descoberto. Tantos são os povos, tantas e tão ocultas as línguas, e de tão nova e nunca ouvida inteligência: Ad populos multos profundi sermonis et ignotae linguae, quorum non possis audire sermones. Nesta última cláusula do profeta: Quorum non possis audire sermones, a palavra ouvir significa entender, porque o que se não entende é como se não se ouvira. Mas em muitas das nações desta conquista se verifica a mesma palavra 159
sermões no sentido natural, assim como soa, porque há línguas entre elas de tão escura e cerrada pronunciação, que verdadeiramente se pode afirmar que se não ouvem: Quorum non possis audire sermones. Por vezes me aconteceu estar com o ouvido aplicado à boca do bárbaro, e ainda do intérprete, sem poder distinguir as sílabas, nem perceber as vogais ou consoantes de que se formavam, equivocando-se a mesma letra com duas e três semelhantes, ou compondo-se (o que é mais certo) com mistura de todas elas: umas tão delgadas e sutis, outras tão duras e escabrosas, outras tão interiores e escuras, e mais afogadas na garganta que pronunciadas na língua; outras tão curtas e subidas, outras tão estendidas e multiplicadas, que não percebem os ouvidos mais que a confusão, sendo certo, em todo rigor, que as tais línguas não se ouvem, pois se não ouve delas mais que o sonido, e não palavras desarticuladas e humanas, como diz o profeta: Quorum non possis audire sermones. De José, ou do povo de Israel no Egito, diz Davi por grande encarecimento de trabalho: Linguam, quam non noverat, audivit: que ouvia a língua que não entendia. Se é trabalho ouvir a língua que não entendeis, quanto maior trabalho será haver de entender a língua que não ouvis? O primeiro trabalho é ouvi-la; o segundo, percebê-la; o terceiro, reduzi-la a gramática e a preceitos; o quarto, estudá-la: o quinto (e não o menor, e que obrigou a S. Jerônimo a limar os dentes) o pronunciá-la. E depois de todos estes trabalhos, ainda não começastes a trabalhar, porque são disposições somente para o trabalho. Santo Agostinho intentou aprender a língua grega, e, chegando à segunda declinação, em que se declina ophis, que quer dizer serpente, não foi mais por diante, e disse com galantaria: Ophis me terruit: a serpente me meteu tal medo, que me fez tornar atrás. Pois se a Santo Agostinho, sendo Santo Agostinho, se à águia dos entendimentos humanos se lhe fez tão dificultoso aprender a língua 160
sermão do espírito santo grega, que está tão vulgarizada entre os latinos, e tão facilitada com mestres, com livros, com artes, com vocabulários, e com todos os outros instrumentos de aprender, que serão as línguas bárbaras e barbaríssimas de umas gentes, onde nunca houve quem soubesse ler nem escrever? Que será aprender o nheengaiba, o juruuna, o tapajó, o teremembé, o mamaiana, que só os nomes parece que fazem horror? As letras dos chinas e dos japões muita dificuldade têm, porque são letras hieroglíficas, como as dos egípcios; mas, enfim, é aprender língua de gente política, e estudar por letra e por papel. Mas, haver de arrostar com uma língua bruta, e de brutos, sem livro, sem mestre, sem guia, e no meio daquela escuridade e dissonância haver de cavar os primeiros alicerces, e descobrir os primeiros rudimentos dela, distinguir o nome, o verbo, o advérbio, a proposição, o número, o caso, o tempo, o modo, e modos nunca vistos nem imaginados, como de homens enfim tão diferentes dos outros nas línguas, como nos costumes, não há dúvida que é empresa muito árdua a qualquer entendimento, e muito mais árdua à vontade que não estiver muito sacrificada e muito unida com Deus. Receber as línguas do céu milagrosamente, em um momento, como as receberam os apóstolos, foi maior felicidade; mas aprendê- las e adquiri-las dicção por dicção, e vocábulo por vocábulo, à força de estudo, de diligência e de continuação, assim como será maior merecimento, é também muito diferente trabalho, e para um e outro se requer muita graça do Espírito Santo e grande cabedal de amor de Deus. Maior rigor usa neste caso o amor de Deus com os pregadores do Evangelho, do que usou a justiça de Deus com os edificadores da Torre de Babel. Aos que edificavam a Torre de Babel condenou- os a justiça de Deus a falar diversas línguas, mas não a aprendê-las; aos que pregam a fé entre as gentilidades, condena-os o amor de Deus, não só a que falem as suas línguas, senão a que as 161
sermões aprendam, que, se não fora por amor, era muito maior castigo. E que amor será necessário para um homem, e tantos homens, se condenarem voluntariamente, não só cada um a uma língua, como os da Torre, mas muitos a muitas? Vejo, porém, que me perguntais: Pois, se a Deus é tão fácil infundir a ciência das línguas em um momento, e se antigamente deu aos apóstolos o dom das línguas, para que pregassem a fé pelo mundo, agora, por que não dá o mesmo dom aos pregadores da mesma fé, principalmente em cristandades ou gentilidades novas, como estas nossas? Esta dúvida é mui antiga, e já lhe respondeu S. Gregório Papa e Santo Agostinho, posto que variamente. A razão literal é porque Deus regularmente não faz milagres sem necessidade: quando faltam as forças humanas, então suprem as divinas. E como Cristo queria converter o mundo só com doze homens, para converter um mundo tão grande, tantas cidades, tantos reinos, tantas províncias, com tão poucos pregadores, era necessário que milagrosamente se lhes infundissem as línguas de todas as nações, porque não tinham tempo nem lugar para as aprender; porém, depois que a fé esteve tão estendida e propagada, como está hoje, e houve muitos ministros que a pudessem pregar, aprendendo as línguas de cada nação, cessaram comumente as línguas milagrosas, porque não foi necessária a continuação do milagre. Vede-o nas línguas do Espírito Santo. Apparuerunt dispertitae linguae tanquam ignis, seditque supra singulos eorum:22 Apareceram sobre os apóstolos muitas línguas de fogo, o qual se assentou sobre eles. Não sei se reparais na diferença: diz que apareceram as línguas, e que o fogo se assentou. E por que se não assentaram as línguas, senão o fogo? Porque as línguas não vieram de assento, o 22. At 2:3 [E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles.] 162
sermão do espírito santo fogo sim. Os dons que o Espírito Santo trouxe hoje consigo sobre os apóstolos foram principalmente dois: o dom das línguas e o dom do amor de Deus. O dom das línguas não se assentou, porque não havia de perseverar: acabou geralmente com os apóstolos: Apparuerunt dispertitae linguae. Apareceram as línguas e desapareceram. Porém o dom do fogo, o dom do amor de Deus, esse se assentou: Sedit supra singulos eorum, porque veio de assento, e perseverou não só nos apóstolos, senão em todos os seus sucessores. E assim vimos em todas as idades, e vemos também hoje tantos varões apostólicos, em que está tão vivo este fogo, tão fervoroso este espírito, e tão manifesto e tão ardente este amor. Aos apóstolos deu-lhes Deus línguas de fogo, aos seus sucessores deu-lhes fogo de línguas. As línguas de fogo acabaram, mas o fogo de línguas não acabou, porque este fogo, esse Espírito, esse amor de Deus faz aprender, estudar e saber essas línguas. E quanto a esta ciência das línguas, muito mais à letra se cumpre nos varões apostólicos de hoje a promessa de Cristo, que nos mesmos apóstolos antigos, porque Cristo disse: Ille vos docebit: que o Espírito Santo os ensinaria. E aos apóstolos da Igreja primitiva não lhes ensinou o Espírito Santo as línguas: deu-lhas e infundiu-lhas; aos apóstolos de hoje não lhes dá o Espírito Santo as línguas: vem-lhas infundir e ensinar-lhas: Ille vos docebit. As primeiras línguas foram dadas com milagre, as segundas são ensinadas sem milagre; mas eu tenho estas por mais milagrosas, porque menos maravilha é em Deus podê- las dar sem trabalho, que no homem querê-las aprender com tanto trabalho: em Deus argui um poder infinito, que em Deus é natureza; no homem argui um amor de Deus excessivo, que é sobre a natureza do homem. Com razão comete logo Cristo este ofício de ensinar ao Espírito Santo, e passa os seus discípulos da Escola da Sabedoria para a Escola do Amor: Ille vos docebit.
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sermões
v Está dito e está provado. Mas que se tira ou colhe daqui? Parecerá porventura aos ouvintes que esta doutrina é só para os pregadores da fé, para os religiosos, para os missionários, para os pastores e ministros da Igreja? Assim será noutras terras: nestas nossas é para todos. Nas outras terras uns são ministros do Evangelho, e outros não; nas conquistas de Portugal todos são ministros do Evangelho. Assim o disse Santo Agostinho pregando na África, que também é uma das nossas conquistas. Explicava o santo aquela sentença de Cristo: Ubi sum ego, illic et minister meus erit,23 em que o Senhor promete que, onde ele está, estarão também seus ministros. E convertendo-se o grande doutor para o povo, disse desta maneira: Cum auditis, fratres, Dominum dicentem illic et minister meus erit, nolite tantummodo bonos episcopos et clericos cogitare; etiam vos pro modulo vestro ministrate Christo: Quando ouvis os prêmios que Cristo promete a seus ministros, não cuideis que só os bispos e os clérigos são ministros seus: também vós, por vosso modo, não só podeis, mas deveis ser ministros de Cristo. E por que modo será ministro de Cristo um homem leigo, sem letras, sem ordens e sem grau algum na Igreja? O mesmo santo o vai dizendo: Bene vivendo: vivendo bem, e dando bom exemplo; Eleemosynas faciendo: fazendo esmolas, e exercitando as outras obras de caridade; Nomem doctrinamque ejus, quibus potuerit, praedicando: e pregando o nome de Cristo, e ensinando a sua fé e doutrina a todos aqueles a quem puder; Unusquisque paterfamilias pro Christo et pro vita aeterna suos omnes admoneat, doceat, hortetur, corripiat, impendat benevolentiam, exerceat disciplinam: Cada um dos pais de famílias em sua casa, por amor de Cristo e por amor 23. Jo 12:26 [Se alguém me serve, siga-me; e, onde eu estiver, ali estará também o meu servo. E, se alguém me servir, meu Pai o honrará.] 164
sermão do espírito santo da vida eterna, ensine a todos os seus o que devem saber, encaminhe-os, exorte-os, repreenda-os, castigue-os, tire-os das más ocasiões, e já com amor, já com rigor, zele, procure e faça diligência por que vivam conforme a lei de Cristo. Este tal pai de famílias, que será? Ouvi, cristãos, para consolação vossa o que conclui Agostinho: Ita in domo sua ecclesiasticum et quodammodo episcopale implebit officium, ministrans Christo, ut in aeternum sit cum ipso: Por este modo um pai de famílias, um homem leigo fará em sua casa não só ofício eclesiástico, mas ofício episcopal, e não só será qualquer ministro de Cristo, senão o maior de todos os ministros, quais são os bispos, servindo e ministrando nesta vida a Cristo, para reinar eternamente com eles: Ministrans Christo, ut in aeternum sit cum ipso. Isto dizia Santo Agostinho aos seus povos da África, e o pudera dizer com muito maior razão aos nossos da América. Oh! se o divino Espírito, que hoje desceu sobre os apóstolos, descera eficazmente com um raio de sua divina luz sobre todos os moradores deste Estado, para que dentro e fora de suas casas acudiram às obrigações que devem à fé que professam, como é certo que ficariam todos neste dia não só verdadeiros ministros mas apóstolos de Cristo? Que coisa é ser apóstolo? Ser apóstolo nenhuma outra coisa é senão ensinar a fé e trazer almas a Cristo; e nesta conquista ninguém há que o não possa, e, ainda, que o não deva fazer. Primeiramente nesta missão do Rio das Amazonas, que amanhã parte (e que Deus seja servido levar e trazer tão carregada de despojos do céu, como esperamos, e com tanto remédio para a terra, como se deseja) que português vai de escolta, que não vá fazendo ofício de apóstolo? Não só são apóstolos os missionários, senão também os soldados e capitães, porque todos vão buscar gentio e trazê-los ao lume da fé e ao grêmio da Igreja. A Igreja formou-se do lado de Cristo, seu esposo, como Eva se formou do lado de Adão. E formou-se quando 165
sermões do lado de Cristo na cruz saiu sangue e água: Exivit sanguis et aqua.24 O sangue significava o preço da Redenção, e a água, a água do Batismo. E saiu o sangue junto com a água, porque a virtude que tem a água é recebida do sangue. Mas, pergunto agora, este lado de Cristo, donde se saiu e se formou a Igreja, quem o abriu? Abriu-o um soldado com uma lança, diz o texto: Unus militum lancea latus ejus aperuit.25 Pois também os soldados concorrem para a formação da Igreja? Sim, porque muitas vezes é necessário que os soldados com suas armas abram e franqueiem a porta, para que por essa porta aberta e franqueada se comunique o sangue da Redenção e a água do Batismo: Et continuo exivit sanguis et aqua. E quando a fé se prega debaixo das armas e à sombra delas, tão apóstolos são os que pregam como os que defendem, porque uns e outros cooperam à salvação das almas. E se eu agora dissesse que nesta conquista, assim como os homens fazem ofício de apóstolos na campanha, assim o podem fazer as mulheres em suas casas? Diria o que já disseram grandes autores: eles na campanha trazendo almas para a Igreja, fazem ofício de apóstolos; e elas em suas casas, doutrinando seus escravos e escravas, fazem ofícios de apóstolas. Não é o nome nem a gramática minha; é do doutíssimo Salmeirão, o qual chamou às Marias: Apostolorum apostolas: Apóstolas dos apóstolos. E por quê? Porque lhes anunciaram o mistério da Ressurreição de Cristo. Pois, se aquelas mulheres, que anunciaram a homens, já cristãos e discípulos de Cristo, um só mistério, merecem nome de apóstolas, aquelas que anunciam e ensinam a seus escravos gentios e rudes todos os mistérios da salvação, quanto mais merecem este nome? Põe-se uma de vós a ensinar por amor 24. Jo 19:34 [Contudo, um dos soldados lhe furou o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água.] 25. Jo 19:34 [Contudo, um dos soldados lhe furou o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água.] 166
sermão do espírito santo de Deus ao seu tapuia e à sua tapuia o Creio-em-Deus-Padre, e que lhe ensina? Ensina-lhe o mistério altíssimo da Santíssima Trindade, o mistério da Encarnação, o da Morte, o da Ressurreição, o da Ascensão de Cristo, o da vinda do Espírito Santo, o do Juízo, o da Vida Eterna, e todos os que cremos e professamos os cristãos. Vede se merece nome de apóstola uma mestra destas? Não há dúvida que homens e mulheres todos são capazes deste altíssimo nome e deste divino ou diviníssimo exercício. Faz duas parábolas Cristo no Evangelho, uma de um pastor que perdeu uma ovelha, e a foi buscar e trazer dos matos aos ombros, outra de uma mulher que perdeu uma dracma, ou moeda de prata, e acendeu uma candeia para a buscar, e a buscou e achou em sua casa. Esta ovelha e esta moeda perdidas e achadas, são as almas desencaminhadas e erradas que se convertem e encaminham a Deus; quem buscou e achou a ovelha na primeira parábola, e quem buscou e achou a moeda na segunda, são os ministros evangélicos, que trazem e reduzem a Deus estas almas. Pois, se em uma e outra parábola significam estas duas pessoas os ministros evangélicos que trazem almas a Deus, por que na primeira introduziu Cristo um homem, que é o pastor, e na segunda uma mulher, que é a que acendeu a candeia? Para nos ensinar Cristo que assim homens como mulheres todos podem salvar almas: os homens no campo com o cajado, e as mulheres em casa com a candeia; os homens no campo, entrando pelos matos com as armas, e as mulheres em casa, alumiando e ensinando a doutrina. Vede como estava isto profetizado pelo profeta Joel, no mesmo capítulo segundo, que foi o que hoje declarou S. Pedro ao povo de Jerusalém; Sed et super servos meos, et ancillas in diebus illis effundam
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sermões spiritum meum, et prophetabunt.26 Naqueles dias, diz Deus, derramarei o meu Espírito sobre os meus servos e sobre as minhas servas, e todos pregarão. Notai; não diz Deus que derramará o seu Espírito só sobre os servos, senão sobre os servos e sobre as servas: Super servos meos, et super ancillas: porque não só os homens, senão os homens e também as mulheres podem e devem, e hão de pregar, e dilatar a fé, cada um conforme seu estado: Et prophetabunt. Por isso hoje, com grande mistério, no Cenáculo de Jerusalém, onde desceu o Espírito Santo, não só se acharam homens, senão mulheres: Hiomnes erant perseverantes unanimiter in oratione cum mulieribus.27 Estavam homens e estavam mulheres no Cenáculo, porque a homens e a mulheres vinha o Espírito Santo fazer mestres e mestras da doutrina do céu, e ensiná-los para que a ensinassem: Ille vos docebit.
vi Suposto pois que não só aos eclesiásticos, senão também aos seculares, não só aos homens, senão também às mulheres pertence, ou de caridade ou de justiça, ou de ambas estas obrigações, ensinar a fé e a lei de Cristo aos gentios e novos cristãos naturais destas terras em que vivemos, cada um conforme seu estado, não haja, de hoje em diante, com a graça do Espírito Santo, quem se não faça discípulo deste divino e soberano Mestre, para o poder ser ao menos dos seus escravos. Os que sabeis a língua, tereis maior facilidade; os que a não sabeis, tereis maior merecimento. E uns e outros, ou por nós mesmos, que sempre será o melhor, ou 26. Jo 2:28-29 [E há de ser que, depois, derramarei o meu Espírito sobre toda a carne, e vossos filhos e vossas filhas profetizarão, os vossos velhos terão sonhos, os vossos jovens terão visões. E também sobre os servos e sobre as servas, naqueles dias, derramarei o meu Espírito.] 27. At 1:14 [Todos estes perseveravam unanimemente em oração e súplicas, com as mulheres, e Maria, mãe de Jesus, e com seus irmãos.] 168
sermão do espírito santo por outrem, vos deveis aplicar a este tão cristão e tão devido exercício, com tal diligência e cuidado, que nenhum falte com o pasto necessário da doutrina às poucas ou muitas ovelhinhas de Cristo que o Senhor lhes tiver encomendadas, pois todos nesta conquista sois pastores ou guardadores deste grande pastor. Muitos o fazem assim com grande zelo, cristandade e edificação; mas é bem que o façam todos. E ninguém se escuse, como escusam alguns, com a rudeza da gente, e com dizer, como acima dizíamos, que são pedras, que são troncos, que são brutos animais, porque, ainda que verdadeiramente alguns o sejam ou o pareçam, a indústria e a graça tudo vence, e de brutos, e de troncos, e de pedras os fará homens. Dizei-me, qual é mais poderosa, a graça ou a natureza? A graça, ou a arte? Pois o que faz a arte e a natureza, por que havemos de desconfiar que o faça a graça de Deus, acompanhada da vossa indústria? Concedo-vos que esse índio bárbaro e rude seja uma pedra: vede o que faz em uma pedra a arte. Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe, e, depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a formar um homem, primeiro membro a membro, e depois feição por feição, até a mais miúda: ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá recama, e fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar. O mesmo será cá, se a vossa indústria não faltar à graça divina. É uma pedra, como dizeis, esse índio rude? Pois, trabalhai e continuai com ele, que nada se faz sem trabalho e perseverança, aplicai o cinzel um dia e outro dia, dai uma martelada e outra martelada, e vós vereis como dessa pedra tosca e informe fazeis não só um homem, senão um cristão, e pode ser que um santo. Não é menos que 169
sermões promessa e profecia do maior de todos os profetas; Potens est Deus de lapidibus istis suscitare filios Abrahae:28 Poderoso é Deus a fazer destas pedras filhos de Abraão. Abraão é o pai de todos os que têm fé; e dizer o Batista que Deus faria de pedras filhos de Abraão foi certificar e profetizar que de gentios idólatras, bárbaros e duros como pedras, por meio da doutrina do Evangelho havia Deus de fazer não só homens, senão fiéis, e cristãos, e santos. Santo Ambrósio: Quid aliud quam lapides habebantur; qui lapidibus serviebant, similes utique his qui fecerant eos? Prophetatur igitur saxo, sit gentilium fides infundenda pectoribus, et futuros per fidem Abrahae filios oraculo pollicetur: Assim o profetizou o Batista, e assim como ele foi o profeta deste milagre, vós sereis o instrumento dele. Ensinai e doutrina estas pedras, e fareis de pedras não estátuas de homens, senão verdadeiros homens e verdadeiros filhos de Abraão por meio da fé verdadeira. O que se faz nas pedras, mais facilmente se pode fazer nos troncos, onde é menor a resistência e a bruteza. Só para fazer de animais homens não tem poder nem habilidade a arte; mas a natureza sim, e é maravilha que por ordinário o não parece. Vede-a. Fostes à caça por esses bosques e campinas, matastes o veado, a anta, o porco montês; matou o vosso escravo o camaleão, o lagarto, o crocodilo; como ele com os seus praceiros, comestes vós com os vossos amigos. E que se seguiu? Dali a oito horas, ou menos (se com menos se contentar Galeno) a anta, o veado, o porco montês, o camaleão, o lagarto, o crocodilo, todos estão convertidos em homens: já é carne de homem o que pouco antes era carne de feras. Pois se isto pode fazer a natureza por força do calor natural, por que o não fará a graça muito mais 28. Lc 3:8 [Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento e não comeceis a dizer em vós mesmos: Temos Abraão por pai, porque eu vos digo que até destas pedras pode Deus suscitar filhos a Abraão.] 170
sermão do espírito santo eficazmente por força do calor e fogo do Espírito Santo? Se a natureza, naturalmente, pode converter animais feros em homens, a graça, sobrenaturalmente, por que não fará esta conversão? O mesmo Espírito autor da graça o mostrou assim, e o ensinou a S. Pedro. Estava S. Pedro em oração na cidade de Jope; eis que vê abrir-se o céu, e descer um como grande lençol, assim lhe chama o texto, suspendido por quatro pontas, e no fundo dele uma multidão confusa de feras, de serpentes, de aves de rapina e de todos os outros animais silvestres, bravos, asquerosos e peçonhentos, que na lei velha se chamavam imundos. Três vezes na mesma hora viu S. Pedro esta representação, cada vez mais suspenso e duvidoso do que poderia significar, e três vezes ouviu juntamente uma voz que lhe dizia: Surge Petre, occide et manduca:29 Eis, Pedro, matai e comei. As palavras não declaravam o enigma, antes o escureciam mais, porque lhe parecia a S. Pedro impossível que Deus, que tinha vedado aqueles animais, lhos mandasse comer. Batem à porta neste mesmo ponto, e era um recado ou embaixada de um senhor gentio, chamado Cornélio, capitão dos presídios romanos de Cesareia, o qual se mandava oferecer a S. Pedro, para que o instruísse na fé, e o batizasse. Este gentio, como diz Santo Ambrósio, foi o primeiro que pediu e recebeu a fé de Cristo, e por este efeito, e pela declaração de um anjo, entendeu então S. Pedro o que significava a visão. Entendeu que aquele lençol tão grande era o mundo; que as quatro pontas por onde se suspendia eram as quatro partes dele; que os animais feros, imundos e reprovados na lei, eram as diversas nações de gentios, bárbaras e indômitas, que até então estavam fora do conhecimento e obediência de Deus, e que o mesmo Senhor queria que viessem a ela. Até aqui o texto e a inteligência dele. 29. At 10:13 [E foi-lhe dirigida uma voz: Levanta-te, Pedro! Mata e come.] 171
sermões Mas se aqueles animais significavam as nações dos gentios, e estas nações queria Deus que S. Pedro as ensinasse e convertesse, como lhe manda que as mate e que as coma? Por isso mesmo: porque o modo de converter feras em homens, é matando-as e comendo-as, e não há coisa mais parecida ao ensinar e doutrinar que o matar e o comer. Para uma fera se converter em homem há de deixar de ser o que era e começar a ser o que não era, e tudo isto se faz matando-a e comendo-a: matando-a, deixa de ser o que era, porque, morta, já não é fera; comendo-a, começa a ser o que não era, porque, comida, já é homem. E porque Deus queria que S. Pedro convertesse em homens, e homens fiéis, todas aquelas feras que lhe mostrava, por isso a voz do céu lhe dizia que as matasse e as comesse; Occide et manduca, querendo-lhe dizer que as ensinasse e doutrinasse, porque o ensinar e doutrinar havia de fazer nelas os mesmos efeitos que o matar e o comer. Ouvi a S. Gregório Papa: Primo pastori dicitur macta et manduca quod mactatur quippe a vita occiditur; id vero quod comeditur in comedentis corpore commutatur: macta ergo, et manduca, dicitur id est, a peccato eos qui vivunt interfice, et a se ipsis illos in tua membra convertere. Querendo Deus que S. Pedro ensinasse a fé àqueles gentios, diz-lhe que os mate e que os coma, porque o que se mata deixa de ser o que é, e o que se come converte-se na substância e nos membros de quem o come. E ambos estes efeitos haviam de obrar a doutrina de S. Pedro naqueles gentios feros e bárbaros. Primeiro haviam de morrer, porque haviam de deixar de ser gentios; e logo haviam de ser comidos e convertidos em membros de S. Pedro, porque haviam de ficar cristãos e membros da Igreja, de que São Pedro é a cabeça. De maneira que, assim como a natureza faz de feras homens, matando e comendo, assim também a graça faz de feras homens, doutrinando e ensinando. Ensinastes o gentio bárbaro e rude, e que cuidais que faz aquela dou172
sermão do espírito santo trina? Mata nele a fereza, e introduz a humanidade; mata a ignorância, e introduz o conhecimento; mata a bruteza, e introduz a razão; mata a infidelidade, e introduz a fé; e deste modo, por uma conversão admirável, o que era fera fica homem, o que era gentio fica cristão, o que era despojo do pecado fica membro de Cristo e de S. Pedro; Occide et manduca. E como a graça do Espírito Santo, por meio da doutrina da fé, melhor que a arte e melhor que a natureza, de pedras e de animais sabe fazer homens, ainda que os destas conquistas fossem verdadeiramente, ou tão irracionais como os brutos, ou tão insensíveis como as pedras, não era bastante dificuldade esta, nem para desculpar o descuido, nem para tirar a obrigação de os ensinar: Ille vos docebit.
vii E para que ninguém falte a esta obrigação e a este cuidado, só vos quero lembrar o grande serviço que fareis a Deus, se o fizerdes, e a grande conta que Deus vos há de pedir, se vos descuidardes. É passo, de que me lembro e tremo muitas vezes, o que agora vos direi. Estavam os apóstolos no Monte Olivete em o dia da Ascensão, com os olhos pregados no céu e com os corações dentro nele, porque já se lhes escondera da vista o Mestre e o Senhor, que em si e após si lhos levara. Estavam enlevados, estavam suspensos, estavam arrebatados, e quase não em si de amor, de admiração, de glória, de júbilos, de saudades; eis que aparecem dois anjos e lhes dizem estas palavras: Viri Galilaei, quid statis aspicientes in caelum? Hic Jesus, qui assumptus est a vobis in caelum, sic veniet:30 Varões galileus, que fazeis aqui olhando para o céu? Este mesmo Senhor que agora se apartou de vós, há de 30. At 1:11 [os quais lhes disseram: Varões galileus, por que estais olhando para o céu? Esse Jesus, que dentre vós foi recebido em cima no céu, há de vir assim como para o céu o vistes ir.] 173
sermões vir outra vez, porque há de vir a julgar. Notáveis palavras por certo, e ditas a tais pessoas, em tal lugar e em tal ocasião! De maneira que estranham os anjos aos apóstolos estarem no Monte Olivete olhando para o céu de saudades de Cristo, e para os obrigarem a que se vão logo dali, como se foram, os ameaçam com o dia do Juízo e com a lembrança da conta? Pois, estar em um monte apartado das gentes, estar com os olhos postos no céu, estar arrebatado na contemplação da glória, estar enlevado no amor e saudades de Cristo, é coisa digna de se estranhar e de a estranharem os anjos? Em tal caso, sim, porque se em todos os homens é digno de estranhar não deixarem o mal pelo bem, nos apóstolos era digno de estranhar não deixarem o bem pelo melhor. O ofício e obrigação dos apóstolos era pregar a fé e salvar almas; a ordem que Cristo lhes tinha dado era que se recolhessem a Jerusalém a preparar-se para a pregação com os dons do Espírito Santo, que lhes mandaria, e deixar o Monte Olivete pelo Cenáculo, deixar a contemplação pela escola das línguas, deixar de olhar para o céu para acudir às cegueiras da terra, deixar, enfim, as saudades de Cristo pela saúde de Cristo, não era deixar o bem, senão melhorá-lo, porque era trocar um bem grande por outro maior: era deixar um serviço de Deus por outro maior serviço, uma vontade de Deus por outra maior vontade, uma glória de Deus por outra maior glória. O contemplar em Deus é obra divina, mas o levar almas para Deus é obra diviníssima. Assim lhe chamou S. Dionísio Areopagita: Opus Dei divinissimum. E a obrigação dos apóstolos e varões apostólicos não é só buscar o divino, senão o mais divino: é deixar o mundo pelo diviníssimo. Por isso lhes estranham os anjos o estarem parados no monte, e com os olhos suspensos no céu; por isso lhes dizem: Quid statis? Que estais aqui fazendo? Como se o que faziam nenhuma comparação tivera com o que haviam de fazer. O que faziam e o que os ocupava eram contemplações, admirações, 174
sermão do espírito santo êxtases, arrebatamentos; o que haviam de fazer, e o em que se haviam de ocupar, era pregar, ensinar, doutrinar, batizar, converter almas, e tudo aquilo em comparação disto, no juízo dos anjos, que melhor que nós o entendem, que é? Um quid, uma coisa que se pode duvidar se é alguma coisa, um muito menos do que devera ser, um estar parados, um não ir por diante: Quid statis? Vede, vede vós e vós, com todos e com todas falo, quão grande serviço fazeis a Deus, quando ensinais os vossos escravos, quando para isso aprendeis as línguas, quando escreveis e estudais o catecismo, quando buscais o intérprete ou o mestre, e quando, talvez, só para este fim o pagais e o sustentais. Oh! ditoso dispêndio! Oh! ditoso estudo! Oh! ditoso trabalho! Oh! ditoso merecimento, e sem igual diante de Deus! Em suma, cristãos, que é maior bem e maior serviço de Deus, e maior glória sua estar ensinando um negrinho da terra, que se estivéreis enlevados e arrebatados no céu: Quid statis aspicientes in coelum? E se é tão grande o serviço que fazem a Deus os que têm este cuidado, os que o não têm, os que tão descuidados e esquecidos vivem da doutrina, da cristandade e da salvação de seus escravos, que rigorosa, que estreita e que estreitíssima conta vos parece que lhes pedirá Deus? Ameaçam os anjos aos apóstolos com o dia do Juízo, e reparam-lhes em momentos do Monte Olivete. Por quê? Porque eram homens que tinham à sua conta almas alheias, e quem tem almas alheias à sua conta, até de um momento que não cuidar muito delas há de dar muito estreita conta a Deus. Oh! que terrível conta há de pedir Deus no dia do Juízo a todos os que vivemos neste Estado, porque todos temos almas à nossa conta! Os pregadores todas, os pastores as das suas igrejas, os leigos as das suas famílias. Se é tão dificultoso dar boa conta de uma só alma, que será de tantas? S. Jerônimo, sobre tanto deserto, sobre tantas penitências, sobre tantos trabalhos em serviço de Deus e da Igreja, estava sempre tre175
sermões mendo da trombeta do dia do Juízo, pela conta que havia de dar da sua alma. A alma de Santo Hilarião Abade, depois de oitenta anos de vida eremítica, e de tantas e tão insignes vitórias contra o demônio, tremia tanto da conta, que não se atrevia a sair do corpo, estando o santo para expirar, e foi necessário que ele a animasse. Pois, se os Jerônimos, se os Hilariões, se as maiores colunas da Igreja temem de dar conta de uma alma depois de vidas tão santas, vós, depois das vossas vidas, que é certo não foram tão ajustadas com a lei de Deus como as suas, que conta esperais dar a Deus, não de uma, senão de tantas almas? Uns de cinquenta almas, outros de cem almas, outros de duzentas almas, outros de trezentas, outros de quatrocentas, e alguns de mil. Muitos há que tendes hoje poucas, mas naquele dia haveis de ter muitas, porque todas as que morreram para o serviço, hão de ressuscitar para a conta. As que tivestes, as que tendes, as que haveis de ter, todas naquele dia hão de aparecer juntas diante do divino tribunal a dar conta cada uma de si, e vós de todas. Certo que eu antes quisera dar conta pela sua parte que pela vossa. O escravo escusar-se-á com o seu senhor; mas o senhor, com quem se há de escusar? O escravo poder-se-á escusar com o seu pouco entendimento, com a sua ignorância; mas o senhor, com que se escusará? Com a sua muita cobiça? Com a sua muita cegueira? Com faltar à piedade? Com faltar à humanidade? Com faltar à cristandade? Com faltar à fé? Oh! Deus justo! Oh! Deus misericordioso, que nem em vossa justiça, nem em vossa misericórdia acho caminho para saírem estas almas de tão intrincado labirinto! Se a justiça divina acha por onde condenar um gentio, porque não foi batizado, como achará a misericórdia divina por onde salvar um cristão, que foi causa de ele se não batizar? Oh! que justiças pedirão sobre vós naquele dia tantas infelizes almas, de cuja infelicidade eterna vós fostes causa! 176
sermão do espírito santo Abel pedia justiça a Deus, e salvou-se Abel, e está no céu. Se Abel, se um irmão pede justiça a Deus sobre o irmão que lhe tirou a vida temporal, um escravo, e tantos escravos, que justiça pedirão a Deus sobre o senhor que lhes tirou a vida eterna? Se Abel, se uma alma que se salvou, e que está hoje vendo a Deus, pede justiça, uma alma, e tantas almas, que se condenaram e estão ardendo no inferno, e estarão por toda a eternidade, que justiças pedirão, que justiças clamarão, que justiças bradarão no céu, à terra, ao inferno, aos homens, aos demônios, aos anjos, a Deus? Oh! que espetáculo tão triste e tão horrendo será naquele dia ver a um português destas conquistas, e muito mais aos maiores e mais poderosos, cercado de tanta multidão de índios, uns livres, outros escravos, uns bem, outros mal cativos, uns gentios, outros com nome de cristãos, todos condenados ao inferno, todos ardendo em fogo, e todos pedindo justiça a Deus sobre aquele desventurado homem, que neste mundo se chamou seu senhor? Ai de mim, dirá um, que me condenei por não ser batizado! Justiça sobre meu ingrato senhor, que me não pagou o serviço de tantos anos, nem com o que tão pouco lhe custava, como a água do batismo! Ai de mim, dirá outro, que me condenei por não conhecer a Deus, nem saber os mistérios da fé! Justiça sobre meu infiel senhor que, mandando-me ensinar tudo o que importava a seu serviço, só do necessário à minha salvação nunca teve cuidado! Ai de mim, dirá outro, que me condenei por passar toda a vida torpemente amigado contra a lei de Deus! Justiça sobre meu desumano senhor, que por suas conveniências particulares me consentiu o pecado, e não quis consentir o matrimônio! Ai de mim, dirá outro, que me condenei por não me confessar nas quaresmas, ou não me confessar a quem me entendesse e me encaminhasse! Justiça sobre meu avarento senhor, que por não perder dois dias de serviço, me não quis dar nem o tempo, nem o lugar, 177
sermões nem o confessor que minha alma havia mister! Ai de mim, dirá finalmente o outro, que me condenei por morrer sem sacerdote nem sacramento! Justiça sobre meu tirano senhor, que por me não chamar o remédio, ou não me mandar levar a ele, me deixou morrer como um bruto! Cão me chamava sempre na vida, e como um cão me tratou na morte. Isto dirá cada um daqueles miseráveis escravos ao supremo juiz, Cristo. E todos juntos bradarão a seu sangue (de que por vossa culpa se não aproveitaram) justiça, justiça, justiça. Oh! como é sem dúvida que naquele dia conhecereis quem vos dizia e pregava a verdade! Oh! como é sem dúvida que naquele dia do Juízo haveis de mudar de juízo e de juízos! Hoje tendes por ditosos os que têm muitos escravos, e por menos venturosos os que têm poucos: naquele dia os que tiveram muitos escravos serão desventurados, e os que tiveram poucos serão os ditosos, e mais ditoso o que não teve nenhum. Tende-os, cristãos, e tende muitos, mas tende-os de modo que eles ajudem a levar a vossa alma ao céu, e vós as suas. Isto é o que vos desejo, isto é o que vos aconselho, isto é o que vos procuro, isto é o que vos peço por amor de Deus e por amor de vós, e o que quisera que leváreis deste sermão metido na alma. O Espírito Santo, que hoje desceu sobre os apóstolos, e os ensinou para que eles ensinassem ao mundo, desça sobre todos vós, e vos ensine a querer ensinar, ou deixar ensinar, aquele a quem deveis a doutrina, para que ele por vós, e vós com ele, conseguindo nesta vida, que tão cara vos custa, a graça, mereçais gozar na outra, com grandes aumentos, a glória.
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Sermão da Epifania
Na Capela Real. Ano de 1662. Pregado à Rainha Regente na menoridade de el Rei, em presença de ambas as Majestades: na ocasião em que o Autor e outros Religiosos da Companhia de Jesus chegaram a Lisboa expulsados das Missões do Maranhão pela fúria do Povo, por defenderem os injustos cativeiros, e liberdade dos Índios que tinham a seu cargo.
Cum natus esset Jesus in Bethlehem Juda in diebus Herodis regis, ecce Magi ab oriente venerunt.2 Mt, 2.
i Para que Portugal na nossa idade possa ouvir um pregador evangélico, será hoje, o Evangelho o pregador. Esta é a novidade que trago do Mundo Novo. O estilo era que o pregador explicasse o Evangelho: hoje o Evangelho há de ser a explicação do pregador. Não sou eu o que hei de comentar o texto: o texto é o que me há de comentar a mim. Nenhuma palavra direi que não seja sua, porque nenhuma cláusula tem 2. Mt 2[:1] [E, tendo nascido Jesus em Belém da Judeia, no tempo do rei Herodes, eis que uns magos vieram do Oriente a Jerusalém.] 181
sermões que não seja minha. Eu repetirei as suas vozes, ele bradará os meus silêncios. Praza a Deus que os ouçam os homens na terra, para que não cheguem a ser ouvidos no céu. Havendo, porém, de pregar o Evangelho, e com tão novas circunstâncias como os que promete o exórdio, nem por isso cuide alguém que o pregador e o sermão há de faltar ao mistério. Antes, pode bem ser que rara vez ou nunca se pregasse neste lugar a matéria própria deste dia e desta solenidade senão hoje o mistério próprio deste dia é a vocação da gentilidade à fé. Até agora celebrou a Igreja o nascimento de Cristo; hoje celebra o nascimento da Cristandade. Cum natus esset Jesus in Bethlehem Juda: este foi o nascimento de Cristo, que já passou: Ecce Magi ab Oriente venerun: este é o nascimento da Cristandade, que hoje se celebra. Nasceu hoje a Cristandade, porque os três reis que neste dia vieram adorar a Cristo foram os primeiros que o reconheceram por Senhor, e por isso lhe tributaram ouro; os primeiros que o reconheceram por Deus, e por isso lhe consagraram incenso, os primeiros que o reconheceram por homem em carne mortal, e por isso lhe ofereceram mirra. Vieram gentios, e tornaram fiéis, vieram idólatras, e tornaram cristãos; e esta é a nova glória da Igreja, que ela hoje celebra, e o Evangelho, nosso pregador, refere. Demos-lhe atenção.
ii Cum natus esset Jesus in Bethlehem Juda in diebus Herodis regis, ecce Magi ab Oriente venerunt. Estas são as primeiras palavras do Evangelho, e logo nelas parece que repugna o mesmo Evangelho a ser meu intérprete, porque a sua história e o seu mistério é da Índia Oriental: Ab oriente venerunt, e o meu caso é das Ocidentais. Se apelo para os reis e para o sentido místico, também está contra mim, porque totalmente exclui a América, que é a parte do mundo donde 182
sermão da epifania eu venho. Santo Agostinho, S. Leão papa, S. Bernardo, Santo Anselmo, e quase todos os Padres reparam, por diversos modos, em que os reis que vieram adorar a Cristo fossem três, e a limitação deste mesmo número é para mim, ou contra mim, o maior reparo. Os profetas tinham dito que todos os reis e todas as gentes haviam de vir adorar e reconhecer a Cristo: Adorabunt eum omnes reges terrae, omnes gentes serviente ei:3 Omnes gentes quascumquefecisti veniente, et adorabunt te, corai Domine.4 Pois, se todas as gentes e todos os reis do mundo haviam de vir adorar a Cristo, por que vieram somente três? Por isso mesmo, respondem o Venerável Beda e Ruperto Abade. Foram três, e nem mais nem menos que três, os Reis que vieram adorar a Cristo, porque neles se representavam todas as partes do mundo, que também são três: Ásia, África e Europa: Tres reges, tres partes mundi significant: Asiam, Africam, et Europam, diz Beda. E Ruperto, com a mesma distinção: Magi tribus partibus orbis, Asiae, Europae, atque Africae, pidei, atque adorationis exemplar existere meruerunt. Isto é o que dizem estes grandes autores, como intérpretes do Evangelho; mas o mesmo Evangelho, para ser meu intérprete, ainda há de dizer mais. Dizem que os três reis significavam a Ásia, a África e a Europa, e onde lhes ficou a América? A América não é, também, parte do mundo, e a maior parte? Se me disserem que não apareceu no presépio, porque tardou e veio muitos séculos depois, também as outras tardaram; antes, ela tardou menos, porque se converteu e adorou a Cristo mais depressa e mais sem repugnância que todas. Pois, se cada um das outras partes do mundo teve o seu rei que as apresentasse a Cristo, por que lhe há de faltar pobre América? Há de ter rei que 3. Sl 72:11 [E todos os reis se prostrarão perante ele; todas as nações o servirão.] 4. Sl 85:9 [Todas as nações que fizeste virão e se prostrarão perante a tua face, Senhor, e glorificarão o teu nome.] 183
sermões receba e se enriqueça com os seus tributos, e não há de ter rei que com eles ou sem eles a leve aos pés de Cristo? Sei eu: e não o pode negar a minha dor que se a primeira, segunda, e a terceira parte do mundo tiveram reis, também o teve a quarta, e enquanto lhe não faltou o quarto.5 Mas vamos ao Evangelho, e conciliemos com ele esta exposição dos Padres. Ecce Magi ab oriente venerunt. Diz o Evangelista que os reis do Oriente vieram a adorar a Cristo, e nesta mesma limitação, com que diz que vieram nomeadamente os do Oriente, e não outros, se reforça mais a dúvida, porque assim no Testamento Velho, como no Novo, está expresso que não só haviam de vir a Cristo os gentios do Oriente, senão também os do Ocidente. No testamento Velho, Isaías, falando com a Igreja: Ab oriente adducam semen tuum, et ab occidente congregabo te:6 e no Testamento Novo a profecia e oráculo de Cristo: Dico vobis, quod multi ab oriente et occidente venient.7 Pois, se não só haviam de vir a Cristo os reis e gentes do Oriente, senão também as do Ocidente, como diz nomeadamente o evangelista que os que vieram eram todos do Oriente, ou como vieram só os do Oriente, e os do Ocidente não? A tudo satisfez o mesmo evangelista, e na simples narração da história concordou admiravelmente o seu texto com o dos profetas. Que diz o evangelista? Cum natus esset Jesus in diebus Herodis regis, ecce Magi ab oriente venerunt. Diz que nos dias de Herodes, sendo nascido Cristo, o vieram adorar os Reis do Oriente: e nestas mesmas circunstâncias do tempo, do lugar e das pessoas, como que limitou a primeira vocação da gentilidade, mostrou que não havia de ser só uma, senão duas, como estava profetizado. 5. El Rei D. João o iv que já era morto. 6. Is 43:5 [Não temas, pois, porque estou contigo; trarei a tua semente desde o Oriente e te ajuntarei desde o Ocidente.] 7. Mt 8:11 [Mas eu vos digo que muitos virão do Oriente e do Ocidente e assentar-se-ão à mesa com Abraão, e (saque, e Jacó, no Reino dos céus.] 184
sermão da epifania A primeira vocação da gentilidade foi nos dias de Herodes: In diebus Herodis regis; a segunda quase em nossos dias. A primeira foi quando Cristo nasceu: Cum natus esset Jesus; a segunda quando já se contavam mil e quinhentos anos do nascimento de Cristo. A primeira foi por meio dos reis do Oriente: Ecce Magi ab oriente venerunt; a segunda por meio dos reis do Ocidente, e dos mais ocidentais de todos, que são os de Portugal. Para melhor inteligência destas duas vocações, ou destas duas epifanias, havemos de supor que neste mesmo mundo em diferentes tempos houve dois mundos: O Mundo Velho, que conheceram os antigos, e o Mundo Novo, que eles e o mesmo mundo não conheceu, até que os portugueses o descobriram. O mundo Velho compunha-se de três partes: Ásia, África e Europa, mas de tal maneira que, entrando neste primeiro composto toda a Europa, a Ásia e a África não entravam inteiras, senão partidas, e por um só lado, a África com toda a parte que abraça o Mar Mediterrâneo, e a Ásia com a parte a que se estende o Mar Eritreu. O Mundo Novo, muito maior que o Velho, também se compõe de três partes: Ásia, África e América, mas de tal maneira também, que entrando neste segundo composto toda a América, a Ásia e a África, só entram nele partidas, e com os outros dois lados, tanto mais vastos e tanto mais dilatados, quanto o mar Oceano que os rodeia excede ao Mediterrâneo e Eritreu. E como os autores antigos só conheceram o Mundo Velho, e não tiveram nem podiam ter conhecimento do novo, por isso Beda e Ruperto disseram com muita propriedade que os três Reis do Oriente representavam as três partes do mundo: Ásia, África e Europa. Contudo, S. Bernardo, que foi contemporâneo de Ruperto, combinando o nosso Evangelho com as outras Escrituras, conheceu com seu grande espírito, ou, quando menos, arguiu com seu grande engenho que, assim como houve três reis do Oriente que levaram as gentilidades 185
sermões a Cristo, assim havia de haver outros três reis do Ocidente que as trouxessem à mesma fé: Vide autem neforte ipsi sint et tres Magi venientes iam non ab Oriente sed etiam ab Occidentel. Quem fossem ou quem houvessem de ser estes três reis do Ocidente, que S. Bernardo anteviu, não o disse, nem o pôde dizer o mesmo santo, posto que tão devoto de Portugal, e tão familiar amigo do nosso primeiro rei. Mas o tempo, que é o mais claro intérprete dos futuros, nos ensinou dali a quatrocentos anos que estes felicíssimos reis foram el-rei D. João, o Segundo, el-rei D. Manuel, e el rei D. João, o Terceiro, porque o primeiro começou, o segundo prosseguiu, e o terceiro aperfeiçoou o descobrimento das nossas conquistas, e todos três trouxeram ao conhecimento de Cristo aquelas novas gentilidades, como os três Magos as antigas. Os Magos levando a luz da fé do Oriente para o Ocidente, eles do Ocidente para o Oriente; os Magos apresentando a Cristo a Ásia, África e Europa, e eles a Ásia, África e América: Os Magos estendendo os raios da sua estrela por todo o Mundo Velho, até às gargantas do Mediterrâneo, e eles alumiando com o novo sol a todo o Mundo Novo até às balizas do Oceano. Uma das coisas mais notáveis que Deus revelou e prometeu antigamente foi que ainda havia de criar um novo céu, e uma nova terra. Assim o disse por boca do profeta Isaías: Ecce ego creo caelos novos, et terram novam.8 É certo que o céu e a terra foram criados no princípio do mundo: In principio creavit Deus caelum et terram,9 e também é certo, entre todos os teólogos e filósofos, que depois daquela primeira criação, Deus não criou nem cria substância alguma material e corpórea porque somente cria de novo as almas, que são espirituais. Logo, que terra nova, e que céus novos são 8. Is 65:17 [porque, eis que eu crio céus novos e nova terra; e não haverá lembranças das coisas passadas, nem mais se recordarão.] 9. Gn 1:1 [No princípio, criou Deus os céus e a terra.] 186
sermão da epifania estes, que Deus tanto tempo antes prometeu que havia de criar? Outros o entendem doutra maneira, não sei se muito conforme à letra. Eu, seguindo o que ela simplesmente soa e significa, digo que esta nova terra e estes novos céus são a terra e os céus do Mundo Novo, descoberto pelos Portugueses. Não é verdade que, quando os nossos argonautas começaram e prosseguiram as suas primeiras navegações, iam juntamente descobrindo novas terras, novos mares, novos climas, novos céus, novas estrelas? Pois esta é a terra nova e esses são os céus novos que Deus tinha prometido, que havia de criar, não porque não estivessem já criados desde o princípio do mundo, mas porque era este Mundo Novo, tão oculto e ignorado dentro do mesmo mundo, que quando de repente se descobriu e apareceu, foi como se então começara a ser e Deus o criara de novo. E porque o fim deste descobrimento, ou desta nova criação, era a Igreja, também nova, que Deus pretendia fundar no mesmo Mundo Novo, acrescentou logo pelo mesmo profeta e, pelos mesmos termos, que também havia de criar uma nova Jerusalém, isto é, uma nova Igreja, na qual muito se agradasse: Quia ecce creo Jerusalém exultationem, et populum ejus gaudium.10 Não tenho menos autor deste pensamento que o evangelista dos segredos de Deus, S. João, no seu Apocalipse: Etvidi caelum novum etterram novam. Primum enim caelum, et prima terra abiit, et mare jam non est. Et vidi civitatem Jerusalém novam descendentem de caelo.11 Primeiramente, diz S. João que viu um céu novo e uma terra nova: Vidi caelum novum et terram novam. Esta é a terra nova e o céu novo que 10. Is 65:18 [Mas vós folgareis e exultareis perpetuamente no que eu crio; porque eis que crio para Jerusalém alegria, e para o seu povo gozo.] 11. Ap 21:1-2 [E vi um novo céu e uma nova terra. Porque já o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. E eu, João, vi a Santa Cidade, a nova Jerusalém, que de Deus descia do céu, adereçada como uma esposa ataviada para o seu marido.] 187
sermões Deus tinha prometido por Isaías. Logo, acrescenta o mesmo evangelista, como comentador do profeta, que à vista deste céu novo e desta terra nova, o céu e a terra antiga desapareceram, e que o mar já não era: Primum enim caelum, et prima terra abiit, et mare iam non est, e assim aconteceu no descobrimento do Mundo Novo. Desapareceu a terra antiga, porque a terra dali por diante já não era a que tinha sido, senão outra muito maior, muito mais estendida e dilatada em novas costas, em novos cabos, em novas ilhas, em novas regiões, em novas gentes, em novos animais, em novas plantas. Da mesma maneira o céu também começou a ser outro. Outros astros, outras figuras celestes, outras alturas, outras declinações, outros aspectos, outras influências, outras luzes, outras sombras, e tantas outras coisas todas outras. Sobretudo o mar, que fora, já não é: Et mare jam non est, porque até então o que se conhecia com nome de mar, e nas mesmas Escrituras se chama mare magnum, era o Mediterrâneo; mas, depois que se descobriu o Mundo Novo, logo se conheceu também que não era aquele o mar, senão braço dele, e o mesmo nome, que injustamente tinha usurpado, se passou sem controvérsia ao oceano, que é só o que por sua imensa grandeza absolutamente, e sem outro sobrenome, se chama mar. E porque toda esta novidade do novo céu, da nova terra e do novo mar, se ordenava à fundação de outra nova Igreja, esta foi a que logo viu o mesmo evangelista, com nome também de nova: Et vidi civitatem Jerusalem novam descendentem de caelo. Finalmente, para que ninguém duvidasse de toda esta explicação, conclui que a mesma Igreja nova que vira se havia de compor de nações e reis gentios, que nela receberiam a luz da fé, e sujeitariam suas coroas ao império de Cristo: Et ambulabunt gentes in lumine ejus ei reges terrae af-
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sermão da epifania ferent gloriam suam ei honorem in illam.12 Que é tudo o que temos visto no descobrimento do Mundo Novo, ou nesta nova criação dele: Ecce creo caelos novos ei íerram novam. Houve porém nesta segunda e nova criação do mundo, uma grande diferença da primeira, e de nova e singular glória para a nossa nação. Porque, havendo Deus criado o mundo na primeira criação por si só, e sem ajuda ou concurso de causas segundas, nesta segunda criação tomou por instrumento dela os portugueses, quase pela mesma ordem e com as mesmas circunstâncias, com que no princípio tinha criado o mundo. Quando Deus criou o mundo, diz o sagrado texto que a terra não se via porque estava escondida debaixo do elemento da água, e tudo escuro e coberto de trevas: Terra autem erat invisibilis, como leem os Setenta et tenebrae erani super faciem abyssi.13 Então dividiu Deus as águas, e apareceu a terra; criou a luz e cessaram as trevas: Divisit aquas; facta est lux; appareat Arida.14 Este foi o modo da primeira criação do mundo. E quem não vê que o mesmo observou Deus na segunda, por meio dos portugueses? Estava todo o Novo Mundo em trevas e às escuras, porque não era conhecido. Tudo o que ali havia, sendo tanto, era como se não fosse nada, porque assim se cuidava e tinha por fábula. Terra autem erat vanitas ei nihil, como diz o texto hebreu. O que encobria a terra era o elemento da água, porque a imensidade do Oceano, que estava em meio, se julgava por 12. Ap 21:24 [E as nações andarão à sua luz, e os reis da terra trarão para ela a sua glória e honra.] 13. Gn 1:2 [E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.] 14. Gn 1:3 [E disse Deus: Haja luz. E houve luz.]; Gn 1:7 [E fez Deus a expansão, e fez separação entre as águas que estavam debaixo da expansão e as águas que estavam sobre a expansão. E assim foi.]; Gn 1:9 [E disse Deus: Ajuntem-se as águas debaixo do céu num lugar; e apareça a porção seca. E assim foi.] 189
sermões insuperável, como a julgaram todos os antigos, e entre eles Santo Agostinho. Atreveu-se, finalmente, a ousadia e zelo dos portugueses a desfazer este encanto e vencer este impossível. Começaram a dividir as águas, nunca dantes cortadas, com as venturosas proas dos seus primeiros lenhos: foram aparecendo e surgindo de uma e outra parte, e como nascendo de novo, as terras, as gentes, o mundo que as mesmas águas encobriam, e não só acabaram então no mundo antigo as trevas desta ignorância, mas muito mais no novo e descoberto as trevas da infidelidade, porque amanheceu nelas a luz do Evangelho e o conhecimento de Cristo, o qual era o que guiava e levava os portugueses, e neles, e com eles navegava. Tudo estava vendo o mesmo profeta Isaías deste descobrimento, quando, falando com aquela nova igreja, pelos mesmos termos da primeira criação do mundo, lhe disse: Quia ecce tenebrae operient terram, ei caligo populos; super te autem orietur Dominus, et gloria ejus in te videbitur. Et ambulabuní gentes in lumine tuo, ei reges in splendore ortus tui.15
iii Isto é o que fizeram os primeiros argonautas de Portugal, nas suas tão bem afortunadas conquistas do Novo Mundo, e por isso bem afortunadas. Este é o fim para que Deus, entre todas as nações, escolheu a nossa com o ilustre nome de pura na fé, e amada pela piedade. Estas são as gentes estranhas e remotas, aonde nos prometeu que havíamos de levar seu Santíssimo Nome. Este é o império seu, que por nós quis amplificar e em nós estabelecer. E esta é, foi, e será sempre a maior e melhor glória do valor, do zelo, da religião e cristandade portuguesa. Mas quem dissera ou imaginam 15. Is 60:2-3 [Porque eis que as trevas cobriram a terra, e a escuridão, os povos; mas sobre ti o Senhor virá surgindo, e a sua glória se verá sobre ti. E as nações caminharão à tua luz, e os reis, ao resplendor que te nasceu.] 190
sermão da epifania que os tempos e os costumes se haviam de trocar, e fazer tal mudança, que esta mesma glória nossa se visse entre nós eclipsada, e por nós escurecida? Não quisera passar a matéria tão triste, e tão indigna: que por isso a fui dilatando tanto, como quem rodeia e retarda os passos, por não chegar aonde muito repugna. Mas nem a força da presente ocasião mo permite, nem a verdade de um discurso, que prometeu ser evangélico, o consente. Quem imaginara, torno a dizer, que aquela glória tão heroicamente adquirida nas três partes do mundo, e tão celebrada e esclarecida em todas as quatro, se havia de escurecer e profanar em um rincão ou arrabalde da América? Levantou o demônio este fumo ou assoprou este incêndio entre as palhas de quatro choupanas, que com nome da cidade de Belém puderam ser pátria do anticristo. E verdadeiramente que, se as Escritoras nos não ensinaram que este monstro há de sair de outra terra e de outra nação, já pudéramos cuidar que era nascido. Treme, e tem horror a língua de pronunciar o que viram os olhos, mas, sendo o caso tão feio, tão horrendo, tão atroz, e tão sacrílego que se não pode dizer, é tão público e tão notório que se não deve calar. Ouçam, pois, os excessos de tão nova e tão estranha maldade os que só lhe podem pôr o remédio; e se eles, o que se não crê, faltarem à sua obrigação, não é justo, nem Deus o permitirá, que eu falte à minha. O ofício que tive naquele lugar, e o que tenho neste, posto que indigno de ambos, são os que, com dobrado vínculo da consciência, me obrigam a romper o silencio, até agora observado ou suprimido, esperando que a mesma causa, por ser de Cristo, falasse e perorasse por si, e não por ela. Assim o fizeram em semelhantes, e ainda menores casos, os Atanásios, os Basílios, os Nazianzenos, os Crisóstomos, os Hilários, e todos aqueles grandes Padres e mestres da Igreja, cujas ações, como inspiradas e aprovadas por Deus, não só devemos venerar e imitar como 191
sermões exemplos, mas obedecer e seguir como preceitos. Falarei, pois, com a clareza e publicidade com que eles falaram, e provarei e farei certo o que disser, como eles o fizeram, porque, sendo perseguidos e desterrados, eles eram o corpo do delito que acusavam, e eles mesmos a prova. Assim permitiu a divina Providência que eu em tal forma, e as pessoas reverendas de meus companheiros, viéssemos remetidos aos olhos desta corte, para que ela visse e não duvidasse de crer o que doutro modo pareceria incrível. Quem havia de crer que em uma colônia chamada de portugueses se viesse a Igreja sem obediência, as censuras sem temor, o sacerdócio sem respeito, e as pessoas e lugares sagrados sem imunidade? Quem havia de crer que houvessem de arrancar violentamente de seus claustros aos religiosos, e levá-los presos entre beleguins e espadas nuas pelas ruas públicas, e tê-los aferrolhados, e com guardas, até os desterrarem? Quem havia de crer que com a mesma violência e afronta lançassem de suas cristandades aos pregadores do Evangelho, com escândalo nunca imaginado dos antigos cristãos, sem pejo dos novamente convertidos, e à vista dos gentios atônitos e pasmados? Quem havia de crer que até aos mesmos párocos não perdoassem, e que chegassem aos despojos de suas igrejas, com interdito total do culto divino e uso de seus ministérios: as igrejas ermas, os batistérios fechados, os sacrários sem sacramento enfim, o mesmo Cristo privado de seus altares, e Deus de seus sacrifícios? Isto é o que lá se viu então: e que será hoje o que se vê, e o que se não vê. Não falo dos autores e executores destes sacrilégios, tantas vezes, e por tantos títulos excomungados, porque lá lhes ficam papas que os absolvam. Mas que será dos pobres e miseráveis índios, que são a presa e os despojos de toda esta guerra? Que será dos cristãos? Que será dos catecúmenos? Que será dos gentios? Que será dos pais, das mulheres, dos filhos, e de todo o sexo e idade? Os vivos e sãos sem 192
sermão da epifania doutrina, os enfermos sem sacramentos, os monos sem sufrágios nem sepultura, e tanto gênero de almas em extrema necessidade sem nenhum remédio? Os pastores, parte presos e desterrados, parte metidos pelas brenhas; os rebanhos despedaçados; as ovelhas, ou roubadas, ou perdidas; os lobos famintos, fartos agora de sangue, sem resistência; a liberdade por mil modos trocada em servidão e cativeiro; e só a cobiça, a tirania, e sensualidade, e o inferno contentes. E que a tudo isto se atrevessem e atrevam homens com nomes de portugueses, e em tempo de rei português? Grandes desconcertos se leem no mesmo capítulo do nosso Evangelho, mas de todos acho eu a escusa nas primeiras palavras dele: In diebus Herodis regis. Se sucederam semelhantes escândalos nos dias de el-rei Herodes, o tempo os desculpava ou culpava menos; mas nos dias daquele monarca, que com o nome e com a coroa herdou o zelo, a fé, a religião, a piedade do grande Afonso I? Oh! que paralelo tão indigno do nome português se pudera formar na comparação de tempo a tempo! Naquele tempo andavam os portugueses sempre com as armas às costas contra os inimigos da fé, hoje tomam as armas contra os pregadores da fé; então conquistavam e escalavam cidades para Deus, hoje conquistam e escalam as casas de Deus; então lançavam os caciques fora das mesquitas, hoje lançam os sacerdotes fora das igrejas; então consagravam os lugares profanos em casas de oração, hoje fazem das casas de oração lugares profanos; então, finalmente, eram defensores e pregadores do nome cristão, hoje são perseguidores e destruidores, e opróbrio e infâmia do mesmo nome. E para que até a corte e assento dos reis, que lhe sucederam, não ficasse deste paralelo, então saíam pela barra de Lisboa as nossas naus carregadas de pregadores, que voluntariamente se desterravam da pátria para pregar nas conquistas a lei de Cristo, hoje entram pela mesma barra, tra193
sermões zendo desterrados violentamente os mesmos pregadores, só porque defendem nas conquistas a lei de Cristo. Não se envergonhe já a barra de Argel de que entrem por elas sacerdotes de Cristo cativos e presos, pois o mesmo se viu em nossos dias na barra de Lisboa. Oh! que bem empregado prodígio fora neste caso, se, fugindo daquela barra o mar, e voltando atrás o Tejo, lhe pudéssemos dizer, como ao rio e ao mar da terra que então começava a ser santa: Quid est tibi, mare, quodfugisti? Ei tu, Jordanis, quia conversus es retrorsum? 16 Gloriava-se o Tejo quando nas suas ribeiras se fabricavam e pelas suas correntes saíam as armadas conquistadoras do império de Cristo; gloriava-se, digo, de ser ele aquele famoso rio de quem cantavam os versos de Davi: Dominabitur a mari usque ad mare, ai a flumine usque ad terminas orbis terrarum:17 mas hoje, envergonhado de tão afrontosa mudança, devera tornar atrás, e ir-se esconder nas grutas do seu nascimento, se não é que de corrido corre ao mar para se afogar e sepultar no mais profundo dele. Desengane-se, porém, Lisboa que o mesmo mar lhe está lançando em rosto o sofrimento de tamanho escândalo, e que as ondas, com que escumando de ira batem as suas praias, são brados com que lhe está dizendo as mesmas injúrias que antigamente a Sidônia: Erubesce, Sidon, ah mare. E não cuide alguém que estas vozes de tão justo sentimento nascem de estranhar eu ou me admirar de que os pregadores de Cristo e o mesmo Cristo seja perseguido, porque esta é a estrela em que o mesmo Senhor nasceu: Cum natus esset Jesus in Bethlehem Juda in diebus Herodis regis. Ainda Cristo não tinha quinze dias de nascido, quando já Herodes tinha poucos menos de perseguidor seu, para que a perse16. Sl 113:5 [Que tiveste, ó mar, que fugiste, e tu, Ó Jordão, que tornaste atrás? ] 17. Sl 71:8 [Dominará de mar a mar, e desde o rio até às extremidades da terra.] 194
sermão da epifania guição e o perseguido nascessem juntos. E não só nasceu Cristo com estrela de perseguido em Belém, senão em todas as partes do mundo, porque em todas teve logo seu Herodes que o perseguisse. Vou supondo, como verdadeiramente é, que Cristo não só nasceu em Belém, mas que nasceu e nasce em outras muitas partes, como há de nascer em todas. Por isso o profeta Malaquias, muito discretamente, comparou o nascimento de Cristo ao nascimento do sol: Orietur vobis Sol justitiae.18 O sol vai nascendo sucessivamente a todo o mundo, e, ainda que a umas terras nasça mais cedo, a outras mais tarde, para cada terra tem seu nascimento. Assim também Cristo, verdadeiro sol. A primeira vez nasceu em Belém, depois foi nascendo sucessivamente por todo o mundo, conforme o foram pregando os apóstolos e seus sucessores: a umas terras nasceu mais depressa, a outras mais devagar, a umas muito antes, a outras muito depois, mas para todas teve seu nascimento. É a energia com que falou o anjo aos pastores: Natus est vobis hodie Salvator:19 Nasceu hoje para vós o Salvador, como se dissera: Hoje nasceu para vós; os outros, também, terão seu dia em que há de nascer para eles. Assim havia de ser, e assim foi, e assim tem nascido Cristo em diferentes tempos em tão diversas partes do mundo, mas em nenhum tempo, e em nenhuma parte nasceu onde logo não tivesse um Herodes que o perseguisse. Viu S. João no Apocalipse aquela mulher celestial vestida de sol, a qual estava em vésperas do parto, e diz que logo apareceu diante dela um dragão feroz e armado, o qual estava aguardando que saísse à luz o filho para o tragar e comer: Et draco stetit ante mulierem, quae eratparitura: ut18. Mt 4:2 [Mas para vós que temeis o meu nome nascerá o sol da justiça e salvação trará debaixo das suas asas; e saireis e crescereis como os bezerros do cevadouro.] 19. Lc 2:11 [pois, na cidade de Davi, vos nasceu hoje o Salvador, que é Cristo, o Senhor.] 195
sermões cumpeperisset,fihium ejus devorare.20 Que mulher, que filho, e que dragão é este? A mulher foi a Virgem Maria, e é a Igreja. O Filho foi e é Cristo, que assim como a primeira vez nasceu da Virgem Santíssima, assim nasceu e nasce muitas vezes da Igreja, por meio da fé e pregação de seus ministros em diversas partes do mundo. E o dragão que apareceu com a boca aberta para o tragar, tanto que nascesse, é cada um dos tiranos que logo mesmo Cristo tem armados contra si, tanto que nasce, e onde quer que nasce. De maneira que não há nascimento de Cristo sem o seu perseguidor ou o seu Herodes. Nasceu Cristo em Roma, pela pregação de S. Pedro, e logo se levantou um Herodes, que foi o imperador Nero, o qual crucificou ao mesmos. Pedro. Nasceu Cristo em Espanha, pela pregação de S. Tiago, e logo se levantou outro Herodes, que foi el-rei Agripa, o qual degolou ao mesmo S. Tiago. Nasceu Cristo em Etiópia, pela pregação de S. Mateus, e logo se levantou outro Herodes, que foi el-rei Hirtaco, o qual tirou, também, a vida ao mesmo S. Mateus, e, estando sacrificando o corpo de Cristo, o fez vítima de Cristo, E para que dos exemplos do Mundo Velho passemos aos do Novo, nasceu Cristo no Japão, pela pregação e milagres de S. Francisco Xavier, e lago se levantaram, não um, senão muitos Herodes, que foram os Nabunangas e Taicozamas, os quais tanta sangue derramaram, e ainda derramam, dos filhos e sucessores do mesmo Xavier. Finalmente, nasceu Cristo na conquista do Maranhão, que foi a última de todas as nossas, e para que lhe não faltassem naquele Belém e fora dele os seus Herodes, se levantaram agora e declaram contra Cristo em si mesmo, e em seus pregadores, os que tão ímpia e barbaramente, não sendo bárbaros, o perseguem. 20. Ap 12:4 [E a sua cauda levou após si a terça parte das estrelas do céu e lançou-as sobre a terra; e o dragão parou diante da mulher que havia de dar à luz, para que, dando ela à luz, lhe tragasse o filho.] 196
sermão da epifania Assim que não é coisa nova, nem matéria digna de admiração, que Cristo e os pregadores de sua fé sejam perseguidos. O que, porém, excede toda o espanto, e se não pode ouvir sem horror e assombro, é que as perseguidores de Cristo e seus pregadores neste casa não sejam os infiéis e gentios, senão os cristãos. Se os gentios indômitos, se as tapuias bárbaros e feras daquelas brenhas se armaram medonhamente contra as que lhes vão pregar a fé, se os cobriram de setas, se os fizeram em pedaços, se lhes arrancaram as entranhas palpitantes, e as lançaram no fogo, e as comeram, isso é o que eles já têm feito outras vezes, e a que lá vão buscar os que pelas salvar deixam tudo; mas que a estes homens, com o caráter de ministras de Cristo, os persigam gentilicamente os cristãos, quando essas mesmas feras se lhes humanam, quando esses mesmos bárbaros se lhes rendem, quando esses mesmos gentios os reverenciam e adoram, este é o maior extrema de perseguição, e a perseguição, mais feia e afrontosa que nunca padeceu a Igreja. Nas perseguições dos Neros e Dioclecianos os gentios perseguiam os mártires, e as cristãos as adoravam; mas nesta perseguição nova e inaudita, os cristãos são os que perseguem os pregadores, e os gentios as que os adoram. Só na perseguição de Herades e na paciência de Cristo se acham juntos estes extremos. No Evangelho temos a Cristo hoje perseguido, e hoje adorada, mas de quem adorado, e de quem perseguido? Adorado dos gentios, e perseguida dos cristãos, adorado das Magos, que eram gentios, e perseguido de Herodes e de toda a Jerusalém, que eram os cristãos daquele tempo. Ninguém repare em eu lhes chamar cristãos, parque há cristãos de fé e cristãos de esperança. Os filhos da Igreja somos cristãos de fé, parque cremos que Cristo já veio; os filhos da sinagoga eram cristãos de esperança, parque criam e esperavam que Cristo havia de vir. E que homens que criam em Cristo, e esperavam por Cristo, e eram da 197
sermões mesma nação e do mesmo sangue de Cristo, persigam tão barbaramente a Cristo, e que no mesmo tempo, para maior escândalo da fé e da natureza, os Magos o busquem, os gentios o creiam, os idólatras o adorem? Bendito sejais, Senhor, que tal contradição quisestes padecer, e bendito mil vezes pela parte que vos dignastes comunicar dela aos que tão indignamente vos servem: não debalde nos honrastes com o nome de Companhia de Jesus, obrigando-nas a vos fazer companhia no que padecestes nascido debaixo do mesmo nome: Cum natus esset Jesus in Bethlehem Juda. Vós em Belém de Judá, para que os vossos perseguidores fossem da vossa mesma nação, nós em Belém, não de Judá, para que os nossos fossem, também, da nossa; vós na mesma terra, e no mesma tempo perseguida de Herodes e adorado dos Magos, e nós também por mercê vossa, no mesmo tempo e na mesma terra perseguidos dos cristãos, e pouca menos que adorados dos gentios! Assim a experimentam hoje os que, par escapar à perseguição, andam fugitivos por aquelas brenhas, se bem fugitivas não por medo dos homens, senão por amor de Cristo e por seguir seu exemplo. Daqui a poucas dias veremos fugir a Cristo; mas de quem e para quem? De onde e para onde? Não se pudera crer, se a não mandara Deus e o dissera um anjo: Fuge in Aegyptum:21 Fugi para a Egito. Pois, de Israel para a Egito, da terra dos fiéis para a terra das gentios, e para a terra daqueles mesmos gentios donde antigamente fugiram os filhas de Israel? Sim. Que tão mudados estão os tempos e as homens, e a tanto chega a força da perseguição. Futurum est enim ut
21. Mt 2:13 [E, tendo-se eles retirado, eis que o anjo do Senhor apareceu a José em sonhos, dizendo: Levanta-te, e toma o menino e sua mãe, e foge para o Egito, e demora-te lá até que eu te diga, porque Herodes há de procurar o menino para o matar.] 198
sermão da epifania Herodes quaerat puerum ad perdendum eum.22 Foge Cristo, e fogem os pregadores de Cristo dos fiéis para os infiéis e dos cristãos para os gentios, porque os cristãos os desterram, e os gentios os amparam, porque os cristãos os maltratam e as gentios as defendem, porque os cristãos os perseguem e os gentios os adoram. Não foi grande maravilha que José, presa e vendido de seus próprios irmãos, os egípcios a venerassem e estimassem tanta e abaixa de seu rei o adorassem? Pois, muito maior é a diferença que hoje experimentam entre aqueles gentios os venturosos homiziados da fé, que, escapando das prisões dos cristãos se retiraram para eles. Os egípcios, ainda que gentios, eram homens; aqueles gentios, que hoje começam a ser homens, ontem eram feras. Eram aqueles mesmos bárbaros, ou brutos, que sem uso da razão, nem sentido de humanidade, se fartavam de carne humana; que das caveiras faziam taças para lhes beber o sangue, e das canas dos ossos frautas para festejar os convites. E estas são hoje as feras que, em vez de nos tirarem a vida, nos acolhem entre si, e nos veneram coma os leões a Daniel; estas as aves de rapina que, em vez de nos comerem, nos sustentam como os corvos a Elias; estes os monstros, pela maior parte marinhos, que, em vez de nos tragar e digerir, nos metem dentro nas entranhas, e nelas nos conservam vivos, cama a baleia a Jonas. E se assim nos tratam os gentios, e tais gentios, quando assim nos tratam os cristãos, e cristãos da nossa nação e do nosso sangue, quem se não assombra de uma tão grande diferença?
22. Mt 2:13 [E, tendo-se eles retirado, eis que o anjo do Senhor apareceu a José em sonhos, dizendo: Levanta-te, e toma o menino e sua mãe, e foge para o Egito, e demora-te lá até que eu te diga, porque Herodes há de procurar o menino para o matar.] 199
sermões
iv Veja que estão dizendo dentro de si todos os que me ouvem, e tanta mais quanta mais admiradas desta mesma diferença que tão grandes efeitos não podem nascer senão de grandes causas. Se os cristãos perseguem os pregadores da fé, alguma grande causa têm para os perseguir. E se os gentios tanto os amam e veneram, alguma causa têm, também grande, para os venerar e amar. Que causas serão estas? Isto é o que agora se segue dizer. E se alguma vez me destes atenção, seja para estes dois pontos Começando pelo amar e veneração dos gentios, aquela estrela que trouxe os Magos a Cristo era uma figura celestial e muito ilustre dos pregadores da fé. Assim o diz S. Gregório, e os outros padres camumente mas a mesma estrela o disse ainda melhor. Que ofício foi o daquela estrela? Alumiar, guiar e trazer homens a adorar a Cristo, e não outros homens, senão homens infiéis e idólatras, nascidos e criados nas trevas da gentilidade. Pois, esse mesmo é a ofício e exercício, não de quaisquer pregadores, senão daqueles pregadores de que falamos, e por isso propriamente estrelas de Cristo. Repara muito S. Máximo, em que esta estrela, que guiou os magos, se chame particularmente estrela de Cristo: Stella ejus e argui assim: Todas as outras estrelas não são, também, estrelas de Cristo, que como Deus as criou? Sim, são. Pois, por que razão esta estrela, mais que as outras, se chama especialmente estrela sua: Stella ejus? Porque as outras estrelas foram geralmente criadas para tochas do céu e do mundo: esta foi criada especialmente para pregadora de Cristo: Quia quamvis omnes ab eo creatae stellae ipsius sint, haec tamen propna Christi erat, quia specialiter Christi nuntiabat adventum. Muitas outras estrelas há naquele hemisfério muito claras nos resplendores e muita úteis nas influências, coma as do firmamento, mas estas de que falamos 200
sermão da epifania são própria e especialmente de Cristo, não só pelo nome de Jesus, com que se professam por suas, mas porque afim, a instituto e o ofício para que foram criadas, é o mesmo que o da estrela dos Magos, para trazer infiéis e gentios à fé de Cristo. Ora, se estas estrelas fossem tão diligentes, tão solícitas e tão pontuais em acompanhar, e guiar, e servir aos gentios, como a que acompanhou, guiou e serviu aos Magos, não teriam os mesmos gentios muita razão de as quererem e estimarem, de sentirem muita sua falta, e de se alegrarem e consolarem muita com sua presença? Assim o fizeram os Magos, e assim o diz o evangelista, não acabando de encarecer este contentamento: Videntes autem stellam, gavisi sunt gaudio magno valde.23 Pois, vamos agora seguindo os passas daquela estrela, desde o oriente até ao presépio, e veremos como as que hoje vemos tão mal vistas e tão perseguidas, não só imitam e igualam em tudo a estrela dos Magos, mas em tudo a excedem com grandes vantagens. Primeiramente, dizemos Magos que onde viram a estrela foi no Oriente: Vidimus stellam ejus in oriente.24 De maneira que, podendo a estrela ser vista de muito longe, como se veem as outras estrelas, ela as foi buscar à sua terra. Nesta diligência e neste caminho se avantajou muito a estrela dos Magos aos anjos que apareceram aos pastares. Os anjos também alumiaram aos pastares: Claritas circumfulsit illos:25 e também lhes anunciaram a nascimento de Cristo: Evangelizo vobis gaudium magnum quia natus est vobis Sal-
23. Mt 2:10 [E, vendo eles a estrela, alegraram-se muito com grande júbilo.] 24. Mt 2:2 [e perguntaram: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? Porque vimos a sua estrela no Oriente e viemos a adorá-lo.] 25. Lc 2:9 [E eis que um anjo do Senhor veio sobre eles, e a glória do Senhor os cercou de resplendor, e tiveram grande temor.] 201
sermões vator:26 mas essa luz e esse Evangelho, aonde o levaram os anjos? Não às terras do Oriente ou a outras remotas, como a estrela, mas a quatro passas da cidade de Belém, e nos mesmos arrabaldes dela, um trânsito muito breve: Transeamus usque Bethlehem.27 E quanto vai de Belém ao Oriente, tanto vai de um evangelizar a outro. Isto é, comparando a estrela com os anjos, e muito mais se a compararmos com os mesmos pastares. Estes pastores de Belém são os mais celebrados da Igreja, e os que ela alega por exemplo e propõe por exemplar aos pastares das almas. Mas que fizeram ou que faziam estes bons pastores? Pastares erant in regione eadem custodientes vigilias noctis super gregem suum.28 Eram tão vigilantes e cuidadosos do seu gado, que com ser a meia noite não dormiam, senão que o estavam guardando e velando sobre ele. Muita bem. Mas não sei se advertis o que nota o evangelista acercada lugar e acerca do gado. Acercada lugar diz que estavam na mesma região: Et pastares erant in regione eadem e, acercado gado, diz que as ovelhas eram suas: super gregem suum. E em ambas estas coisas consiste a vantagem que lhes fez a estrela. Os pastares estavam na sua região, e a estrela foi a regiões estranhas: eles guardavam as ovelhas suas, e ela foi buscar ovelhas para Cristo. E guardar as suas ovelhas na sua região, ou ir buscar ovelhas para Cristo a regiões estranhas, bem se vê quanto vai a dizer. Mas, ainda que tudo isto fez a estrela dos Magos, faltou-lhe muito para se igualar com as nassas estrelas. Ela 26. Lc 2:10-11 [E o anjo lhes disse: Não temais, porque eis aqui vos trago novas de grande alegria, que será para todo o povo, pois, na cidade de Davi, vos nasceu hoje o Salvador, que é Cristo, o Senhor.] 27. Lc 2:15 [E aconteceu que, ausentando-se deles os anjos para o céu, disseram os pastores uns aos outros: Vamos, pois, até Belém e vejamos isso que aconteceu e que o Senhor nos fez saber.] 28. Lc 2:8 [Ora, havia, naquela mesma comarca, pastores que estavam no campo e guardavam durante as vigílias da noite o seu rebanho.] 202
sermão da epifania foi buscar gentios a uma região remota, mas distante somente treze dias de caminho: as nossas vão buscá-los em distância de mais de mil léguas de mar e por rios, que só o das Almazonas, sem se lhe saber nascimento, tem quatro mil de corrente. A estrelados Magos nunca saiu do seu elemento: as nossas vão já no da terra, já no água, já no do ar, e dos ventos, suportam os perigos e rigores de todos. A dos Magos caminhou da Arábia à Mesopotâmia sempre dentro dos mesmos horizontes: as nossas vão do última cabo da Europa ao mais interior da América, dando volta a meio mundo, e passando deste hemisfério aos antípodas. Finalmente (para que ajuntemos à distância a diferença das terras) a estrela dos Magas ia com eles para a Terra de Promissão, a mais amena e deliciosa que criou a natureza: as nossas desterram-se para toda a vida em companhia de degradados, não coma eles, para as colônias marítimas, onde os ares são mais benignos, mas para os sertões habitadas de feras e minados de bichas venenosos, nos climas mais nocivos da zona tórrida, Não é porém este o maior trabalho. Vidimus stellam ejus. Perguntam aqui os intérpretes porque mandou Cristo aos Magos uma estrela, e não um anjo ou um profeta? Os profetas são as embaixadores ordinários de Deus: os anjos os extraordinários, e tal era esta embaixada. Por que não mandou logo Cristo aos Magas um anjo ou um profeta, senão uma estrela? A razão foi, dizem todos, porque era conveniente que aos Magos se enviasse um embaixador que lhes falasse na sua própria língua. Os Magos eram astrólogas: a língua por ande os astrólogas entendem o que diz o céu são as estrelas, e tal era essa mesma estrela, à qual chama Santo Agostinho lingua coeli, língua do céu: pois vá uma estrela aos Magas, para que ela lhes fale na língua que eles entendem. Se eu não entendo a língua do gentio, nem o gentio entende a minha, como hei de converter e trazer a Cristo? Por isso temas por regra e instituto aprender todas a 203
sermões língua ou línguas da terra ande imos pregar, e esta é a maior dificuldade e o maior trabalho daquela espiritual conquista, e em que as nossas estrelas excedem muito a dos Magas. Notai. Os Magas entendiam a língua da estrela, e o que ela lhes dizia; mas par que a entenderam? Porque, coma astrólogas que eram, pelos livros dos caldeus sabiam que aquela estrela era nova e nunca vista, e como discípulos que também eram de Balaão sabiam pelos livros da Escritura que uma estrela nova, que havia de aparecer, era sinal da vinda e nascimento do Messias, descendente de Jacó: Orietur stella ex Jacob:29 e por esta ciência adquirida com dobrado estudo puderam alcançar e entender a que a estrela significava e lhes dizia. Cá não é assim, senão às avessas. Lá, para entender a estrela, estudavam os Magos; cá, para entendera gentio, hão de estudar as estrelas. Nós que os imos buscar somas os que lhes havemos de estudar e saber a língua. E quanta dificuldade e trabalho seja haver de aprender um europeu, não com mestres e com livras, cama os Magas, mas sem livro, sem mestre, sem princípio, e sem documento algum, não uma, senão muitas línguas bárbaras, incultas e hórridas: só quem o padece, e Deus por quem se padece, o sabe. Quando Deus confundiu as línguas na torre de Babel, ponderou Filo Hebreu, que todos ficaram mudos e surdos, porque, ainda que todos falavam e todas ouviam, a nenhum entendia o outro. Naantiga Babel houve setenta e duas línguas: na Babel do ria das Almazonas já se conhecem mais de cento e cinquenta, tão diversas entre si coma a nossa e a grega; e assim, quando lá chegamos, todos nós somas mudos, e todos eles surdos. Vede, agora, quanto estuda e quanto trabalha será necessário, para que estes 29. Nm 24:17 [Vê-lo-ei, mas não agora; contemplá-lo-ei, mas não de perto; uma estrela procederá de Jacó, e um cetro subirá de Israel, que ferirá os termos dos moabitas e destruirá todos os filhos de Sete.] 204
sermão da epifania mudos falem e estes surdos ouçam. Nas terras dos tírias e sidônios, que também eram gentios, trouxeram a Cristo um mudo e surdo para que o curasse, e diz S. Marcos que o Senhor se retirou com ele a um lugar apartado, que lhe meteu os dedos nos ouvidos, que lhe tocou a língua com saliva tirada da sua, que levantou as alhos ao céu e deu grandes gemidos, e então falou o mudo e ouviu o surda: Aprehendens eum de turba seorsum, misit digitos suas in auriculas ejta expuens, tetigit linguam ejus: et suspiciens in caelum, ingemuit, et ait illi Ephpheta, quod est adaperire.30 Pois, se Cristo fazia os outros milagres tão facilmente, este de dar fala ao mudo e ouvidos ao surda, como lhe custa tanto trabalho e tantas diligências? Porque todas estas são necessárias a quem há de dar língua a estes mudos, e ouvidos a estes surdos. É necessário tomara bárbaro à parte, e estar e instar com ele muito só por só, e muitas horas, e muitos dias; é necessário trabalhar comas dedos, escrevendo, apontando e interpretando por acenos o que se não pode alcançar das palavras; é necessário trabalhar com a língua, dobrando-a e torcendo-a, e dando-lhe mil voltas para que chegue a pronunciaras acentos tão duros e tão estranhos; é necessário levantaras olhos ao céu, uma e muitas vezes com a oração, e outras quase com desesperação; é necessário, finalmente, gemer, e gemer com toda a alma: gemer com o entendimento, parque em tanta escuridade não vê saída, gemer com a memória, porque em tanta variedade não acha firmeza, e gemer até com a vontade, por constante que seja, porque no aperto de tantas dificuldades desfalece, e quase desmaia. Enfim, com a pertinácia da indústria, ajudado da graça divina, falamos mudos e ouvem os surdos, mas 30. Mc 7:33-34 [E, tirando-o à parte de entre a multidão, pôs-lhe os dedos nos ouvidos e, cuspindo, tocou-lhe na língua. E, levantando os olhos ao céu, suspirou e disse: Efatá, isto é, abre-te.] 205
sermões nem por isso cessam as razões de gemer, porque, como trabalho deste milagre ser tão semelhante ao de Cristo, tem mui diferente ventura, e mui outra galardão do que ele teve. Venda as circunstantes aquele milagre, começaram a aplaudir e dizer: Bene omnia fecit: et surdos fecit audire, et mutos loqui,31 não há dúvida que este profeta tudo faz bem, porque faz ouvir os surdos e falar os mudas. De maneira que a Cristo bastou-lhe fazer falar um muda e ouvir um surda, para dizerem que tudo fazia bem feito, e a nós não nos basta fazer o mesmo milagre em tantos mudas e tantos surdos, para que nos não tenham por malfeitores. Mas vamos seguindo a estrela. Quando os Magos chegaram à vista de Jerusalém, esconde-se a estrela e esta foi a mais bizarra ação, e a mais luzida que eu nela considero. Basta, luzeiro celestial, que sois estrela de reis, e escondei-vos e fugis da corte? Ainda não entrastes nela, e já a conheceis? Mas, bem mostrais quanta tendes de Deus e quanto o quereis servir e louvar todas as estrelas, como diz Davi, louvam a Deus: Laud ate eum, omnes stellae et lumen:32 mas o mesmo Deus disse a Jó que as louvares das estrelas da manhã eram os que mais lhe agradavam: Cum me laudarent astra matutina.33 E parque agradam mais a Deus os louvares das estrelas da manhã, que os das estrelas da noite? Porque as estrelas da noite louvam a Deus luzindo, as estrelas da manhã louvam a Deus escondendo-se; as estrelas da noite comunicam as influências, mas conservam a luz, as estrelas da manhã perdem a luz para melhor lograr as influências; enfim, as estrelas da noite luzem, parque estão mais longe do sol: as estrelas da manhã escon31. Mc 7:37 [E, admirando-se sobremaneira, diziam: Tudo faz bem; faz ouvir os surdos e falar os mudos.] 32. Sl 148:3 [louvai-o, sol e lua; louvai-o, todas as estrelas luzentes.] 33. Jó 38:7 [quando as estrelas da alva juntas alegremente cantavam, e todos os filhos de Deus rejubilavam?] 206
sermão da epifania dem-se, porque esta o mais peito. Isto é o que fez a estrelados Magos, mas por poucas horas: as nossas por toda a vida. A estrela dos Magas, quando se escondeu, não luziu, mas não alumiou: as nossas escondem-se onde alumiam, e não luzem; a dos Magas alumiava, onde aviamos reis: Vidimus stellam ejus, as nossas alumiam onde não são vistas, nem o podem ser: no lugar mais desluzido, e no canto mais escuro de todo o mundo. E isto é verdadeiramente esconder-se porque não é só desterrar-se para sempre, mas enterrar-se. Assim esteve escondida a estrela, enquanto os Magas se detiveram em Jerusalém; mas, tanto que saíram para continuar seu caminho, logo tomou a se descobrir e aparecer: Ei ecce stella, quam viderant in Oriente, antecedebat eos.34 Reparai na antecedebat. Ia a estrela adiante, mas de tal maneira diante, que sempre se acomodava e em tudo ao passo dos que guiava. Ambulante Mago stella ambulaí, sedente sial, dormiente excubat, diz S. Pedro Crisólogo: Quando as Magos andavam, andava a estrela; quando se assentavam, parava; quando dormiam, velava, mas dava um passo mais que eles. Pudera a estrela fazer todo aquele caminho do Oriente ao Ocidente em dois momentos: Sicut fulgur exit ab Oriente, ei parei usque ad occidentem.35 E que ela, contra a sua velocidade natural, já movendo-se vagarosa e tardamente, já parando e ficando imóvel, se fosse acomodando e medindo em tudo com a condição e fraqueza daqueles a quem guiava, quanto, quando, e como eles podiam, grande violência! e mais se levantasse os olhos ao firmamento, e visse que as outras do seu nome davam volta ao mundo em vinte e quatro horas, e ela quase parada. Mas assim faz e 34. Mt 2:9 [E, tendo eles ouvido o rei, partiram; e eis que a estrela que tinham visto no Oriente ia adiante deles, até que, chegando, se deteve sobre o lugar onde estava o menino.] 35. Mt 24:27 [Porque, assim como o relâmpago sai do Oriente e se mostra até ao Ocidente, assim será também a vinda do Filho do Homem.] 207
sermões deve fazer quem tem por ofício levar almas a Cristo. Aqueles quatro animais do carro de Ezequiel, que olhavam para as quatro partes do mundo, e significavam as quatro evangelistas, todos tinham asas de asas de águia, mas nota o texto que os pés com que andavam eram de boi: Et planta pedis eorum quasi plana pedis vituli.36 E que se haja de mover a passa de boi quem tem asas e asas de águia? Sim, que isso é ser evangelista, isso é ter ofício de levar o Evangelho a gentes estranhas, e isso é o que fez a estrela: antecedebat eos. Mas estes eos quem eram? Aqui está a diferença daquela estrela às nossas. A estrela dos Magos acomodava-se aos gentios que guiava, mas esses gentios eram os Magos do Oriente, os homens mais sábios da Caldeia, e os mais doutos do mundo; porém as nossas estrelas, depois de deixarem as cadeiras das mais ilustres Universidades da Europa, como muitos deles deixaram, acomodam-se à gente mais sem entendimento e sem discurso, de quantas criou, ou abortou a natureza, e a homens, de quem se duvidou se eram homens, e foi necessário que os Pontífices definissem que eram racionais, e não brutos. A estrela dos Magos parava, sim, mas nunca tornou atrás; as nossas estrelas tomam uma e mil vezes a desandar o já andado, e a ensinar o já ensinado, e a repetir o já aprendida, porque o bárbaro boçal e rude, o tapuia cerrado e bruta, como não faz inteira entendimento, não imprime nem retém na memória. Finalmente, para o dizer em uma palavra, a estreladas Magas guiava a homens que caminhavam nos dromedários de Madiã, coma anteviu Isaías: Dromedarii Madian et Epha; omnes de Saba venient, aurum ei thus defe-
36. Ez 1:7 [E os seus pés eram pés direitos; e as plantas dos seus pés, como a planta do pé de uma bezerra, e luziam como a cor de cobre polido.] 208
sermão da epifania rentes:37 e acomodar-se ao passo dos dromedários de Madiã, ou ao sono das preguiças do Brasil, bem se vê a diferença. Ainda a palavra eos nos insinua outra, que se não deve passar em silêncio. A estrela, guia e pregadora dos Magos, converteu e trouxe a Cristo almas de gentios: mas de que gentios e que almas? Almas ilustres, almas coroadas, almas de gentios reis: as nassas estrelas também trazem a Cristo, e convertem almas, mas almas de gente onde nunca se viu cetro, nem coroa, nem se ouviu o nome de rei. A língua geral de toda aquela costa carece de três letras: F, L, R: De F, porque não tem fé, de L, porque não tem lei, de R, porque não tem rei: e esta é a polícia, da gente com que tratamos. A estrela dos Magos fez sua missão entre púrpuras e brocadas, entre pérolas e diamantes, entre âmbares e calambucos, enfim, entre os tesouros e delícias do Oriente: as nossas estrelas fazem as suas missões entre as pobrezas e desamparos, entre os ascos e as misérias da gente mais inculta, da gente mais pobre, da gente mais vil, da gente menos gente de quantos nasceram no mundo. Uma gente com quem meteu tão pouca cabedal a natureza, com quem se empenhou tão pouca a arte e a fortuna, que uma árvore lhe dá o vestido e o sustento, e as armas, e a casa e a embarcação. Com as folhas se cobrem, com o fruto se sustentam, com os ramos se armam, com o tronco se abrigam, e sobre a casca navegam. Estas são todas as alfaias daquela pobríssima gente, e quem busca as almas destes carpas busca só almas. Mas, porque o mundo não sabe avaliar esta ação, como ela merece, ouça o mesmo mundo o preço em que a estimou quem só a pode pagar. Quando o Batista mandou seus discípulas que fossem perguntar a Cristo se era ele o Messias, a resposta do Senhor 37. Is 60:6 [A multidão de camelos te cobrirá, os dromedários de Midiã e Efa; todos virão de Sabá; ouro e incenso trarão e publicarão os louvores do Senhor.] 209
sermões foi esta: Euníes renuntiate Joanni quae audistis, ei vidistis:38 Ide, dizei a João a que vistes e ouvistes. E que é o que tinham visto e ouvida? O que tinham visto era que os cegas viam, os mancos andavam, os leprosas saravam, os mortos ressuscitavam: Caeci vident, claudi ambulant, leprosi mundantur, moriui resurgunt.39 E não bastavam todos estes milagres vistos, para prova de ser Cristo o Messias? Sim, bastavam; mas quis o Senhor acrescentar ao que tinham visto o que tinham ouvido, porque ainda era maior prova, e mais certa. O que tinham ouvido os discípulos do Batista ora que o Evangelho de Cristo se pregava aos pobres: Pau peres evangelizaniur,40 e esta foi a última prova com que o Redentor do mundo qualificou a verdade de ser ele o Messias, porque pregar o Evangelho aos pobres, aos miseráveis, aos que não têm nadado mundo, é ação tão própria do espírito de Cristo, que depois do testemunho de seus milagres a pôs o Filha de Deus par selo de todos eles. O fazer milagres, pode-o atribuir a malícia a outro espírito: o evangelizar aos pobres nenhuma malícia pode negar que é espírito de Cristo. Finalmente, acabou a estrela o seu curso: parou; mas onde foi parar? Usque dunz veniens starei supra, ubi erat puer.41 Foi parar em um presépio, ande estava Cristo sobre palhas, e entre brutos, e alio deu a conhecer: Oh! que estrela tão santa e tão discreta! Estrela que não quer aparecer em 38. Mt 11:4 [E Jesus, respondendo, disse-lhe: Ide e anunciai a João as coisas que ouvis e vedes.] 39. Mt 11:5 [Os cegos veem, e os coxos andam; os leprosos são limpos, e os surdos ouvem; os mortos são ressuscitados, e aos pobres é anunciado o evangelho.] 40. Mt 11:5 [Os cegos veem, e os coxos andam; os leprosos são limpos, e os surdos ouvem; os mortos são ressuscitados, e aos pobres é anunciado o evangelho.] 41. Mt 2:9 [E, tendo eles ouvido o rei, partiram; e eis que a estrela que tinham visto no Oriente ia adiante deles, até que, chegando, se deteve sobre o lugar onde estava o menino.] 210
sermão da epifania Jerusalém, e se vai parar no presépio; estrela que antes quer estas em uma choupana com Cristo, que em uma corte sem ele? Discreta e santa estrela, outra vez! Discretas e mais santas as nossas. A razão é clara. Cristo naquele tempo estava no Presépio, mas não estava na corte de Jerusalém; de sorte que, se a estrela quisesse ficar na corte, havia de ficar sem Cristo. Nas cortes da cristandade não é assim. Em todas as cortes está Cristo, e em todas se pode estar com Cristo. Agora vai a diferença e a vantagem. Trocar Jerusalém pelo presépio, e querer antes estar em uma choupana com Cristo, que em uma corte, sem ele, não é fineza, é obrigação: e isto fez a estrela dos Magos. Mas querer antes estar no presépio com Cristo que em Jerusalém com Cristo, querer antes estar na choupana com Cristo entre brutos, que na corte com Cristo entre príncipes; isto é não só deixar a corte pelo presépio, senão deixar a Cristo por Cristo, e o seu maior serviço pelo menor: deixar a Cristo onde está acompanhado, para a acompanhar onde está só: deixa a Cristo onde está servido, para o servir onde está desamparado; deixar a Cristo onde e conhecido, para o dar a conhecer ande o não conhecem. A estrela dos Magos também deu a conhecer a Cristo: mas a quantos homens, e em quanto tempo? A três homens, e em dois anos. Esta foi a razão por que Herodes mandou matar todos os inocentes de dois anos para baixa, conforme o tempo em que a estrela tinha aparecido aos Magos: Secundum íem pus, quod exquisierat a Magis.42 Vede, agora, quanto vai daquela estrela às nossas estralas, e da sua missão às nossas. Deixadas as mais antigas, fizeram-se ultimamente duas, uma pelo Rio dos Tocantins, outra pela das Almazonas: e com que efeito? A primeira reduziu e trouxe a Cristo a na42. Mt 2:16 [Então, Herodes, vendo que tinha sido iludido pelos magos, irritou-se muito e mandou matar todos os meninos que havia em Belém e em todos os seus contornos, de dois anos para baixo, segundo o tempo que diligentemente inquirira dos magos.] 211
sermões ção dos Tupinambás, e a dos pochiguaras; a segunda pacificou e trouxe à mesma fé a nação das neengaíbas e a dos mamaianazes; e tudo isto em espaço de seis meses. De maneira que a estrela dos Magos em dois anos trouxe a Cristo três homens, e as nossas em meio ano quatro nações. E como estes pregadores da fé por ofício, por instituto, por obrigação, e por caridade, e pelo conhecimento e fama geral que têm entre aqueles bárbaros, os vão buscar tão longe com tanto zelo, e lhes falam em suas próprias línguas com tanto trabalho, e se acomodam à sua capacidade com tanta amor, e fazem por eles tantas outras finezas, que até nos brutos animais costumam achar agradecimentos, não é muito que eles os amem, que eles os estimem, que eles os defendam, e que antes ou depois de conhecerem e adorarem a Cristo, quase os adorem.
v Agora se segue, em contraposição admirável ou estupenda, e por mais digna de atenção, ver as cansas por que as cristãos perseguem, aborrecem e lançam de si estes mesmos homens. Perseguirem os cristãos a quem defendem os gentios, aborrecerem os do próprio sangue a quem amam os estranhos, lançarem de si os que têm uso da razão a quem recolhem, abraçam, e querem consigo os bárbaros, coisa era incrível, se não estivera tão experimentada e tão vista. E, suposto que é assim, qual pode ser a causa? Com serem tão notáveis as efeitos, ainda a causa é mais notável. Toda a causa de nos perseguirem aqueles chamados cristãos, é porque fazemos pelos gentios o que Cristo fez pelos Magas: Procid entes adoraverunt eum. Et responso acceptone redirentad Herodem, per aliam viam reversi suntin regionem suam.43 43. Mt 2:11-12 [E, entrando na casa, acharam o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o adoraram; e, abrindo os seus tesouros, lhe ofertaram dádivas: ouro, incenso e mirra. E, sendo por divina revelação 212
sermão da epifania Toda a providência divina para com os Magos consistiu em duas ações: primeira, em os trazer aos pés de Cristo por um caminho; segunda, em os livrar das mãos de Herodes por outro. Não fora grande sem-razão, não fora grande injustiça, não fora grande impiedade trazer os Magos a Cristo, e depois entregá-los a Herodes? Pois, estas são as culpas daqueles pregadores de Cristo, e esta única causa porque se veem, e os vedes tão perseguidos. Querem que tragamos os gentios à fé, e que os entreguemos à cobiça; querem que tragamos as ovelhas ao rebanho, e que as entreguemos ao cutelo; querem que tragamos os Magos a Cristo, e que os entreguemos a Herodes. E porque encontramos esta sem-razão, nós somos os desanuzoados; porque resistimos a esta injustiça, nós somos os injustos; porque contradizemos esta impiedade, nós somos os ímpios. Acabe de entender Portugal que não pode haver Cristandade nem cristandades nas conquistas, sem os ministros do Evangelho terem abertos e livres estes dois caminhos, que hoje lhes mostrou Cristo. Um caminho para trazerem os Magos à adoração, e outra para os livrarem de perseguição, um caminho para trazerem os gentios à fé, outro para os livrare tirania um caminho para lhes salvarem as almas, outro para lhes libertarem os corpos. Neste segundo caminho está toda a dúvida, porque nele consiste toda a tentação. Querem que aos ministros do Evangelho pertença só a cura das almas, e que a servidão e cativeiro dos corpos seja dos ministros do Estado. Isto é o que Herodes queria. Se o caminho, por onde se salvaram os Magos, estivera à conta de Herodes, muito boa conta daria deles: a que deu dos Inocentes. Não é esse o governo de Cristo. A mesma Providência, que teve cuidado de trazer os Magos a Cristo por um caminho, essa mesma avisados em sonhos para que não voltassem para junto de Herodes, partiram para a sua terra por outro caminho.] 213
sermões teve o cuidado de os livrar e pôr em salvo por outro; e querer dividir estes caminhos e estes cuidados é querer que não haja cuidado nem haja caminho. Ainda que um destes caminhos pareça só espiritual, e o outro temporal, ambos pertencem à Igreja e às chaves de S. Pedro, porque por um abrem-se as portas do céu, e por outro fecham-se as do inferno. As igrejas novas hão de se fundar e estabelecer, como Cristo fundou e estabeleceu a Igreja universal, quando também era nova. Que disse Cristo a S. Pedro? Super hanc petram aedqicabo ecclesiam meams libi dabo claves regni caelorum: et portae inferi praevalebunt adversus eam.44 Que importa que Pedro tenha chaves das portas do céu, se prevalecerem contra ele, e contra a Igreja as portas do inferno? Isto não é fundar nova Igreja, é destruí-la em seus próprios fundamentos. Não sei se reparais em que deu Cristo a S. Pedro não só chave, senão chaves: Jibi dabo claves. Para abrir as portas do céu bastava uma só chave: pois, por que lhe dá Cristo duas? Porque assim como há caminhos contra caminhos, assim há portas contra portas: Portae inferi non praevalebuntadversus eam. Há caminhos contra caminhos, porque um caminho leva a Cristo, e outro pode levar a Herodes; e há portas, contra p porque umas são as portas do céu, e outras as portas do inferno, que o encontram. Por isso, é necessário que as chaves sejam duas, e que ambas estejam na mesma mão. Uma com que Pedro possa abrir as portas do céu, e outra com que possa aferrolhar as portas do inferno; uma com que possa levar os gentios a Cristo, e outra com que os possa defender do demônio, e seus ministros. E toda a teima do 44. Mt 16:18-19 [Pois também eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. E eu te darei as chaves do Reino dos céus, e tudo.o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus.] 214
sermão da epifania mesmo demônio e do mesmo inferno, é que estas chaves e estes poderes se dividam, e que estejam em diferentes mãos. Não o entenderam assim os senhores reis que fundaram aquelas cristandades, e todas as das nossas conquistas, os quais sempre uniram um e outro poder, e o fiaram somente dos ministros do Evangelho; e a razão cristã ou política que para isso tiveram foi por terem conhecido e experimentado que só quem converte os gentios, os zela e os defende, e que, assim como dividir as almas dos corpos é matar, assim dividir estes dois cuidados é destruir. Por isso estão destruídas e desabitadas todas aquelas terras em tão poucos anos, e de tantas e tão numerosas povoações, de que só ficaram os nomes, não se veem hoje mais que ruínas e cemitérios. Necessário é, logo, não só para o espiritual, senão também para o temporal das conquistas, que os mesmos que edificam aquelas novas igrejas, assim como têm o zelo e a arte para as edificar, tenham juntamente o poder para as defender. Quando os israelitas reedificavam o templo e a cidade de Jerusalém, diz a Escritura Sagrada que cada um dos oficiais com uma mão fazia a obra, e na outra tinha a espada: Una manufaciebat opus, et altera tenebat gladium.45 Pois, não era melhor trabalhar com ambas as mãos, e fariam muito mais? Melhor era, mas não podia ser, porque naquela mesma terra moravam os samaritanos, os quais, ainda que diziam que criam em Deus, resistiam e faziam cruel guerra à edificação do Templo; e, como aos israelitas lhes impediam a obra, era força fazê-la com uma mão e defendê-la com a outra, sob pena de não ir a fábrica por diante. O mesmo lhes acontece aos edificadores daquelas novas igrejas. Muito mais se obraria nelas, se não fosse entre amigos e entre homens de 45. Esd 4:17 [Ne 4:17) [Os que edificavam o muro, e os que traziam as cargas, e os que carregavam, cada um com uma mão fazia a obra e na outra tinha as armas.] 215
sermões meia fé, quais eram os samaritanos. Mas, como estes com todas as forças do seu poder ou do poder que não é nem pode ser seu: impedem o edifício, é necessário trabalhar e juntamente defender. E se os mesmos trabalhadores não tiverem espada com que defendam o que trabalham, não só parará, como está parada a obra, mas perder-se-á, como se vai perdendo, quanto com tanto trabalho se tem obrado. Sim. Mas a espada é instrumento profano e leigo, e não diz bem em mãos sagradas. Primeiramente quem pôs a espada na mão dos que edificavam o Templo foi Neemias, o mais sábio, o mais santo príncipe e o mais zelador da honra de Deus que então havia no mundo. E se alguém tem os olhos tão delicados, que os ofenda esta aparência (que não é razão, senão pretexto) aparte-os um pouco de nós, e ponha-os em S. Paulo. Não vedes a S. Paulo com a espada em uma mão, e o livro na outra? Estes são os instrumentos e as insígnias, com que nos pinta e representa a Igreja aquele grande homem, por antonomásia chamado o Apóstolo. E por quê? Por que traz Paulo em uma mão o livro, noutra a espada? Por que Paulo entre todos os outros apóstolos foi o vaso de eleição escolhido particularmente por Cristo para preparador dos gentios: Vas electionis est mihi iste, ut portet nomen meum coram gentibus:46 e quem tem por ofício a pregação e conversão dos gentios há de ter o livro em uma mão, e a espada na outra: o livro para os doutrinar, a espada para os defender. E se esta espada se tirar da mão de Paulo, e se meter na mão de Herodes, que sucederá? Nadará toda a Belém em sangue inocente, e isso é o que vemos. Mas, por que não faça dúvida o nome de espada, troquemos a espada em cajado, que é instrumento próprio dos pas46. At 9:15 [Disse-lhe, porém, o Senhor: Vai, porque este é para mim um vaso escolhido para levar o meu nome diante dos gentios, e dos reis, e dos filhos de Israel.] 216
sermão da epifania tores, como ali somos, e respondei-me: Quem tem obrigação de apascentar as ovelhas? O pastor. E quem tem obrigação de defender as mesmas ovelhas dos lobos? O pastor também. Logo o mesmo pastor, que tem o cuidado de as apascentar, há de ter, também, o poder de as defender. Esse é o ofício do pastor, e esse o exercício do cajado. Lançar o cajado à ovelha para a encaminhar, e terçá-lo contra o lobo para a defender. E vós quereis que este poder esteja em uns, e aquele cuidado em outros? Não seja isso conselho dos lobos! Quando Davi a andava no campo apascentando as suas ovelhas, e vinha o urso, ou o leão para lhas comer, que fazia? Ia a Jerusalém buscar um ministro de el-rei Saul, para que lhas viesse defender? Não seria Davi, nem pastor, se assim o fizesse. Ele era o que as apascentava, e ele quem as defendia. E defendia-as de tal sorte, que das gargantas e das entranhas das mesmas feras as arrancava; porque se o lobo ou o leão lhe tinham engolido o cordeiro pela cabeça, tirava-lho pelos pés, e se lho engoliam pelos pés, tirava-lho pelas orelhas. Assim diz o profeta Amós como quem tinha exercitado o mesmo ofício: que faz e fazer quem é pastor: Quomodo si eruat pastor de ore leonis duo crura, aut extremum rei auriculae.47 E porque algum político, mau gramático e pior cristão, não cuide que a obrigação do pastor é somente apascentar, como parece o que significa a derivação do nome, saiba que só quem apascenta e defende é pastor, e quem não defende, ainda que apascente, não. Faz Cristo comparação entre o pastor e o mercenário, e diz assim: Bonun pastor animam suam dat pro ovibus suis:48 O bom pastor defende as suas 47. Am 3:12 [Assim diz o Senhor: Como o pastor livra da boca do leão as duas pernas ou um pedacinho da orelha, assim serão livrados os filhos de Israel que habitam em Samaria, no canto da liteira e na barra do leito.] 48. Jo 10:11-12 [Eu sou o bom Pastor; o bom Pastor dá a sua vida pelas ovelhas. Mas o mercenário, que não é pastor, de quem não são as ovelhas, vê vir o lobo, e deixa as ovelhas, e foge; e o lobo as arrebata e dispersa.] 217
sermões ovelhas, e dá por elas a vida, se é necessário. Mercenarius autem, et qui non est pastor: Porém o mercenário, e o que não é pastor, que faz? Videt lupum venientem, et lupus rapit, et dispergit oves: Quando vê vir o lobo para o rebanho, foge, e deixa-o roubar e comer as ovelhas. O meu reparo agora, grande reparo, é dizer Cristo que o mercenário não é pastor: Mercenarius autem, et qui non est pastor. O mercenário, como diz o mesmo nome, é aquele que por seu jornal apascenta as ovelhas. Pois, se o mercenário também apascenta as ovelhas, por que diz Cristo que não é pastor? Porque ainda que as apascenta não as defende: vê vir o lobo e foge. E é tão essencial do pastor o defender as ovelhas, que se as defende é pastor, se as não defende não é pastor: Non est pastor. Como Cristo tinha falado em bom pastor, cuidava eu que havia de fazer a comparação entre bom pastor e mau pastor, e dizer que o bom pastor é aquele que defende as ovelhas, e o mau pastor é aquele que as não defende. Mas o Senhor não fez a comparação entre ser bom ou ser mau, senão entre ser, ou não ser. Diz que o que defende as ovelhas é bom pastor, e não diz que o que as não defende é mau pastor: por quê? Porque o que não defende as ovelhas não é pastor bom nem mau. Um lobo não se pode dizer que é bom homem, nem que é mau homem, porque não é homem. Da mesma maneira, o que não defende as ovelhas não se pode dizer que é bom pastor nem mau pastor, porque não é pastor: Non est pastor E sendo assim que a essência do pastor consiste em defender as ovelhas dos lobos, não seria coisa muito para rir, ou muito para chorar, que os lobos pusessem pleito aos pastores por que lhes defendem as ovelhas? Lá dizem as fábulas que os lobos se quiseram concertar com os rafeiros, mas que citassem aos pastores, se lhes quisessem armar demanda, porque lhes defendiam o rebanho. Isto não o disseram as fábulas: di-lo-ão as nossas histórias.
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sermão da epifania Mas quando disseram isto dos lobos, também dirão dos pastores que muitos deram as vidas pelas ovelhas: uns afogados das ondas, outros comidos dos bárbaros, outros mortos nos sertões, de puro trabalho e desamparo. Dirão que todos expuseram e sacrificaram as vidas pelos bosques, e pelos desertos entre as serpentes; pelos lagos e pelos rios entre os crocodilos; pelo mar e por toda aquela costa, entre parcéis e baixios os mais arriscados e cegos de todo o Oceano. Finalmente, dirão que foram perseguidos, que foram presos, que foram desterrados, mas não dirão, nem poderão dizer, que faltassem à obrigação de pastores, e que fugissem dos lobos como mercenários: Mercenarius autemfugit, E esta é a razão e obrigação, por que eu falo aqui, e falo tão claramente. S. Gregório Magno, comentando estas mesmas palavras: Mercenarius autem fugit, diz assim: Fugit, quia injustitiam vidit, et tacuit;fugit, quia se sub silentio abscondít: Sabeis, diz o supremo Pastor da Igreja, quando foge o que não é verdadeiro pastor? Foge quando vê injustiças, e, em vez de bradar contra elas, as cala; foge, quando, devendo sair a público em defesa da verdade, se esconde, e esconde a mesma verdade debaixo do, silêncio. Bem creio que alguns dos que me ouvem teriam por mais modéstia e mais decência que estas verdades e estas injustiças se calassem, e eu o faria facilmente como religioso, sem pedir grandes socorros à paciência; mas, que seria, se eu assim o fizesse? Seria ser mercenário, e não pastor: Fugit, quia mercenarius est; seria ser consentidor das mesmas injustiças que vi, e, estando tão longe, não pude atalhar: Fugit, quia injustitiam vidit, et tacuit; seria ser proditor das mesmas ovelhas que Cristo me e entregou, e de que lhe hei de dar conta, não as defendendo, e escondendo-me onde só as posso defender: Fugit, quia se sub silentio abscondit.
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sermões
vi E porque na apelação deste pleito, em que a injustiça e violência dos lobos ficou vencedora, é justo que também eles sejam ouvidos, assim como ouvistes balar as ovelhas, no que eu tenho dito, ouvi também uivar os mesmos lobos, no que eles dizem. Dizem que o chamado zelo com que defendemos os índios é interesseiro e injusto: interesseiro, porque o defendemos para que nos sirvam a nós; e injusto, porque defendemos que sirvam ao povo. Provam o primeiro, e cuidam que com evidência, porque veem que nas aldeias edificamos as Igrejas com os índios; veem que pelos rios navegamos em canoas equipadas de índios; veem que nas missões por água e por terra nos acompanham e conduzem os índios: logo, defendemos e queremos os índios para que nos sirvam a nós! Esta é a sua primeira consequência, muito como sua, da qual, porém, nos defende muito facilmente o Evangelho. Os Magos, que também eram índios, de tal maneira seguiam, e acompanhavam a estrela, que ela não se movia, nem dava passo sem eles. Mas, em todos estes passos, e em todos estes caminhos, quem servia, e a quem? Servia a estrela aos Magos, ou os magos à estrela? Claro está que a estrela os servia a eles, e não eles a ela. Ela os foi buscar tão longe, ela os trouxe ao Presépio, ela os alumiava, ela os guiava, mas não para que eles a servissem a ela, senão para que servissem Cristo, por quem ela os servia. Este é o modo com que nós servimos aos índios, e com que dizem que eles nos servem. Se edificamos com eles as suas Igrejas, cujas paredes são de barro, as colunas de pau tosco, e as abóbadas de folhas de palma, sendo nós os mestres e os obreiros daquela arquitetura, com o cordel, com o prumo, com a enxada, e com a serra e os outros instrumentos, que também nós lhes damos, na mão, eles servem a Deus a si, nós servimos a 220
sermão da epifania Deus e a eles, mas não eles a nós. Se nos vem buscar em uma canoa, como têm por ordem, nos lugares onde não residimos, sendo isso, como é, para os ir doutrinar por seu turno, ou para ir sacramentar os enfermos, a qualquer hora do dia ou da noite, em distância de trinta, de quarenta e de sessenta léguas, não nos vêm eles servir a nós: nós somos os que os imos servir a eles. Se imos em missões mais largas a reduzir e descer os gentios, ou a pé, e muitas vezes descalços, ou embarcados em grandes tropas à ida, e muito maiores à vinda, eles e nós imos em serviço da Fé e da República, para que tenha mais súditos a Igreja e mais vassalos a Coroa; e nem os que levamos, nem os que trazemos, nos servem a nós, senão nós a uns e a outros, e ao rei e a Cristo. E porque deste modo, ou nas aldeias, ou fora delas, nos veem sempre com os índios, e os índios conosco, interpretam esta mesma assistência tanto às avessas que, em vez de dizerem que nós os servimos, dizem que eles nos servem. Veio o Filho de Deus do céu à terra a salvar o mundo, e sempre andava acompanhado e seguido dos mesmos homens a quem veio salvar. Seguiam-no os apóstolos, que eram doze; seguiam-no os discípulos, que eram setenta e dois; seguiam-no as turbas, que eram muitos milhares: e quem era aqui o que servia ou era servido? O mesmo Senhor o disse: Non veni ministrari, sed ministrare:49 Eu não vim a ser servido, senão a servir. E todos estes que me seguem e me assistem, todos estes que eu vim buscar e me buscam, eu sou o que os sirvo a eles, e não eles a mim. Era Cristo mestre, era médico, era pastor, como ele disse muitas vezes. E estes são os mesmos são ofícios em que servem aos gentios e cristãos aqueles ministros do Evangelho. São mestres, porque catequizam e ensinam a grandes e pequenos, e não uma, 49. Mt 20:28 [bem como o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e para dar a sua vida em resgate de muitos.) 221
sermões senão duas vezes ao dia; e quando o mestre está na aula ou na escola, não são os discípulos os que servem ao mestre, senão o mestre aos discípulos. São médicos, porque não só lhes curam as almas, senão também os corpos, fazendo-lhes o comer e os medicamentos, e aplicando-lhos por suas próprias mães às chagas ou às doenças, por asquerosas que sejam; e quando o médico cura os enfermos, ou cura deles, não são os enfermos os que servem o médico, senão o médico aos enfermos. São pastores, porque têm cuidado de dar o pasto às ovelhas e a criação aos cordeiros, vigiando sobre todo o rebanho de dia e de noite; e quando o pastor assim o faz, e nisso se desvela, não são as ovelhas as que servem ao pastor, senão o pastor às ovelhas. Mas, porque isto, não serve aos lobos, por isso dizem que os pastores se servem. Quanto aos interesses não tenho eu que dizer, porque todos os nossos haveres eles os têm em seu poder. Assim como nos prenderam e desterraram, assim se apoderaram também das nossas choupanas e de quanto nelas havia. Digam, agora, o que acharam. Acharam ouro e prata, mas só a dos cálices e custódias. Nos altares acharam sacrários, imagens e relíquias; nas sacristias omamentos, não ricos, mas decentes e limpos; nas celas de taipas pardas e telhas vã, alguns livros, catecismos, disciplinas, cilícios, e uma tábua ou rede em lugar de camas, porque as que levamos de cá se dedicaram a um hospital, que não havia; e se nos nossos guarda-roupas se acharam alguns mantéus e sotainas remendadas, eram de algodão, grosseiro, tinto na lama, como o calçado de peles de veado e porco montês, que são as mesmas galas com que aqui aparecemos. Finalmente, é certo que os Magos achariam no presépio mais pobreza, mas mais provado desinteresse não. Diz o evangelista que os Magos, abrindo os seus tesouros, ofereceram a Cristo ouro, incenso e mirra:Apertis thesauris suis obtulerunt ei munera, aurum
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sermão da epifania thus, et myrrham.50 Mas não sei se repamis que, dizendo-se que os tesouros foram oferecidos, não se diz se foram aceitados ou não. A opinião comum dos doutores é que sim; contudo, outros duvidam e com fundamento, porque daí a poucos dias, indo a Virgem Mãe apresentar o seu primogênito no Templo, conforme a lei, e dispondo a mesma lei que os pobres oferecessem duas rolas ou dois pombinhos, e os que tivessem mais posses um cordeiro, a Senhora não ofereceu cordeiro, senão, como diz o texto: Par turturum, aut duos pullos columbarum.51 Donde parece se colhe que a Santa Família do presépio não aceitou os tesouros dos Magos, porque se tivera ouro, oferecera cordeiro. De maneira que é certo e de fé que os tesouros se ofereceram, mas ficou em opinião e em dúvida se se aceitaram ou não. Por isso eu digo que, sendo tão grande a pobreza do presépio, a nossa naquelas terras está mais provada. Na pobreza do presépio é certo que houve tesouros, e é duvidoso se foram acertados: na nossa nem há esta certeza, nem pode haver esta dúvida, porque os Magos que trazemos a Cristo, e a gente a quem servimos é tão pobre e tão miserável que nem eles têm que oferecer nem nós temos que aceitar. Resta a segunda parte da queixa, em que dizem que defendemos os índios, porque não queremos que sirvam ao povo. A tanto se atreve a calúnia, e tanto cuida que pode desmentir a verdade! Consta autenticamente nesta mesma corte, que no ano de 1655 vim eu a ela só, a buscar o remédio desta queixa, e a estabelecer, como levei estabelecido por provisões reais, que todos os índios, sem exceção, servissem ao mesmo povo, e o servissem sempre, e o modo, a 50. Mt 2:11 [E, entrando na casa, acharam o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o adoraram; e, abrindo os seus tesouros, lhe ofertaram dádivas: ouro, incenso e mirra.] 51. Lc 2:24 lê para darem a oferta segundo o disposto na lei do Senhor: um par de rolas ou dois pombinhos.] 223
sermões repartição e a igualdade com que o haviam de servir para que fosse bem servido. Vede se podia desejar mais a cobiça, se com ela pudesse andar junta a consciência. Não posso, porém, negar que todos nesta parte, e eu em primeiro lugar, somos muito culpados. E por quê? Porque, devendo defender os gentios que trazemos a Cristo, como Cristo defendeu os Magos, nós, acomodando-nos à fraqueza do nosso poder, e à força do alheio, cedemos da sua justiça, e faltamos à sua defensa. Como defendeu Cristo os Magos? Defendeu-os de tal maneira que não consentiu que perdessem a pátria, nem a soberania, nem a liberdade; e nós não só consentimos que os pobres gentios que convertemos percam tudo isto, senão que os persuadimos a que o percam, e o capitulamos com eles, só para ver se se pode contentar a tirania dos cristãos: mas nada basta. Cristo não consentiu que os Magos perdessem a pátria, porque reversi sunt in regionem suam;52 e nós, não só consentimos que percam a sua pátria aqueles gentios, mas somos os que, à força de persuasões e promessas que se lhes não guardam os arrancamos das suas terras, trazendo as povoações inteiras a viver ou a morrer junto das nossas. Cristo não consentiu que os Magos perdessem a soberania, porque reis vieram e reis tornaram, e nós não só consentimos que aqueles gentios percam a soberania natural, com que nasceram e vivem isentos de toda a sujeição, mas somos os que, sujeitando-os ao jugo espiritual da Igreja, os obrigamos também ao temporal da coroa, fazendo-os jurar vassalagem. Finalmente, Cristo não consentiu que os Magos perdessem a liberdade, porque os livrou do poder e tirania de Herodes, e nós não só não lhes defendemos a liberdade, mas pacteamos com eles, e por eles, como seus 52. Mt 2:12 [E, sendo por divina revelação avisados em sonhos para que não voltassem para junto de Herodes, partiram para a sua terra por outro caminho.] 224
sermão da epifania curadores, que sejam meios cativos, obrigando-se a servir alternadamente a metade do ano. Mas nada disto basta para moderar a cobiça e tirania dos nossos caluniadores, porque dizem que são negros, e hão de ser escravos. Já considerei algumas vezes por que permitiu a divina Providência, ou ordenou a divina Justiça, que aquelas terras e outras vizinhas fossem dominadas dos hereges do Norte. E a razão me parece que é porque nós somos tão pretos em respeito deles, como os índios em respeito de nós e era justo que, pois fizemos tais leis, por ela se executasse em nós o castigo. Como se dissera Deus: já que vós fazeis cativos a estes, porque sois mais brancos que eles, eu vos farei cativos de outros, que sejam também mais brancos que vós. A grande sem-razão desta injustiça declarou Salomão em nome alheio com uma demonstração muito natural. Introduz a etiopisa, mulher de Moisés, que era preta, falando com as senhoras de Jerusalém, que eram brancas, e por isso a desprezavam, e diz assim: Filiae Jerusalem, nolite considerare quod fusca sim, quia decoloravit me sol:53 Se me desestimais porque sois brancas, e eu preta, não considereis a cor, considerai a causa: considerai que a causa desta cor é o sol, e logo vereis quão inconsideradamente julgais. As nações, umas são mais brancas, outras mais pretas, porque umas estão mais vizinhas, outras mais remotas do sol. E pode haver a maior inconsideração do entendimento, nem maior erro do juízo entre homens, que cuidar eu que hei de ser vosso senhor, porque nasci mais longe do sol, e que vós haveis de ser meu escravo, porque nascestes mais perto? 53. Ct 1:5 [:5:6] [Eu sou morena e agradável, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como as cortinas de Salomão. Não olheis para o eu ser morena, porque o sol resplandeceu sobre mim: os filhos de minha mãe se indignaram contra mim, e me puseram por guarda de vinhas; a vinha que me pertence não guardei.] 225
sermões Dos Magos, que hoje vieram ao presépio, dois eram brancos e um preto, como diz a tradição; e seria justo que mandasse Cristo que Gaspar e Baltasar, porque eram brancos, tornassçm livres para o Oriente, e Belchior, porque era pretinho, ficasse em Belém por escravo, ainda que fosse de S. José? Bem o pudera fazer Cristo, que é Senhor dos senhores; mas quis-nos ensinar que os homens de qualquer cor todos são iguais por natureza, e mais iguais ainda por fé, se crêem e adoram a Cristo, como os Magos. Notável coisa é que, sendo os Magos reis, e de diferentes cores, nem uma nem outra coisa dissesse o Evangelista. Se todos eram reis, por que não diz que o terceiro era preto? Porque todos vieram adorar a Cristo, e todos se fizeram cristãos, e entre cristão e cristão não há diferença de nobreza, nem diferença de cor. Não há diferença de nobreza, porque todos são filhos de Deus; nem há diferença de cor, porque todos são brancos. Essa é a virtude da água do batismo. Um etíope, se se lava nas águas do Zaire, fica limpo, mas não fica branco, porém na água do Batismo sim, uma coisa e outra: Asperges me hyssopo, et mundabor: ei-lo aí limpo. Lavabis me, et super nivem dealbabor:54 ei-lo aí branco. Mas é tão pouca a razão e tão pouca a fé daqueles inimigos dos índios, que, depois de nós os fazermos brancos pelo batismo, eles os querem fazer escravos por negros. Não é minha tenção que não haja escravos, antes procurei nesta corte, como é notório e se pode ver da minha proposta, que se fizesse, como se fez, uma junta dos maiores letrados sobre este ponto, e se declarassem, como se declararam por lei, que lá está registada, as causas do cativeiro lícito. Mas, porque queremos só os lícitos, e defendemos os ilícitos, por isso nos não querem naquela terra, 54. Sl 51:7 [Purifica-me com hissopo, e ficarei puro; lava-me, e ficarei mais alvo do que a neve.] 226
sermão da epifania e nos lançam dela. O mesmo sucedeu a S. Paulo, se bem a terra não era de cristãos. Em Filipos, cidade de Macedônia, havia uma escrava possuída do demônio, o qual falava nela e dava oráculos, e adivinhava muitas coisas, e por esta habilidade ganhava muito a escrava a seus senhores. Compadeceu-se dela S. Paulo, que ali se achava em missão com seu companheiro Sila; lançou fora o demônio daquele corpo duas vezes cativo. E que prêmio ou agradecimento teve ele e seu companheiro deste benefício? Amotinou-se contra eles todo o povo, prenderam-nos, maltrataram-nos, e lançaram-nos da cidade. Pois, por que os apóstolos lançam o demônio fora da escrava, por isso os lançam a eles fora da terra? Porventura Paulo e Sila tiraram a escrava a seus senhores, ou disseram que não era escrava, e que os não servisse? Nem por pensamento. Pois, por que os maltratam, por que os prendem, por que os desterram? Porque os senhores da escrava não só queriam a escrava, senão a escrava e mais o demônio. Aqui bate o ponto de toda a controvérsia, e por isso não concordamos, Nós queremos que tenham escravos, mas sem demônio: eles não querem escravos senão com o demônio. E por quê? O mesmo texto dá a razão, que em uns e outros é a mesma: Quia exivitspes quaestus eorum:55 Porque, tendo a escrava sem o demônio, perdiam toda a esperança dos seus interesses. Os escravos lícitos e sem demônio, são poucos: os ilícitos, e com o demônio, são quantos eles querem cativar, e quantos cativam; e como o seu interesse posto que interesse infernal consiste em terem escravos como demônio, por isso querem antes o demônio que os apóstolos, e por isso os lançam de si: Quia exivit spes quaestus eorum, perduxerunt Paulum et Silam. 55. At 16:19 [E, vendo seus senhores que a esperança do seu lucro estava perdida, prenderam Paulo e Silas e os levaram à praça, à presença dos magistrados.] 227
sermões Convencidos e confundidos desta evidência, ainda falam, ainda replicam. E que dizem? O que se não atreveu a dizer Herodes, posto que o fez. Dizem que se não podem sustentar, nem o Estado se pode conservar doutro modo. Vede que razão esta para se ouvir com ouvidos católicos, e para se articular e apresentar diante de um tribunal ou rei cristão! Não nos podemos sustentar doutra sorte, senão com a carne e sangue dos miseráveis índios! Então eles são os que comem gente? Nós, nós somos os que os imos comer a eles. Esta era a fome insaciável dos maus criados de Jó: Quis det de carnibus ejus, ut saturemur:56 e esta era a injustiça e crueldade de que Deus mais se sentia em seus maus ministros: Qui devorant plebem meam sicut escam panis.57 E porque os pregadores do Evangelho, que são os que vão buscar estas inocentes vítimas, e as não querem entregar ao açougue e matadeiro: fora, fora das nossas terras. Quando Cristo chamou aos apóstolos, disse-lhes que os havia de fazer pescadores de homens: Faciam vos fieri piscatores hominum.58 Assim nos fez, e assim o fazemos nós, e nisso se ocupam as nossas redes e se cansam os nossos braços. Mas, para que entendem e se desenganem todos, lá e cá, que esses homens não os havemos nós de pescar para que eles os comam, advirtam e notem bem que se Cristo chamou aos apóstolos pescadores, também lhes chamou sal: Vos estis sal terrae.59 Pois os pescadores hão de ser sal, e os 56. Jó 31:31 [se a gente da minha tenda não disse: Ah! Quem se não terá saciado com a sua carne!] 57. Sl 13:4 [Não terão conhecimento os obreiros da iniquidade, que comem o meu povo como se comessem pão? Eles não invocam ao Senhor.] 58. Mt 4:19 [E disse-lhes: Vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homens.] 59. Mt 5:13 [Vós sois o sal da terra; e, se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais presta, senão para se lançar fora e ser pisado pelos homens.] 228
sermão da epifania apóstolos sal, e juntamente pescadores? Sim. O pescador pesca, o sal conserva. E esta é a diferença que há entre os pescadores de homens e os pescadores de peixes: os pescadores de peixes pescam os peixes para que se comam; os pescadores de homens hão de pescar os homens para que se conservem. Veja-se em todo o resto daquela América se houve alguns índios que se conservassem, senão os da nossa doutrina. Por isso nos não querem a nós, por isso querem os que lhos ajudam a comer: e estas são as nossas culpas. O justo castigo que os homens nos dão por elas bem se vê: o que Deus lhes há de dar a eles, e o prêmio com que nos há de pagar a nós, o mesmo castigo também o tem prometido. Antevia Cristo, como sabedoria infinita, que os seus apóstolos, a quem mandava pregar pelo mundo, haviam de encontrar com homens tão inimigos da verdade e da justiça, que os não consentiriam consigo, e os lançariam das suas terras (bem assim como os gerasenos lançaram das suas ao mesmo Cristo) e, para que estivessem e fossem prevenidos, primeiramente deu-lhes a instrução do modo com que se haviam de haver em semelhantes casos: Quicum que non receperint vos, neque audirint sermones vestros, exeuntes foras de domo, vel civitate, excutite pulverem de pedibus vestris, in testimonium illis:60 Quando os homens, quaisquer que sejam, nao receberem vossa doutrina, e vos lançarem de suas casas e cidades, o que haveis de fazer autenticamente diante de todos é sacudir o pó dos sapatos, para que esse 60. Mt 10:14 [E, se ninguém vos receber, nem escutar as vossas palavras, saindo daquela casa ou cidade, sacudi o pó dos vossos pés.]; Lc 9:5 [E, se em qualquer cidade vos não receberem, saindo vós dali, sacudi o pó dos vossos pés, em testemunho contra eles.]; Mc 6:11 [E, quando alguns vos não receberem, nem vos ouvirem, saindo dali, sacudi o pó que estiver debaixo dos vossos pés, em testemunho contra eles. Em verdade vos digo que haverá mais tolerância no Dia do Juízo para Sodoma e Gomorra do que para os daquela cidade.] 229
sermões pó seja testemunha de que pusestes os pés naquela terra, e ela vos lançou de si. Assim o fizeram S. Paulo e S. Barnabé, quando foram lançados de Pisídia, e assim o fiz eu também. E que mais diz Cristo para que os mesmos apóstolos se não desconsolassem, antes se gloriassem muito destes desterros, e da causa deles? Sabeis, lhes diz o mesmo Senhor, que quando os homens assim vos aborrecerem, e vos apartarem e lançarem de si, então sereis bem-aventurados, porque então sereis meus verdadeiros discípulos; e depois o sereis também, porque no céu tereis o galardão que vos não sabe nem pode dar a terra: Beati eritis cum vos oderint homines, et cum separa verint vos, et exprobraverint, etejecerint nomen vestrum tanquam malum propter Filium hominis. Gaudete, etexultate: ecce enim merces vestra multa es in Coelo.61 Este é o prêmio com que Cristo, bendito ele seja, nos há de pagar, e paga já de contado, a paciência destas injúrias, remunerando de antemão, no seguro de sua palavra, estes trabalhos com aquele descanso, estes desterros com aquela pátria, e estas afrontas com aquela glória, para que ninguém nos tenha lástima quando o céu nos tem inveja. Mas, por que os autores de tamanhos escândalos não cuidem que eles e suas terras hão de ficar sem o devido castigo, conclui, finalmente, o justo juiz com esta temerosa sentença: Amen dico vobis. Tolerabilius erit terrae Sodomorum, et Gomorrhaeorum, quam illi civitati:62 De verdade vos digo que o castigo das cidades de Sodoma e Gomorra, sobre as quais choveram raios, ainda foi mais moderado e mais tolerável do que será o que está aparelhado, não só para as pessoas, senão para as mesmas terras donde os meus pregadores fo61. Lc 6:22 [Bem-aventurados sereis quando os homens vos aborrecerem, e quando vos separarem, e vos injuriarem, e rejeitarem o vosso nome como mau, por causa do Filho do Homem.] 62. Mt 10:15 [Em verdade vos digo que, no Dia do Juízo, haverá menos rigor para o país de Sodoma e Gomorra do que para aquela cidade.] 230
sermão da epifania rem lançados. Tal é a sentença que tem decretada a divina justiça contra aquela mal aconselhada gente, por cujo bem e remédio eu tenho passado tantos mares e tantos perigos. Praza à divina misericórdia perdoar-lhes, pois não sabem o que fazem. E para que lhes não falte o perdão da parte assim como meus companheiros e eu lho temos já dado muito de coração, assim, agora, lho torno a ratificar aqui publicamente: Coram Deo, et hominibus, em nome de todos.
vii Suposto, pois, que não peço nem pretendo castigo, e o que só desejo é o remédio, quero acabar este largo, mas forçoso discurso, apontando brevemente os que ensina o Evangelho. O primeiro e fundamental de todos era que aquelas terras fossem povoadas com gente de melhores costumes, e verdadeiramente cristã. Por isso no Regimento dos Governadores a primeira coisa que muito se lhes encarrega é que a vida e procedimento dos portugueses seja tal que com o seu exemplo e imitação se convertamos gentios. Assim está disposto santissimamente, porque, como diz S. João Crisóstomo, se os cristãos viveram conforme a lei de Cristo, toda a gentilidade estivera já convertida: Nemo profecto gentilis esset, si ipsi, ut oportet, Christiani esse cura remus. Mas é coisa muito digna, não sei se de admiração, se de riso, que no mesmo tempo em que se dá este regimento aos governadores, e nos mesmos navios em que eles vão embareados, os povoadores que se mandam para as mesmas terras são os criminosos e malfeitores tirados do fundo das enxovias, e levados a embarcarem grilhões, a quem já não pode fazer bons o temor de tantas justiças! E estes degradados, por suas virtudes, e talvez marcados por elas, são os santinhos que lá se mandam, para que com o seu exemplo se convertam os gentios, e se acrescente a cristandade. Aqueles sa231
sermões maritanos, que acima dissemos impediam a edificação do Templo, eram degradados por el-rei Salmanazar, de Assíria e Babilônia, para povoadores da Samaria, que ele tinha conquistado e diz a História Sagrada que o que lã fizeram foi ajuntar os costumes que levavam da sua terra com os que acharam em Sarnaria, e assim eram meios fiéis, e meios gentios: Et cum Dominum colerent, diis quoque suis serviebant juxta consuetudinem genti um, de quibus translati fuerant Samariam.63 Isto mesmo se experimenta, e é força que suceda nas nossas conquistas, com semelhantes povoadores. Mas, como este erro fundamental já não pode ter remédio, vamos aos que de presente e para o futuro nos ensina o Evangelho. O primeiro é a boa eleição dos sujeitos a quem se comete o governo. E para que a eleição seja boa, que parte hão de ter os eleitos? Eu me contento com uma só. E qual? Que sejam ao longe o que prometem ao perto. Herodes encomendou muito aos Magos que fizessem diligência pelo Rei nascido que buscavam, e que, tanto o achassem, lhe fizessem logo aviso, para que também ele o fosse adorar: Ut et ego veniens adorem eum.64 Ah! hipócrita! Ah! traidor! E para tu adorares a Cristo é necessário que vás onde ele estiver: Ut et ego veniens? Tanto podia Heiudes adorar a Cristo desde Jerusalém, onde ele estava, como em Belém, ou em qualquer outra parte onde o Senhor estivesse; mas estes são e estes costumam ser os Herodes. Em Belém e ao perto adoram; desde Jerusalém, e ao longe, não adoram. Antes de ir, e quando vem, adoram: Ut et ego veniens: mas enquanto estão lá tão longe, nem adoram, nem têm pensamentos de adorar, como Herodes; e se não maquinam contra orei em sua 63. 4Rs 17:33 [Assim, ao Senhor temiam e também a seus deuses serviam, segundo o costume das nações dentre as quais tinham sido transportados.] 64. Mt 2:8 [E, enviando-os a Belém, disse: Ide, e perguntai diligentemente pelo menino, e, quando o achardes, participai-mo, para que também eu vá e o adore.] 232
sermão da epifania pessoa, maquinam contra ele e suas leis, à custa da vida e sangue dos inocentes. Bom Daniel e fiel ministro de seu Senhor. Estava Daniel em Babilônia, e diz o texto sagrado que todos os dias três vezes abria as janelas, que ficavam para a parte de Jerusalém, e prostrado de joelhos adorava: Apertisfenestris in coenaculo suo contra Jerusalem, tribus temporibus in die flectebat genua sua, et adorabat.65 De Babilônia não se podia ver Jerusalém, distante tantos centos de léguas quantas há desde o Monte Sion ao Rio Eufrates; pois, por que adorava Daniel para a parte de Jerusalém? Porque Jerusalém naquele tempo era a corte de Deus, o Templo o seu palácio, e o Propiciatório, sobre asas de querubins, o seu trono; e essa era a obrigação de fiel ministro: adorar a seu Senhor, e adorá-lo sempre, e adorá-lo de toda a parte, ainda que fosse tão distante como Babilônia. Em Jerusalém adorava Daniel de perto, em Babilônia adorava de longe; isto é o que nota e encarece a Escritura, não que adorasse de perto, que isso fazem todos, mas que adorasse de longe, e de tão longe. E porque ao longe há poucos Daniéis e muitos Herodes, por isso convém que os que hão de governar em leiras tão remotas sejam aqueles que façam ao longe o que prometem ao peito. Mas costuma isto ser tanto pelo contrário, que só o verem-se tão longe lhes tira todo o temor do rei e toda a reverência do seu nome. Entraram os Magos por Jerusalém perguntando: Ubi est qui natus est rex Judaeorum? 66 E que efeitos causou em Herodes esta voz do nome real?Audiens
65. Dn 6:10 [Daniel, pois, quando soube que a escritura estava assinada, entrou em sua casa (ora, havia no seu quarto janelas abertas da banda de Jerusalém), e três vezes no dia se punha de joelhos, e orava, e dava graças, diante do seu Deus, como também antes costumava fazer.] 66. Mt 2:2 [e perguntaram: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? Porque vimos a sua estrela no Oriente e viemos a adorá-lo.] 233
sermões autem Herodes rex, turbatus est:67 Tanto que ouviu nomear rei, turbou-se, perdeu as corés, e ficou fora de si de medo. Assim havia de ser o nome de rei, ou pronunciado, ou escrito, em qualquer parte da sua monarquia, por distante que seja. Havia de ser um trovão prenhe de raios, que fizesse tremer as cidades, as fortalezas, os portos, os mares, os montes, quanto mais os homens. Mas os que se veem além da linha ou debaixo dela, fazem tão pouco caso destas trovoadas que, em vez de tomarem do coração de Herodes o turbatus est, tomam da boca dos Magos o Ubi est. Onde está el-rei? Em Portugal? Pois se ele lá está, nós estamos cá. lua se jactet in aula. Mande ele de lá o que mandar, nós faremos cá o que nos bem estiver. São como aqueles hereges que, construindo a seu sabor o verso de Davi, diziam: Caelum caeli Domino, terram autem dedit filiis hominum:68 Esteja-se Deus no seu céu, que nós estamos cá na nossa leira. E que há de fazer a pobre leira com tais governadores? O que eles quiserem, ainda que seja muito contra si, e muito a seu pesar. Não temos o texto longe. Turbatus estllerodes, et omnis Jerosolyma cum lllo:69 Perturbou-se Herodes e toda a Jerusalém com ele. Perturbar-se Herodes, rei intruso e tirano, temendo que o legítimo Senhor o privasse da coroa, que não era sua, razão tinha; mas que se perturbe juntamente Jerusalém, quando era a melhor e mais alegre nova que podia ouvir? Não suspirava Jerusalém e toda a Judeia pela vinda do Messias? Não gemia debaixo da violência de Herodes? Não desejava sacudir o jugo, e libertar-se de sua tirania? Pois, por que se perturba, 67. Mt 2:3 [E o rei Herodes, ouvindo isso, perturbou-se, e toda a Jerusalém, com ele.] 68. Sl 65:16 [Os céus são os céus do Senhor; mas a terra, deu-a ele aos filhos dos homens.] 69. Mt 2:3 [E o rei Herodes, ouvindo isso, perturbou-se, e toda a Jerusalém, com ele.] 234
sermão da epifania ou mostra perturbada, quando Herodes se perturba? Porque tão despótica como isto é a sujeição dos tristes povos debaixo do domínio de quem os governa, e mais quando são tiranos. Hão de fazer o que eles querem, e hão de querer o que eles fazem, ainda que lhes pese. Dizem que os que governam são espelho da república; não é assim, senão ao contrário. A república é o espelho dos que a governam. Porque, assim como o espelho não tem ação própria, e não é mais que uma indiferença de vidro, que está sempre exposta a retratar em si os movimentos de quem tem diante, assim o povo, ou república sujeita, se se move, ou não se move, é pelo movimento ou sossego de quem a governa. Se Herodes se não perturbara, não se havia de perturbar Jerusalém: perturbou-se porque ele se perturbou: Turbatus est Herodes, et omnis Jerosolyma cum illo. O perturbado foi um, e as perturbações foram duas: Uma em Herodes e outra em Jerusalém: em Herodes foi ação, em Jerusalém reflexo, como em espelho. Por isso o Evangelista exprimiu só a primeira: Turbatus est, e debaixo dela entendeu ambas. Assim que, todas as vezes que Jerusalém se inquieta, Herodes tem a culpa, e se acaso a não tem toda, tem a primeira. Et omnis Jerosolyma cum illo: ou com ele, porque ele faz a inquietação ou com ele, porque a manda; ou com ele, porque a consente, ou com ele, porque a dissimula, ou com ele, quando menos, porque, devendo e podendo, a não impede, mas sempre e de qualquer modo com ele: cum illo. De maneira, enfim, que na eleição destes eles consiste a paz, o sossego e o bom governo das conquistas. E este é o primeiro remédio do Evangelho, ou o primeiro Evangelho do remédio. O segundo remédio é que as congregações eclesiástiças daquele estado sejam compostas de tais sujeitos, que saibam dizer a verdade, e que a queiram dizer. Para Herodes responder à proposta e pergunta dos Magos, que fez? Congregans omnes principes sacerdotum, et scribas populi, sciscitabatur 235
sermões ab eis ubi Christus nasceretur.70 A proposta e pergunta era em que lugar havia de nascer o Messias, e para isso fez uma congregação ou junta, em que entraram as pessoas eclesiásticas de maior autoridade e letras que havia em Jerusalém. Era Herodes tirano, e contudo, mostrou estas duas grandes partes de príncipe que perguntava, e perguntava a quem havia de perguntar: as matérias eclesiástica aos eclesiásticos, e as das letras aos letrados, e destes aos maiores. Por isso compôs a congregação de sacerdotes e professores de letras, mas não de quaisquer sacerdotes, nem de quaisquer letrados, senão dos que no sacerdócio e na ciência, na sinagoga e no povo, tinham os primeiros lugares: Congregans omnes príncipes sacerdotum, et scribas populi. E que se seguiu desta eleição de pessoas tão acertada? Tudo o que se pretendia. O primeiro efeito, e muito notável, foi que, sendo tantos, todos concordaram. Raramente se vê uma junta em que não haja diversidade de pareceres, ainda contra a razão e verdade manifesta, principalmente quando se conhece a inclinação do rei, como aqui estava conhecida a de Herodes na sua perturbação; e, contudo, todos os desta grande junta concordaram na mesma resposta, todos alegaram o mesmo texto e todos o entenderam no mesmo sentido: At iIli dixerunt ei: ln Bethlehem Judae: sic enim scriptum est per projhetam: Ei tu Bethlehem terra Juda, etc.71 E porque todos concordaram sem discrepância, deste primeiro efeito se seguiu o segundo, e principalmente pretendido, que era encaminhar os Magos com certeza ao lugar do nascimento de Cristo, para que infalivelmente o achassem e adorassem, como acharam e 70. Mt 2:4 [E, congregados todos os príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo, perguntou-lhes onde havia de nascer o Cristo.] 71. Mt 2:5-6 [E eles lhe disseram: Em Belém da Judéia, porque assim está escrito pelo profeta: E tu, Belém, terra de Judá, de modo nenhum és a menor entre as capitais de Judá, porque de ti sairá o Guia que há de apascentar o meu povo de Israel.] 236
sermão da epifania adoraram. Tanto importa que semelhantes congregações sejam compostas de homens que tenham letras. Cuida-se cá que para aquelas partes bastam eclesiásticos que saibam a forma do batismo e a doutrina cristã, e não se repara que eles são os que nos púlpitos pregam de público, eles os que absolvem de secreto nos confessionários onde é maior o perigo e que eles, por disposição das leis reais, são os intérpretes das mesmas leis, de que dependem as liberdades de uns, as consciências de outros e a salvação de todos. E se estes, como sucede ou pode suceder, não tiveram mais letras que as do A B C, que conselhos, que resoluções, que sentenças hão de ser as suas? Pergunto: se os sacerdotes e letrados de Jerusalém se dividissem em opiniões, se uns dissessem que o Messias havia de nascer em Belém, outros em Nazaré, outros em Jericó, se uns voltassem para Galileia, outros para Judeia, outros para Sarnaria, que haviam de fazer os Magos? É certo que neste caso ou desesperados se haviam de tornar para as suas terras, como muitos se tornam, ou que, perseverando em buscar a Cristo, no meio de tanta confusão o não achariam, Uma das principais causas por que está Cristo tão pouco achado, ou porque está tão perdido naquelas conquistas, é pela insuficiência dos sujeitos eclesiásticos que lá se mandam. Cristo, uma vez que se perdeu, achou-se entre os doutores, e onde estes faltam, que lhe há de suceder? Entre doutores achou-se depois de perdido; onde eles faltam, perder-se-á depois de achado. E isto é o que vemos. Por isso Herodes, depois que fez aquela congregação de homens tão doutos, logo supôs que os Magos sem dúvida haviam de achar a Cristo: Ei cum inveneritis, renuntiate mihi. Este é, como dizia, o segundo remédio que nos descobre o Evangelho. E se acaso nos descontenta, por ser praticado de tão ruim autor como Herodes (sem advertir que muitas vezes os maus governam tão bem como os bons, e melhor que os muito bons) imitemos ao menos o exemplo 237
sermões do nosso grande conquistador el-rei Dom Manoel, de felicíssima memória, tão amplificador do seu império, como do de Cristo, de quem lemos que o primeiro sacerdote que enviou às conquistas foi o seu próprio confessor. Não fio a salvação daquelas almas senão de quem fiava a própria consciência, porque sabia que estava igualmente obrigado em consciência a tratar delas, e dos meios proporcionados à sua salvação. Mas, para que é recorrer a exemplo meramente humano, onde temos presente o do mesmo Rei e Salvador do Universo? No tempo do nascimento de Cristo dividiu-se o mundo em duas nações, em que se compreendiam todas: a judaica e a gentílica; e para o Senhor fundar em ambas a nova Igreja cristã, que vinha edificar e propagar, bem sabemos quais foram os sujeitos que escolheu. Aos pastores, que eram judeus, mandou um anjo: aos Magos, que eram gentios, mandou uma estrela. E por que estrelas e anjos entre todas as criaturas? Porque as estrelas são luz, os anjos são espíritos. Quem não tem luz, não pode guiar: quem não tem espírito, não pode converter. E nós queremos converter o mundo sem anjos e com trevas. Notou muito bem aqui a glosa, que assim o anjo como a estrela foram missionários trazidos do céu: e de lá era bem que viessem todos; mas já que os não podemos trazer do céu, como Cristo, por que não mandaremos os melhores ou menos maus da leira? O terceiro e último remédio, e que sendo um abraça muitos e que todos os que forem necessários para a boa administração e cultura daquelas almas, se lhes devem, não só conceder, mas aplicar efetivamente, sem os mesmos gentios, ou novamente cristãos, nem outrem por eles, o pedirem ou procurarem. Diz com advertência e mistério particular o nosso texto que, estando os Magos dormindo, se lhes deu a resposta do que haviam de fazer para se livrarem das mãos de Herodes: Ei responso acce pio in somnis ne redirent ad He-
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sermão da epifania rodem.72 Na palavra responso accepto reparo muito. Os Magos em Belém perguntaram alguma coisa? Pediram alguma coisa? Falaram alguma coisa? Ao menos no ponto particular de Herodes, sobre que foram respondidos, é certo que nem uma palavra só disseram. Pois, se não falaram, se não pediram, se não propuseram ou perguntaram, como se diz que foram respondidos: Responso accepto? Esse é o mistério e o documento admirável de Cristo a todos os reis que trazem gentios à fé. Os Magos eram gentios ou cristãos novamente convertidos da gentilidade, e os gentios ou cristãos novamente convertidos, onde há fé, razão, e justiça, hão de ser respondidos, sem eles falarem, hão de ser despachados, sem eles requererem, hão de ser remediados, sem eles pedirem. Não há de haver petição, e há de haver despacho, não há de haver requerimento, e há de haver remédio, não há de haver proposta e há de haver resposta: Responso accepto. Sim. Mas se eles não requerem, quem há de requerer por eles? Muito bom procurador: quem requereu neste caso. S. Jerônimo diz que o autor da resposta foi o mesmo Cristo por sua própria pessoa; Santo Agostinho diz que foi por medição e mistério de anjos, e tudo foi. Foi Cristo como verdadeiro rei, e foram os anjos como verdadeiros ministros. Nos outros casos, e com os outros vassalos, os reis e os ministros são os requeridos: neste caso e com esta gente, os reis e os ministros hão de ser os requerentes. Eles são os que lhes hão de requerer a fé, eles os que lhes hão de requerer a liberdade, eles os que lhes hão de requerer a justiça, eles, finalmente, os que lhes hão de requerer, negociar e fazer efetivo tudo quanto importar à sua conversão, quietação e segurança, sem que aos mesmos gentios, ou antes 72. Mt 2:12 [E, sendo por divina revelação avisados em sonhos para que não voltassem para junto de Herodes, partiram para a sua terra por outro caminho.] 239
sermões ou depois de convertidos, lhes custe o menor cuidado. Que cuidavam ou que faziam os Magos, quando foram respondidos? É circunstância muito digna de que a considerem os que têm a seu cargo este encargo: Et responso accepto in somnis. Os Magos estavam dormindo, bem ignorantes do seu perigo e bem descuidados do seu remédio, e no mesmo tempo o bom rei, e os bons ministros estavam traçando e dispondo os meios, não só da salvação de suas almas, senão da conservação, descanso e segurança de suas vidas. E se alguém me perguntar a razão desta diferença e da maior obrigação deste cuidado, acerca dos gentios e novos cristãos das conquistas, em respeito ainda dos mesmos vassalos portugueses e naturais, muito me espanto que haja quem a ignore. A razão é porque o reino de Portugal, enquanto reino e enquanto monarquia, está obrigado, não só de caridade, mas de justiça, a procurar efetivamente a conversão e salvação dos gentios, à qual muitos deles, por sua incapacidade e ignorância invencível, não estão obrigados. Tem esta obrigação Portugal enquanto reino, porque este foi o fim particular para que Cristo o fundou e instituiu, como consta da mesma instituição. E tem esta obrigação enquanto monarquia, porque este foi o intento e contrato com que os Sumos Pontífices lhe concederam o direito das conquistas, como consta de tantas bulas apostólicas. E como o fundamento e base do Reino de Portugal, por ambos os títulos, é a propagação da fé e conversão das almas dos gentios, não só perderão infalivelmente as suas todos aqueles sobre quem carrega esta obrigação, se se descuidarem ou não cuidarem muito dela, mas o mesmo reino e monarquia, tirada e perdida a base sobre que foi fundado, fará naquela conquista a ruína que em tantas outras partes tem experimentado, e no-lo tirará o mesmo Senhor que no-lo deu, como
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sermão da epifania a maus colonos: Auferetur a vobis regnum Dei, et dabitur genti facienti fructus ejus.73 Mas, para que é falar nem trazer à memória reino, quando se trata de remédio de tantos milhares de almas, cada uma das quais pesa mais que todo o reino? Tomemos o exemplo naquele Rei que hoje chamou os reis, e naquele Pastor que ontem chamou os pastores. Falando lsaías de Cristo como rei, diz que trazia o seu império ao ombro: Cujus imperium super humerum ejus:74 e falando S. Lucas do mesmo Cristo como Pastor, diz que foi buscar a ovelha perdida sobre os ombros: Imponii in humeros suos gaudens.75 Pois, um império sobre um ombro, e uma ovelha sobre ambos os ombros? Sim. Porque há mister mais ombros uma ovelha que um império. Não pesa tanto um império como uma ovelha. Para o império basta meio rei: para uma ovelha é necessário todo, E que pesando tanto uma só ovelha, que pesando tanto uma só alma, haja consciências eclesiásticas e seculares que tomem sobre seus ombros o peso da perdição de tantas mil? Venturoso Herodes, ou menos desventurado, que já de hoje em diante não serás tu o exemplo dos cruéis! Que importa que tirasse a vida Herodes a tantos inocentes, se lhes salvou as almas? Os cruéis e os tiranos são aqueles por cuja culpa se estão indo ao inferno tantas outras; e se um momento se dilatar o remédio das demais, lá irão todas. No céu viu S. João que estava as almas dos inocentes pedindo a Deus vingança do seu sangue:
73. Mt 21 :43 [Portanto, eu vos digo que o Reino de Deus vos será tirado e será dado a uma nação que dê os seus frutos.] 74. Is 9:6 [Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; e o principado está sobre os seus ombros; e o seu nome será Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz.] 75. Lc 15:5 [E, achando-a, a põe sobre seus ombros, cheio de júbilo.] 241
sermões Usquequo, Domine, non vindicas san guinem nostrum? 76 E se almas que estão no céu vendo e gozando a Deus, pedem vingança, tantas almas que estão ardendo no inferno, e arderão por toda a eternidade, que brados darão a Deus? As almas também tem sangue, que é o que Cristo derramou por elas, e que brados dará à Justiça Divina este divino sangue, quando tão ouvidos foram os do sangue de Abel?
viii Nos ecos destes mesmos brados queria eu ficasse suspensa a minha oração, mas não é bem que ela acabe em brados e clamores, quando o Evangelho nos mostra o céu tão propício, que se ouvem na terra os silêncios. Assim lhes aconteceu aos Magos, e assim espero eu me suceda a mim, pois sou tão venturoso como eles foram, que no fim da sua viagem acharam muito mais do que esperavam. Buscavam o Rei nascido: Ubi est qui natus est rex,77 e acharam o Rei nascido, e a Rainha Mãe: Ivenerunt puerum cum Maria Matre ejus.78 E como a soberana Mãe era a voz do rei na sua menoridade, e a volta que os Magos fizeram para as suas terras, correu por conta da mesma Senhora foi esta missão que tomou por sua, tão bem instruída, tão bem fundada, e tão gloriosa em tudo, que dela e das que dela se foram propagando, disse Salomão nos seus Cânticos: Emissiones tuae
76. Ap 6:1 O [E clamavam com grande voz, dizendo: Até quando, ó verdadeiro e santo Dominador, não julgas e vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?] 77. Mt 2:2 [e perguntaram: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? Porque vimos a sua estrela no Oriente e viemos a adorá-lo.] 78. Mt 2:11 [E, entrando na casa, acharam o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o adoraram; e, abrindo os seus tesouros, lhe ofertaram dádivas: ouro, incenso e mirra.] 242
sermão da epifania paradisus.79 Até agora, Senhora, porque as missões se não fizeram em nome e debaixo da real proteção de Vossa Majestade, os tormentos de pena e dano que aquelas almas padeceram se podiam chamar missões do inferno; agora as mesmas missões, por serem de Vossa Majestade, serão paraíso: Emissiones tuae paradisus. Assim o ficam esperando da real piedade, justiça e grandeza de Vossa Majestade, aquelas tão perseguidas e desamparadas almas, e assim o confiam e têm por certo os que, tendo-se desterrado da pátria por amor delas, padecem hoje na pátria tão indigno desterro. E para acabar como comecei, com a última cláusula do Evangelho, o que ele finalmente diz é que os Magos tornaram para a sua terra por outro caminho: Per aliam viam reversi sunt in regionem suam.80 A terra foi a mesma, mas o caminho diverso; e isto é o que só desejam os que não têm por suas outras terras mais que as daquela gentilidade, a cuja conversão e doutrina, por meio de tantos trabalhos, têm sacrificado a vida. Voltar para as mesmas terras, sim, que o contrário seria inconstância, mas em forma que o caminho seja tão diverso que triunfe e seja servido Cristo, e não Herodes. Se os Magos voltassem pelo mesmo caminho, triunfaria o tirano, perigaria Cristo; e os Magos, quando escapassem, não fariam o fruto que fizeram nas mesmas terras, convertendo-as, como as converteram todas, à fé e obediência do Rei que vieram adorar, e de cujos pés não levaram nem quiseram outro despacho. Tudo isto se conseguiu, e tão felizmente, e se conseguirá também agora com a mesma felicidade, se o oráculo for o mesmo. Mande o soberano oráculo tornem 79. Ct 4:13 [Os teus renovos são um pomar de romãs, com frutos excelentes: o cipreste e o nardo.] 80. Mt 2:12 [E, sendo por divina revelação avisados em sonhos para que não voltassem para junto de Herodes, partiram para a sua terra por outro caminho.] 243
sermões para a mesma região, e mande eficazmente que seja outro o caminho: Per aliam viam reversi sunt in regionem suam.
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Sermão xiv do Rosário
Na Bahia, à irmandade dos pretos de um Engenho em dia de S. João Evangelista, Ano de 1633.
Maria de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus.2 Mt, 1.
i Não é coisa nova, posto que grande e singular, que o Evangelista S. João receba em sua casa a Virgem Mãe de Deus, e Mãe sua. Nem é coisa nova que as festas do mesmo S. João as honre e autorize a Virgem Santíssima com a majestade e favores de sua presença. Nem é coisa nova, finalmente, que o que havia de ser panegírico do Evangelista, seja Sermão do Rosário. Tudo isto que já foi em diferentes dias, temos junto e concordado hoje no concurso da presente solenidade. Não é coisa nova que o Evangelista S. João receba em sua casa a que é Mãe de Deus e sua; porque naquele grande dia em que lhe coube por legado no testamento do Redentor do mundo, não com menor título que de Mãe, a que era Mãe do mesmo Cristo: Ecce Mater tua;3 logo então e desde a mesma 2. Mt 1[:16] [e Jacó gerou a José, marido de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama o Cristo.] 3. Jo 19:27 [Depois, disse ao discípulo: Eis aí tua mãe. Edesde aquela hora o discípulo a recebeu em sua casa.] 247
sermões hora recebeu S. João a Senhora em sua casa, para nela assistir e servir, como fez por toda a vida: Et ex illa hora accepit eam Discipulus in sua. E isto é o que torna a fazer hoje o mesmo evangelista; porque chamando-se em frase dos sagrados ritos casa própria de cada um dos Santos aquele dia que a Igreja dedicou à sua celebridade; neste dia e nesta casa recebe hoje S. João a Senhora, dando-lhe nela o lugar devido, que é o primeiro e principal. Nem é coisa nova que as festas de S. João as honre e autorize a Virgem Santíssima com a majestade e favores de sua presença; porque nas bodas de Caná de Galileia o ser S. João o Esposo, foi a razão de se achar ali a Senhora: Et erat Mater Jesu ibi.4 E se foi favor da sua piedade e assistência a conversão de água em vinho, não foi menor graça, ou milagre da Virgem das Virgens, que S. João, por imitar sua virginal pureza, renunciasse então o matrimônio, e o convertesse em celibato. Finalmente, não é coisa nova, que o que havia de ser panegírico do Evangelista, seja Sermão do Rosário, porque como se refere nas Histórias Dominicanas, indo o Patriarca S. Domingos para pregar de S. João em tal dia como hoje, ao tempo que recolhido a uma capela da mesma Igreja se estava encomendando a Deus, lhe apareceu a Virgem Maria, e lhe mandou que deixasse o Sermão que tinha meditado de S. João, e pregasse o seu Rosário. Fê-lo assim o grande Patriarca dos Pregadores, e o fruto do Sermão que pelo zelo e eficácia do Pregador sempre costumava ser grande, pela graça e virtude de quem o mandou pregar, foi naquela ocasião muito maior, e mais patente com igual proveito e admiração dos ouvintes. Mas que fará cercado das mesmas obrigações, tantas e tão grandes, quem não só falto de semelhante espírito, mas novo, ou noviço, no exercício e na arte, é esta a primeira vez 4. Jo 2:1 [E, ao terceiro dia, fizeram-se umas bodas em Caná da Galiléia; e estava ali a mãe de Jesus.] 248
sermão xiv do rosário que subido indignamente a tão sagrado lugar, há de falar dele em público?5 Vós, soberana Rainha dos Anjos e dos homens, e Mãe da Sabedoria incriada (a quem humildemente dedico as primícias daquelas ignorâncias que ainda se não podem chamar estudos, como única Protetora deles) pois o dia e assunto é, Senhora, de vossos maiores mistérios, vos dignais de me assistir com a luz ou sombra da graça com que a virtude do Altíssimo no primeiro de todos vos fez fecunda: Ave Maria.
ii Temos hoje (por outro modo do que já o disse) três dias em um dia, e três festas em uma festa: o dia e a festa de S. João, o dia e festa da Senhora do Rosário, e o dia e a festa dos Pretos seus devotos. E quando fora necessário termos também três Evangelhos; um só Evangelho que nos propõe a Igreja, qual é? Posto que largo em nomes e gerações, é tão breve e resumido no que finalmente vem a dizer, que todo se encerra na cláusula que tomei por tema: Maria de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus. Se o Sermão houvera de ser do Nascimento de Cristo, que é a solenidade do oitavário corrente, não podia haver outro texto, nem mais próprio do tempo, nem mais acomodado ao Mistério: mas havendo de pregar, não sobre este, senão sobre outros assuntos, e esses não-livres, senão forçados; e sendo os mesmos assuntos não menos que três, e todos três tão diversos, como os poderei eu fundar sobre a estreiteza de umas palavras, que só nos dizem que Jesus nasceu de Maria: Maria de qua natus est Jesus? Suposto pois que nem é lícito ao Pregador (se quer ser Pregador) apartar-se do tema, nem o tema nos oferece outra coisa mais que um Filho nascido de Maria; multiplicando 5. Foi o primeiro Sermão que o Autor pregou em público antes de ser Sacerdote. 249
sermões este nascimento em três nascimentos, este nascido em três nascidos, e este Filho em três filhos, todos três nascidos de Maria Santíssima; esta mesma será a matéria do Sermão, dividido também em três partes. Na primeira veremos com novo nascimento nascido de Maria a Jesus; na segunda com outro novo nascimento nascido de Maria a S. João; e na terceira, também com novo nascimento nascidos de Maria aos Pretos seus devotos. Deem-me eles principalmente a atenção que devem, e destes três nascimentos nascerão outros tantos motivos, com que reconheçam a obrigação que têm de amar, venerar, e servir a Virgem Senhora Nossa, como Mãe de Jesus, como Mãe de S. João, e como Mãe sua.
iii Primeiramente digo que temos hoje nascido de Maria a Cristo Senhor nosso, não como nasceu há três dias, mas com outro nascimento novo. E que novo nascimento é este? É o nascimento com que nasceu da mesma Mãe daqui a trinta e três anos, não em Belém, senão em Jerusalém. Isto é o que diz o nosso texto: e provo: Maria de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus. Maria da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo. Cristo quer dizer ungido, Jesus quer dizer Salvador. E quando foi Cristo Salvador, e quando foi ungido? Foi ungido na Encarnação, e foi Salvador na Cruz. Foi ungido na Encarnação, quando unindo Deus a si a Humanidade de Cristo, a exaltou sobre todas as criaturas, como diz Davi: Unxit te Deus, Deus tuus oleo laetitiae prae consortibus tuis.6 E foi Salvador na Cruz, quando por meio da morte, e pelo preço de seu Sangue salvou o gênero humano, como diz S. Paulo: Factus obediens usque; ad mortem, mortem autem crucis: propter quod et Deus exaltavit illum, et donavit 6. Sl 44:8 [Tu amas a justiça e aborreces a impiedade; por isso, Deus, o teu Deus, te ungiu com óleo de alegria, mais do que a teus companheiros.] 250
sermão xiv do rosário illi nomen, quod est super omne nomen, ut in nomine Jesu omne genuflectatur.7 Logo quando Cristo Senhor nosso nasceu em Belém, propriamente nasceu Cristo, mas não nasceu Jesus, nem Salvador: nasceu Cristo porque já estava ungido pela união Hipostática, com que a Pessoa do Verbo se uniu à Humanidade: e não nasceu Jesus, nem Salvador, porque ainda não tinha remido o mundo, nem o havia de remir e salvar senão em Jerusalém daí a trinta e três anos. Fala o profeta Isaías do parto virginal de Maria Santíssima (como notaram S. Gregório Nisseno, e S. João Damasceno) e diz assim: Antequam parturiret, peperit: antequam veniret partus ejus, peperit masculum.8 Na primeira cláusula diz que pariu a Senhora antes das dores do parto; que isso quer dizer: Antequam parturiret: e na segunda diz que pariu antes do parto: Antequam veniret partus ejus, peperit: Não é necessário que nós dificultemos o passo, porque o mesmo Profeta confessa que disse uma coisa inaudita, e que nunca se viu semelhante: Qui audivit unquam tale, et quis vidit huic simile? 9 Que a bendita entre todas as mulheres saísse à luz com o fruto bendito de seu ventre sem padecer dores, privilégio era devido à pureza virginal, com que o concebeu, e assim o confessa a nossa Fé. Mas que parisse antes do parto: Antequam veniret partus ejus: como se pode entender, senão supondo na mesma Senhora dois partos do mesmo Filho, e supondo também que o primeiro parto foi 7. Fl 2:8 [8-10] [e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou soberanamente e lhe deu um nome que é sobre todo o nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra.] 8. Is 66:7 [Antes que estivesse de parto, ela deu à luz; antes que lhe viessem as dores, ela deu à luz um filho.] 9. Is 66:8 [Quem jamais ouviu tal coisa? Quem viu coisas semelhantes? Poder-se-ia fazer nascer uma terra em um só dia? Nasceria uma nação de uma só vez? Mas Sião esteve de parto e já deu à luz seus filhos.] 251
sermões sem dores, e o segundo com dores? Assim foi, e assim o diz: quem? O nosso português Santo Antônio, que é bem preceda agora a todos os outros Doutores da Igreja, pois falamos na sua: Beatae Mariae duplex fuit partus, unus in carne, alius in spiritu. Partus carnis fuit virgineus, et omni gaudio plenus, quia peperit sine dolore gaudium Angelorum. Secundus partus fuit dolorosus, et omni amaritudine plenus, in Filii ejus passione, cujus animam pertransivit gladius. Sabeis por que faz menção Isaías de dois partos da Virgem Beatíssima, e no primeiro nega as dores, e no segundo não? A razão é (diz o Mestre Seráfico) porque este foi o modo e a diferença com que a Senhora pariu a seu bendito Filho não uma, senão duas vezes: a primeira vez sem dores, antes com júbilos de alegria, quando entre cantares de Anjos o pariu no Presépio: a segunda vez com dores, e cheia de amarguras, quando trespassada da espada de Simeão o tornou a parir ao pé da Cruz. Uma vez nascido Cristo em Belém, e outra vez nascido em Jerusalém: uma vez nascido no princípio da vida, e outra vez nascido no fim dela: uma vez trinta e três anos antes, outra vez trinta e três anos depois: que por isso o Profeta, falando deste segundo parto, disse advertidamente: Antequam veniret partus ejus: porque um parto depois do outro havia de tardar em vir tantos anos. E posto que bastava por prova da minha proposta a autoridade de tão grande intérprete das Escrituras como Santo Antônio, a quem por essa causa chamaram os Oráculos de Roma Arca do Testamento; diga-nos o mesmo o evangelista S. João com texto mais claro que o de Isaías. No Capítulo doze do seu Apocalipse viu S. João aquela mulher tão prodigiosa como sabida, a quem vestia o Sol, calçava a Lua, e coroavam as Estrelas: e diz que chegada a hora do parto, foram não só grandes, mas terríveis as dores com que pariu um Filho varão, o qual havia de ser Senhor do Mundo, e Governador de todas as gentes: Cruciabatur ut pariat, et peperit 252
sermão xiv do rosário filium masculum, quirecturus erat omnes gentes.10 Esta mulher prodigiosa, em cujo ornato se empenharam e despenderam todas as luzes do Céu, era a Virgem Santíssima: o Filho Senhor do mundo, e que havia de governar todas as gentes, era Cristo Governador do Universo, e Senhor dele. Mas se o parto da mesma Virgem foi isento de toda a dor e moléstia, que dores e que tormentos são estes com que agora S. João a viu parir, não outro, senão o mesmo Filho? A palavra Cruciabatur, que é derivada da Cruz, basta por comento de todo o texto. O Filho era o mesmo, e a Mãe a mesma, mas o parto da Mãe, e o nascimento do Filho não era o mesmo, senão muito diverso. Era o segundo nascimento do Filho, em que por modo superior a toda a natureza havia de nascer morrendo. E porque este segundo nascimento foi entre dores, tormentos, e afrontas, e com os braços pregados nos de uma Cruz, por isso a mesma Cruz do nascimento do Filho foi também a Cruz do parto da Mãe: Et cruciabatur ut pariat. Nasceu o Filho crucificado na sua Cruz, e pariu-o a Mãe crucificada na Cruz do Filho: e se perguntarmos (que é o que só nos resta) por que o Filho no segundo nascimento nasceu assim, e a Mãe o pariu do mesmo modo? A razão, como dizia ao princípio, não foi outra senão porque Cristo no primeiro parto nasceu propriamente Cristo, e neste segundo nasceu propriamente Jesus. Esta foi a diferença com que o Anjo anteontem anunciou aos Pastores o nascimento do mesmo Cristo: Quia natus est vobis hodie Salvator, qui est Christus:11 Alegrai-vos, porque hoje nasceu o Salvador, que é Cristo. Notai que não disse: Qui est Salvator, assim como disse: Qui 10. Ap 12:2-5 [E estava grávida e com dores de parto e gritava com ânsias de dar à luz.]; Ap 12:5 [E deu à luz um filho, um varão que há de reger todas as nações com vara de ferro; e o seu filho foi arrebatado para Deus e para o seu trono.] 11. Lc 2:11 [pois, na cidade de Davi, vos nasceu hoje o Salvador, que é Cristo, o Senhor.] 253
sermões est Christus: porque o menino nascido já era Cristo, mas ainda não era Salvador. Havia de ser Salvador, e para ser Salvador, nascia, mas ainda o não era. Cristo sim, Qui est Christus; porque já estava ungido na dignidade de Filho de Deus, mas na de Jesus, e de Salvador ainda não; porque essa não a havia de receber no Presépio, senão na Cruz: Factus obediens usque; ad mortem crucis, ut in nomine Jesu omne genuflectatur. E aqui o que propriamente nasceu Jesus, e não de outra Mãe, senão da mesma Virgem Maria: Maria de qua natus est Jesus.
iv O segundo filho da mesma Virgem Maria, e nascido também no Calvário, e com novo e segundo nascimento, foi São João. E que seria se disséssemos que também deste nascimento se verifica o nosso texto? O em que agora reparo nas palavras de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus, é que este vocatur parece impróprio, e este Christus supérfluo. O nome próprio do Filho de Deus, e Filho de Maria, é Jesus: este nome lhe foi posto no dia da Circuncisão, e assim o tinha revelado o Anjo antes de ser concebido: Vocatum est nomen ejus Jesus, quod vocatum est ab Angelo priusquam in utero conciperetur.12 Logo o vocatur aplicado não ao nome Jesus senão ao sobrenome Christus, parece impróprio: e o mesmo sobrenome Christus também parece supérfluo, porque só seria necessário para distinguir um Jesus de outro Jesus. Porventura há outro Jesus, e nascido de Maria, que se não chame Cristo? Digo que sim. Há um Jesus Filho de Maria, que se chama Cristo; e há outro Jesus também Filho de Maria, que se chama João. E por isso o Evangelista para 12. Lc 2:21 [E, quando os oito dias foram cumpridos para circuncidar o menino, foi-lhe dado o nome de Jesus, que pelo anjo lhe fora posto antes de ser concebido.] 254
sermão xiv do rosário distinguir um Jesus de outro Jesus, e um Filho de Maria de outro Filho de Maria, não supérflua, senão necessariamente acrescentou ao nome o sobrenome, e não só disse: Maria, da qual nasceu Jesus, senão: Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo. Quando o mesmo Cristo estava na Cruz, disse a sua Santíssima Mãe: Ecce filius tuus:13 estas palavras eram equívocas, e mais naturalmente se podiam entender do mesmo Cristo que as dizia, do que de outro por quem as dissesse. E como tirou o Senhor esta equivocação? Tirou-a com os olhos, e com a inclinação da cabeça, que só tinha livre, apontando para João. Bem. Mas por que não disse, este é outro filho que vos deixo em meu lugar, senão este é o vosso filho: Ecce filius tuus? Não há dúvida, responde Orígenes, que falando o Senhor por estes termos, quis significar declaradamente que ele e João não se distinguiam, e que João não era outro filho da Senhora, senão o mesmo Jesus, que ela gerara, e dela nascera. Notai as palavras, que não podem ser mais próprias, e a razão, que não pode ser mais subida: Nam si nullus est Mariae filius praeterquam Jesus, dixitque; Jesus: Ecce filius tuus: perinde est, ac si dixisset: hic est Jesus quem genuisti.14 Pois se Jesus e João eram dois, e tão infinitamente diversos; Jesus o Senhor, e João o servo: Jesus o Mestre, e João o Discípulo: Jesus o Criador; e João a criatura: Jesus o filho de Deus, e João o filho de Zebedeu: como era, ou como podia ser João não outro filho, senão o mesmo filho, nem outro Jesus, senão o mesmo Jesus que a Senhora gerara: Hic est Jesus quem genuisti? S. Pedro Damião reconhece aqui um mistério semelhante ao do Sacramento: mas eu, sem recorrer a milagre, entendo que tudo isto se decifra e veri13. Jo 19:27 [:26] [Ora, Jesus, vendo ali sua mãe e que o discípulo a quem ele amava estava presente, disse à sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho.] 14. Origines praefat. In Evangel. loan. 255
sermões fica com ser João o amado: Discipulus, quem diligebat.15 Era o amado? Logo era outro, e era o mesmo Jesus. Enquanto Jesus e João eram o mesmo por amor, eram um só Jesus: e enquanto João por realidade era outro, eram dois Jesus. Os Filósofos antigos, definindo a verdadeira amizade, qual naquele tempo era, ou qual devia ser, disseram: Amicus est alter ego: O amigo é outro eu. Logo enquanto o amigo é eu, Ego; eu e ele somos um: e enquanto ele é outro, Alter: ele e eu somos dois, mas ambos os mesmos, e isto é o que obrou sem milagre, por transformação recíproca, o amor de Jesus em João. A mesma antiguidade nos dará o exemplo. Depois da famosa vitória de Alexandre Magno contra el-rei Dario, foi trazida a Rainha Mãe diante do mesmo Alexandre, a cujo lado assistia seu grande privado Efestião. E como a Rainha fizesse a reverência a Efestião cuidando que ele era o Magno, por ser mais avultado de estatura, e avisada do seu erro, o quisesse desculpar, acudiu Alexandre, como refere Cúrcio, com estas palavras: Non errasti Mater; namque; et hic Alexander est: Não errastes, Senhora, porque este também é Alexandre. Assim o disse o Grande Monarca, mais como discípulo de Aristóteles, que como filho de Filipe. E se o amor (que eu aqui tenho por político e falso) ou fazia ou fingia que Alexandre e Efestião fossem dois Alexandres: Namque; et hic Alexander est; o amor verdadeiro e sobrenatural da parte de Cristo Divino, e da parte de João mais que humano, por que não fariam que Jesus e João fossem dois Jesus? Não há dúvida que naquele passo estavam dois Jesus no Calvário, um na Cruz, outro ao pé dela.
15. Jo 21:20 [E Pedro, voltando-se, viu que o seguia aquele discípulo a quem Jesus amava, e que na ceia se recostara também sobre o seu peito, e que dissera: Senhor, quem é que te há de trair?] 256
sermão xiv do rosário Quando Eliseu disse a Elias: Fiat in me duplex spiritus tuus:16 não me posso persuadir que lhe pedisse dobrado espírito do que era o seu; porque seria demasiada presunção de discípulo para mestre: o que quis dizer, foi que o espírito de Elias se dobrasse e multiplicasse em ambos, e que Elias o levasse, pois se ia, e o deixasse a Eliseu, pois ficava. E neste caso, se o espírito de Elias fosse com Elias, e ficasse com Eliseu, Elias porventura seria um só Elias? De nenhum modo, diz S. João Crisóstomo.17 Dobrou-se o espírito de Elias, e multiplicou-se em Eliseu como ele tinha pedido; mas então não houve um só Elias, senão dois Elias: Erat duplex Elias ille, et sursum Elias, et deorsum Elias. Arrebatou o carro de fogo a Elias, e no mesmo tempo e no mesmo lugar, diz Crisóstomo, se viram então dois Elias, um em cima, outro embaixo; um no ar, outra na terra; um no carro, outro ao pé dele: Et sursum Elias, et deorsum Elias. O mesmo se viu no nosso caso. O carro triunfal, em que o Redentor do mundo triunfou da morte, do pecado, e do Inferno, foi a Cruz: levantado nela o Senhor, partia-se o Mestre, e ficava o discípulo: mas como? Como Elias e Eliseu. E assim como Elias e Eliseu eram dois Elias; duplex Elias; assim Jesus e João eram dois Jesus; e assim como lá, um Elias se via em cima, outro embaixo, Et sursum Elias, et deorsum Elias; assim cá também um Jesus estava em cima, outro Jesus embaixo; um no ar outro na terra; um na Cruz, outro ao pé da Cruz. E para que ninguém duvidasse que o milagre com que Jesus se tinha dobrado e multiplicado em João, era por virtude e transformação do amor, o mesmo João advertidamente não se chamou aqui João, senão o amado: Cum vidisset Jesus 16. 1Rs 2:9 [Sucedeu, pois, que, havendo eles passado, Elias disse a Eliseu: Pede-me o que queres que te faça, antes que seja tomado de ti. E disse Eliseu: Peço-te que haja porção dobrada de teu espírito sobre mim.] 17. D. Cris. homil. de Elia. 257
sermões Matrem, et Discipulum stantem quem diligebat.18 Sendo pois João, por transformação do amor, outro Jesus, e Jesus e João dois Jesus, com razão acrescentou o evangelista ao nome de Jesus o sobrenome de Cristo: Jesus qui vocatur Christus; para distinguir um Jesus de outro Jesus. Nem basta por distinção o declarar que era Filho de Maria e de Maria nascera: Maria, de qua natus est: porque no mesmo lugar do Calvário, onde Cristo enquanto Jesus nasceu segunda vez de sua Santíssima Mãe (como dissemos, também S. João com segundo nascimento nasceu da mesma Senhora, sendo João desde aquele ponto filho de Maria: Ecce filius tuus: e Maria Mãe de João: Ecce Mater tua: e por isso no mesmo tempo e no mesmo lugar Mãe de dois Jesus: um Jesus que se chama João, e outro Jesus que se chama Cristo: De qua natus est Jesus, qui vocatur Christus).
v O terceiro nascimento de que também se verificam as mesmas palavras, é o dos Pretos, devotos da mesma Senhora, os quais também são seus filhos, e também nascidos entre as dores da Cruz. O Profeta Rei, falando da Virgem Maria, debaixo da metáfora de Jerusalém (a que muitas vezes é comparada, porque ambas foram morada de Deus) diz assim: Homo, et homo natus est in ea, et ipse fundavit eam Altissimus.19 Nasceu nela o homem, e mais o homem: e quem a fundou, foi esse mesmo Altíssimo. Estas segundas palavras declaram o sentido das primeiras, e de umas e outras se convence que o mesmo Deus que criou a Maria é o homem que nasceu de Maria. Enquanto homem nasceu dela: Homo 18. Jo 19:26 [Ora, Jesus, vendo ali sua mãe e que o discípulo a quem ele amava estava presente, disse à sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho.] 19. Sl 86:5 [E de Sião se dirá: Este e aquele nasceram ali; e o mesmo Altíssimo a estabelecerá.] 258
sermão xiv do rosário natus est in ea: e esse mesmo enquanto Deus a criou a ela: Et ipse fundavit eam Altissimus. Assim o diz e prova com evidência Santo Agostinho. Mas o Profeta ainda diz mais: porque não só diz que nasceu da Senhora esse homem, que enquanto Deus a criou, senão que nasceu dela o homem, e mais o homem: Homo et homo natus est in ea. Se um destes homens nascidos de Maria é Deus, o outro homem também nascido de Maria quem é? É todo o homem que tem a fé e conhecimento de Cristo, de qualquer qualidade, de qualquer nação, e de qualquer cor que seja, ainda que a cor seja tão diferente da dos outros homens, como é a dos Pretos. Assim o diz o mesmo texto tão claramente, que nomeia os mesmos Pretos por sua própria nação, e por seu próprio nome: Memor ero Raab, et Babylonis scientium me: Ecce alienigenae, et Tyrus, et populus Aethiopum hii fuerunt illic.20 Nasceram da Mãe do Altíssimo não só os da sua nação, e naturais de Jerusalém, a que é comparada, senão também os estranhos e os gentios, Alienigenae. E que gentios são estes? Raab; os Cananeus que eram brancos: Babylonis: os Babilônios que também eram brancos: Tyrus: os Tírios que eram mais brancos ainda: e sobre todos, e em maior número que todos: Populus Aethiopum: o povo dos Etíopes, que são os Pretos. De maneira que vós os Pretos, que tão humilde figura fazeis no mundo, e na estimação dos homens, por vosso próprio nome, e por vossa própria nação, estais escritos e matriculados nos livros de Deus, e nas Sagradas Escrituras: e não com menos título, nem com menos foro, que de Filhos da Mãe do mesmo Deus: Et Populus Aethiopum hii fuerunt illic. E posto que o texto é tão claro e literal que não admite dúvida, ouçamos o comento de S. Tomás,21 Arcebispo de 20. Sl 3:4 [Dentre os que me conhecem, farei menção de Raabe e de Babilônia; eis que da Filístia, e de Tiro, e da Etiópia, se dirá: Este é nascido ali.] 21. D. Tomás a Villanova. 259
sermões Valença: Aethiopes non abiicit virgo decora, sed amplectitur ut parvulos, diligit ut filios. Sciant ergo ipsam matrem etenim quia Altissimi mater est, Aethiopis matrem nominari non dedignatur. O Profeta pôs no último lugar os Etíopes e os Pretos; porque este é o lugar que lhes dá o mundo, e a baixa estimação com que são tratados dos outros homens, filhos de Adão como eles. Porém a Virgem Senhora, sendo Mãe do Altíssimo, não os despreza, nem se despreza de os ter por filhos; antes porque é Mãe do Altíssimo, por isso mesmo se preza de ser também sua Mãe: Etenim quia Altissimi mater est, Aethiopis matrem nominari non dedignatur. Saibam pois os Pretos, e não duvidem que a mesma Mãe de Deus é Mãe sua: Sciant ergo ipsam matrem: e saibam que com ser uma Senhora tão soberana, é Mãe tão amorosa, que assim pequenos como são, os ama e tem por filhos: Amplectitur ut parvulos, diligit ut filios. Até aqui Santo Tomás. E se me perguntarem os curiosos quando alcançaram os Pretos esta dignidade de filhos da Mãe de Deus, respondo que no monte Calvário, e ao pé da Cruz no mesmo dia, e no mesmo lugar em que o mesmo Cristo enquanto Jesus, e enquanto Salvador nasceu com segundo nascimento da Virgem Maria: Maria de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus. Este parece o ponto mais dificultoso desta terceira proposta. Mas assim o diz com propriedade e circunstância admirável o mesmo texto de Davi. Porque os Etíopes que no corpo do Salmo se chamam nomeadamente filhos da Senhora, no título do mesmo Salmo se chamam filhos de Coré: In finem filiis Core pro arcanis. Esta palavra pro arcanis, nota e manda advertir que se encerra aqui um grande mistério. E que mistério tem chamarem-se estes filhos da Virgem Maria filhas também de Coré? Santo Agostinho, na exposição do mesmo Salmo: Magni Sacramenti est, ut dicantur filii Core, quia Core interpretatur Calvaria. Ergo filii passionis illius, filii redempti sanguine illius, filii Crucis illius. 260
sermão xiv do rosário Coré, na língua Hebreia, quer dizer Calvário, e chamam-se filhos do Calvário, e filhos da Paixão de Cristo, e filhos da sua Cruz os mesmos que neste texto se chamam nomeadamente filhos da Virgem Maria: porque quando no Calvário e ao pé da Cruz nasceu da Virgem Maria com segundo nascimento seu benditíssimo Filho enquanto Jesus e Salvador do mundo, então nasceram também com segundo nascimento da mesma Senhora todos os outros filhos das outras nações que o Profeta nomeia, e entre eles com tão especial menção os Etíopes, que são os Pretos: Et populus Aethiopum hii fuerunt illic. De sorte que assim como no Calvário e ao pé da Cruz nasceu de Maria com segundo nascimento Cristo, e assim como no Calvário e ao pé da Cruz nasceu de Maria com segundo nascimento S. João, assim ao pé da Cruz nasceram também com segundo nascimento da mesma Virgem Maria os Pretos, verificando-se de todos os três nascimentos, por diferente modo, o texto no nosso tema: Maria, de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus. Estou vendo que cuidam alguns que são isto encarecimentos e lisonjas daquelas com que os Pregadores costumam louvar os devotos nos dias da sua festa. Mas é tanto pelo contrário, que tudo o que tenho dito, é verdade certa e infalível, e não com menor certeza que de Fé Católica. Os Etíopes de que fala o texto de Davi, não são todos os Pretos universalmente, porque muitos deles são gentios nas suas terras; mas fala somente daqueles de que eu também falo, que são os que por mercê de Deus, e de sua Santíssima Mãe, por meio da Fé e conhecimento de Cristo, e por virtude do Batismo são Cristãos. Assim o notou o mesmo Profeta no mesmo texto: Memor ero Raab, et Babylonis scientium me, et Populus Aethiopum, hii fuerunt illic. Naquele scientium me está a diferença de uns a outros. E por quê, ou como? Porque todos os que têm a Fé e conhecimento de Cristo, e são Cristãos, são membros de Cristo: e os que são membros 261
sermões de Cristo não podem deixar de ser filhos da mesma Mãe, de que nasceu Cristo: De qua natus est Jesus, qui vocatur Christus. Que sejam verdadeiramente membros de Cristo, é proposição expressa de S. Paulo não menos que em três lugares. Deixo os dois, e só repito do Capítulo doze aos Coríntios: Sicut enim corpus unum est, et membra habet multa: omnia autem membra corporis, cum sint multa, unum tamen corpus sunt; ita et Christus. Etenim in uno Spiritu omnes nos in unum corpus baptizati sumus.22 Assim como o corpo tem muitos membros, e sendo os membros muitos, o corpo é um só; assim (diz S. Paulo) sendo Cristo um, e os Cristãos muitos, de Cristo e dos Cristãos se compõe um só corpo: porque todos os Cristãos, por virtude da Fé e do Batismo, são membros de Cristo. E porque não cuidassem, os que são fiéis e senhores, que os Pretos, por terem sido gentios e serem cativos, são de inferior condição, acrescenta o mesmo S. Paulo, que isto tanto se entende dos Hebreus, que eram os fiéis, como dos gentios; e tanto dos cativos e dos escravos, como dos livres e dos senhores: Etenim omnes in unum corpus baptizati sumus, sive Judaei, sive gentiles, sive servi, sive liberi.23 E como todos os Cristãos, posto que fossem gentios, e sejam escravos, pela Fé e Batismo estão incorporados em Cristo, e são membros de Cristo; por isso a Virgem Maria, Mãe de Cristo, é também Mãe sua; porque não seria Mãe de todo Cristo se não fosse Mãe de todos seus membros. Excelentemente Guilhermo Abade:24 In uno Salvatore omnium Jesu, plurimos Maria peperit ad salutem. Eo ipso quod mater est capitis, 22. 1Cor 12:12 [Porque, assim como o corpo é um e tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos, são um só corpo, assim é Cristo também.] 23. 1Cor 12:13 [Pois todos nós fomos batizados em um Espírito, formando um corpo, quer judeus, quer gregos, quer servos, quer livres, e todos temos bebido de um Espírito.] 24. Guillielmus Abbas. 262
sermão xiv do rosário multorum membrorum mater est. Mater Christi Mater est membrorum Christi, quia caput et corpus unus est Christus. Não se poderá dizer com melhores palavras, nem mais próprias; mas eu quero que no-lo diga com as suas, e nos feche todo este discurso a Escritura Sagrada. Quando Nicodemos de Mestre da lei se fez discípulo de Cristo, disse-lhe o Senhor três coisas notáveis. A primeira, que para ele, Nicodemos, e qualquer outro se salvar, era necessário nascer de novo: Nisi quis renatus fueri denuo, non potest videre regnum Dei.25 A segunda, que ninguém sobe ao Céu, senão quem desceu do Céu: Nemo ascendit in Caelum, nisi qui descendit de Caelo: A terceira, que para isto se conseguir, havia de morrer em uma Cruz o mesmo Cristo: Oportet exaltari Filium hominis. Se o texto se fizera para o nosso caso, não pudera vir mais medido com todas suas circunstâncias. Quanto à primeira, replicou Nicodemos, dizendo: Quomodo potest homo nasci, cum senex sit? Numquid potest in ventrem matris suae iterato introire, et renasci? Como é possível que um homem velho, como eu sou, haja de nascer de novo? Porventura há de tornar a entrar no ventre de sua mãe para nascer outra vez? Pareceu-lhe ao Doutor que esta instância era muito forte; mas o Divino Mestre lhe ensinou que este segundo e novo nascimento era por virtude do Batismo, sem o qual ninguém se pode salvar: Nisi quis renatus fuerit ex aqua et Spiritu Sancto, non potest introire in regnum Dei. E quanto à mãe, de que haviam de tornar a nascer os que assim fossem regenerados, acrescentou o mesmo Senhor que essa mãe era a mesma Virgem Maria, Mãe sua. Isto querem dizer as segundas palavras de Cristo, posto que o não pareça, nem até agora se tenha reparado nelas. Quando o Senhor disse que ninguém sobe ao Céu senão quem desceu do 25. Jo 3:3 [Jesus respondeu e disse-lhe: Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus.] 263
sermões Céu, juntamente declarou que este que desceu do Céu era o mesmo Cristo, filho da Virgem: Nemo ascendit in Caelum, nisi qui descendit de Caelo, Filius hominis, qui est in Caelo. Pois porque Cristo desceu do Céu, por isso todos os que sobem ao Céu desceram também do Céu? Sim. Porque ninguém pode subir ao Céu, senão incorporando-se com Cristo, como todos nos incorporamos com ele, e nos fazemos membros do mesmo Cristo por meio da Fé e do Batismo; donde se seguem duas coisas: a primeira, que assim como ele desceu do Céu, assim nós, por sermos membros seus, também descemos nele, e com ele: Nemo ascendit in Caelum, nisi qui descendit de Caelo. A segunda, que assim como ele desceu do Céu, fazendo-se Filho da Virgem Maria: Filius hominis, qui est in Caelo, assim nós também ficamos sendo filhos da mesma Virgem, porque somos membros verdadeiros do verdadeiro Filho que dela nasceu; e finalmente, porque este segundo e novo nascimento não foi o de Belém, senão o de Jerusalém; nem o do Presépio, senão o do Calvário, por isso conclui o Senhor, que para este segundo nascimento se conseguir, era necessário que ele morresse na Cruz: Oportet exaltari Filium hominis. Vejam agora os Pretos se por todos os títulos ou circunstâncias de Etíopes, de batizados, de nascidos com segundo nascimento, de nascidos no Calvário, e nascidos não de outra Mãe, senão da mesma Mãe de Jesus, se verifica também deles, como membros de Cristo, o nascimento com que o mesmo Cristo segunda vez nasceu de Maria: Maria, de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus.
vi Parece-me que tenho provado os três nascimentos que prometi. E posto que todos três sejam mui conformes às circunstâncias do tempo: o de Cristo, porque continuamos a oitava do seu nascimento: o de S. João, porque estamos 264
sermão xiv do rosário no seu próprio dia; e o dos Pretos, porque celebramos com eles a devoção da Virgem Santíssima Mãe de Cristo, Mãe de S. João, e Mãe sua: sobre estas três grandes propriedades temos ainda outras três muito mais próprias: e quais são? Que unidos estes três nascimentos em um mesmo intento, todos e cada um deles se ordenam a declarar e persuadir a devoção do Rosário; e do Rosário particularmente dos Pretos; e dos Pretos em particular que trabalham neste e nos outros Engenhos. Não são estas as circunstâncias mais individuais do lugar, das pessoas, e da festa e devoção que celebramos? Pois todas elas nascem daqueles três nascimentos. O novo nascimento dos mesmos Pretos, como filhos da Mãe de Deus, lhes mostra a obrigação que têm de servir, venerar e invocar a mesma Senhora com o seu Rosário. O novo nascimento de Cristo os persuade a que sem embargo do contínuo e grande trabalho em que estão ocupados, nem por isso se esqueçam da soberana Mãe sua, e de lhe rezar o Rosário, ao menos parte, quando não possam todo. E finalmente, o novo nascimento de S. João lhes ensina quais são, entre os mistérios do Rosário, os que mais pertencem ao seu estado, e com que devem aliviar, santificar, e oferecer à Senhora o seu mesmo trabalho. Este é o fim de quanto tenho dito, e me resta dizer: e este também o fruto de que mais serve, e agrada a Virgem do Rosário, e com que haverá por bem festejado o seu dia. E porque agora falo mais particularmente com os Pretos, agora lhes peço mais particular atenção. Começando pois pelas obrigações que nascem do vosso novo e tão alto nascimento, a primeira e maior de todas é que deveis dar infinitas graças a Deus por vos ter dado conhecimento de si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e vós vivíeis como gentios, e vos ter trazidos a esta, onde instruídos na Fé, vivais como Cristãos, e vos salveis. Fez Deus tanto caso de vós, e disto mesmo que vos digo, que mil anos antes de vir ao mundo, o mandou escrever 265
sermões nos seus livros, que são as Escrituras Sagradas. Virá tempo, diz Davi, em que os Etíopes (que sois vós) deixada a gentilidade e idolatria, se hão de ajoelhar diante do verdadeiro Deus: Coram illo procident Aethiopes:26 e que farão assim ajoelhados? Não baterão as palmas como costumam, mas fazendo oração, levantarão as mãos ao mesmo Deus: Aethiopia praeveniet manus ejus Deo.27 E quando se cumpriram estas duas profecias, uma do Salmo setenta e um, e outra do Salmo sessenta e sete? Cumpriram-se principalmente depois que os Portugueses conquistaram a Etiópia ocidental, e estão-se cumprindo hoje mais e melhor que em nenhuma outra parte do mundo nesta da América, aonde trazidos os mesmos Etíopes em tão inumerável número, todos com os joelhos em terra, e com as mãos levantadas ao Céu, creem, confessam, e adoram no Rosário da Senhora todos os Mistérios da Encarnação, Morte e Ressurreição do Criador e Redentor do mundo, como verdadeiro Filho de Deus e da Virgem Maria. Assim como Deus na Lei da Natureza escolheu a Abraão, e na Escrita a Moisés, e na da Graça a Saulo, não pelos serviços que lhe tivessem feito, mas pelos que depois lhe haviam de fazer, assim a Mãe de Deus antevendo esta vossa fé, esta vossa piedade, e esta vossa devoção, vos escolheu de entre tantos outros de tantas e tão diferentes nações, e vos trouxe ao grêmio da Igreja, para que lá, como vossos Pais, vos não perdêsseis, e cá, como filhos seus, vos salvásseis. Este é o maior e mais universal milagre de quantos faz cada dia, e tem feito por seus devotos a Senhora do Rosário. Falando o Texto Sagrado dos filhos de Coré, que, como já dissemos, são os filhos da Senhora nascidos no Calvário, diz que perecendo seu pai eles não pereceram, e que isto 26. Sl 71:9 [Curvem-se diante dele os habitantes do deserto, e os seus inimigos lambam o pó.] 27. Sl 67:32 [Embaixadores reais virão do Egito; a Etiópia cedo estenderá para Deus as suas mãos.] 266
sermão xiv do rosário foi um grande milagre: Factum est grande miraculum, ut Core pereunte, filii illius non perirent.28 Não perecerem, nem morrerem os filhos quando perecem, e morrem os pais, é coisa muito natural, antes é lei ordinária da mesma natureza, porque se com os pais morreram juntamente os filhos, acabar-se-ia o mundo. Como diz logo o Texto Sagrado, que não morrerem e perecerem os filhos de Coré, quando morreu e pereceu seu pai, não só foi milagre, senão um grande milagre: Factum est grande miraculum? Ouvi o caso todo, e logo vereis em que consistiu o milagre e sua grandeza. Caminhando os filhos de Israel pelo deserto em demanda da terra de Promissão, rebelaram-se contra Deus três cabeças de grandes famílias, Datã, Abirão e Coré: e querendo a Divina justiça castigar exemplarmente a atrocidade deste delito, abriu-se subitamente a terra, tragou vivos aos três delinquentes, e em um momento todos três, com portento nunca visto, foram sepultados no inferno. Houve porém neste caso uma diferença ou exceção muito notável, e foi que com Datã e Abirão pereceram juntamente, e foram também tragados da terra e sepultados no inferno seus filhos; mas os de Coré não: e este é o que a Escritura chama grande milagre: Factum est grande miraculum, ut Core pereunte, filii illius non perirent. Abrir-se a terra não foi milagre? Sim, foi: serem tragados vivos os três delinquentes, foi outro milagre? Também: irem todos em corpo e alma ao inferno antes do dia do Juízo, não foi terceiro milagre? Sim, e muito mais estupendo. E contudo o milagre que a Escritura Sagrada pondera e chama grande milagre, não foi nenhum destes, senão o perecer Coré e não perecerem seus filhos; porque o maior milagre e a mais extraordinária mercê que Deus pode fazer aos filhos 28. Nm 26:10 [:10-11] [e a terra abriu a sua boca e os tragou com Corá, quando morreu a congregação; quando o fogo consumiu duzentos e cinquenta homens, e foram por sinal. Mas os filhos de Corá não morreram.] 267
sermões de pais rebeldes ao mesmo Deus, é que quando os pais se condenam, e vão ao inferno, eles não pereçam, e se salvem. Oh! se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e a sua Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre! Dizei-me: vossos pais, que nasceram nas trevas da gentilidade, e nela vivem e acabam a vida sem lume da Fé, nem conhecimento de Deus, aonde vão depois da morte? Todos, como já credes e confessais, vão ao inferno, e lá estão ardendo e arderão por toda a eternidade. E que perecendo todos eles, e sendo sepultados no inferno como Coré, vós, que sois seus filhos, vos salveis, e vades ao Céu? Vede se é grande milagre da Providência e Misericórdia Divina: Factum est grande miraculum, ut Core pereunte, filii illius non perirent. Os filhos de Datã e Abirão pereceram com seus pais, porque seguiram com eles a mesma rebelião e cegueira; e outro tanto vos poderá suceder a vós. Pelo contrário, os filhos de Coré, perecendo ele, salvaram-se, porque reconheceram, veneraram, e obedeceram a Deus; e esta é a singular felicidade do vosso estado, verdadeiramente milagroso. Só resta mostrar-vos que este grande milagre, como dizia, é milagre do Rosário, e que esta eleição e diferença tão notável a deveis à Virgem Santíssima vossa Mãe, e por ser Mãe vossa. Isaac, filho de Abraão (de quem vossos antepassados tomaram por honra a divisa da circuncisão, que ainda conservam, e do qual muitos de vós descendeis por via de Ismael, meio-irmão do mesmo Isaac); este Isaac, digo, tinha dois filhos, um chamado Jacó, que levou a bênção do Céu, e outro chamado Esaú, que perdeu a mesma bênção. Tudo isto sucedeu em um mesmo dia, em que Esaú andava pelos matos armado de arco e flechas, como andam vossos pais por essas brenhas da Etiópia; e pelo contrário, Jacó estava em casa de seu pai e de sua mãe, como vós hoje 268
sermão xiv do rosário estais na casa de Deus e da Virgem Maria. E por que levou a bênção Jacó, e a perdeu Esaú? Porque concorreram para a felicidade de Jacó duas coisas, ou duas causas, que a Esaú faltaram ambas. A primeira foi porque Rebeca (que era o nome da mãe) não amava a Esaú, senão a Jacó, e fez grandes diligências, e empregou toda a sua indústria em que ele levasse a bênção. A segunda, porque, estando duvidoso o Pai se lhe daria a bênção ou não, sentiu que os vestidos de Jacó lhe cheiravam a rosas e flores, e tanto que sentiu este cheiro e esta fragrância, logo lhe deitou a bênção. Assim o nota expressamente o texto: Statimque; ut sensit vestimentorum illius fragrantiam, benedicens illi, ait: Ecce odor filii mei, sicut odor agri pleni, cui benedixit Dominus: del tibi Deus de rore Caeli, etc.29 Uma e outra circunstância, assim da parte da mãe como do pai, foram admiráveis, e por isso misteriosas. Da parte da mãe, que sendo Jacó e Esaú irmãos, amasse com tanta diferença a Jacó; e da parte do pai, que um acidente que parecia tão leve, como o cheiro das flores, lhe tirasse toda a dúvida, e fosse o último motivo de lhe dar a bênção. Mas assim havia de ser, para que o mistério se cumprisse com toda a propriedade nas figuras e ações que o representavam. Isaac significava a Deus, Rebeca a Virgem Mãe, Jacó os seus filhos escolhidos, que sois vós; e Esaú os reprovados, que são os que, sendo do vosso mesmo sangue, e da vossa mesma cor, não alcançaram a bênção que vós alcançastes. Para que entendais que toda esta graça do Céu a deveis referir a duas causas: a primeira, ao amor e piedade da Virgem Santíssima, vossa Mãe; a segunda, à devoção do seu Rosário, que é o cheiro das rosas e flores, que tanto enlevam e agradam a Deus. 29. Gn 27:27 [:27-28] [E chegou-se e beijou-o. Então, cheirou o cheiro das suas vestes, e abençoou-o, e disse: Eis que o cheiro do meu filho é como o cheiro do campo, que o Senhor abençoou. Assim pois, te dê Deus do orvalho dos céus, e das gorduras da terra, e abundância de trigo e de mosto.] 269
sermões Dos sacrifícios antigos, quando Deus os aceitava, diz a Sagrada Escritura que lhe agradava muito o cheiro e suavidade deles: Odoratus est Dominus odorem suavitatis.30 E a razão era porque naqueles sacrifícios se representavam os mistérios da vida e da morte de seu benditíssimo Filho. E como na devoção do Rosário se contém a memória e consideração dos mesmos mistérios, este é o cheiro e fragrância que tanto nele agrada, e tão aceito é a Deus. Em vós, antes de serdes Cristãos, somente era futuro este cheiro das flores do Rosário, que hoje é presente, como também eram futuros naquele tempo os mistérios de Cristo: mas assim como o merecimento destes mistérios antes de serem, somente porque haviam de ser, davam eficácia àqueles sacrifícios; assim a vossa devoção do Rosário futura, e quando ainda não era, só porque Deus e sua Mãe a anteviram com a aceitação e agrado que dela recebem, vos preferiram e antepuseram aos demais das vossas nações, e vos tiveram por dignos da bênção que hoje gozais, tanto maior e melhor que a de Jacó quanto vai da terra ao Céu. Para que todos conheçais o motivo principal da vossa felicidade, e a obrigação em que ela vos tem posto de não faltar a Deus, e a sua Santíssima Mãe com este quotidiano tributo da vossa devoção.
vii Estou vendo porém que o vosso contínuo trabalho e exercício pode parecer ou servir de escusa ao descuido dos menos devotos. Direis que estais trabalhando de dia e de noite em um Engenho, e que as tarefas multiplicadas umas sobre outras (que talvez entram e se penetram com os Dias Santos) 30. Gn 2:21 [E o Senhor cheirou o suave cheiro e disse o Senhor em seu coração: Não tornarei mais a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice; nem tornarei mais a ferir todo vivente, como fiz.] 270
sermão xiv do rosário vos não deixam tempo nem lugar para rezar o Rosário. Mas aqui entra o novo nascimento de Cristo, segunda vez nascido no Calvário, para com seu divino exemplo e imitação refutar a fraqueza desta vossa desculpa, e vos ensinar como no meio do maior trabalho vos não haveis de esquecer da devoção de sua Mãe, pois o é também vossa, oferecendo-lhe ao menos alguma parte, quando comodamente não possa ser toda. Davi (aquele Santo Rei, que também teve netos na Etiópia, filhos de seu filho Salomão e da rainha Sabá) entre os Salmos que compôs, foram três particulares, aos quais deu por título Pro torcularibus,31 que em frase do Brasil quer dizer, para os Engenhos. Este nome torcularia, universalmente tomado, significa todos aqueles lugares e instrumentos em que se espreme e tira o sumo dos frutos, como em Europa o vinho e o azeite, que lá se chamam lagares; e porque estes, em que no Brasil se faz o mesmo às canas doces, e se espreme, coze e endurece o sumo delas, têm maior e mais engenhosa fábrica, se chamaram vulgarmente Engenhos. Se perguntarmos, pois, qual foi o fim e intento de Davi em compor e intitular aqueles Salmos nomeadamente para estas oficinas, respondem os Doutores Hebreus, e com eles Paulo Burgense, que o intento que teve o Santo Rei, e fez se praticasse em todo o povo de Israel, foi que os trabalhadores das mesmas oficinas ajuntassem o trabalho com a oração, e em lugar de outros cantares com que se costumavam aliviar, cantassem Hinos e Salmos; e pois recolhiam e aproveitavam os frutos da terra, não fossem eles estéreis, e louvassem ao Criador que os dá. Notável exemplo por certo, e de suma edificação, que entre os grandes negócios e governo da Monarquia tivesse um Rei estes cuidados! E que confusão, pelo contrário, será para os que se chamam senhores de 31. Sl 8:1 [Ao mestre do coro. Segundo a melodia do cântico “Os Lagares”… Salmo. De Davi.] 271
sermões Engenho, se atentos somente aos interesses temporais, que se adquirem com este desumano trabalho, dos trabalhadores seus escravos, e das almas daqueles miseráveis corpos, tiverem tão pouco cuidado, que não tratem de que louvem e sirvam a Deus, mas nem ainda, de que o conheçam? Tornando aos Salmos compostos para os Engenhos (que depois veremos, porque foram três), declara Davi no título do último quem sejam os operários destas trabalhosas oficinas, e diz que são os filhos de Coré: Pro torcularibus filiis Core.32 Segundo a propriedade da história, já dissemos que os filhos de Coré são os Pretos filhos da Virgem Santíssima, e devotos do seu Rosário. Segundo a significação do nome, porque Coré na língua Hebraica significa Calvário, diz Hugo Cardeal que são os imitadores da Cruz e Paixão de Cristo crucificado: Filiis Core, id est, imitatoribus Christi in loco Calvariae crucifixi. Não se pudera, nem melhor nem mais altamente, descrever que coisa é ser escravo em um Engenho do Brasil. Não há trabalho nem gênero de vida no mundo mais parecido à Cruz e Paixão de Cristo que o vosso em um destes Engenhos. O fortunati nimium sua si bona norint! Bem-aventurados vós se soubéreis conhecer a fortuna do vosso estado, e com a conformidade e imitação de tão alta e divina semelhança aproveitar e santificar o trabalho! Em um Engenho sois imitadores de Cristo crucificado: Imitatoribus Christi crucifixi, porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua Cruz, e em toda a sua Paixão. A sua Cruz foi composta de dois madeiros, e a vossa em um Engenho é de três. Também ali não faltaram as canas, porque duas vezes entraram na Paixão: uma vez servindo para o cetro de escárnio, e outra vez para a esponja em que lhe deram o fel. A Pai32. Sl 83:1 [Ao mestre do coro. Segundo a melodia de “Os Lagares”… Dos filhos de Coré. Salmo.] 272
sermão xiv do rosário xão de Cristo parte foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e vós famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós mal-tratados em tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, que se for acompanhada de paciência, também terá merecimento de martírio. Só lhe faltava à Cruz, para a inteira e perfeita semelhança, o nome de Engenho; mas este mesmo lhe deu Cristo, não com outro, senão com o próprio vocábulo. Torcular se chama o vosso Engenho, ou a vossa Cruz, e a de Cristo, por boca do mesmo Cristo, se chamou também Torcular: Torcular calcavi solus.33 Em todas as intenções e instrumentos de trabalho parece que não achou o Senhor outro que mais parecido fosse com o seu, que o vosso. A propriedade e energia desta comparação é porque no instrumento da Cruz, e na oficina de toda a Paixão, assim como nas outras em que se espreme o sumo dos frutos, assim foi espremido todo o Sangue da Humanidade sagrada: Eo quod sanguis ejus ibi fuit expressus, sicut sanguis uvae in torculari, diz Lirano: et hoc in spineae coronae impositione, in flagellatione, in pedum, et manuum confixione, et in lateris apertione. E se então se queixava o Senhor de padecer só, Torcular calcavi solus; e de não haver nenhum dos gentios que o acompanhasse em suas penas, Et de gentibus non est vir mecum,34 vede vós quanto estimará agora que os que ontem foram gentios, conformando-se com a vontade de Deus na sua sorte, lhe façam por imitação tão boa companhia! 33. Is 63:3 [Eu sozinho pisei no lagar, e dos povos ninguém se achava comigo; e os pisei na minha ira e os esmaguei no meu furor; e o seu sangue salpicou as minhas vestes, e manchei toda a minha vestidura.] 34. Is 63:3 [Eu sozinho pisei no lagar, e dos povos ninguém se achava comigo; e os pisei na minha ira e os esmaguei no meu furor; e o seu sangue salpicou as minhas vestes, e manchei toda a minha vestidura.] 273
sermões Mas para que esta primeira parte da imitação dos trabalhos da Cruz o seja também nos afetos (que é a segunda e principal); assim como no meio dos seus trabalhos e tormentos se não esqueceu o Senhor de sua piedosíssima Mãe, encomendando-a ao Discípulo amado, assim vos não haveis vós de esquecer da mesma Senhora, encomendando-vos muito particularmente na sua memória, e oferecendo-lhe a vossa. Depois de Cristo na Cruz dar o Reino do Céu ao Bom Ladrão, então falou com sua Mãe, e parece que este, e não aquele, havia de ser o seu primeiro cuidado; mas seguiu o Senhor esta ordem, diz Santo Ambrósio, para mostrar, segundo as mesmas leis da natureza, que mais fazia em ter da própria Mãe esta lembrança que em dar a um estranho o Reino: Pluris putans quad pietatis officia dividebat, quam quod regnum caeleste donabat. Ao Ladrão deu Cristo menos do que lhe pediu, e à Mãe deu muito mais do que tinha dado ao Ladrão; porque o Ladrão pediu-lhe a memória, e deu-lhe o Reino, e à Mãe deu-lhe muito mais que o Reino, porque lhe deu a memória. Esta memória haveis de oferecer à Senhora em meio dos vossos trabalhos, à imitação de seu Filho, e não duvideis ou cuideis que lhe seja menos aceita a vossa, antes em certo modo mais: Por quê? Porque nas Ave-Marias do vosso Rosário a fazeis com palavras de maior consolação do que as que lhe disse o mesmo Filho, conformando-se com o estado presente. O Filho chamou-lhe Mulher, e vós chamar-lhe-eis a Bendita entre todas as mulheres: o Filho não lhe deu nome de Mãe, e vós a invocareis cento e cinquenta vezes com o nome de Santa Maria Mãe de Deus. Oh! quão adoçada ficará a dureza, e quão enobrecida a vileza dos vossos trabalhos na harmonia destas vozes do Céu; e quão preciosas seriam diante de Deus as vossas penas e aflições, se juntamente lhas oferecerdes em união das que a Virgem Mãe sua padeceu ao pé da Cruz! E por que a continuação do vosso mesmo trabalho vos não pareça bastante escusa para faltardes com vossas ora274
sermão xiv do rosário ções a esta pensão de cada dia, adverti que se o vosso Rosário consta de três partes, estando Cristo vivo na Cruz somente três horas, nessas três horas orou três vezes. Pois se Cristo ora três vezes em três horas, sendo tão insofríveis os trabalhos da sua Cruz, vós, por grandes que sejam os vossos, por que não orareis três vezes em vinte e quatro horas? Dir-me-eis que as orações que fez Cristo na Cruz foram muito breves. Mas nisso mesmo vos quis dar exemplo, e vos deixou uma grande consolação, para que quando, ou apertados do tempo, ou oprimidos do trabalho não puderdes rezar o Rosário inteiro, não falteis ao menos em rezar parte: consolando-vos com saber que nem por isso as vossas orações abreviadas serão menos aceitas a Deus, e a sua Mãe, assim como o foram as de Cristo a seu Eterno Pai. Agora acabareis de entender por que razão os Salmos que Davi compôs para os que trabalham nos Engenhos foram somente três. Lede-os, ou leiam-nos por vós os que os entendem, e acharão que só três se intitulam Pro torcularibus. E por que três, nem mais, nem menos? Porque em três partes, nem mais, nem menos, dividiu Davi o seu Saltério, e a Senhora o seu Rosário. O que hoje chamamos Rosário, antes que as Ave-Marias se convertessem milagrosamente em rosas, chamava-se o Saltério da Virgem, porque assim como o Saltério era composto de cento e cinquenta Salmos, assim o Rosário se compõe de cento e cinquenta saudações Angélicas. Que fez pois Davi, como Rei pio, e como Profeta? Como Rei pio, que atendia ao bem presente do seu Reino, vendo que os trabalhadores dos lagares não podiam rezar o Saltério inteiro, e tão comprido como é, recopilou e abreviou o mesmo Saltério, e reduziu as três partes, de que é composto, aos três Salmos que intitulou Pro torcularibus. E como Profeta que via os tempos futuros, e o Rosário que havia de compor a Mãe do que se havia de chamar Filho de Davi, à imitação do seu Saltério, introduziu no mesmo Saltério, já 275
sermões abreviado e reduzido a três Salmos, os três Mistérios gozosos, dolorosos, e gloriosos, em que está repartido o Rosário. Assim foi, e assim se vê claramente nos mesmos três Salmos. Porque o primeiro (que é o Salmo oito) tendo por Expositor a S. Paulo, contém os Mistérios da Encarnação e Infância do Salvador: Ex ore infantium, et lactentium perfecisti laudem.35 O segundo (que é o Salmo oitenta) contém os Mistérios da Cruz e da Redenção, representados na do Egito: Ego sum Dominus Deus tuus, qui eduxi te de terra Aegypti.36 E o terceiro (que é o Salmo oitenta e três) contém os Mistérios da Glória e da Ascensão: Beatus vir, cujus est auxilium, abs te, ascensiones in corde suo disposuit in valle lachrimarum.37 Assim pois, como os trabalhadores Hebreus (que eram os fiéis daquele tempo) no exercício dos seus lagares meditavam e cantavam o Saltério de Davi recopilado naqueles três Salmos, porque não podiam todo, ao mesmo modo vós, quando não possais rezar todo o Rosário da Senhora, ao menos com partes das três partes em que ele se divide, haveis de aliviar e santificar o peso do vosso trabalho na memória e louvores dos seus mistérios. E este foi finalmente o exemplo e exemplar que vos deixou Cristo nas três breves orações da sua Cruz. Porque, se bem advertirdes, em todas três, pela mesma ordem do Rosário, se contêm os Mistérios Gozosos, Dolorosos e Gloriosos. Os gloriosos na terceira, em que encomendou sua Alma nas mãos do Padre, partindo-se deste mundo para a glória: Pater, in manus tuas
35. Sl 8:3 [Da boca das crianças e dos que mamam tu suscitaste força, por causa dos teus adversários, para fazeres calar o inimigo e vingativo.] 36. Sl 80:9 [:11] [Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito; abre bem a tua boca, e ta encherei.] 37. Sl 83:6 [Bem-aventurado o homem cuja força está em ti, em cujo coração estão os caminhos aplanados, o qual, passando pelo vale de Baca, faz dele uma fonte; a chuva também enche os tanques.] 276
sermão xiv do rosário commendo spiritum meum.38 Os dolorosos na segunda, em que amorosamente queixoso publicou a altas vozes o excesso das suas dores: Deus meus, Deus meus, ut quid dereliquisti me?39 E os gozosos, rogando pelos mesmos que o estavam pregando na Cruz, e alegando que não sabiam o que faziam: Non enim sciunt quid faciunt:40 porque eles o crucificavam para o atormentarem, e ele se gozava muito de que o crucificassem, como declarou S. Paulo: Proposito sibi gaudio, sustinuit crucem.41
viii Resta o último e excelente documento de S. João, também nova e segunda vez nascido ao pé da Cruz: e qual é este documento? Que entre todos os mistérios do Rosário haveis de ser mais particularmente devotos dos que são mais próprios do vosso estado, da vossa vida, e da vossa fortuna, que são os mistérios dolorosos. A todos os mistérios dolorosos (e não assim aos outros) se achou presente S. João. Assistiu ao do Horto com os dois discípulos; assistiu ao dos açoites com a Virgem Santíssima no Pretório de Pilatos; assistiu do mesmo modo e no mesmo lugar à Coroação dos Espinhos; seguiu ao Senhor com a Cruz às costas até ao Monte Calvário; e no mesmo Calvário se não apartou do seu lado até expirar e ser levado à sepultura. Estes fo38. Lc 23:46 [E, clamando Jesus com grande voz, disse: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito. E, havendo dito isso, expirou.] 39. Mt 27:46 [E, perto da hora nona, exclamou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lemá sabactâni, isto é, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? ] 40. Lc 23:34 [E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. E, repartindo as suas vestes, lançaram sortes.] 41. Hb 12:2 [olhando para Jesus, autor e consumador da fé, o qual, pelo gozo que lhe estava proposto, suportou a cruz, desprezando a afronta, e assentou-se à destra do trono de Deus.] 277
sermões ram os mistérios próprios do Discípulo amado, que como a dor se mede pelo amor, a ele competiam mais os dolorosos. Estes foram os seus, e estes devem ser os vossos, e não só por devoção ou eleição, nem só por condição e semelhança da vossa Cruz, mas por direito hereditário desde o primeiro Etíope, ou preto que conheceu a Cristo, e se batizou. É caso muito digno de que o saibais. Apareceu um Anjo a São Felipe Diácono, e disse-lhe que se fosse pôr na estrada de Gaza. Posto na estrada, tornou-lhe a aparecer, e disse-lhe que se chegasse a uma carroça que por ali passava. Chegou, e viu que ia na carroça um homem preto (que era criado da Rainha de Etiópia) e ouviu que ia lendo pelo Profeta Isaías. O lugar em que estava era aquele famoso texto do Capítulo cinquenta e três, em que o Profeta descreve mais claramente que nenhum outro a Morte, Paixão e Paciência de Cristo: Tanquam ovis ad occisionem ductus est: et sicut agnus coram tondente se, sine voce, sic non aperuit os suum.42 Perguntou-lhe o Diácono se entendia o que estava lendo, e como respondesse que não, e lhe pedisse que lho declarasse, foi tal a declaração que, chegando depois ambos a um Rio, o Etíope pediu ao Santo que o batizasse. E este foi o primeiro gentio depois de Cornélio Romano, e o primeiro preto Cristão que houve no mundo. Tudo nesta história, que é dos Atos dos Apóstolos, referida por S. Lucas, são mistérios. Mistério foi o primeiro aviso do Anjo ao Santo Diácono, e mistério o segundo: mistério que um gentio fosse lendo pela Sagrada Escritura, e mistério que caminhando a fosse lendo; mistério que o Profeta que lia fosse Isaías, e mistério sobre todos misterioso, que o lugar fosse da Paixão 42. At 8:32 [E o lugar da Escritura que lia era este: Foi levado como a ovelha para o matadouro; e, como está mudo o cordeiro diante do que o tosquia, assim não abriu a sua boca.]; Is 53:7 [Ele foi oprimido, mas não abriu a boca; como um cordeiro, foi levado ao matadouro e, como a ovelha muda perante os seus tosquiadores, ele não abriu a boca.] 278
sermão xiv do rosário e paciência de Cristo; porque para dar ocasião ao Diácono de pregar a Fé a um gentio, bastava que fosse qualquer outro. Pois por que ordenou Deus que fosse sinaladamente aquele lugar, em que se descrevia a sua Paixão, e os tormentos com que havia de ser maltratado, e a paciência, sujeição e silêncio com que os havia de suportar? Sem dúvida, porque neste primeiro Etíope tão antecipadamente convertido se representavam todos os homens da sua cor, e da sua nação, que depois se converteram. Assim o dizem S. Jerônimo e Santo Agostinho, e o provam com o texto de Davi: Aethiopia praeveniet manus ejus Deo.43 E como a natureza gerou os Pretos da mesma cor da sua fortuna, Infelix genus hominum, et ad servitutem natum, quis Deus que nascessem à Fé debaixo do signo da sua Paixão, e que ela, assim como lhes havia de ser o exemplo para a paciência, lhes fosse também o alívio para o trabalho. Enfim, que de todos os mistérios da Vida, Morte e Ressurreição de Cristo, os que pertencem por condição aos Pretos, e como por herança, são os dolorosos. Destes devem ser mais devotos, e nestes se devem mais exercitar, acompanhando a Cristo neles, como fez S. João na sua Cruz. Mas assim como entre todos os mistérios do Rosário estes são os que mais propriamente pertencem aos Pretos, assim entre todos os Pretos, os que mais particularmente os devem imitar e meditar, são os que servem e trabalham nos Engenhos, pela semelhança e rigor do mesmo trabalho. Encarecendo o mesmo Redentor o muito que padeceu em sua sagrada Paixão, que são os mistérios dolorosos, compara as suas dores às penas do inferno: Dolores inferni circun dederunt me.44 E que coisa há na confusão deste mundo mais semelhante ao inferno que qualquer des43. Sl 67:32 [Embaixadores reais virão do Egito; a Etiópia cedo estenderá para Deus as suas mãos.] 44. Sl 17:6 [Cordéis da morte me cercaram, e angústias do inferno se apoderaram de mim; encontrei aperto e tristeza.) 279
sermões tes vossos Engenhos, e tanto mais, quanto de maior fábrica? Por isso foi tão bem recebida aquela breve e discreta definição de quem chamou a um Engenho de açúcar doce inferno. E verdadeiramente quem vir na escuridade da noite aquelas fornalhas tremendas perpetuamente ardentes: as labaredas que estão saindo a borbotões de cada uma pelas duas bocas, ou ventas, por onde respiram o incêndio: os Etíopes, ou Ciclopes banhados em suor, tão negros como robustos, que subministram a grossa e dura matéria ao fogo, e os forcados com que o revolvem e atiçam; as caldeiras ou lagos ferventes com os cachões sempre batidos e rebatidos, já vomitando escumas, exalando nuvens de vapores mais de calor, que de fumo, e tornando-os a chover para outra vez os exalar: o ruído das rodas, das cadeias, da gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente, e gemendo tudo ao mesmo tempo sem momento de tréguas, nem de descanso: quem vir enfim toda a máquina e aparato confuso e estrondoso daquela Babilônia, não poderá duvidar, ainda que tenha visto Etnas e Vesúvios, que é uma semelhança de inferno. Mas se entre todo esse ruído, as vozes que se ouvirem forem as do Rosário, orando e meditando os mistérios dolorosos, todo esse inferno se converterá em Paraíso; o ruído em harmonia celestial; e os homens, posto que pretos, em Anjos. Grande texto de Davi. Estava vendo Davi essas mesmas fornalhas do Inferno, e essas mesmas caldeiras ferventes: e profetizando literalmente dos que viu atados a elas, escreveu aquelas dificultosas palavras: Si dormiatis inter medios cleros pennae columbae deargentatae, et posteriora dorsi ejus in pallore auri.45 Cleros quer dizer lebetes, ou, como verte com maior propriedade Vatablo: Si dormiatis inter medias caldarias, vasaque; plena fulligine. Diz pois o Profeta: Se 45. Sl 67:14 [Ainda que vos deiteis entre redis, sereis como as asas de uma pomba, cobertas de prata, com as suas penas de ouro amarelo.] 280
sermão xiv do rosário passardes as noites entre as caldeiras, e entre grandes vasos fuliginosos e tisnados com o fumo e labaredas das fornalhas, que haveis de fazer, ou que vos há de suceder? Agora entra o dificultoso das palavras: Pennae columbae deargentatae, et posteriora dorsi ejus in pallore auri. Penas e asas de pomba prateadas por uma parte, e douradas por outra. E que tem que ver a pomba com o triste escravo e negro Etíope, que entre todas as aves só é parecido ao corvo? Que tem que ver a prata e o ouro com o cobre da caldeira, e o ferro da corrente a que está atado? Que tem que ver a liberdade de uma ave com penas e asas para voar, com a prisão do que se não pode bulir dali por meses e anos, e talvez por toda a vida? Aqui vereis quais são os poderes e transformações que obra o Rosário nos que oram e meditam os mistérios dolorosos. A pomba na Sagrada Escritura, como consta de infinitos lugares, não só é símbolo da oração e meditação absolutamente, senão dos que oram e meditam em casos dolorosos; por isso el-Rei Ezequias nas suas dores dizia: Meditabor ut columba.46 E a razão desta propriedade e semelhança é porque a pomba, com os seus arrulhos, não canta como as outras aves, mas geme. Quer dizer pois o Profeta, e diz admiravelmente falando convosco na mais miserável circunstância desse inferno da terra: Si dormiatis inter medias caldarias, vasaque; plena fulligine; se não só de dia, mas de noite vos virdes atados a essas caldeiras com uma forte cadeia, que só vos deixe livres as mãos para o trabalho, e não os pés para dar um passo, nem por isso vos desconsoleis e desanimeis: orai e meditai os mistérios dolorosos, acompanhando a Cristo neles, como S. João; e nessa triste servidão de miserável escravo tereis o que eu desejava sendo 46. Is 38:14 [Como o grau ou a andorinha, assim eu chilreava e gemia como a pomba; alçava os olhos ao alto; ó Senhor, ando oprimido! Fica por meu fiador.] 281
sermões Rei, quando dizia: Quis dabit mihi pennas sicut columbae, et volabo, et requiescam:47 Oh! quem me dera asas como de pomba para voar e descansar! E estas são as mesmas que eu vos prometo no meio dessa miséria: Pennae columbae deargentatae, et posteriora ejus in pallore auri; porque é tal a virtude dos mistérios dolorosos da Paixão de Cristo para os que orando os meditam, gemendo como pomba, que o ferro se lhes converte em prata, o cobre em ouro, a prisão em liberdade, o trabalho em descanso, o inferno em paraíso, e os mesmos homens, posto que pretos, em Anjos. Dizei-me que coisa é um Anjo? Os Anjos não são outra coisa senão homens com asas, e esta figura não lha deram os pintores, senão o mesmo Deus, que assim os mostrou a Isaías, e assim os mandou esculpir no templo. Pois essas são as asas prateadas e douradas com que desse vosso inferno vos viu Davi voar ao Céu para cantar o Rosário no mesmo coro com os Anjos. Nem vos meta em desconfiança a vossa cor, nem as vossas fornalhas, porque na fornalha de Babilônia, onde o Mestre da Capela era o Filho de Deus, no mesmo coro meteu as noites com os dias: Benedicite noctes, et dies Domino.48 Antes vos digo (e notai muito isto para vossa consolação) que se no Céu não entraram as vossas vozes com as dos Anjos, o Rosário que lá se canta não seria perfeito. Consta de muitas revelações e visões de Santos, que os Anjos do Céu também rezam ou cantam o Rosário: por sinal que ao nome de Maria fazem uma profunda inclinação, e ao nome de Jesus se ajoelham todos: e digo que entrando vós no mesmo coro, será o Rosário dos Anjos mais perfeito do que é sem vós; porque a perfeição do Rosário consiste em se conformar quem o reza com os mistérios que 47. Sl 54:6[:7] [Pelo que disse: Ah! Quem me dera asas como de pomba! Voaria e estaria em descanso.] 48. Dn 3:71 [Noites e dias, bendizei o Senhor; louvai-o e exaltai-o por todos os séculos.] 282
sermão xiv do rosário nele meditam, gozando-se com os gozosos, doendo-se com os dolorosos, e gloriando-se com os gloriosos. E posto que os Anjos nos gozosos se podem gozar, e nos gloriosos se podem gloriar, nos dolorosos não se podem doer, porque o seu estado é incapaz de dor. Isto porém que eles não podem fazer no Céu, fazeis vós na terra; se no meio dos trabalhos que padeceis, vos doeis mais das penas de Cristo que das vossas. Assim que do Rosário dos Anjos, e do vosso, ou repartidos em dois coros, ou unidos em um só, se inteira a perfeição, ou se aperfeiçoa a harmonia dos mistérios do Rosário. Os dolorosos (ouçam-me agora todos), os dolorosos são os que vos pertencem a vós, como os gozosos aos que devendo-vos tratar como irmãos, se chamam vossos senhores. Eles mandam, e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que os das vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como as abelhas, de quem disse o Poeta: Sic vos non vobis mellificatis apes. O mesmo passa nas vossas colmeias. As abelhas fabricam o mel sim, mas não para si. E posto que os que o logram é com tão diferente fortuna da vossa, se vós porém vos souberdes aproveitar dela, e conformá-la com o exemplo e Paciência de Cristo, eu vos prometo primeiramente que esses mesmos trabalhos vos sejam muito doces, como foram ao mesmo Senhor: Dulce lignum, dulces clavos, dulcia ferens pondera: e que depois (que é o que só importa) assim como agora imitando S. João, sois companheiros de Cristo nos mistérios dolorosos de sua Cruz, assim o sereis nos gloriosos de sua Ressurreição e Ascensão. Não é promessa minha, senão de S. Paulo, e texto expresso de Fé: Haeredes quidem Dei, cohaeredes autem Christi: si tamen com-
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sermões patimur, ut et conglorificemur.49 Assim como Deus vos fez herdeiros de suas penas, assim o sereis também de suas glórias, com condição, porém, que não só padeçais o que padeceis, senão que padeçais com o mesmo Senhor, que isso quer dizer, Compatimur. Não basta só padecer, mas é necessário padecer com Cristo, como S. João. Oh! como quisera e fora justo que também vossos senhores consideraram bem aquela consequência: Si tamen compatimur, ut et conglorificemur. Todos querem ir à Glória, e ser glorificados com Cristo, mas não querem padecer, nem ter parte na Cruz com Cristo. Não é isto o que nos ensinou a Senhora do Rosário na ordem e disposição do mesmo Rosário. Depois dos mistérios gozosos pôs os dolorosos, e depois dos dolorosos os gloriosos. Por quê? Porque os gostos desta vida têm por consequência as penas, e as penas, pelo contrário, as glórias. E se esta é a ordem que Deus guardou com seu Filho e com sua Mãe, vejam os demais o que fará com eles. Mais inveja devem ter vossos senhores às vossas penas do que vós aos seus gostos, a que servis com tanto trabalho. Imitai pois ao Filho e à Mãe de Deus, e acompanhai-os com S. João nos seus mistérios dolorosos, como próprios da vossa condição, e da vossa fortuna, baixa e penosa nesta vida, mas alta e gloriosa, na outra. No Céu cantareis os mistérios gozosos e gloriosos com os Anjos, e lá vos gloriareis de ter suprido, com grande merecimento, o que eles não podem no contínuo exercício dos dolorosos.
ix Estes são, devotos do Rosário, os três motivos que nascem dos três nascimentos que vistes, os quais, se forem tão 49. Rm 9:17 [E, se nós somos filhos, somos, logo, herdeiros também, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo; se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados.] 284
sermão xiv do rosário bem exercitados, como são bem nascidos, nem podeis desejar maior honra nos vossos desprezos, nem maior alívio nos vossos trabalhos, nem maior dita e ventura na vossa fortuna. A mesma Mãe do Filho de Deus e de S. João é Mãe vossa. E pois estes três filhos já nascidos lhe nasceram segunda vez ao pé da Cruz, não falteis na vossa, posto que tão pesada, nem à imitação de tão honrados irmãos, nem às obrigações de tão soberana Mãe. Para que assim como a Senhora se gloria de ser Mãe de Cristo, e depois dele de ser Mãe de S. João, assim tenha também muito de que se gloriar em ser Mãe de todos os Pretos tão particularmente seus devotos. Desta maneira se multiplicou por vários modos o segundo nascimento de seu Unigênito Filho; e desta maneira se verifica em eterno louvor de seu Santíssimo Nome, que o mesmo Jesus que se chama Cristo, não só uma senão três vezes nasceu de Maria: Maria de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus.
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LIVRO
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D A
VISITACAM de N. S. a Santa Ifabel, N a Mi[ericordia da Bahia
Em acçaõ de graças pela vitoria da meCma Cidade;
ficiada, & defendida, Anno 1638. Et :mde hoc mihi i Luc. I.
§. I.
++1 D I . -- Efiejar as :. . mercesdo r,J
:
: Ceo,reco.. ........... ,,' nhecelJas como rece.. bidasda maó de Deos, Bc darihe infinitas graças por ellas ,he a primeira abriga~aó daFê,he a primeira
Tom 9.
cófiífaó do agradeciméto, &faó os primeiros impul.. [o·s da alegria ChriÚ~a,& bem ordenada AfIim o cantou hoje a Virgé Maria, já Máy de Deos > en· crando em cafa de Zacha.. rias, Bc vifiundo a Santa J{abel. Reconhecida a Senhora à dignidade- infrfliCí\
do myíIerio ineifa.. Ddiij Te1,
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Sermão da Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel
Na misericórdia da Bahia, Em ação de graças pela vitória da mesma Cidade, sitiada e defendida, Ano 1638. Et unde hoc mihi? Lc, 1.1
i Festejar as mercês do céu, reconhecê-las como recebidas da mão de Deus, e dar-lhe infinitas graças por elas, é a primeira obrigação da fé, é a primeira confissão do agradecimento, e são os primeiros impulsos da alegria cristã e bem ordenada. Assim o cantou hoje a Virgem Maria, já Mãe de Deus, entrando em casa de Zacarias, e visitando a Santa Isabel. Reconhecida a Senhora à dignidade infinita do mistério inefável, que a mesma Isabel, por revelação do céu, também reconhecia e celebrava, que fez e disse? Louvou e magnificou a Deus: Magnificat anima mea Dominum:2 alegrou-se no interior do seu espírito, com demonstrações semelhantes às do Batista no ventre da mãe: Exultavit spiritus meus in Deo salutari 1. Lc 1[:43] [E donde a mim esta dita, que a mãe do meu Senhor venha ter comigo?] 2. Lc 1:46 [Disse, então, Maria: A minha alma engrandece ao Senhor.] 287
sermões meo:3 e declarou e confessou que as grandezas, que já começavam a sair à luz, nascidas do que dentro em si trazia, eram obra do braço todo-poderoso do Senhor, e seu santo nome: Quia fecit mihi magna qui potens est, et santum nomen ejus.4 Isto é o que nas grandes mercês do céu deve festejar e reconhecer a fé e agradecimento humano; mas não basta. E que mais é necessário? É necessário que, voltando os homens os olhos para a terra, os ponham em si com verdadeiro conhecimento da própria indignidade, e (porque a providência divina sempre requer disposição ou cooperação de suas criaturas, para repartir com elas os tesouros de suas misericórdias) que considerem todos, e se pergunte cada um à si mesmo, e diga com Santa Isabel: Et unde hoc mihi? E donde a mim tão extraordinária mercê? Assim o fez também a mesma Virgem Maria, no meio dos mesmos louvores com que magnificou a Deus, e com que se via magnificada, olhando para si mesma, como diz, e não achando nem reconhecendo em si outro motivo, outra razão, ou outro porquê das mesmas grandezas, senão o da sua humildade: Quia respexit humilitatem ancillae suae:5 Quer dizer: Vós, ó Isabel, cheia do Espírito Santo, me apregoais por Mãe de Deus: Ut venial Mater Domini mei ad me:6 Vós me chamais bendita entre todas as mulheres: Benedicta tu inter mulieres:7 e vós me canonizais por bem-aventurada nesta vida, porque no resto dela se cumprirão em mim todas as promessas 3. Lc 1:47 [E o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador.] 4. Lc 1:49 [Porque me fez grandes coisas o Poderoso; e Santo é o seu nome.] 5. Lc 1:48 [Porque atentou na humildade de sua serva; pois eis que, desde agora, todas as gerações me chamarão bem-aventurada.] 6. Lc 1:43 [E donde a mim esta dita, que a mãe do meu Senhor venha ter comigo? ] 7. Lc 1:42 [E exclamou em alta voz, e disse: Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre.] 288
sermão da visitação… do anjo: Et beata, quae credidisti, quoniam perficientur in te quae dicta sunt tibi a Domino.8 E eu não acho nem vejo em mim senão o que só viu o mesmo Senhor, pondo os olhos na sua menor escrava: Respexit humilitatem ancillae suae. Até aqui a famosa história da Visitação da Mãe de Deus à mãe do Batista, na qual, como em parábola, falei até agora de nós e conosco, posto que o não parecesse. Duas coisas ponderei nela. A primeira, e que naturalmente move a todo o homem, é festejar os seus bens, e se é homem cristão, e com fé, louvar á Deus por eles, e dar-lhe as devidas graças. A segunda, não parar neste exterior da felicidade humana, como se fora fortuna ou caso, mas fazer reflexão sobre si mesmo, e considerar se acha em si algum fundamento de boas obras, pelo qual Deus se inclinasse ou se deixasse obrigar a lha conceder. Já cuido que me tenho explicado. Muitos dias há que esta nossa cidade festeja a ilustre vitória com que Deus lhe fez mercê de se defender tão gloriosamente do poder do inimigo comum, com que se viu sitiada. E não há na mesma cidade templo em que, com universal concurso e aplausos da piedade cristã e portuguesa, se não tenham rendido as devidas graças ao soberano autor da liberdade que gozamos. Eu hoje nesta matéria, tão repetida e tão batida como a mesma cidade, já a pudera passar em silêncio, e emudecer com Zacarias; mas escolhi antes, porque a Deus não o cansam os agradecimentos, falar com Isabel. Das suas palavras escolhi por tema somente as da admiração, com que se pergunta a si mesma: Unde hoc mihi? Não falarei em meu nome, mas a Bahia será a que se admire da vitória, a que tão pouco costumados estávamos, e a que se pergunte a si mesma donde lhe veio esta ventura tão extraordinária e tão nova. A Bahia perguntará o donde, e ouvirá 8. Lc 1:45 [E bem-aventurada tu, que creste, porque se hão de cumprir as coisas que da parte do Senhor te foram ditas.] 289
sermões as opiniões dos que cuidam que a eles se lhes deve a vitória. Eu, depois de responder a cada um por si; concluirei com a que tenho por mais certa e verdadeira. Isto é o que ouviremos no discurso do sermão, e desde logo o que só posso dizer é que, para descobrir e achar o donde, não será necessário ir buscá-lo à campanha, nem sair à rua, porque o acharemos dentro nesta mesma casa, como se fora a de Zacarias. Lá e cá temos derramando graças a fonte da graça. Ave Maria.
ii Et unde hoc mihi? Esta mercê, este favor, este benefício do céu tão grande, esta felicidade, de que estive tão duvidosa e agora estou tão segura, esta vitória tão honrada e tão festejada, e de que tão desacostumado está o Brasil há tantos anos, donde a mim? Unde mihi? Assim pergunta falando consigo a Bahia, e, admirada da sua própria fortuna, busca dentro em si a causa dela. Mas vejo que desta mesma pergunta, que sempre supõe dúvida, se dá ou pode dar por muito ofendido o valor dos nossos soldados, e por igualmente agravada a reputação das nossas armas. Unde, donde? E quem há tão cego que o não visse nos relâmpagos do fogo, quem tão surdo que o não ouvisse nos trovões da artilharia, quem tão seguro e sem receio, que o não temesse em mil e seiscentos raios contados, que as batarias furiosas do inimigo choveram sobre a Bahia em quarenta dias e quarenta noites de sítio? Em outros tantos dias e noites se formou o dilúvio universal que alagou o mundo, e, assim como então diz o texto sagrado que, não só da parte combatente se abriram as cataratas do céu, mas também da parte combatida se romperam as fontes do abismo, assim nesta inundarão, verdadeiramente de monte a monte, se foi apertada e pertinaz a força dos combates, não foi menor, antes mais forte e poderosa, a das resistências, de que enfim se confessou por 290
sermão da visitação… vencida a soberba e presunção dos mesmos combatentes, quando a sua, não retirada, mas manifesta fugida, debaixo da capa da noite, mal lhe cobriu as espaldas. A artilharia deixada e carregada nas plataformas, sem retirar o inimigo uma peça; o pão cozendo-se nos fornos, as olhas dos soldados ao fogo; as tendas, as barracas, as armas, a pólvora, tudo desamparado, sem ordem, no precipício da desesperação, não só temerosa, mas atônita; sobretudo, o silêncio das caixas e das trombetas, com que tão confiados se tinham aquartelado, mudo e insensível às nossas sentinelas; isto, assim junto como por partes, é o que está respondendo e dizendo a brados a Bahia a quem deve, e donde lhe veio o donde por que pergunta. Unde, donde? Da prudência dos nossos ilustríssimos generais, e da bem aconselhada dissimulação, mal entendida do vulgo, com que deixaram marchar sem oposição o inimigo, até o lugar onde estava antevista a sua ruína. Unde, donde? Da bizarra resolução dos nossos mestres de campo, posto que de três nações diferentes, unidos em tomar o governo das armas, em que só o império e obediência delas entre os dois generais esteve duvidoso. Unde, donde? Do valor dos nossos famosíssimos capitães e soldados, que antes de haver trincheiras, eles o foram a peito descoberto, e, depois de as haver, dentro, com as próprias granadas e bombas do inimigo, e fora, com a espada na mão, semearam a campanha de, tantos corpos mortos, para cuja sepultura pediram tréguas, sementeira de que eles logo colheram o desengano, e nós, pouco depois, o fruto da vitória. Assim responde a nossa triunfante milícia à pergunta da Bahia, a qual, posto que testemunha das suas façanhas, ainda duvidosa, inquire e quer saber qual fosse verdadeiramente o motivo que Deus da nossa parte tivesse, e qual mais propriamente o onde donde lhe veio o favor do céu, que tão repetidamente celebra e festeja, querendo dar a gló-
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sermões ria a aquela parte de si mesma, à qual mais própria e mais verdadeiramente se deva.
iii Primeiramente, respondendo à resposta de nossos soldados, não direi, bom licença sua, que é muito própria da arrogância militar, mas não posso deixar de dizer que igualmente é alheia da fé e piedade cristã. Que diz a fé? Que Deus é o Senhor dos exércitos, e que dá ou tira a Vitória a quem é servido, por meio das armas sim, mas sem dependência delas. Em próprios termos a Sagrada Escritura, como se falara nomeadamente do nosso caso: Non salvatur rex per multam virtutem, et gigas non salvabitur in multitudine virtutis suae:9 Salvou-se a cidade do Salvador do perigo em que se viu tão apertada, mas não foi o numeroso dos seus presídios, nem o valoroso dos seus soldados o que a salvou, porque na guerra e nas batalhas nem aos reis os salva o poder dos seus exércitos: Non salvatur rex per multam virtutem, nem aos gigantes os salvam as desmedidas forças dos seus braços: Et gigas non salvabitur in multitudine virtutis suae. Ouçam os soldados uma e outra coisa da boca de um também soldado, e soldado que foi rei, meo sperabo, et gladius meus non salvabit me.10 Eu, diz Davi, nunca pus nem porei a esperança da vitória no meu arco, nem confiarei que me salvará das mãos de meus inimigos a minha espada. No arco entendem-se as armas de longe, na espada as de perto e em umas e outras parece que experimentou o mesmo Davi o contrário do que diz, porque no desafio do gigante de longe, com o tiro da funda lhe meteu a pedra na testa, 9. S1 33[32]:16 [Não há rei que se salve com a grandeza de um exército, nem o homem valente se livra pela muita força.] 10. S1 43:7 [Porque não foi no meu arco que pus confiança, nem foi a minha espada que me salvou.] 292
sermão da visitação… e de perto, com a espada do mesmo inimigo já prostrado, lhe cortou a cabeça. Pois, se Davi venceu o gigante com o tiro da funda e com o talho da espada, como diz que não há de pôr a sua esperança nem nas armas de longe, nem nas de perto? Porque uma coisa é vencer por meio das armas, outra é pôr a esperança nelas. Pôr a esperança nas armas é presunção e vaidade gentílica; pô-la só em Deus, que é o Senhor das vitórias, é fé e piedade cristã. Assim sucedeu no mesmo caso, e o disse o mesmo Davi, respondendo às arrogâncias do gigante: Tu venis ad me in gladio, et hasta, et clypeo: ego autem venio ad te in nomine Domini exercituum:11 Tu, ó gigante, vens contra mim coberto de ferro, com a espada cingida, com a lança em uma mão e o escudo na outra; eu venho contra ti desarmado, mas em nome dos exércitos. E que se seguirá desta batalha tão desigual? Et dabit te Dominus in manu mea, et percutiam te, et auferam capuz tuum a te:12 Seguirse-á que Deus com todas essas armas te entregará nas minhas mãos, e eu, como me vês, desarmado, te cortarei a cabeça. E que mais? Et noverit universa ecclesia haec, quia non in gladio et basta salvat Dominus: ipsius enim est bellum:13 E conhecerá todo este imenso teatro dos dois grandes exércitos postos à vista, que para Deus dar a vitória a uns, e pôr em fugida a outros, não há mister nem faz caso de armas, porque é Senhor da guerra. 11. 1Rs 17:45 [Mas Davi disse ao filisteu: Tu vens a mim com espada, lança e escudo; eu, porém, venho a ti em nome do Senhor dos exércitos, do Deus das tropas de Israel, as quais tu insultaste hoje.] 12. 1Rs 17:46 [E o Senhor te entregará nas minhas mãos, e eu te ferirei e te cortarei a cabeça, e darei hoje às aves do céu e aos animais da terra os cadáveres do acampamento dos filisteus, a fim de que toda a terra saiba que há um Deus em Israel.] 13. 1Rs 17:47 [E para que toda esta multidão conheça que o Senhor não salva pela espada, nem pela lança, porque ele é o Senhor da guerra e vos entregará nas nossas mãos.] 293
sermões Não sei se teve Davi pensamento particular em chamar à multidão dos que o viam e ouviam nomeadamente igreja: Et noverit universo ecclesia haec. Porque a fé daquela doutrina nem pertencia ao gentio, quais eram os filisteus, nem a reconhece o herege, quais são os de Holanda (e foram os que lá e cá, desenganados da sua fraqueza, fugiram), mas só e própria dos filhos da verdadeira Igreja, quais somos nós os católicos. Por isso Davi não só disse igreja, mas universa, que quer dizer católica: Et noverit universa ecclesia. E para que esta fé e este conhecimento? Para que a fortuna das nossas armas, posto que vitoriosas, nos não desvaneça, antes temamos as nossas mesmas vitórias, se, ingratos e infiéis a Deus, as atribuirmos às nossas armas e ao nosso valor. Detrás da carroça dos triunfadores romanos era costume ouvir-se um pregão, que dizia: Memento te esse mortalem: Lembra-te, ó triunfador, que és mortal. E eu neste mesmo ponto quero fazer outro memento, e publicar outro pregão aos nossos capitães e soldados, pregão não decretado no capitólio de Roma, mas no consistório do Triunvirato divino, e não para nos diminuir a alegria do presente triunfo, mas para que a moderemos com a razão, e a seguremos com o temor. Anunciou o profeta Amós a el-rei Amasias que de seu exército, que constava de quatrocentos mil homens, licenciasse e despedisse cem mil, porque eram de gente que estava fora da graça de Deus (notem as consciências militares quanto importa estarem em graça de Deus ou fora dela) e como Amasias reparasse nesta diminuição do seu exército, e no soldo de cem talentos de prata, com que já os tinha pago, respondeu o profeta, e declarou ao rei da parte de Deus um segredo, que nem ele então entendia, professando a verdadeira fé, nem hoje acabam de o entender os que a professam. Ouvi o segredo e o pregão: Quod si putas in robore exercitus bella consistere, supera ri te faciet Deus ab
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sermão da visitação… hostibus. Dei quippe est adjuvare, et in fugam convertere:14 Porque hás de saber, ó rei, que se imaginares que os felizes sucessos da guerra, e as vitórias, consistem no número e fortaleza dos exércitos, pelo mesmo caso e por esta só imaginação fará Deus que seja vencido de teus inimigos, para que entenda e se desengane o mundo, que dar a vitória a uns, ainda que sejam poucos e fracos, e pôr em fugida a outros, ainda que sejam muitos e fortes, não é consequência das armas e do valor, mas regalia própria do Senhor dos exércitos. Logo, não foi o esforço nem a ciência militar dos nossos defensores o onde donde a Bahia pergunta que lhe veio o bem da vitória que festeja: Unde hoc mihi?
iv A esta primeira resposta, e mais palpável à vista, se segue a segunda, menos visível, mas muito mais poderosa ainda, que é de mãos desarmadas. Desarmadas estavam as mãos de Moisés quando ele orava no monte, e o exército de Josué pelejava na campanha. E foi maravilha então notada de todos, e cuja memória quis Deus ficasse estampada, não em lâminas de bronze ou diamante, mas nos caracteres imortais dos seus livros, que quando Moisés levantava as mãos ao céu, vencia Josué, e quando elas, como de braços cansados já com a velhice, descaíam um pouco, prevalecia o inimigo: Cumque levaret Moyses manus vincebat Israel: sin autem paululum remisisset, superabat Amalech.15 Moisés no monte, Josué no campo raso, ambos assestavam as suas batarias contra o exército de Amalech; mas as máquinas 14. 2Par. 25:8 [Se julgar que o sucesso da guerra depende da força do exército, Deus fará que sejas vencido pelos inimigos, porque só Deus pode socorrer e pôr em fuga.] 15. Ex 17:11 [E acontecia que, quando Moisés levantava a sua mão, Israel prevalecia; mas, quando ele abaixava a sua mão, Amaleque prevalecia.] 295
sermões militares e a pontaria dos tiros eram muito diversas. Josué batia o inimigo, Moisés batia o céu; Josué com ferro e fogo, Moisés com as mãos desarmadas; Josué ferindo, Moisés orando: e a vitória estava tão dependente da oração de um, e tão pouco sujeita às armas do outro, que estas, sem o socorro da oração, eram vencidas, e só pela força e perseverança da oração vencedoras. Lembremo-nos agora de nós. Quem visse interiormente a Bahia naqueles quarenta dias e quarenta noites em que esteve sitiada, mais a julgaria, na contínua oração, por uma Tebaida de anacoretas que por um povo e comunidade civil, divertida em tantos outros ofícios e exercícios. Nos conventos religiosos, nas igrejas públicas, nas casas e famílias particulares, todos oravam. Os pais, os filhos, e quantos podiam menear as armas, assistiam com Josué na campanha; e as mães, as filhas, e todo o outro sexo ou idade imbele, orando continuamente pelas vidas daqueles que por instantes temiam lhes entrassem pelas portas ou mal feridos ou mortos. O estrondo das batarias inimigas e nossas, espertando com a evidência e temor do perigo os ânimos, não lhes permitia quietação nem sossego; e então a Bahia, como propriamente Bahia de Todos os Santos, invocando a intercessão e auxílio de todos, não por intervalos, como Moisés, mas perpetuamente e sem cessar, batia as muralhas do céu. Esta bataria das mãos desarmadas, mas levantadas ao céu, foi mais verdadeiramente a que nos deu a vitória. E porque a proposta, como de quem não professa as armas, não pareça suspeitosa aos professores delas, ouçamos o testemunho de um soldado, e seja o mesmo que já ouvimos na resposta passada, Davi. Este grande soldado, como capitão general das armas católicas daquele tempo, em um salmo que campos estando para sair em campanha, apontando para os esquadrões do exército contrário, que já tinha à vista, diz assim: Hi in curribus, et hi in equis, nos autem in 296
sermão da visitação… nomine Dei nostri invocabimus:16 A milícia de nossos inimigos e a nossa, ó companheiros, segue mui diferentes máximas: eles põem o seu poder e toda a sua confiança na multidão da sua cavalaria e nas máquinas dos seus carros. Porém, nós, que temos outra fé e outra experiência, posto que com as armas nas mãos, não pomos a confiança nelas, mas todo o nervo da nossa guerra consiste em outros instrumentos bélicos, muito mais fortes, que são as orações e preces com que invocamos a Deus: Nos autem in nomine Domini invocabimus. E cuja será a vitória em tanta diferença de uns e outros combatentes? Eu vo-lo direi (diz Davi) antes da batalha, tanto ao certo como se já tivera sucedido, e não só como profeta, mas como capitão: Ipsi obligati sunt, et ceciderunt; nos autem surreximus; et erecti sumus.17 Eles com as suas armas, estando levantados, caíram vencidos; nós com as nossas orações, estando caídos, levantamo-nos vencedores. Tudo isto é o que sucedeu na nossa vitória. E se eu me atrevesse a dizer que o mesmo profeta a anteviu é descreveu tão pontualmente, não faltará quem me diga que não apaixone tanto por ela, pois tem a objeção ou réplica muito à flor da terra. O profeta fala de inimigos confiados na sua cavalaria e carros militares, que são os que a milícia antiga chamava falcatos, e os nossos inimigos não trouxeram cavalaria nem carros bélicos para nos sitiar. Mas a diferença desta circunstância não desfaz a profecia, porque o mesmo profeta, falando das naus e armadas marítimas, lhes chama cavalos e carros: Viam fecisti in mari equis ruis, et quadrigae tuae salvatio:18 e tais foram os cavalos e carros militares, 16. S1 19:8 [Estes nas suas carroças, e aqueles nos seus cavalos; nós, porém, somos fortes no nome do Senhor, nosso Deus.] 17. S1 19:9 [Eles vacilaram e caíram, mas nós conservamo-nos de pé, e permanecemos firmes.] 18. Hab 3:15 [Tu abriste caminho aos teus cavalos pelo mar, pelo lodo das águas profundas.]; Hab 3:8 [Porventura é contra os rios, Senhor, 297
sermões com que na sua poderosa armada naval nos sitiou por mar o inimigo: Hi in curribus, et hi in equis. Eles, porém, posto que tão exercitados nesta cavalaria nadante, tendo entrado tão soberbos e inchados como as suas velas, e tão levantados com os sucessos da passada fortuna como as suas bandeiras no tope, sendo ainda mais altos os seus pensamentos, caíram; e nós, posto que verdadeiramente caídos com a adversidade dos mesmos sucessos, se nos levantamos vencedores e triunfantes é porque a força da oração, e não a das armas, neste levantar a cair trocou as balanças de Marte: Ipsi obligati sunt, et ceciderunt; nos surreximus, et erecti sumus.
v Naquela famosa batalha dos troianos contra os latinos, diz o Príncipe dos poetas que, enquanto a vitória esteve duvidosa, Júpiter sustentava na mão duas balanças iguais, até que uma caiu vencida, e outra se levantou vencedora: Jupiter ipse duas aequato examine lances Sustinet, etc.19 E Filo Hebreu, prosseguindo a mesma metáfora, não fabulosa e poeticamente mas fundado na verdade da História Sagrada, diz que as armas de Josué, como postas em balança, sem a oração de Moisés caíam, e com a oração de Moisés se levantavam: Cum igitur aliquantisper manus, bilancis in morem, nunc sursum tollerentur, nunc deorsum vergerent, certaretur marte dubio; tandem repente, velut pennas habentes pro digitis, sublatae volitabant per aerem manentes in sublimi, donec Hebraeis certa victoria contigit, hostibus internectione que tu estás irado? É contra os rios o teu furor? Ou é contra o mar a tua indignação? Tu, que montas sobre os teus cavalos, e levas em tuas quadrigas a salvação.] 19. Virgílio. Eneida. Canto ix. 298
sermão da visitação… deletis.20 Notem-se muito aquelas palavras: nunc sursum tollerentur, nunc deorsum vergerent bilancis in morem: de sorte que a vitória estava posta na balança da oração, já descendo, já subindo, não conforme Josué mais ou menos fortemente meneava as armas, mas segundo as mãos de Moisés, ou orando remissamente desfaleciam, ou, instantemente levantadas ao céu, como se os seus dedos fossem asas, voavam: Velut pennas habentes pro digitis, sublatae volitabant. Daqui se segue que, se a justiça, com as balanças em uma mão e a espada na outra, houver de julgar a nossa vitória a quem mais verdadeiramente se deve, não há de ser a espada dos que, como Josué, pelejavam na campanha, senão as mãos levantadas dos que no mesmo tempo, como Moisés, oravam no monte. E para que os nossos capitães se não ofendam desta proposição, e desafiem a quem a quiser sustentar, lembrem-se que no antigo povo de Deus, em que houve Josué, Sansão, Gedeão e Davi, o mais afamado Capitão de todos foi Judas Macabeu, e lembrem-se também que entre as mais celebradas e fatais espadas (ainda que entrem nesta conta as forjadas na oficina de Vulcano, batidas e limadas por Brontes e Esterope, e caldeadas na lagoa Estígia), nenhuma houve igual à do mesmo Macabeu, a qual, trazida do céu, e dourada nos resplendores líquidos das estrelas, lhe entregou a alma do profeta Jeremias. Mas, quais foram os troféus e triunfos deste Aquiles com tão prodigiosa espada? É certo, e de fé, que foram tantas as suas vitórias quantas as batalhas, como se trouxesse a soldo a fortuna debaixo das suas bandeiras; contudo, depois de tantas vezes vencedor o famoso Macabeu, e de ter conquistado o glorioso nome de invicto entre todas as nações do mundo, finalmente, na batalha contra Báquides, tendo triunfado de outro muito maiores exércitos, foi vencido e modo. E por quê? Porque 20. Philo in eum locum. 299
sermões este valorosíssimo capitão; ou conquistando, ou defendendo, ou sitiando, ou sendo sitiado, ou guerreando em campanha aberta; sempre às forças do braço e da espada ajuntava as da oração, e só nesta última e infeliz batalha (como em muitos lugares nota A Lápide) não se lê na Escritura que orasse. Tão fortes e invencíveis são as armas acompanhadas da oração, e tão fracas e sujeitas a ser vencidas se as não assiste este divino e todo-poderoso socorro. Assim que, se a Bahia ainda duvida, e pergunta donde lhe veio a felicidade da vitória, com que se vê segura e triunfante; Unde hoc mihi? saiba que mais a deve às mãos levantadas que às mãos armadas, mais aos que batiam o céu que aos que combatiam o inimigo, mais aos que por ela oravam que aos que pelejavam por ela.
vi Temos respondido à Bahia com duas resoluções, ambas certas, e me detive tanto na prova de ambas, porque ainda estamos em tempo de as haver mister. O inimigo, ainda que fraco, nunca se há de desprezar, quanto mais poderoso! E se é poderoso e afrontado, então se deve temer, e esperar com maior cautela. Desenganados, pois, no primeiro discurso, que as vitórias se não devem atribuir só ao valor dos soldados e força das armas, e persuadidos no segundo, que antes se deve esta glória à eficácia e socorro das orações, com que a nossa defesa de dia e de noite, pública e privadamente, foi tão assistida, agora quero eu declarar o meu pensamento, e peço que, antes de ouvido os fundamentos dele, mo não estranhem ou condenem. Respondendo, pois, terceira vez absoluta e resolutamente à pergunta da Bahia: Unde hoc mihi? Digo que o donde lhe veio a vitória que celebra é desta mesma Casa de Misericórdia em que estamos, e que os soldados, aos quais principalmente se deve, são os que militam debaixo da sua 300
sermão da visitação… bandeira. Os que militam debaixo da bandeira da misericórdia, por diverso modo, ou são os irmãos, que exercitam as obras da mesma misericórdia com os pobres e enfermos, ou são os mesmos pobres e enfermos, que eles sustentam, remedeiam e curam; e, posto que estes pareçam incapazes de pelejar, a uns e outros se deve igualmente a gloriosa defensa da nossa metrópole. Tudo isto provará em seu lugar o nosso discurso. Beatus qui intelligit super egenum et pauperem.21 Ditoso e bem-aventurado, diz o profeta rei, todo aquele que entende e se ocupa em servir e remediar os pobres. Não é este o fim e instituto da santa Irmandade da Misericórdia, como se foram as palavras tresladadas do seu próprio compromisso? Sim. E por que diz o profeta que são ditosos e bem-aventurados todos os que se exercitam e ocupam em obra tão pia? Segue-se o porquê: In die mala liberabit eum Dominus.22 Porque no dia mau, isto é, nas ocasiões de aperto e perigo, os livrará Deus; e se o perigo e aperto for de guerra, em que se virem acometidos, sitiados ou assaltados, Deus não permitirá que sejam entregues ao poder de seus inimigos: Et non tradet eum in animam inimicorum ejus.23 Note-se a palavra in animam. O ânimo com que vinha o inimigo era de que a Bahia se lhe entregasse (oferecimento que tantas vezes nos fez pelos seus trombetas) e, por consequência, se lhe rendesse o resto do Brasil. Mas Deus lhe desanimou esse ânimo, e lho desmaiou de tal maneira, como mostrou o sucesso. E por que não pareça que esta promessa divina, de defender aos que se ocupam no remédio é cura dos pobres, é 21. S1 40:1 [Bem-aventurado o que cuida do necessitado e do pobre; o Senhor o salvará no dia mau.] 22. S1 40:1 [Bem-aventurado o que cuida do necessitado e do pobre; o Senhor o salvará no dia mau.] 23. S1 40:3 [O Senhor o guardará e lhe conservará a vida, e o fará feliz na Terra, e não o entregará ao desejo dos seus inimigos.] 301
sermões só feita a eles, é digna de se não passar em silêncio uma sutileza de Hugo Cardeal, sobre as palavras: Dominus conservet eum,24 que se seguem no mesmo texto: Conservet eum, diz o grande comentador, id est, cum aliis servet. O verbo simples, servare, significa guardar e defender absolutamente; o composto, conservare, por virtude ou aditamento daquela preposição com, não só significa guardar e defender de qualquer modo, senão guardar e defender-se a si com outros, ou a outros consigo: Conservet eum, id est, cum aliis servet. Explico e aplico juntamente, por não gastar dois tempos. Assim como uma cidadela muito forte, não só defende aos que estão dentro, senão aos de toda a cidade, assim esta Casa da Misericórdia (por isso, não acaso, senão com grande providência, levantada e colocada no coração da Bahia) não só guardou e defendeu aos da mesma casa, que são os que nela exercitam as obras de misericórdia, senão a todos os mais. É o que já tinha dito com o mesmo pensamento Santo Agostinho: Deus, qui habitat in vobis, custodiet vos ex vobis, id est, si alter solicitus ex altero.25 Quando vós fordes solícitos, e procurardes o bem e saúde uns dos outros, Deus, que habita em vós, guardará também a uns pelos outros, isto é, vos ex vobis, vós que não tendes essa ocupação nem esse cuidado, pelos que o têm. Quem tem o cuidado dos pobres: Qui intelligit super egenum et pauperem? Os que curam deles, e os servem nesta Casa de Misericórdia; pois vós, os que não sois da mesma casa, e não professais ser Irmãos da Misericórdia, também vós sereis guardados e defendidos, não por vós, senão por eles: Vos ex vobis. Só apontando com o dedo se pode 24. S1 40:3 [O Senhor o guardará e lhe conservará a vida, e o fará feliz na Terra, e não o entregará ao desejo dos seus inimigos.] 25. Aug. in regula c1ericorum [PL: Vol. 32: Opera Omnia Augustini Hipponensis. S. Augustini Tomus Primus. Augustinus Hipponensis: S. Aurelii Augustini Hipponensis Episcopi Regula ad Servos Dei. Regula. De habitu et exterioris hominis compositione.] 302
sermão da visitação… isto declarar. Vós, que não sois Irmãos da Misericórdia, por benefício e merecimento de vós, que o sois: Vos ex vobis.
vii Já temos o primeiro e principal fundamento da nossa felicidade, que foi livrar-nos Deus do poder e intentos do inimigo: In die mala liberabit eum Dominus, et non tradet eum in animam inimicorum suorum. Passemos agora ao glorioso da vitória, sem nos apartar em nada, antes confirmando em tudo a verdadeira causa dele. Entrou Cristo, Redentor nosso, triunfando em Jerusalém, e os que acompanhavam e seguiam o triunfo com aclamações e aplausos: Caedebant ramos de arboribus:26 cortavam ramos das árvores, diz o evangelista, e estes ramos, como declara o uso e tradição da Igreja, e refere o antiquíssimo Clemente Alexandrino,27 eram de oliveira e palma. Não pare o triunfo, mas reparemos nós na união destes ramos. Os ramos da palma muito bem diziam com o triunfo, porque cada folha dos ramos das palmas é uma espada; porém a oliveira, que antes significa paz que guerra, misericórdia e piedade, e não violência nem rigor, por que se ajunta neste triunfo com a palma? Por isso mesmo. Porque a palma significa a vitória, a oliveira significa a misericórdia, e nos triunfos dos cristãos, como no de Cristo, os ramos da palma andam tão unidos, e como enxertados nos da oliveira, que da oliveira dependem as palmas, e da misericórdia as vitórias. Drogo Hostiense: Egredere cum pueris Hebraeis, qui transeunt,simpliciter in occursum Domini, sterne in via ramos olivarum, et opera misericordiae pedibus ejus accommoda: accipe frondes palmarum, ut
26. Mt 21:8 [E muitíssima gente estendia as suas vestes pelo caminho, e outros cortavam ramos de árvores e os espalhavam pelo caminho.] 27. Clemens, lib. 1, paedag., cap. 5. 303
sermões triumphes.28 Se quereis vitórias, soldados de Cristo, não vos digo que imiteis os Sansões, nem os Gedeões dos hebreus, senão a simplicidade dos meninos de Jerusalém. E como? Diz à evangelista que os meninos lançavam os ramos no caminho por onde o Senhor triunfante havia de passar: Sternebant in via:29 e vós da mesma maneira os ramos da oliveira, que são as obras de misericórdia, aplicai-as aos pés de Cristo, que são no seu corpo místico os pobres e miseráveis: Et opera misericordiae pedibus ejus accommoda: e logo tomai e levantai os ramos das palmas vitoriosas, porque sem dúvida triunfareis: Accipe frondes palmarum; ut triumphes. Já veríeis a imagem da vitória armada, e com a espada em uma mão e a palma na outra; eu quero emendar esta imagem, porque mais parece gentílica que cristã. Aceito a palma em uma mão, e por que se não queixem os soldados, também a espada na outra; mas ainda lhe falta a esta pintura a principal insígnia da vitória. E qual é? A Coroa. Non coronabitur nisi qui legitime certaverit:30 Não será coroado como vencedor, senão o que pelejar legitimamente. Entre os romanos havia grande multidão e variedade de coroas: cívicas, murais, rostratas, castrenses, etc., e as principais eram formadas de ervas e plantas, como também as dos imperadores, porque naquele tempo coroava-se a honra, e não a cobiça. De que há de ser pois formada ou tecida esta coroa da imagem da vitória emendada? Digo que há de ser tecida de ramos de oliveira, e de oliveira sinaladamente, porque a 28. Drog. de Passo Sacram. [PL: Vol. 166: Anna Domini mcxxxvii et mcxxxiiii Drogo Cardinalis Astiensis Episcopus. Drogo Cardinalis: Drogonis Cardinalis Sermo de Sacramento Dominicae Passionis. (Biblioth. Patr. Lugdun., xxi, 329.)] 29. Mt 21:8 [E muitíssima gente estendia as suas vestes pelo caminho, e outros cortavam ramos de árvores e os espalhavam pelo caminho.] 30. 2Tm 2:5 [E, se alguém também milita, não é coroado se não militar legitimamente.] 304
sermão da visitação… oliveira é símbolo da misericórdia e das obras dela. Ouvi um grande texto. Davi era tão piedoso e compassivo como valente: virtudes que sempre andam juntas, assim como a crueldade é própria dos covardes e fracos. E falando aquele grande capitão com a sua alma (com a qual os que seguem as armas costumam ter pouca conversação) diz-lhe assim: Benedic, anima mea, Domino, et noli oblivisci omnes retributiones ejus, qui propitiatur omnibus iniquitatibus tuis, qui redimit de interitu vitam tuam, qui coronat te in misericordia et miserationibus:31 Louva, alma minha, a Deus, e não te esqueças das grandes mercês que tens recebido de sua liberal e poderosa mão. Lembra-te que ele é que te tem perdoado os teus pecados, ele o que na guerra te livrou tantas vezes a vida, e ele o que te coroou nas vitórias com a misericórdia e suas obras; isso quer dizer: in misericordia et miseratianibus: misericordia in habitu, miserationibus in effectu.32 E cuja foi esta misericórdia que coroou a Davi vitorioso? Foi a misericórdia de Deus, que por sua misericórdia o coroou, ou foi a misericórdia de Davi, o qual nela deu a matéria a Deus para o coroar? Responde Dídimo, antigo padre grego, esquisita e finamente que a misericórdia e obras de misericórdia de Davi foram a matéria de que Deus lhe teceu a coroa com que o coroou: Coronat te in misericordia et miserationibus, quippe coronae materia est misericordia et miseratio; sicut enim alii coronam justitiae percipiunt ex justitia contextam, sic etiam tu, o anima mea, ex misericordia et miserationibus coronaberis.33 Notem-se muito aquelas grandes palavras: quippe coronae materia est misericordia et misera31. S1 102:2–4 [Bendize, ó minha alma, o Senhor, e não esqueças nenhum de seus benefícios. É ele quem perdoa todas as tuas culpas, e que sara todas as tuas enfermidades. É ele quem resgata da morte a tua vida, e que te coroa de misericórdia e de graça.] 32. Hugo ibi. 33. Didym. Ibi in Caena Graecor pp. 305
sermões tio. De sorte que a matéria, de que foi formada e tecida por Deus a coroa de Davi vitorioso, foi a misericórdia e obras de misericórdia do mesmo Davi. E como a misericórdia em divinas e humanas letras é simbolizada na oliveira, de oliveira há de ser a coroa que na imagem ou estátua da Vitória emendada se lhe há de acrescentar à palma.
viii Agora se segue o que parece mais dificultoso na minha proposta, e é dever-se a nossa vitória a todos os que militam debaixo da bandeira da misericórdia, e não só misericórdia ativa, que são os ministros da irmandade, que a exercitam, senão também os pobres enfermos da passiva, que a recebem. Outra alma, tão piedosa e compassiva como a de Davi, que é a que vulgarmente se chama alma santa, nos dará a prova. Saiu ela de casa em seguimento do sagrado Esposo, e como o não encontrasse nas ruas nem nas praças, chegou até os muros da cidade, e ali diz que os soldados, que estavam de guarda nos mesmos muros, a feriram, e lhe tomaram a capa. Capa diz, e não manto, porque já então os trajas e vestidos dos homens começavam a se ir afeminando, e passando às mulheres: Percusserunt et vulneraverunt me, et tulerunt pallium meum mihi custodes murorum.34 Quem fossem ou representassem estes soldados que guardavam os muros da cidade, interpretam variamente os expositores daquele livro, que todo é alegórico, e a alegoria que com mais propriedade e doçura se acomoda às circunstâncias do texto, é dos que têm para si que aqueles soldados da guarda significavam os pobres. Assim como o pobre é epíteto do soldado, assim não é muito que o soldado seja sinônimo do 34. Ct 5:7 [Acharam-me os guardas que rondavam pela cidade, espancaram-me e feriram-me; tiraram-me o meu manto os guardas dos muros.] 306
sermão da visitação… pobre. Diz pois a alma, que aqueles pobres a feriram, porque a vista deles e da sua miséria a trespassou toda, e lhe feriu o coração de lástima e dor. E acrescenta que lhe levaram a capa, porque, como estava fora de casa, e não tinha outra coisa com que os socorrer, lha largou e deu de esmola. Já temos a alma em corpo, que é o hábito do soldado. E como ela, na piedade com que se compadeceu dos pobres, e na liberalidade com que os socorreu, mostrou bem ser da irmandade desta casa, e dos que militam debaixo da bandeira da misericórdia, não hão mister eles maior prova do seu valor, e do muito que podem e obram na guerra: Tulerunt pallium meum. Levaram-me, dizem, os pobres a capa: E se quem dá ametade da capa aos pobres é Marte. Acrescento em confirmação que, se quando os Irmãos da Misericórdia tiram a capa para tomar a veste da irmandade, se soubesse o mistério que debaixo dela se encerra, ninguém lhes poderia duvidar a grande parte que tiveram na nossa vitória. Louva Salomão no seu epitalâmio os cabelos do divino Esposo, Cristo, e como as comparações deste grande sábio são tão profundas como a sua mesma sabedoria, diz que os cabelos do mesmo Senhor são como os ramos da palma, e negros como um corvo: Comae capitis fui sicut elatae palmarum, nigrae quasi corvus.35 Enigma temos, e não fácil de adivinhar. Santo Agostinho, S. Jerônimo, Santo Ambrósio e S. Gregório, todos os quatro doutores da Igreja, dizem que Sansão foi figura de Cristo, e eu dissera que aludiu Salomão aos cabelos do mesmo Sansão, e por isso com muita propriedade os compara às palmas, porque os troféus de Sansão, e as suas famosas vitórias, sempre ele as trouxe pendentes nos seus cabelos. E esses cabelos, em que consistia a fortaleza de Sansão, quantos eram? Outros tantos quantas são as obras 35. Ct 5:11 [A sua cabeça é o ouro mais puro; os seus cabelos são como os ramos novos das palmeiras, negros como um corvo.] 307
sermões de misericórdia: sete. Digamos logo que se comparam os sete cabelos de Sansão às palmas, porque às obras de misericórdia quis Cristo que andassem vinculadas as vitórias dos cristãos. Parece que não estava mau o sentido do enigma nem o empenho do pensamento, se tivesse fiador. Eu tenho, e muito abonado: S. Paulino, e sobre o mesmo passo. Repara o Santo no que nós ainda não ponderamos, e é que Salomão, depois de comparar os cabelos de Cristo ou de Sansão, que ambos são nazarenos, às palmas, diga que são negros como um corvo: Comae tudo sicut elatae palmarum, nigrae sicut corvus.36 E que resolve o engenho doutíssimo de Paulino? Não toma o corvo em comum, senão em particular, e não só diz qual era, senão também qual não era: Bonus iste corvus non ille ad arcam revertendi immemor, sed ille pascendi prophetae memor. Na Escritura Sagrada temos dois corvos muito célebres: o de Noé e o de Elias. E a este diz o santo que se comparam os cabelos de um ou outro Sansão, depois de comparados às palmas. E por quê? Porque a este corvo o escolheu Deus para se servir dele como de seu Irmão da Misericórdia. Muitos neste mundo alcançam os cargos só pelo merecimento do seu vestido: e este merecimento não lhe faltava também ao corvo de Elias, pela cor das penas, e semelhança da veste preta: nigrae quasi corvus; mas Deus, posto que tão amigo das proporções, não o elegeu só por esta para ministro e irmão da sua misericórdia, senão porque o era nas obras dela: file pascendi prophetae memor. Andava Elias no tempo daquela grande fome pobre, fugitivo e desterrado, e o corvo, com admirável pontualidade e perpétua assistência, todos os dias, pela manhã e à tarde, lhe levava, não só o necessário, senão também com muita abundância:
36. [PL: Vol. 61: Opera S. Paulini Nolani. Operum Sancti Paulini Pars Prior. Paulinus Nolanus: Epistolae. (C,S) Epistola xxiii.] 308
sermão da visitação… Panem et carnes mane, similiter panem et carnes vespere.37 E como este corvo era também irmão da misericórdia, irmão da mesa, por isso Salomão à comparação das palmas ajuntou a do corvo, para que se veja quão devidas são, e quanto se devem aos Irmãos da Misericórdia as vitórias. A propósito da nossa, e deste corvo, me lembra a diligência e valor do outro, tão famoso e conhecido, que foi o primogenitor daqueles, cuja memória e descendência se conserva na nossa Sé de Lisboa. Saiu às praias de Portugal o corpo defunto do nosso padroeiro S. Vicente, voou logo o corvo como Irmão da Misericórdia aos ofícios da sepultura, e porque um lobo naquela ocasião lhe quis dar outra bem diferente na sua voracidade, o valente e animoso corvo, ferindo-o com o bico, e sacudindo-o com as asas, lhe fez tal guerra que, com mais sangue que a fome que trazia dele, deixou a presa e a empresa, e com tanto medo, como se fora de um leão, se retirou fugindo. Isto quanto aos Irmãos da Misericórdia ativa.
ix Quanto aos pobres da passiva, que dissemos militar debaixo da mesma bandeira, e que guardaram a nossa cidade: Custodes murorum: aqui entra o que elegantemente diz S. João Crisóstomo: Sunt et hic castra pauperum, et bellum, in que pro te pauperes pugnant: Também os pobres têm os seus arraiais, e outro gênero de guerra, no qual pelejam por nós, e nos defendem. Quem quiser ver estes arraiais, e a ordem, repartição e arquitetura militar deles, entre por essas enfermarias. Mas de homens enfermos, feridos, estropiados, e alguns deles sem mãos e sem braços, que defensa se pode esperar? Já houve quem o dissesse, e em sítio mais apertado que o nosso. Quando Davi, novamente recebido por todo 37. 3Rs 17:6 [E os corvos traziam-lhe pela manhã pão e carne, e de tarde também pão e carne, e ele bebia da torrente.] 309
sermões Israel, quis mudar a corte de Hebron para Jerusalém, defendiam a fortaleza de Sião os jebuseus, os quais cercados, não por uma, como nós, senão por todas as partes, aparecendo em cima das muralhas diziam por mofa aos conquistadores que, se queriam lá entrar, haviam de tirar primeiro de dentro os mancos, cegos, aleijados: Non ingredieris huc, nisi abstuleris caecos et claudos dicentes; Non ingredietur David huc.38 As feridas são a gala e glória dos soldados como dos mártires: quanto mais feridos, mais retalhados e mais despedaçados, tanto mais valentes, mais honrados, mais famosos. A isto aludiam as barbatas dos jebuseus, como escreve Josefo39 querendo dizer que os que defendiam aquela fortaleza eram soldados velhos, não só curtidos, mas cortados nas batalhas, tanto melhor vistos e inteligentes da guerra quanto nela tinham perdido os olhos, e tanto de melhores mãos e maior firmeza a pé quedo, quarto mancos e aleijados. Até aqui a história, de que eu não quero mais que a semelhança. Entrai neste hospital, ou nessas casas fortes da caridade, e vê-las-eis cheias ou alastradas de pobres todos, ou enfermos, ou feridos, e uns sem pés, outros sem braços, e algum sem olhos; mas esses mesmos, no tempo em que nos sitiava o inimigo, pelas bocas das suas mesmas feridas lhe estavam dizendo: Non ingredieris huc: Não hás de entrar cá. Sucedeu então na Bahia uma troca, ou metamorfose admirável, e foi que os mesmos soldados, que, por feridos e mal feridos, eram trazidos em ombros ou braços alheios da campanha a esta Casa da Misericórdia, nem por isso deixavam de pelejar, antes agora o faziam, não só com maior valor e maiores forças, senão também em muito maior nú38. 2Rs 5:6 [E partiu o rei com os seus homens para Jerusalém, contra os jebuseus que habitavam naquela terra e que falaram a Davi, dizendo: Não entrarás aqui, a menos que lances fora os cegos e os coxos; querendo dizer: Não entrará Davi aqui.] 39. Josepho. Lib. 7 antiq. cap. 2. 310
sermão da visitação… mero. Os nossos olhos não viam esta maravilha, mas os olhos de Deus a estavam vendo. E todo este aumento de forças, e multiplicação de número donde lhe vinha? De entrarem neste segundo corpo da guarda, e se gregarem aos custodes muro rum, que são, como já vimos, os pobres que a Casa da Misericórdia sustenta e cura. A prova desta maravilha ainda diz mais do que eu tenho dito. No salmo décimo e undécimo diz o texto sagrado repetidamente que os olhos de Deus estão olhando para o pobre: Oculi ejus in pauperem respiciunt 40 e, nomeando-se dez vezes os pobres nestes mesmos salmos, nota Genebrardo que em todos estes lugares é com tal palavra na língua hebraica que juntamente quer dizer pobre e quer dizer exército: Oculi ejus in pauperem respiciunt, oculi ejus in exercitum respiciunt. De sorte que os nossos olhos, em cada um daqueles soldados retirados da campanha, por mal feridos se estava vendo um pobre homem fraco, desfalecido, estropiado, e os olhos de Deus o estavam vendo, não só forte, valente, são e inteiro, senão multiplicado em muitos. Cada um na campanha entre os soldados era um só homem, no hospital entre os pobres era um exército: In pauperem, in exercitum. Isto viam ou se via nos olhos de Deus. E nos ouvidos do mesmo Deus sucedia outra não menor maravilha. Os ais desse mesmo soldado desvaído de sangue, e quase desmaiado, e os gemidos das curas, cujas dores são muito maiores que as das feridas, estes ais e estes gemidos chegavam aos ouvidos divinos, e como se fossem caixas ou trombetas que tocassem arma ao mesmo Deus. Agora, diz o mesmo Onipotente, me levantarei eu, e me porei em campo a socorrer-vos: Propter ihiseriam inopum, et gemitum pauperum,
40. S1 10:5 [O Senhor habita no céu. Os seus olhos voltam-se para os pobres, as suas pálpebras examinam os filhos dos homens.] 311
sermões nunc exsurgam, dicit Dominus.41 Note-se muito aquele nunc, agora, agora, e não antes; não quando os nossos soldados saíram a impedir o passo ao inimigo, que tão arrogante marchava em demanda da cidade; não quando as nossas batarias começaram a responder furiosamente às suas: não quando a nossa mosquetaria chovia sobre eles balas; não quando as suas mesmas alcanzias, rechaçadas como pélas, lhes tornavam a rebentar na cara; mas quando os ais e os gemidos dos lastimosos feridos chegavam aos ouvidos de Deus. Agora, agora, disse Deus, me levantarei: Nunc exsurgam, dicit Dominus. E que havia de suceder levantando-se Deus? Levantou-se Deus, levantou-se o sítio, levantou-se o inimigo, lá vai fugindo. A nossa artilharia alegre despediu-se das suas popas com três salvas, mudos e tristes, sem trombeta nem bandeira.
x Parece-me que tenho bastantemente provado o meu pensamento, sem sair, como dizia, desta casa. Agora sigamos a Virgem, Senhora nossa, até à de Zacarias, que não é outra senão esta mesma, e nela verá a Irmandade da Misericórdia a sua bandeira, a sua milícia e as suas vitórias, e, dentro do mistério da Visitação, veremos todos o que até agora temos ouvido. Exurgens Maria abiit in montana cum festinatione, et intravit in domum Zachariae.42 Concluída a embaixada do anjo, partiu-se ele de Nazaré, onde, se tinha obrado o altíssimo mistério da Encarnação do Filho de Deus, e a Virgem 41. S1 11:6 [Por causa da aflição dos humildes e do gemido dos pobres, agora me levantarei, diz o Senhor, darei salvação a quem a deseja.] 42. Lc 1:39–40 [E, naqueles dias, levantando-se Maria, foi apressada às montanhas, a uma cidade de Judá, e entrou em casa de Zacarias, e saudou a Isabel.] 312
sermão da visitação… já Mãe do mesmo Filho, não se deteve na mesma cidade um momento, mas logo a toda diligência partiu para as montanhas, onde Zacarias tinha a sua casa. O que lá fez e disse a Senhora, sem falar outra palavra, foi o seu famoso cântico da Magnificat, o qual se divide em duas partes. A primeira contém a ação de graças, tão devota e tão humilde da mesma Virgem por tão soberana mercê: Quia respexit humilitatem ancillae suae, quia fecit mihi magna qui potens est, et sanctum nomen ejus. A segunda canta as vitórias do braço de Deus, então encarnado, contra os soberbos e poderosos do mundo: Fecit potentiam in brachio suo, dispersit superbos mente cordis sul, deposuit potentes de sede.43 É o que do mesmo dia e do mesmo lugar se refere nos livros da Sabedoria: Omnipotens sermo tuus de caelo a regalibus sedibus, durus bellator in mediam exterminii terram prosilivit.44 Mas, se todo este mistério se obrou na cidade de Nazaré, a celebridade dele por que se não fez na mesma cidade, e o Te Deum, e as festas se foram cantar às montanhas? Nem é menos digno de notar que esta mudança de lugares não só a fez a Virgem Maria: abiit in montana, senão também o mesmo Espírito Santo. Em Nazaré: Spiritus Sanctus superveniet in te:45 nas montanhas: Repleta est Spiritu Sancto Elisabeth.46 Que razão houve logo (que não podia ser sem novos e grandes motivos) para que a primeira parte do Cântico da Senhora, 43. Sb 18:15 [Lc 1:51] [Manifestou o poder do seu braço; dissipou aqueles que se orgulhavam nos pensamentos do seu coração. Depôs do trono os poderosos, e elevou os humildes.] 44. Sb 18:15 [A tua palavra onipotente, do céu do teu trono real, saltou de improviso no meio da terra condenada ao extermínio, como um inflexível guerreiro.] 45. Lc 1:35 [E, respondendo o anjo, disse-lhe: Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; pelo que também o Santo, que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus.] 46. Lc 1:41 [E aconteceu que, ao ouvir Isabel a saudação de Maria, a criancinha saltou no seu ventre; e Isabel foi cheia do Espírito Santo.] 313
sermões que foi a ação de graças, e a segunda, que foram as vitórias de seu Filho, se não cantassem em Nazaré, onde tinha a sua mesma casa, senão nas montanhas, e em casa de Zacarias? A razão manifesta foi porque em casa de Zacarias exercitou a Senhora as primeiras obras de misericórdia, e em Nazaré não havia matéria para isso. Ora vede. O que o anjo em Nazaré disse à Virgem foi: Et ecce Elisabeth cognata tua, et ipsa concepit filium in senectute sua:47 que sua parenta Isabel, naquela sua velhice, tinha concebido um filho. As obras de misericórdia dividem-se em dois gêneros: obras de misericórdia espirituais, e obras de misericórdia corporais. Ao filho, que era o Batista, livrou e santificou a Senhora do pecado original, que foi obra de misericórdia espiritual; à mãe assistiu-a nas moléstias da prenhez, as quais naquela idade são maiores, que foi obra de misericórdia corporal; (por isso tendo dito o anjo que já estava no sexto mês: Et hic mensis sextus est illi,48 a assistência da Senhora foi dos três meses que faltavam para o parto: Mansit autem cum illa quasi mensibus tribus:49 ) e como na casa de Zacarias se exercitaram as obras de misericórdia, o que não podia ser na de Nazaré, por isso naquela casa da misericórdia se fez a ação de graças, como nós a fazemos nesta, e naquela casa da misericórdia se cantaram as vitórias do braço de Deus, como nós cantamos nesta a nossa vitória, confessando que foi sua. Agora vede como na mesma casa da misericórdia, onde as primeiras obras de misericórdia se exercitaram, e a Virgem com seu Filho as exercitou, ali levantou a Senhora a primeira Irmandade da Misericórdia, e ali levantou a ban47. Lc 1:36 [E eis que também Isabel, tua prima, concebeu um filho em sua velhice; e é este o sexto mês para aquela que era chamada estéril.] 48. Lc 1:36 [E eis que também Isabel, tua prima, concebeu um filho em sua velhice; e é este o sexto mês para aquela que era chamada estéril.] 49. Lc 1:56 [E Maria ficou com ela quase três meses e depois voltou para sua casa.] 314
sermão da visitação… deira desta piedosa e sempre vitoriosa milícia. Fala a Virgem Maria de si mesma nos Cantares de Salomão, e assim como dela diz hoje o Evangelista: Intravit in domum Zachariae assim diz de si a Senhora: Introduxit me in cellam (ou, como está no hebreu: in domum vinariam) et ordinavit in me charitatem.50 Que casa fosse esta, a que o texto chama vinaria, entendem comumente os intérpretes que era uma casa particular, onde naquele ameno retiro, que el-rei Salomão chamou saltus Libani, bosque do Líbano, se guardavam os mais preciosos licores das vinhas do mesmo monte. Eu, com licença de todos, que não têm na Escritura mais fundamento que o mesmo nome, sem o mudar nem me apartar dele, entendo que era uma casa onde o mesmo Salomão tinha depositado todos os segredos e extratos da sua física e arte médica, a qual professava e ensinava publicamente em uma grande sala do mesmo retiro, como tão necessários à prática da mesma ciência, depois de tantos e tão excelentes livros que tinha escrito dela, e foram às fontes derivadas pelo Egito, donde depois a beberam os Hipócrates e Galenos. Tanto assim que um Salomão alegado por Avicena,51 entendem muitos que foi o rei de Israel. Esta casa podia ser aquela, da qual escreve S. Jerônimo nas tradições hebraicas, que se chamavam: Domus Nechota,52 a qual, e semelhantes boticas, diz expressamente Isaías se conservavam no mesmo palácio que tinha sido de Salomão, em tempo de el-rei Ezequias, quando as mostrou, que não devera, aos embaixadores de Babilônia: Et ostendit eis cellam aromatum, et odoramentorum, et unguenti oprimi, et omnes apothecas 50. Ct 2:4 [Ele Introduziu-me na dispensa do vinho, ordenou em mim o amor.] 51. Avicena e Serápion. 52. Hieron. In tradit. [PL: Vol. 23: Opera Omnia Hieronymi Stridanensis. Hieronymus Stridonensis: S. Eusebii Hieronymi Stridonensis Presbyteri Liber Hebraicarum Quaestionum in Genesim. (C) Incipit Liber.] 315
sermões supellectilis suae.53 E quanto ao nome de vinaria, cellam vinariam, tão longe está de desfazer ou encontrar esta minha exposição, que antes a confirma, porque a palavra vinaria debaixo de um só nome significa toda a medicina e todos os medicamentos. Ovídio, poeta latino: Temporibus medicina juvat, data tempore prosunt, Et data non apto tempore vina nocent. E Paníase, poeta grego citado por Ateneu: vinum mortalibus ipsum Cujus vis medicina mali.54 E, o que mais é, os dois grandes doutores da Igreja, S. João Crisóstomo,55 e Santo Agostinho,56 um também latino, e outro grego, ambos pelas mesmas palavras: Vinum omnes animi langores detet. Entrada, pois, ou introduzida a Virgem, Senhora nessa, naquela casa universal de todos os remédios e medicamentos, e por isso figura expressa desta em que estamos, que fez o Senhor que levava dentro em si? Introduxit me rex in cellam vinariam, et ordinavit in me charitatem O que fez, diz a mesma Senhora que foi instituir nela, e com ela, e por ela, uma ordem chamada da caridade, que é a Irmandade da Misericórdia: Ordinavit in me charitatem. E que mais? Admiravelmente o texto hebreu: Vexillum posuit in me charitas: Essa mesma Ordem da Caridade e Irmandade da Misericórdia levantou em mim a sua bandeira, sendo eu na 53. Is 39:2 [E Ezequias alegrou-se com isto, e mostrou aos enviados o repositório dos aromas, e da prata, e do ouro, e dos perfumes, e dos unguentos preciosos, e todos os gabinetes das suas alfaias, e em geral tudo o que se encontrava nos seus tesouros. Não houve nada no seu palácio, nem do que estava debaixo do seu poder, que Ezequias não mostrasse.] 54. Ateneus lib. 2. 55. Crisóstomo homil. De cast. Et sobriet. 56. S. Aug. Ad Virgin. Cap. 1. 316
sermão da visitação… mesma bandeira a sua insígnia. E essa bandeira é de paz ou de guerra? De guerra, e militar, dizem todos os expositores da palavra ordinavit. E entre eles o doutíssimo Del Rio, comentando a mesma, e a que se segue, in me, diz assim: Staluit me sub vexillo charitatis: jussit me in hoc ordine militare. De sorte que não só quis Deus que a Senhora fosse a padroeira desta ordem, e a insígnia de sua bandeira, senão que também com a mesma irmandade militasse debaixo dela. Enfim, para que a Bahia saiba com toda a certeza donde lhe veio a vitória que festeja, e de que dá graças a Deus: Unde hoc mihi, veja como marchou esta ordem militar contra seus inimigos, e como voltou triunfante deles. Tudo viram e celebraram os anjos com duas admirações. A primeira admiração começou perguntando: Quae est ista quae progreditur quasi Aurora consurgens:57 Quem é esta que vai caminhando como a Aurora quando se levanta? Como Aurora, dizem, porque a Aurora é a mãe do Sol, e tanto que a Virgem o teve concebido, então se levantou e caminhou, ou marchou: Exurgens Maria abiit in montana. Agora se segue o que obrou com a sua milícia ou ordem militar. Terribilis ut castrorum acies ordinata: a palavra ordinata significa a mesma ordem, e a palavra terribilis o efeito. O efeito e fim da nossa vitória consistiu propriissimamente no terror com que o medo e confusão pôs em fugida o inimigo, de noite, em silêncio, precipitadamente, e desamparando tudo. Deste primeiro efeito se seguiu o segundo, e a segunda admiração dos anjos, já depois da vitória, vendo eles e ouvindo o que nós estamos ouvindo e vendo. Quid videbis in Sunamite, nisi choros castrorum?58 Que vereis em Sunamite, que 57. Ct 6:9 [Quem é esta, que vai caminhando como a aurora quando se levanta, formosa como a lua, brilhante como o sol, terrível como um exército formado em batalha?] 58. Ct 7:1 [— Que verás tu na Sulamites senão coros de dança num acampamento? — Quão belos são os teus pés, no calçado que trazes, 317
sermões é a mesma Virgem, senão os arraiais da sua milícia convertidos em coros? Um coro devoto e pio, outro festivo e triunfante; um coro cujas vozes sobem ao céu, outro que alegra a terra; um coro que canta a ação de graças a Deus, o outro que canta e celebra a sua e a nossa vitória.
xi Satisfeita a dúvida, e respondida a pergunta da Bahia: Unde hoc mihi: agora quero eu falar também com ela, e dizer-lhe duas palavras. Mas quais serão estas? Digo, Bahia, que assim como te mostras tão agradecida a Deus pela tua, ou sua vitória, não sejas, nem deves ser ingrata àqueles a quem principalmente a deves. Não pretendo defraudar os nossos capitães e soldados, mas assegurar-lhes pelo meio que direi, as outras vitórias que ainda havemos mister, para debelar inteiramente a potência e orgulho dos nossos inimigos. Na memorável batalha de Judas Macabeu contra Nicanor, posto em fugida, depois de mortos muitos, o exército inimigo, a primeira coisa que fizeram os vencedores foi dar graças a Deus pela vitória: Benedicentes Dominum, qui liberavit eos in isto die, misericordiae initium stillans in eos:59 e logo, recolhidos os despojos, a parte também primeira deles dedicaram aos pobres, enfermos, órfãos e viúvas, e depois destas primícias tão piamente empregadas, repartiram o demais entre si: Debilibus, orphanis, et viduis diviserunt spolia:
ó filha do príncipe! As juntas dos teus músculos são como colares, fabricados por mão de mestre.] 59. 2Mc 8:27 [Tendo depois recolhido as armas e os despojos dos inimigos, celebraram o sábado, bendizendo ao Senhor, que os tinha livrado naquele dia, derramando sobre eles como que as primeiras gotas da sua misericórdia.] 318
sermão da visitação… et residua ipsi cum suis habuere.60 Agora saibamos que política militar foi a destes soldados, tão pouco usada nos exércitos ainda cristãos e católicos. O que sucede muitas vezes é que depois da vitória, sobre a repartição dos despojos, se deem batalhas entre si os mesmos soldados vencedores. Que motivo tiveram logo os macabeus para trocarem esta cobiça natural em uma tão piedosa liberalidade, e cederem do seu direito, aplicando, não só parte dos seus despojos, senão a primeira, aos pobres e enfermos? Nas palavras notáveis com que deram as graças a Deus declararam a sua tenção: Misericordiae initium stillans in eos. Aplicaram de comum consentimento aquela obra de misericórdia aos pobres e enfermos, para que a misericórdia que Deus tinha usado com eles, dando-lhes uma tão insigne vitória, fosse princípio das que esperavam de sua misericordiosa e poderosa mão. Isto quer dizer aquele misericordiae initium. E isto mesmo é o que eu digo à Bahia, não só enquanto composta da parte política e civil, senão também da militar: que a primeira parte dos despojos da nossa vitória seja dos pobres enfermos e feridos deste hospital, e dos que a mesma guerra, pela morte dos pais, ou maridos, fez órfãos e viúvas: Debilibus, orphanis et viduis diviserunt spolia. Oh! que bem pareceriam quatro daqueles oito canhões das batarias inimigas na porta desta Casa da Misericórdia, para eterna memória da misericórdia divina, com que ela nos livrou do perigo em que nos vimos: Qui liberavit eos in isto die e para que esta misericórdia e esta vitória seja princípio das que havemos mister: Misericordiae initium stillans in eos! Não deixemos passar sem ponderação esta última palavra, nunca em toda a Escritura usada nesta matéria e em tal sentido. Que quer 60. 2Mc 8:28 [E, depois do sábado, repartiram dos despojos com os enfermos, e com os órfãos, e com as viúvas; e reservaram o resto para si e para os seus.] 319
sermões dizer stillans in eos? Não diz que lhe deu Deus a vitória, ou que usou com eles de sua misericórdia, senão que a estilou neles: stillans in eos. De sorte que chamaram àquela vitória o estilado da divina misericórdia, nome que nós também podemos dar à nossa. Se fora o estilado da divina justiça, o qual se faz dos pecados, havia de ser castigo, assolação e cativeiro, que é o que o inimigo pretendia. Assim diz o texto sagrado, que no exército de Nicanor vinham já os mercadores que haviam de comprar por escravos aos hebreus depois de vencidos. E porque o general e soldados vencedores entenderam que o estilado da misericórdia de Deus se fez das obras de misericórdia dos homens, por isso tão sábia como piedosamente aplicaram àquela obra de misericórdia os seus despojos, para que os despojos de uma vitória fossem o princípio das outras: Misericordiae initium stillans in eos. Dir-me-á a Bahia que está mui carregada de tributos para sustentar os seus presídios. E eu ainda que lhe não inculcarei minas ou tesouros de prata, responder-lhe-ei com duas sentenças ou alvitres de ouro. Uma sentença é de S. João Crisóstomo, cujo sobrenome quer dizer o da boca de ouro; a outra é de S. Pedro Crisólogo, cujo apelido, também não menos precioso, quer dizer o das palavras de ouro. Crisóstomo diz assim: Hos itaque conspiciens milites quotidie pro te pugnantes, a temetipso istud tributum exige eorum alimenta: Suposto que os pobres são os soldados que cotidianamente estão pelejando por vós, e defendendo os vossos muros, assim como os reis põem tributos a toda a cidade, para que sustente os seus presídios, assim cada um de vós voluntariamente deve impor a si mesmo outro tributo, com que sustente estes seus defensores. Isto é de Crisóstomo. E Crisólogo, que diz? Que entre as pagas de uns e outros soldados, as dos pobres devem ser as primeiras, como fez o grande Macabeu, porque os pobres nos livros ou nas matrículas de Deus são as primeiras planas. Vede-o na 320
sermão da visitação… paga geral do dia do Juízo: Venite, benedicti: esurivi enim, et dedistis mihi manducare.61 Pelos pobres se começa a paga geral do dia do Juízo, e pelos que os sustentam, porque uns e outros, como vimos, são os que ativa e passivamente militam debaixo da bandeira da Misericórdia. As palavras do santo são mais que de ouro: Prima stipendia pauperis tractantur in caelo, eroqatio pauperis prima divinis inscribitur in diurnis.62 Suposto, pois, senhores, que esta precedência têm no céu os pobres e as obras de misericórdia, razão é que a tenham também na terra. Não ponhais os olhos nestes soldados estropiados, muitos deles sem mãos e sem braços, para desconfiar dos seus socorros; mas aplicai os ouvidos, como dizia, aos seus ais e aos seus gemidos, que são os que mais penetram o céu, e movem a misericórdia divina, e, por ela, a sua onipotência para nos ajudar. Nesta eficacíssima intercessão, nesta mais que em nenhuma outra devemos pôr a nossa esperança, para que seja segura. Assim no-la ensina a mesma Virgem Senhora, nossa mestra, com o seu exemplo, e protetora com o seu amparo desta sua casa. Diz Santo Ambrósio, falando da mesma Mãe de Deus (o que ninguém pudera imaginar por este mesmo título): Non in incerto divitiarum, sed in prece pauperis spem reponens. Notável dizer, e por infinitas razões admirável! A Virgem Maria não é aquela, de quem canta a Igreja que é toda a nossa esperança, saudando-a e invocando-a com este mesmo título: Spes nostra, salve? Pois, como a que é a esperança nossa põe a sua esperança na oração dos pobres? Mais, e agora compreenderei em uma pala61. Mt 25:34-35 [Então, dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o Reino que vos está preparado desde a fundação do mundo; porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me.] 62. [PL: Vol. 52: Sanctus Petrus Chrysologus. Sermones S. Petri Chrysologi. Petrus Chrysologus: S. Petri Chrysologi Ravennatis Archiepiscopi Sermones. (C,G)* Sermo xiv. De fructibus eleemosynae, in psalmum xl.] 321
sermões vra o infinito desta admiração. O mesmo Filho de Deus, fazendo oração a seu Eterno Padre na cruz, pede que o salve por intercessão da Mãe, que, quando o concebeu, se chamou escrava sua: Salvum fac filium ancillae tuae.63 Pois, se o mesmo Verbo encarnado não alega a seu Pai ser Filho seu, senão de sua Mãe, e nela põe suas esperanças, como a mesma Mãe, esperança nossa e esperança sua, põe a sua esperança na oração e intercessão dos pobres: In prece pauperis spem reponens? Não respondo, porque esta admiração não tem outra resposta, senão a mesma admiração. Ficai com ela nos ouvidos e nos corações, para que ninguém duvide que a esta Casa da Misericórdia e aos pobres dela devemos a vitória passada, e que no seu remédio e nas suas orações devemos segurar as futuras. A mesma Mãe da misericórdia, e o mesmo Pai das misericórdias se dignem de no-lo conceder assim, nesta vida com muita graça, penhor da glória, etc.
63. S1 85:15 [Põe os olhos em mim, e tem piedade de mim, dá o teu poder ao teu servo, e salva o filho da tua escrava.] 322
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LIVRO
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SERM DOS
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BONS ANNOS, Em Lisboa, na C,apeIla Real) Anno de 1641.
P~fiquam con[umtnati funt dies 08:0) 1~t circumcide:; retur pftler, 'Vocatum cJt" rWllJen ejf1s rcfus, quod 'Vocatum eH ab Angelo; priufquam i1~ utero don.. cip,retur. Luc. capo 2.
§. I.
M hú mun-. do tamavarêrodebês, . ondeapenas fe encontra com hum bom dia , ter obrigaçam de dar bons annos,âifficulrofo empenho! Dcos
4; 9
queheAuthôrdetodos os
bens, os de a V. ReaesMa". geftades felicil1imos ( muy altos , &muy poderofos Reys, & Senhores nofTos) com a vida", com a profpe.. . ridade, com a G:;nfcrvaça6, & aumento de Efiados,que as efperanças do Jnúdo publicaó, que o.bem da Fe Carholica deíeja , que a lvlon.archia. de Portugal ha
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Sermão dos Bons Anos
Em Lisboa, na Capela Real, Ano de 1641
Postquam consummati sunt dies octo, ut circumcideretur puer, vocatum est nomen ejus Jesus, quod vocatum est ab angelo, priusquam in utero conciperetur.2 Lc, 2.
i Em um Mundo tão avarento de bens, onde apenas se encontra com um bom dia, ter obrigação de dar bons-anos, dificultoso empenho! Deus, que é autor de todos os bens, os dê a Vossas Reais Majestades felicíssimos (mui altos e mui poderosos Reis e Senhores nossos) com a vida, com a prosperidade, com a conservação e aumento de estados que as esperanças do Mundo publicam, que o bem da Fé Católica deseja, que a Monarquia de Portugal há mister e que eu hoje quisera prometer e ainda assegurar.
2. Lc 2[:21] [E, depois que se completaram os oito dias para ser circuncidado o menino, foi-lhe posto o nome de Jesus, como lhe tinha chamado o anjo, antes que fosse concebido no ventre.] 325
sermões Em um Mundo, digo, tão avarento de bens, onde apenas se encontra com um bom-dia, ter obrigação de dar bons-anos, dificultoso empenho! E na minha opinião cresce ainda mais esta dificuldade, porque isto de dar bons-anos, entendo-o de diferente maneira do que comumente se pratica no Mundo. Os bons-anos não os dá quem os deseja, senão quem os assegura. A quantos se desejaram nesta vida, a quantos se deram os bons-anos, que os não lograram bons, senão mui infelizes? Segue-se logo, própria e rigorosamente falando, que não dá os bons-anos quem só os deseja, senão quem os faz seguros. Esta é a dificuldade a que me vejo empenhado hoje, que o tempo e o Evangelho fazem ainda maior. Em todo o tempo é dificultoso cousa segurar anos felizes; mas muito mais em tempo de guerras e em tempo de felicidades. Se o dia dos bens é véspera dos males; se para merecer uma desgraça, basta ter sido ditoso, quem fará confiança em glórias presentes, para esperar prosperidades futuras? Se a campanha é uma mesa de jogo onde se ganha e se perde; se as bandeiras vitoriosas mais firmes seguem o vento vário que as meneia, quem se prometerá firmeza na guerra, que derruba muralhas de mármore? E como a guerra e a felicidade são dois acidentes tão vários; como a Fortuna e Marte são dois árbitros do Mundo tão inconstantes, como poderei eu seguramente prometer bons-anos a Portugal, em tempo que o vejo por uma parte com as armas nas mãos, por outra com as mãos cheias de felicidade? Se apelo para o Evangelho, também parece que promete ameaças, mais que esperanças; porque nos aparece nele um cometa abrasado e sanguinolento, ut circumcideretur puer, e os cometas desta cor sempre foram fatais aos reinos e formidáveis às monarquias. Terret fera regna cometes sanguineum spargens ignem, disse lá Sílio.3 A matéria dos cometas são os vapores, ou exa3. Sílio. 326
sermão dos bons anos lações da terra subidas ao céu; e como no mistério da Encarnação subiu ao Céu a terra de nossa humanidade, que outra cousa parece Cristo hoje com o sangue da circuncisão, senão um cometa abrasado e sanguinolento, e por isso funesto e temeroso? Ora com isto se representar assim, com o Evangelho e o tempo parecer que nos prometem poucas esperanças de felizes anos, do mesmo tempo e do mesmo Evangelho hei de tirar hoje a prova e segurança deles Será pois a matéria e empresa do sermão esta: Felicidades de Portugal, juízo dos anos que vêm. Digo dos anos, e não do ano, porque quem tem obrigação de dar bons-anos, não satisfaz com um só, senão com muitos. Funda-me o pensamento o mesmo Evangelho, que parece o desfavorecia; porque toda a matéria e sentido dele é um prognóstico de felicidades futuras. Toda a matéria do brevíssimo Evangelho que hoje canta a Igreja vem a ser a circuncisão de Cristo e o nome santíssimo de Jesus. E destes dois grandes mistérios se compôs uma constelação benigníssima, que tomada no horizonte oriental de Cristo, foi figura de todo o bem e remédio do Mundo. que o Senhor havia de obrar em seus maiores anos. S. Cirilo:4 Vocatum est nomen ejus Jesus, quod interp,etatur Salvator; editus enim fuit ad toIius mundi salutem, quam sua circumcisione praefiguravit. Grande palavra! De sorte que circuncidar-se Cristo e chamar-se Jesus no dia de hoje, foi levantar figura, praefiguravit, aos sucessos dos anos seguintes, à salvação e felicidades futuras de todo o género humano: Totius mundi, salutem, quum sua circumcisione praefiguravit. Nem desfaz esta verdade a representação do sanguinolento, com que parece nos atemorizava Cristo nos efeitos da circuncisão; porque aquele belo infante não é cometa, é planeta; não é terra subida ao céu, é céu descido à terra. E o céu, quando se põe de vermelho, que prognostica? O mesmo Cristo o disse, que 4. S. Cirilo. 327
sermões não é menos que sua esta matemática: Serenum erit, rubicundum est enim Caelum.5 Quando o céu se veste de vermelho, prognostica serenidade. Sempre a serenidade foi título natural das púrpuras. E como aquele Céu animado, como aquele Rei celestial se veste da púrpura de seu sangue, serenidades e felicidades grandes nos prognostica que nas ações do tempo e nas palavras do Evangelho iremos discorrendo por partes.
ii Postquam consummati sunt dies octo, ut circumcideretur puer, vocatum est nomen ejus Jesus, quod vocatum est ab ungelo, priusquam in utero conciperetur. Comecemos por estas últimas palavras. Diz S. Lucas que, passados os oito dias, termo da circuncisão, lhe puseram a Cristo por nome Jesus; e nota, antes manda notar o Evangelista, que este nome foi anunciado pelo Anjo, antes que o Senhor fosse concebido: Quod vocatum est ab angelo, priusquam in utero conciperetur. Dá razão desta advertência a glossa interlineal, e diz que foi: Ne homo videretur machinator hujus nominis: Para que não parecesse este glorioso nome maquinado por invento de homens, senão mandado, como era, pela verdade de Deus. Entrou Cristo no Mundo a reduzi-lo com nome de Salvador e Libertador, que isso quer dizer Jesus; pois para que esta apelidada liberdade não a possa julgar alguém por invenção e obra humana, seja profetizada e revelada primeiro por um ministro da Providência Divina: Quod vocatum est ab angelo, priusquam in utero conciperetur. Não quero referir profecias do bem que gozamos, porque as suponho mui pregadas neste lugar e mui sabidas de todos; reparar sim, e ponderar o intento delas quisera. Digo que 5. Mt 16:2 [Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Vós, quando vai chegando a noite, dizeis: Haverá tempo sereno, porque o céu está vermelho.] 328
sermão dos bons anos ordenou Deus que fosse a liberdade de Portugal, como os venturosos sucessos dela, tanto tempo antes e por tão repetidos oráculos profetizada, para que, quando víssemos estas maravilhas humanas, entendêssemos que eram disposições e obras divinas, e para que nos alumiasse e confirmasse a fé onde a mesma admiração nos embaraçasse. (Falo de fé menos rigorosa, quanta cabe em matérias não definidas, posto que de grande certeza.) Alega Cristo um texto do Salmo xl, em que descreve David o meio extraordinário por onde os procedimentos injustos de um mau homem dariam princípio à redenção de todos, como seria traído o Redentor, como o pretenderiam derrubar por engano do seu estado; e intimando o Senhor o caso aos discípulos, disse estas particulares palavras: Dico vobis antequam fiat, ut cum factum fuerit credatis quia ego sum.6 Eu sou este de quem aqui fala David (que assim explicam o lugar Santo Agostinho, Ruperto, Teofilato e outros); e digo-vos isto antes que aconteça, para que depois de acontecer o creiais. Notável teologia, por certo! Se o Senhor dissera Digo-vos estas cousas para que creiais, antes que aconteçam, facilmente dito estava; isso é fé: crer o que não se vê; mas dizer as causas antes que se façam, a fim de que se creiam depois de feitas: Ut cum factum fueri credatis? O que está feito, o que se vê, o que se apalpa necessita de fé? Algumas vezes sim; porque sucedem casos no Mundo, como este de que Cristo falava, tão novos e inauditos; sucedem cousas tão raras, tão prodigiosas e por meios de proporção tão desigual e muitas vezes tão contrários ao mesmo fim, que, ainda depois de vistas com os olhos, ainda depois de experimentadas com as mãos, não basta a evidência dos sentidos para as não duvidar, é necessário recorrer aos motivos da fé para lhes dar crédito: Dico vobis antequam fiat, ut cum 6. Jo 13:19 [Desde agora vo-lo digo, antes que suceda, para que, quando suceder, creiais que sou eu.] 329
sermões factum fuerit, credatis. Tais considero eu os sucessos nunca imaginados de nosso Portugal, que, como excessivamente nos acreditam, assim excedem todo o crédito. Quis Deus que fossem tantos anos antes e tão vulgarmente profetizados estes sucessos, não tanto para os esperarmos futuros, quanto para os crermos presentes; não para nos alentarem a esperança antes de sucederem, mas para nos confirmaram a fé depois de sucedidos. Haviam de suceder as cousas de Portugal, como sucederam, de tão prodigiosa maneira, que, ainda depois de vistas, parece que as duvidamos; ainda depois de experimentadas, quase as não acabamos de crer: pois profetize-se esta venturosa liberdade e ainda o nome felicíssimo do libertador, muito tempo antes, priusquam in utero conciperetur, para que entre as dúvidas dos sentidos, entre os assombros da admiração, peçam os olhos socorro à fé e creiam o que veem por profetizado, quando o não creiam por visto. Por duas razões se persuadem mal os homens a crer algumas cousas: ou por muito dificultosas, ou por muito desejadas; o desejo e a dificuldade fazem as cousas pouco críveis. Era Sara de idade de noventa anos, sobre estéril; promete-lhe um anjo que Deus lhe daria fruto de bênção; e diz a Escritura que se riu e zombou muito disso Sara; e ainda depois de ter um filho chamou-lhe Isac, que quer dizer riso: Risum fecit mihi Deus.7 Estava S. Pedro em poder de el-rei Herodes preso e com apertada guarda; apareceu-lhe outro anjo, que lhe quebrou as cadeias e o livrou; e diz o texto sagrado: Existimabat autem se visum videre:8 que cuidava Pedro que aquilo era sonho e ilusão. Pois Pedro, pois Sara, que incredulidade é esta? Vê-se Sara com um filho nos braços, e chama-lhe riso? Vê-se Pedro com as cadeias fora das 7. Gn 21:6 [E Sara disse: Deus me deu riso, e todo aquele que ouvir rirá juntamente comigo.] 8. At 12:9 [E ele, saindo, seguia-o, e não sabia que era realidade o que se fazia por intervenção do anjo, mas julgava ver uma visão.] 330
sermão dos bons anos mãos, e chama-lhe sonho? Assim havia de ser, porque ambas eram cousas muito dificultosas e ambas muito desejadas. Desejava Sara um filho, como a sucessão de sua casa; desejava Pedro a liberdade, como a mesma liberdade bem da Igreja. A sucessão de Sara estava em poder de noventa anos; a liberdade de Pedro estava em poder de Herodes e de seus soldados; e como a dificuldade era tão grande e o desejo igual à dificuldade, ainda que viam com seus alhos e tinham nas mãos o que desejavam, a Sara, parecia-lhe cousa de riso, a Pedro parecia-lhe cousa de sonho. Que Sara estéril haja de ter filho! Que a prosápia real portuguesa esterilizada e atenuada na décima sexta geração, haja de ter descendente que lhe suceda! Que Sara, depois de noventa anos! que a coroa de Portugal depois de sessenta! O que não teve quando estava na flor de sua idade, o que não teve quando estava com todas as suas forças o viesse alcançar depois de tão envelhecida e quebrantada? Muito desejávamos, muito suspirávamos por este bem, mas quanto maior era o desejo, tanto mais parecia. e quase parece ainda cousa de riso: Risum fecit mihi Deus. Que Pedro em poder de el-rei Herodes; que Portugal em poder não de um. senão de muitos reis que o dominavam, lhes houvesse de escapar das mãos tão facilmente! Que Pedro cercado de guardas: Quator quaternionibus militum;9 que Portugal, presidiado de infantaria em tantos castelos, em tantas fortalezas, sem se arrancar uma espada, sem se disparar um arcabuz; conseguisse em uma hora sua liberdade! Era empresa esta tão dificultosa, representava-se tão impossível ao discurso humano, que ainda agora parece que é sonho e ilusão: Existimabat se visum videre. Assim lhes aconteceu aos filhos de Israel, quando se 9. At 12:4 [E tendo-o mandado prender, meteu-o no cárcere, dando-o a guardar a quatro piquetes de quatro soldados cada um, tendo intenção de o apresentar ao povo depois da Páscoa.] 331
sermões viram livres do cativeiro de Babilónia: In convertendo Dominus captivitatem Sion facti sumus (lê o hebreu) sicut somniantes:10 que incrédulos, de admirados, tinham a verdade por imaginação e cuidavam que estavam sonhando o que viam com os olhos abertos. E como os sucessos de nossa restauração eram matérias de tão dificultoso crédito, que, ainda depois de vistos, parecem sonho e quase se não acabam de crer, ordenou Deus que fossem tanto tempo antes, como tão singulares circunstâncias e com o nome do mesmo libertador profetizadas, para que a certeza das profecias desfizesse os escrúpulos da experiência; para que, sendo objecto da fé, não parecesse ilusão dos sentidos; para que, revelando-as tantos ministros de Deus, se visse que não eram inventos dos homens: Ne homo videretur machinator hujus nominis, quod vocatum est ab angelo, priusquum in utero conciperetur.
iii Temos considerado o priusquam, vamos agora ao postquam: Postquam consummati sunt dies octo, ut circumcideretur puer. O que aqui pondera e sente muito a piedade dos santos, principalmente S. Bernardo, é que, nascido de oito dias, sujeitasse o Senhor aquele corpozinho tenro ao duro golpe da circuncisão. Tão depressa? Aos oito dias já derramando sangue? Desta pressa se espantam os Doutores; mas eu não me espanto senão deste vagar. Que venha Cristo a remir, e que espere dias? E que espere horas? E que espere instantes? Quem cuida que é pouco tempo oito dias, mal sabe o que é esperar pela Redenção. Quando Cristo se encontrou com os discípulos de Emaús, iam eles contando a história de seu Mestre e a causa que os levava peregrinos por esse Mundo, e disseram estas notáveis palavras: Nos autem 10. S1 125:1 [Cântico das subidas. Quando o Senhor fez voltar os cativos de Sião, nós ficamos como que a sonhar.] 332
sermão dos bons anos sperabamus, quia ipse esset redempturus Israel; et nunc super haec omnia tertia dies est hodie:11 Nós esperávamos que este nosso Mestre havia de remir o povo de Israel; e no cabo de tudo isto, vemos agora que já se vão passando três dias. Três dias? Pois que muito é isso? Que espaço de tempo são três dias para uns homens desmaiarem? Para uns homens se entristecerem? Para uns homens se desesperarem tanto? Não se desesperavam, porque eram três dias, senão porque eram três dias de esperar pela Redenção. Esperavam aqueles discípulos que o Senhor havia de remir a Israel: Nos autem sperabamus quia ipse esset redempturus Israel. E para quem está cativo, para quem espera pela Redenção, três dias é muito tempo: Et nunc super haec omnia: como se foram passadas três eternidades: Tertia dies est hodie: Já se vão passando três dias; é muito tempo para quem espera pela Redenção, quanto mais tempo seriam os oito dias que se dilatou a circuncisão de Cristo, pois esperava o Mundo neles, que começasse o Senhor a derramar o sangue e dar o preço com que o remiu! Não há dúvida que foi muito cedo para a dor, mas não foi muito cedo para o remédio; foram poucos dias para quem vivia. mas muitos para quem esperava. Bem o entendeu assim o Evangelista; porque, havendo de contar estes oito dias, veja-se o aparato de palavras com que o faz: Postquam consummati sunt; depois que foram consumados: parece que armava a dizer oito séculos, ou oito mil anos, segundo a grandeza vagarosa e a ponderação das palavras; e no cabo disse: dies octo, oito dias; que, como eram dias de esperar Redenção, ainda Que não foram mais que oito, pareciam uma duração muito comprida, e que não acabavam de chegar, segundo tardavam: Postquam consummati sunt. 11. Lc 24:21 [Ora, nós esperávamos que ele fosse o que havia de resgatar Israel; e agora, depois de tudo isto, é já hoje o terceiro dia depois que estas coisas sucederam.] 333
sermões E se oito dias de esperar pela redenção, e ainda três dias, é tanto tempo; quanto seria, ou quanto pareceria, não três dias, nem oito dias, não três anos, nem oito anos, senão sessenta anos inteiros nos quais Portugal esteve esperando sua redenção, debaixo de um cativeiro tão duro e tão injusto! Não me paro a o ponderar; porque em dia tão de festa, não dizem bem memórias de tristezas, ainda que os males passados, parte vêm a ser de alegria. O que digo é que nos devemos alegrar com todo o coração e dar imortais graças a Deus, pois vemos tão felizmente logradas nossas esperanças. Nem nos pese de ter esperado tão longamente; porque se há de recompensar a dilação da esperança com a perpetuidade da posse. Perguntam os Teólogos como São Tomás na terceira parte, porque se dilatou tanto tempo o mistério da Encarnação, porque não desceu o Verbo Eterno a remir o Mundo, senão depois de tantos anos? Várias razões dão os Doutores: a de Santo Agostinho é muito própria do que queremos dizer: Diu fuit expectandus, semper tenendus. Quis o Verbo Eterno que esperassem os homens e suspirassem tantos séculos por sua vinda, porque era bem que fosse muito tempo esperado um bem que havia de ser sempre possuído. Haviam os homens de gozar para sempre a presença de Cristo, havia o Verbo de ser homem perpetuamente: porque, Quod semel assumpsit nunquam demisit, o que uma vez tomou, nunca mais o largou; seja pois este bem por muito tempo esperado, pois há de ser por todo o tempo possuído, e mereça com as dilações da esperança a perpetuidade da posse: Diu fuit expectandus, semper tenendus.12 Não necessita de acomodação o lugar; de firmeza sim, pelas dependências que tem no futuro; mas um espírito profético e portu12. [PL: Vol. 35: Opera Omnia Augustini Hipponensis. In Joannis Evangelium Tractatus cxxiv. Augustinus H ipponensis: S. Aurelii Augustini Hipponensis Episcopi in Joannis Evangelium Tractatus cxxiv. (C) Tractatus xxxi.] 334
sermão dos bons anos guês nos fiará a conjectura desta tão gostosa verdade. S. Frei Gil, religioso da sagrada ordem de S. Domingos, naquelas suas tão celebradas profecias, diz desta maneira: Lusitania sanguine orbata regio diu ingemiscet:13 A Lusitânia o reino de Portugal, morrendo seu último rei sem filho herdeiro, gemerá e suspirará por muito tempo; Sed propitius tibi Deus: Mas lembrar-se-á Deus de vós, ó Pátria minha, diz o Santo; Et insperate ab insperato redimeris: E sereis remida não esperadamente por um rei não esperado. E depois de assim remido, depois de assim libertado Portugal, que lhe sucederá? Africa debellabitur: Será vencida e conquistada África. Imperium ottomanum ruet: O império otomano cairá sujeito e rendido a seus pés. Domus Dei recuperabitur: A casa santa de Jerusalém será finalmente recuperada. E por coroa de tão gloriosas vitórias, Aetas aurea reviviscet. Ressuscitará a idade dourada. Pax ubique erit. Haverá paz universal no Mundo. Felices qui viderint: Ditosos e bem-aventurados os que isto virem. Até aqui S. Frei Gil profetizando. De sorte que, assim como antes da Redenção houve suspirar e gemer, assim depois da Redenção haverá possuir e gozar; e assim como os suspiros e gemidos duraram por tantos anos, assim as felicidades e bens permanecerão sem termo e sem limite. O muito, quer Deus que não custe pouco, e era justo que a tanta glória precedesse tanta esperança, e que quem havia de gozar sempre, suspirasse muito: Lusitania diu ingemiscet. Diu fuit expectandus, semper tenendus. E já que vai de esperanças, não deixemos passar sem ponderação aquelas palavras misteriosas da profecia: Insperate ab insperato redimeris. De propósito reparei nelas, para refutar com suas próprias armas alguma relíquia, que dizem que ainda há daquela seita ou desesperação dos que esperavam por el-rei D. Sebastião, de gloriosa e lamentável 13. S. Frei Gil. 335
sermões memória. Diz a profecia: Insperate ab insperato redimeris. Que seria remido Portugal não esperadamente por um rei não esperado. Segue-se logo, evidentemente, que não podia el-rei D. Sebastião ser o libertador de Portugal, porque o libertador prometido havia de ser um rei não esperado: Insperate ab insperato; e el-rei D. Sebastião era tão esperado vulgarmente, como sabemos todos. Assim que os mesmos sequazes desta Opinião, com seu esperar, destruíram sua esperança; porque quanto o faziam mais esperado, tanto confirmavam mais que não era ele o prometido; podendo-se-lhe aplicar propriamente aquelas palavras que S. Paulo disse de Abraão: Contra spem in spem credidit:14 que creram em uma esperança contrária à sua mesma esperança; porque pelo mesmo que esperavam, tinham obrigação de não esperar. Mas ainda que concedamos que os Portugueses não souberam esperar, não lhes neguemos que souberam amar, e com muita ventura; que talvez buscando a um rei morto, se vêm a encontrar com um vivo. Morto buscava a Madalena a Cristo na sepultura, e a perseverança e amor com que insistiu em o buscar morto, foi causa de que o Senhor lhe enxugasse as lágrimas e se lhe mostrasse vivo. Grande exemplar temos entre mãos! Assim como a Madalena, cega de amor, chorava às portas da sepultura de Cristo, assim Portugal, sempre amante de seus reis, insistia ao sepulcro de el-rei D. Sebastião, chorando e suspirando por ele; e assim como a Madalena no mesmo tempo tinha a Cristo presente e vivo, e o via com seus olhos e lhe falava e não o conhecia, porque estava encoberto e disfarçado, assim Portugal tinha presente e vivo a el-rei nosso senhor, e o via e lhe falava e não conhecia. Porquê? Não só porque estava, senão por14. Rm 4:18 [Ele creu na esperança, contra a esperança, de que seria pai de muitas gentes, segundo o que lhe foi dito: Assim será a tua descendência.] 336
sermão dos bons anos que ele era o encoberto. Ser o encoberto e estar presente, bem mostrou Cristo neste passo que não era impossível. E quando se descobriu Cristo? Quando se manifestou este Senhor encoberto? Até esta circunstância não faltou no texto. Disse a Madalena a Cristo: Tulerunt Dominum meum:15 Levaram-me o meu Senhor; e o Senhor não lhe deferiu. Nescio ubi posuerunt eum: queixou-se que não sabia onde lho puseram; e dissimulou Cristo da mesma maneira. Si tu sustulisti eum:16 Se vós, Senhor, o levastes, dicito mihi, dizei-mo; e ainda aqui se deixou o Senhor estar encoberto sem se manifestar. Finalmente, alentando-se a Madalena mais do que sua fraqueza permitia, e tirando forças do mesmo amor, acrescentou: Et ego eum tollam: E eu o levantarei; e tanto que disse, eu o levantarei: Ego eum tollam: então se descobriu o Senhor, mostrando que ele era por quem chorava; e a Madalena o reconheceu e se lançou a seus pés. Nem mais nem menos Portugal, depois da morte de seu último rei. Buscava-o por esse Mundo, perguntava por ele, não sabia onde estava, chorava, suspirava, gemia, e o rei vivo e verdadeiro deixava-se estar encoberto e não se manifestava, porque não era ainda chegada a ocasião; porém tanto que o Reino, animoso sobre suas forças, se deliberou a dizer resolutamente: Ego eum tollam: eu o levantarei e sustentarei com meus braços, então se descobriu o encoberto Senhor, porque então era chegado o tempo, dizendo-nos aos Portugueses o que diz S. Gregório que disse Cristo à Madalena
15. Jo 20:13 [E eles disseram-lhe: Mulher, por que choras? Respondeulhes: Porque levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram.] 16. Jo 20:15 [Disse-lhe Jesus: Mulher, por que choras? A quem procuras? Ela, julgando que era o hortelão, disse-lhe: Senhor, se tu o tiraste, dize-me onde o puseste; e eu o levarei.] 337
sermões manifestando-se: Recognosce eum, a quo recognosceris:17 Reconhecei a quem vos reconhece; reconhecei por rei, a quem vos reconhece por vassalo. Então sim, e não antes; então sim, e não depois; porque aquele e não outro era o tempo oportuno e determinado de dar princípio à nossa redenção. Recebeu Cristo o golpe da circuncisão e deu princípio à Redenção do Mundo, não antes nem depois, senão pontualmente aos oito dias: Dies octo, ut circumcideretur puer. Pois porque antes, ou porque não depois? Não se circuncidara ao dia sétimo? Não se circuncidara ao dia nono? Porque não antes nem depois, senão ao oitavo? A razão foi porque as cousas que faz Deus e as que se hão de fazer bem feitas, não se fazem antes, nem depois, senão a seu tempo. O tempo assinalado nas Escrituras para a circuncisão era o dia oitavo, como se lê no Gênesis e no Levítico: Die octavo circumcideretur infantulus.18 E por isso se circuncidou Cristo, sem se antecipar, nem dilatar aos oito dias: Postquam consummati sunt dies octo; porque como o Senhor remiu o gênero humano por obediência aos decretos divinos, o tempo que estava assinalado na lei para a circuncisão era o que estava predestinado para dar princípio à redenção do Mundo. Da mesma maneira se deu princípio à redenção e restauração de Portugal em tais dias e em tal ano, no celebradíssimo de 40, porque esse era o tempo oportuno e decretado por Deus; e não antes nem depois, como os homens quiseram. Quiseram os homens que fosse antes, quando sucedeu o levantamento de Évora; quiseram os homens que fosse depois, quando assentaram que o dia da aclamação fosse o 1º de Janeiro, hoje faz um ano; mas a Providência Divina 17. [PL: Vol. 76: Opera Omnia Gregorii. Homiliae in Evangelia. Gregorius i: Sancti Gregorii Magni Romani Pontificis xl Homiliarum in Evangelia Libri Duo. (C,S) Liber Secundus. Homilia xxv.] 18. 17 Lv 12:3 [E, no oitavo dia, será o menino circuncidado.] 338
sermão dos bons anos ordenou se antecipasse, para que pontualmente se desse princípio à restauração de Portugal a seu tempo: Postquam consummati sunt dies octo.
v Daqui fica tacitamente respondida uma não mal fundada admiração, com que parece podíamos reparar os Portugueses, em que os sereníssimos duques de Bragança vivessem retirados todos estes anos, sem acudirem à liberdade do Reino, como legítimos herdeiros que eram dele. Respondido está; declaro mais a resposta: Cristo, Redentor nosso, ainda em quanto homem, como provam muitos Doutores, era legítimo herdeiro da coroa de Israel: Dabit illi Dominus Deus sedem David Patris ejus: et regnabit.19 Tinha tiranizado este reino Herodes, homem estrangeiro, a quem por este e por muitos outros títulos não pertencia; e como, sobre ter usurpado o Reino, lhe quisesse tirar a vida a Cristo, diz o texto, que o Senhor se lhe não opôs, antes se retirou para o Egipto: Secessit in Aegyptum.20 Notável ação! Não sois vós, Senhor, o verdadeiro Rei de Israel, como legítimo herdeiro seu, que, ainda que não empunhais o ceptro, Rei sois e Rei nascestes, e assim o confessam as nações e reis estrangeiros: Ubi est qui natus est Rex Judiorum?21 Pois como vos retirais agora, como vos não apondes à tirania de Herodes, como ides viver ao Egipto, e tantos anos? Não vedes o que padecem tantos inocentes? Não ouvis que já chegam ao Céu as vozes da lastimada Raquel, que chora seus filhos: Vox in Rama audita 19. Lc 1:32 [Este será grande, e será chamado filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai, Davi; e reinará eternamente na casa de Jacó.] 20. Mt 2:14 [E ele, levantando-se, tomou de noite o menino e sua mãe, e retirou-se para o Egito.] 21. Mt 2:2 [Dizendo: Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Porque nós vimos a sua estrela no Oriente, e viemos adorá-lo.] 339
sermões est, ploratus et ululatus multus, Racuel plorans filios suos? 22 Pois se a vós, como a Rei natural, incumbe a restauração do Reino, como vos retirais da empresa? Nem me aleguem em contrário os poucos dias que tinha o Senhor de vida ou de idade, depois dos oito da circuncisão, porque na mesma circuncisão e na mesma retirada do Egito tinha e lhe sobejava tudo o que era necessário para livrar do cativeiro os que nele tinham a esperança da liberdade. Ou Cristo os havia de remir com o sangue próprio, ou com o alheio: se com o próprio, bastava uma só gota do sangue da circuncisão, para remir não só o reino de Israel, senão todo o Mundo. Se com o sangue alheio o mesmo anjo que disse a S. José: Fuge in Aegyptum,23 podia fazer a Herodes e a todos seus presídios e soldados, o que outro anjo fez aos exércitos de el-rei Senaquerib, matando em uma noite oitenta e cinco mil dos que sitiavam a mesma Jerusalém. Pois se isto era não só possível, mas fácil, ao legítimo e verdadeiro Rei de Israel, porque o não executou então? Porque não era ainda chegado o tempo, diz excelentemente S. Pedro Crisólogo: Cedens tempori non Herodi.24 Tinha decretado e disposto, que o tempo da Redenção fosse dali a trinta e três anos e se a Providência Divina, que tudo pode, espera pelas disposições e circunstâncias do tempo; quanto mais a providência humana, a qual o não seria, se com toda a atenção e vigilância as não observasse, aguardando pelas mais convenientes e oportu22. Mt 2:18 [Uma voz se ouviu em Ramá, grandes prantos e lamentações: Raquel chorando seus filhos, sem admitir consolação, porque já não existem.] 23. Mt 2:13 [Tendo eles partido, eis que um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e lhe disse: Levanta-te, toma o menino e sua mãe, e foge para o Egito, e fica lá até que eu te avise; porque Herodes vai procurar o menino para o matar.] 24. [PL. Vol. 52: Sanctus Petrus Chrysologus. Sermones S. Petri Chrysologi. Petrus Chrysologus: S. Petri Chrysologi Ravennatis Archiepiscopi Sermones. (C,G)* Sermo cl. De fuga Christi in Aegyptum.] 340
sermão dos bons anos nas que Deus e o mesmo tempo lhe oferecesse! Assim que, podiam responder aqueles príncipes, como legítimos e naturais senhorios e herdeiros da coroa de seus avós, o que em semelhante caso disseram os famosos Macabeus, assim antes como depois de restituídos ao seu próprio patrimônio: Neque alienam terram sumpsimus, negue aliena detinemus, sed haereditatem patrum nostrorum, quae injuste ab aliquo tempore ab inimicis nostris possessu est; nos vero tempus habentes vindicamus haereditatem patrum nostrorum.25 E foi de tanta importância esperar pela oportunidade do tempo, que por esta dilação se veio a lograr aquela primeira máxima de toda a razão de estado, assim da Providência Divina, como da providência humana, que é saber concordar estes dois extremos: conseguir o intento e evitar o perigo. Já perguntamos que razão teve Cristo para receber a circuncisão ao oitavo dia conforme a Lei. Agora pergunto: que razão teve a Lei para mandar que a circuncisão se fizesse ao oitavo dia? A circuncisão naquele tempo era o remédio do pecado original, como hoje o é o batismo, bem que com diferente perfeição. Pois se na circuncisão consistia o remédio do pecado original, e a liberdade das almas cativas pelo pecado; porque não mandava Deus que se circuncidassem os meninos logo quando nasciam, ou ao terceiro ou ao quarto dia, senão ao oitavo? A razão literal foi, diz o Abulense, porque quis Deus aplicar o remédio de tal maneira, que se evitasse o perigo: Quia ante octo dies potest esse vitae periculum. Quando os meninos nascem, cm todos aqueles primeiros sete dias correm grande perigo de vida, porque são dias críticos e arriscados, como dizem Aristóteles e Galeno; pois ainda que o remédio dos recém-nascidos e sua 25. Mc 15:33 [E Simão respondeu-lhe nestes termos: Nós não temos usurpado o país de ninguém, nem retemos os bens doutrem, mas temos somente recuperado a herança de nossos pais, que de algum tempo a esta parte estava injustamente possuída pelos nossos inimigos.] 341
sermões espiritual liberdade consistia na circuncisão, não se circuncidem, diz a Lei, senão ao oitavo dia, passados os sete que essa é a excelente razão de estado da providência de Deus saber dilatar o remédio, para escusar o perigo: dilate-se o remédio da circuncisão até o oitavo dia, para que se evite o perigo da vida, que há do primeiro ao sétimo: Quia ante octo dies potest esse vitae periculum. Se Portugal se levantara enquanto Castela estava vitoriosa, ou, quando menos, enquanto estava pacífica, segundo o miserável estado em que nos tinham posto, era a empresa mui arriscada, eram os dias críticos e perigosos; mas como a Providência Divina cuidava tão particularmente de nosso bem, por isso ordenou que se dilatasse nossa restauração tanto tempo, e que se esperasse a ocasião oportuna do ano de quarenta, em que Castela estava tão embaraçada com inimigos, tão apertada com guerras de dentro e de fora; para que, na diversão de suas impossibilidades, se lograsse mais segura a nossa resolução. Dilatou-se o remédio, mas segurou-se o perigo. Quando os Filisteus se quiseram levantar contra Sansão, aguardaram a que Dalila lhe tivesse presas e atadas as mãos, e então deram sobre ele. Assim o fizeram os Portugueses bem advertidos. Aguardaram a que Catalunha atasse as mãos ao Sansão que os oprimia, e como o tiveram assim embaraçado e preso, então se levantaram contra ele tão oportuna como venturosamente. Mas vejo que me dizem os lidos na Escritura, que é verdade que os Filisteus se levantaram contra Sansão, mas que ele soltou as ataduras. voltou sobre eles e desbaratou-os a todos. Primeiramente muito vai de Sansão a Sansão e de Filisteus a Filisteus. Mas dado que em tudo fora a semelhança igual, esta mesma réplica confirma mais o meu intento. Não tiveram bom sucesso os Filisteus, porque ainda que nós os imitamos em parte, eles não nos deram exemplo em tudo. Intentaram, mas não conseguiram; porque as diligências que fizeram não as aplica342
sermão dos bons anos ram a tempo. As diligências que fizeram os Filisteus contra Sansão, foi atarem-lhe as mãos e cortarem-lhe os cabelos; mas não aproveitaram estes efeitos, ainda que se obraram: porque, devendo-se fazer ao mesmo tempo, fizeram-se em diversos. Quando lhe ataram as mãos, deixaram-lhe ficar os cabelos. com que teve força para se desatar; quando lhe cortaram os cabelos deixaram-lhos crescer outra vez com que teve mãos para se vingar. Pois que remédio tinham os Filisteus para se livrarem de todo e acabarem de uma vez com Sansão? O remédio era fazerem como nós fizemos e como nós fazemos e como nós havemos de fazer: enquanto Sansão está com as mãos atadas, cortar-lhe os cabelos no mesmo tempo, e acabou-se Sansão. Assim o podiam vencer os Filisteus com muita facilidade, que doutra maneira não seria tão fácil. Porque se lhe não cortassem os cabelos, teria forças para desatar as mãos, e se desatassem as mãos, seria necessária muita força para lhe cortar os cabelos. Tanto como isto importa executar os remédios a tempo, como nós, por mercê de Deus, o temos feito até agora tão felizmente, conseguindo a maior empresa e evitando o menor perigo; porque soubemos esperar pelos dias oportunos, como mandava a Lei esperar pelos da circuncisão: Dies octo, ut circumcideretur puer.
vi Ut circumcideretur puer vocatum est nomen ejus Jesus. Tanto que se circuncidou o Menino, logo se chamou Salvador. Mas com que consequência? pergunta S. Bernardo: Circumciditur puer et vocatur Jesus; quid sibi vult ista connexio? 26 Que parentesco tem o nome com a ação? Que combi26. [PL: Vol. 183: Sancti Bernardi Abbatis Clarae-Vallensis Operum Tomus Tertius, Compleetens Sermones de Tempore et de Sanetis, ae de Diversis. Saneti Bernardi Abbatis C1arae-Vallensis Sermones de Tempore. Bernardus Claraevallensis: in Cireumcisione Domini. Sermo i. De 343
sermões nação tem o salvar com o circuncidar-se? Três razões acho nos santos; duas repito, uma só pondero. S. Bernardo e Eusébio Emisseno, dizem que foi a circuncisão de Cristo: Totius superfluitatis abjectio: Uma estreita e mui reformada privação de todo o supérfluo. Vinha Cristo como Rei e Redentor do Mundo a remi-lo e restaurá-lo, e a primeira cousa que fez, como a mais necessária e importante, foi estreitar-se em sua Pessoa, cercear demasias, cortar superfluidades e fazer uma pragmática geral com seu exemplo: Totius superfluitatis abjectio. Muitas graças sejam dadas a Deus, que para confirmação ou imitação desta grande razão de estado divina, não temos necessidade de cansar a memória, senão de abrir os olhos; não de resolver escrituras antigas, senão de venerar e amar exemplos presentes. Assim obra quem assim reina; assim sabe libertar quem assim sabe estreitar: Ut circumcideretur puer, vocatum est nomen ejus Jesus. A segunda razão é de Santo Epifânio, e diz que foi: Ut confirmaret circumcisionem, quam olim instituerat ejus adventui servientem:27 Que quis o Redentor confirmar desta maneira e honrar a circuncisão, pelo que antes da sua vinda tinha servido. Bem advertido, mas muito melhor imitado. Parece que os decretos do Governo de Portugal e os decretos da Providência Divina correram parelhas (quanto pode ser) na sua e na nossa redenção. Decretou Deus que à circuncisão se lhe confirmassem suas antigas honras. havendo respeito ao bem que tinha servido: e o mesmo decreto se passou cá, e com muita razão: Ut confirmaret circumcisionem ejus adventui servientem. Tinha servido a circuncisão no tempo passado e na Lei Velha, pois honre-se no tempo presente e premeie-se na Lei Nova; que não é bem que a leetione evangeliea,llPostquam eonsummati sunt dies oeto, ut cireumcideretur puer, voeatum est nomen ejus Jesus.] 27. Santo Epifânio. 344
sermão dos bons anos felicidade geral venha a ser infortúnio dos que serviram. Que a circuncisão, que tinha tantos anos de serviços, que a circuncisão, que tinha derramado tanto sangue, houvesse de ser desgraçada, porque o mundo foi venturoso, não estava isso posto em razão. Pois baixe um decreto que lhe confirme efectivamente todas as honras passadas: Ut confirmaret circumcisionem, quam olim instituerat; que é bem que a Lei da Graça premeie não só os serviços seus, senão os da Lei Antiga, para mostrar, nisso mesmo, que é Lei da Graça. Oh! que grande política esta, assim humana, como divina! El-rei Assuero mandava ler as histórias e crônicas do reino, para fazer mercês aos que em tempo de seus antecessores tinham servido. El-rei Salomão sustentava de sua própria mesa aos filhos de Berzelai, por serviços feitos em tempo e à pessoa de David; e ó Rei dos reis, Cristo Redentor nosso, quando no Monte Tabor desembargou suas glórias (que também pode ser expediente estarem embargadas por algum tempo), repartiu-as a três que serviam e a dois que tinham servido; a S. Pedro, a S. João e a Santiago, porque atualmente serviam; e a Moisés e a Elias, um vivo e outro defunto, porque tinham servido em tempos passados. Assim recebe Cristo e autoriza hoje a circuncisão, conforme as honras do tempo antigo, não porque se quisesse servir dela, que já estava muito envelhecida e a queria aposentar, senão pelo bem que dantes tinha servido: Ejus odventui servientem. A terceira e última razão é de Santo Ambrósio, de Santo Agostinho, de S. João Crisóstomo, de Santo Tomás e ainda de S. Paulo, ou quando menos fundada em sua doutrina, e é esta (alego tantos Doutores pela dificuldade da razão): Ea ratione pro nobis circumcisus est, ut circumcisionem auferret: Recebeu Cristo a circuncisão, porque, como autor da Lei Nova, queria tirar do Mundo a circuncisão. Estranha sentença! Pois porque Cristo queria tirar do Mundo a circuncisão, por isso recebe e executa em si a mesma circuncisão? 345
sermões Antes parece que para a tirar do Mundo havia de entrar condenando-a, desterrando-a, proibindo-a sob graves penas, e não a admitindo por nenhum caso. Pouco sabe das razões verdadeiras de estado quem assim discorre. Circuncida-se Cristo para tirar do Mundo a circuncisão, porque quem entra a introduzir uma lei nova, não pode tirar de repente os abusos da velha. Há de permitir com dissimulação para tirar com suavidade; há de deixar crescer o trigo com cizânia, para arrancar a cizânia, quando não faça mal às raízes do trigo. Todo o zelo é mal sofrido, mas o zelo português mais impaciente que todos. A qualquer relíquia dos males passados, a qualquer sombra das desigualdades antigas, já tomamos o céu com as mãos, porque não está tudo mudado, porque não está emendado tudo. Assim se muda um reino? Assim se emenda uma monarquia? Tantos entendimentos assim se endireitam? Tantas vontades tão diferentes assim se temperam? Rei era Cristo, e Rei Redentor, e nenhuma cousa trazia mais diante dos olhos, que extinguir os usos da Lei Velha e renovar e introduzir os preceitos da Nova; e com ter sabedoria infinita e braços onipotentes, ao cabo de trinta e três anos de reino, muitas cousas deixou como as achara, para que seu sucessor S. Pedro as emendasse. Já Cristo não estava vivo, quando se rasgou o véu do templo, figura da Lei Antiga. E que cousa se podia representar mais fácil, que romper um tafetá em trinta e três anos? Pouco e pouco se fazem as cousas grandes, e não há melhor arbítrio para as concluir com brevidade, que não as querer acabar de repente. Instituiu Cristo, Redentor nosso, o sacramento da Eucaristia, e instituiu-o na mesma mesa em que estava o cordeiro legal. Pois, Senhor meu, que combinação é esta, ou que companhia? O cordeiro com o sacramento? As cerimônias da Lei Velha com os mistérios da Nova na mesma mesa? Sim, que assim era necessário que fosse, para que viesse a ser o que era necessário. Queria Cristo introduzir 346
sermão dos bons anos o sacramento e lançar fora o cordeiro da Lei. e para isso permitiu que o cordeiro estivesse embora na mesma mesa com o sacramento, que desta maneira se desterram com suavidade as sombras das leis velhas, e se vão introduzindo e conciliando os resplendores das novas. Estejam agora juntos o sacramento e o cordeiro, que amanhã irá fora o cordeiro, e ficará o sacramento. Com este vagar faz Deus as cousas, e assim quer que as façam os que estão em seu lugar (quando elas o sofrem); e tenha mais paciência o zelo, não seja tão estreito de coração. Mais dói aos reis que aos vassalos dissimular com algumas cousas; mas por força se hão de fazer assim, para se não fazerem por força. Muito lhe doeu a Cristo, gotas de sangue lhe custou contemporizar com a circuncisão; mas foi necessário dissimular com dor, para remediar mm sucesso. Não é o mesmo permitir que aprovar, antes o que se permite já se supõe condenado. A benevolência e dissimulação, como são afetos da mesma cor, equivocam-se facilmente nas aparências; e quantas vezes se choraram ruínas, os que se invejaram favores! Vem a ser indústria no príncipe, o que é razão de estado no lavrador, que as espigas que há de cortar, essas abraça primeiro. Assim abraçou Cristo a circuncisão, porque a queria cortar e arrancar do Mundo: Ea ratione circumcisus est, ut circumcisionem auferret, mostrando na suavidade desta razão, e nas outras cousas por que se circuncidou, quão bem se proporcionava com os meios o nome que lhe puseram de Salvador: Ut circumcideretur puer, vocatum est nomen ejus Jesus. Mas porque se chamou Salvador? Porque não tomou outro nome? Que o não tomasse de algum atributo de sua divindade, bem está, pois vinha a ser homem! mas ainda em quanto homem tinha Cristo a maior dignidade da terra, que era a de rei. Pois já que havia de tomar o nome do ofício e não da pessoa, porque não se chamou Rei, porque se chamou Salvador? A razão deu-a Tertuliano: Gratius illi erat 347
sermões pietatis nomen, quam majestatis.28 Deixou Cristo o nome de rei e tomou o de Salvador, porque estimava mais o nome de piedade, que o título de majestade. O nome de Rei era nome majestoso, o nome de Salvador era nome piedoso; o nome de Rei dizia imperar, o nome de Salvador dizia libertar; e fazendo o Senhor a eleição pela estimação, tomou o de nosso remédio, deixou o de sua grandeza. Por isso os anjos, na embaixada que deram aos pastores, puseram primeiro o nome de Salvador e depois o de Ungido: Quia natus est vobis hodie Salvator, qui est Christus Dominus.29 E por isso no título da cruz se chamou o Senhor Jesus Rei. e não Rei Jesus: Jesus Nazarenus, Rex Judaeorum;30 para mostrar no princípio e no fim da vida, que estimava mais o exercício de nossa liberdade, que a grandeza de sua majestade: Gratius illi erat pietatis nomen, quam majestatis. Se os corações puderam discorrer sensivelmente, quanto melhor falaram neste passo, do que os poderá copiar a língua? Isto que Tertuliano31 disse pelo primeiro Libertador do gênero humano, pudéramos nós dizer com ação de graças pelo segundo libertador de Portugal, o qual nesta felicíssima e verdadeiramente real arção mostrou bem quanto mais estimava o nome da piedade, que o título da majestade; pois convidado tantas vezes para a grandeza, rejeitou generosamente o ceptro; e agora chamado para o remédio, aceitou animosamente a coroa: Gratius illi erat pietatis nomen, quam majestatis. Rei não por ambição de reinar, senão por compaixão de libertar; rei verdadeiramente imitador do Rei dos reis, 28. Tertuliano. 29. Lc 2 :11 [Nasceu-vos na cidade de Davi um Salvador, que é o Cristo Senhor.] 30. Jo 19:17[19] [E Pilatos escreveu também um título, e o pôs sobre a cruz. E estava escrito: Jesus Nazareno, Rei dos Judeus.] 31. Tertuliano. 348
sermão dos bons anos que sobre todos os títulos de sua grandeza estimou o nome de Libertador e Salvador: Vocatum est nomen ejus Jesus.
vii Acabou-se o Evangelho, e eu tenho acabado o sermão. Mas vejo que me estão caluniando e arguindo, porque não provei o que prometi. Prometi fazer neste sermão um juízo dos anos que vêm, e eu não fiz mais que referir os sucessos dos anos passados. Mostrei a razão das profecias, as dilações da esperança, e oportunidade do tempo o acerto dos decretos, a propriedade e merecimento do nome, e tudo isto é história do que foi, e não prognóstico do que há de ser. Ora, ainda que o não pareça, eu me tenho desempenhado do que prometi, e todo este discurso foi um prognóstico certo e um juízo infalível dos anos que vêm Tudo o que disse, ou foram profecias cumpridas, ou benefícios manifestos da mão de Deus: e em profecias e benefícios começados, o mesmo é referir o passado, que prognosticar e segurar o futuro. Partiu Cristo desterrado a Egito, e diz o Evangelista S. Mateus: Ut impleretur, quod dictum est per prophetam: ex Aegypto vocavi Filium meum:32 que aqui se cumpriu a profecia do profeta Oseas, em que dizia Deus, que havia de chamar e tirar do Egito a seu Filho. Dificultoso lugar! Argumento assim: as profecias não se cumprem, senão quando sucedem as cousas profetizadas: Cristo não voltou do Egito senão daí a sete anos; logo, não se cumpriu então, nem se podia cumprir esta profecia de Oséas. Se dissera o Evangelista, que se cumpria a profecia de Isaías: Ecce Dominus ascendet
32. Mt 2:15 [E lá esteve até a morte de Herodes, cumprindo-se deste modo o que tinha sido dito pelo Senhor por meio do profeta, que disse: Do Egito chamei o meu filho.] 349
sermões super nubem levem et ingredietur Aegyptum,33 claro estava; mas dizer, quando entrou no Egito, que então se cumpriu a profecia de quando saiu, que não foi senão daí a tantos anos, como pode ser? Reparo foi este de Ruperto Abade, o qual satisfaz à dúvida com uma razão mística; mas a literal, e que nos serve é esta: Como as profecias, quanto à evidência, se qualificam pelos efeitos, e na execução do que prometem têm a canonização de sua verdade; é consequência tão infalível cumpridas as primeiras profecias haverem-se de cumprir as segundas, que quando se mostra o cumprimento de umas, logo se podem dar por cumpridas as outras. Por isso o Evangelista, ainda discursando humanamente, quando viu que se cumpria a profecia de Cristo entrar no Egito, deu logo por cumprida também a profecia de haver de voltar para a pátria; e assim disse: Ut impleretur quod dictum est per prophetam: que então se cumpriu o que tinha profetizado Oséas, não quanto à execução, senão quanto à evidência; porque o cumprimento da profecia passada, era nova e certa profecia de se cumprir a futura; que se numa parte não faltou o efeito, como poderia faltar na outra? Muitas felicidades tem logo que ver Portugal nos anos seguintes e muitas lhe tenho eu prognosticado neste sermão; porque, como as mesmas profecias que prometeram o que vemos cumprido, prometem ainda outros maiores aumentos a este Reino ou a este Império, como elas dizem, o mesmo foi referir o desempenho felicíssimo das profecias passadas, que prognosticar, antes segurar com firmeza o cumprimento infalível das que estão por vir. Se as nossas profecias na parte mais dificultosa foram profecias, na parte mais fácil, que resta, porque o não serão?
33. Is 19:1 [Oráculo contra o Egito. Eis que o Senhor subirá sobre uma nuvem leve, e entrará no Egito, e os ídolos do Egito se comoverão diante da sua face, e o coração do Egito se mirrará em seu peito.] 350
sermão dos bons anos Sete cousas profetizou o Anjo embaixador à Virgem Maria: Ecce concipies in utero, et paries Filium, et vocabis nomen ejus Jesum. Hic erit magnus, et Filius Altissimi vocabitur, et dabit illi Dominus Deus sedem David Patris ejus et regnabit in domo Jacob in aeternum, et regni ejus non erit finis:34 que conceberia; que pariria um filho; que lhe poria por nome Jesus; que seria grande; que se chamaria Filho de Deus; que Deus lhe daria o trono de David seu Pai; que reinaria na casa de Jacob para sempre; e que seu Reino não teria fim. E destas sete profecias, vendo cumprida Santa Isabel só a primeira, pelos efeitos dela julgou que se haviam de cumprir todas as mais: Quoniam preficientur ea, quae dicta sunt tibi a Domino.35 O mesmo discurso fiz eu, e o devemos fazer todos os Portugueses, se não queremos ser hereges da boa razão e de uma fé mais que humana, dando todos c parabém a Portugal e chamando-lhe mil vezes feliz: Quoniam perficientur et, quae dicta sunt tibi a Domino. Por que como se começaram a cumprir as profecias em sua restauração, assim as levará Deus por diante e lhes dará o cumprimento gloriosíssimo que elas prometam. Até agora era necessária pia afeição para dar fé às nossas profecias, mas já hoje basta o discurso e boa razão, por que os efeitos presentes das passadas são nova profecia dos futuros; bem assim como (para que até aqui nos não falte o Evangelho) a imposição do nome de Jesus que hoje chamaram a Cristo, Vocatum est nomen ejus Jesus, foi cumprimento do que estava profetizado e profecia do que estava por cumprir. Foi cumprimento do que estava profetizado, porque profetizado estava que se chamaria Jesus o Filho da 34. Lc 1:31 [31–33] [Eis que conceberás no teu ventre, e darás à luz um filho, e pôr-lhe-ás o nome de Jesus. Este será grande, e será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai, Davi; e reinará eternamente na casa de Jacó; e o seu reino não terá fim.] 35. Lc 1:45 [E bem-aventurada tu, que creste, porque se hão de cumprir as coisas que da parte do Senhor te foram ditas.] 351
sermões Virgem: Paries Filium et vocabis nomen ejus Jesum. Foi profecia do que estava por cumprir, porque o nome de Jesus, que quer dizer Salvador, era profecia que havia de salvar Cristo e remir o gênero humano: Vocabitur nomen ejus Jesus: ipse enim salvum faciet populum suum a peccatis eorum.36
viii Nos benefícios passa o mesmo. Muitos lugares pudera trazer; um só digo, que pela propriedade do nome tem privilégio de se preferir a todos. Nasceu S. João Baptista, e assentaram consigo os vizinhos daquelas montanhas, que havia de ser o menino pessoa notável e que esperavam grandes venturas em seus maiores anos: Posuerunt in corde sua, dicentes: Quis, putas, puer iste erit? 37 Pois de onde o tiraram estes homens? Que fundamento tiveram para se resolverem tão assentadamente nas grandezas de João e em seus aumentos? O fundamento que os moveu, eles mesmos o disseram ou o Evangelista por eles: Quis putas, puer iste erit? Etenim manus Domini erat cum illo.38 Viam os milagres, viam as maravilhas, viam as mercês extraordinárias que Deus com mão tão liberal fazia a João logo em seus princípios, e do erat, tiraram o erit; das experiências do que era, inferiam evidências do que havia de ser; porque aqueles benefícios de Deus presentes, eram prognósticos das felicidades futuras: Etenim manus Domini erat cum illo. Assim como a quiromância humana, quando quer dizer a boa-ventura, olha para as 36. Mt 1:21 [E dará à luz um filho ao qual porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos seus pecados.] 37. Lc 1:66 [E todos os que as ouviram as ponderavam no seu coração, dizendo: Quem julgas que virá ser este menino? Porque a mão do Senhor era com ele.] 38. Lc 1:66 [E todos ós que as ouviram as ponderavam no seu coração, dizendo: Quem julgas que virá ser este menino? Porque a mão do Senhor era com ele.] 352
sermão dos bons anos mãos dos homens, assim a quiromância divina, a arte de adivinhar ao celeste, olha para as mãos de Deus, e como a mão de Deus estava tão liberal com João: Etenim manus Domini erat cum illo, na disposição destas primeiras liberalidades, como em caracteres expressos, estavam lendo a sucessão das futuras; e das grandezas maravilhosas que já eram, julgavam as que, correndo os anos, haviam de ser: Quis, putas, puer iste erit? Etenim manus Domini erat cum illo. Ora grande simpatia tem a mão de Deus com o nome de João. Bem o mostrou o Senhor na feliz aclamação de Sua Majestade, que Deus nos guarde, como há de guardar muitos anos, pois aos ecos do nome de João, despregou da cruz o braço o mesmo Cristo, assegurando-nos que, assim como a mão de Deus estivera com o primeiro João da Judeia, assim estava e havia de estar sempre com o quarto de Portugal: Etenim manus Dominis erat cum illo. Bem experimentamos esta assistência nos sucessos que referi, e em todos os felicíssimos do ano passado, que em todas as cousas que Sua Majestade pôs a mão, pôs também a Divina a sua. E se estes ou semelhantes efeitos da mão de Deus foram bastantes prognósticos para uns montanheses rústicos, assaz claro foi o modo de prognosticar que segui, falando entre cortesãos tão entendidos. Nem aqui também nos faltou o Evangelho; porque, se nos confirmou a primeira razão com o mistério do nome de Jesus, agora nos prova a segunda com o da circuncisão, da qual dizem comumente os Doutores, que aquele pouco sangue que o Senhor derramou hoje no presépio, foi sinal e como penhor de haver de derramar todo na cruz; que, como Deus é liberal com omnipotência e bom sem arrependimento, o mesmo é fazer um benefício menor, que penhorar-se a outros maiores. E se estes benefícios que da divina mão temos recebido, se podem chamar menores, os maiores quão grandes serão?
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sermões Nem nos desconfiem estas esperanças os temores que propusemos ao princípio da variedade dos sucessos da guerra, da inconstância das felicidades do Mundo; porque só as felicidades que vêm por mão dos homens, são inconstantes; mas as que vêm por mão de Deus, são firmes, são permanentes. Quando Josué, à entrada da Terra de Promissão, venceu aquelas primeiras e milagrosas batalhas, mostrando os inimigos mortos aos soldados, lhes disse o que eu também digo a todos os Portugueses: Confortamini et estote robusti, sic enim faciet Dominus cunctis hostibus vestris, adversum quos dimicatis.39 Grande ânimo, valentes soldados, grande confiança, valorosos Portugueses, que assim como vencestes felizmente estes inimigos, assim haveis de vencer todos os demais; que, como são vitórias dadas por Deus, este pouco sangue que derramastes em fé de seu poderoso braço, é prognóstico certíssimo do muito que haveis que derramar vencedores; não digo sangue de católicos, que espero em Deus que se hão de desapaixonar muito cedo nossos competidores e que em vosso valor e em seu desengano hão de estudar a verdade de nossa justiça; mas sangue de hereges na Europa, sangue de mouros na África, sangue de gentios na Ásia e na América. vencendo e sujeitando todas as partes do Mundo a um só império, para todas em uma coroa as meterem gloriosamente debaixo dos pés do sucessor de S. Pedro. Assim o contam as profecias, assim o prometem as esperanças, assim o confirmam estes felizes princípios, que a divina bondade se sirva de prosperar até os fins felicíssimos que desejamos, que são os com que remata um sermão deste dia S. Bernardo, cujas palavras tantas vezes têm sido profecias a Portugal: Multiplicabitur sane ejus 39. Js 10:25 [Disse-lhes de novo: Não temais nem vos acobardeis, tende ânimo, e sede fortes; porque assim fará o Senhor a todos os vossos inimigos, contra quem pelejais.] 354
sermão dos bons anos imperium, ut merito Salvator dicatur pro multitudine etiam salvandorum, et pacis non erit finis.40 Para que nossas orações comecem a obrigar a Deus, não peço três ave-marias, senão três petições do Padre nosso: Sanctificetur nomen tuum; Adveniat regnum tuum; Fiat voluntas tua. Santificado e glorificado seja, Senhor, vosso nome; porque ao nome santíssimo de Jesus, como o primeiro e principal Libertador, reconhecemos dever a liberdade que gozamos. Adveniat regnum tuum: Venha a nós, Senhor, o vosso Reino; vosso, porque vosso é o Reino de Portugal, que assim nos fizestes mercê de o dizer a seu primeiro fundador el-rei D. Afonso Henriques: Volo in te et in semine tuo imperium mihi stabilire: E por isso mesmo adveniat, venha; porque como há de ser Portugal um tão grande Império posto que tem já vindo todo o Reino que era, ainda o Reino que há de ser não tem vindo todo. E para que nossas más correspondências não desmereçam tanto bem, Fiat voluntas tua: Fazei, Senhor, que façamos inteiramente vossa santa vontade; porque assim como, nos prognósticos humanos; para advertir sua contingência; se diz: Deus sobre tudo, assim eu neste divino, para assegurar sua certeza, digo também: Deus sobre tudo; porque se sobre tudo amarmos a Deus, cumprindo perfeitamente sua vontade, sem dúvida se inclinará o Senhor a ouvir e satisfazer os afetos da nossa, perpetuando a sucessão de nossas felicidades na perseverança de sua graça: Quam mihi et vobis, etc.
40. [PL: Vol. 183: Sancti Bernardi Abbatis Clarae-Vallensis Operum Tomus Tertius, Compleetens Sermones de Tempore et de Sanctis, ac de Diversis. Sancti Bernardi Abbatis Clarae-Vallensis Sermones de Tempore. Bernardus Claraevallensis: in Circumcisione Domini. Sermo ii. De variis Christi nominibus.] 355
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LIVRO
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DE
S· JOSEPH
Dia em que fez annos EIRey D. Joaõ o IV. na Capella Real ~ anno de 1642.
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Sermão de São José
Dia em que fez anos El-Rei D. João o iv na Capela Real, ano de 1642
Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph.2 Mt, 18.
i Questão foi mui duvidada entre os antigos qual dia desta vida era mais feliz, se o primeiro, se o último; se o do nascimento, se o da morte. Daqui veio que, seguindo várias gentes várias opiniões, umas se alegravam nos nascimentos, outras os celebravam com lágrimas; umas se entristeciam nas mortes, outras as solenizavam com festas. Chegou finalmente a dúvida ao tribunal de el-rei Salomão, o qual, inclinando-se à parte que parecia menos provável, resolveu que melhor é o dia da morte que o dia do nascimento: Melior est dies mortis die nativitatis.3 Com isto estar resoluto e definido assim na Escritura, hoje parece que temos a mesma questão, ou concordada, ou ressuscitada, porque estamos, 2. Mt 1:18 [Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Estando Maria, sua mãe, desposada com José, antes de se ajuntarem, achou-se ter concebido do Espírito Santo.] 3. Ecl 7:2 [7:1] [Melhor é a boa fama do que o melhor unguento, e o dia da morte do que o dia do nascimento de alguém.] 357
sermões por mercê de Deus, em um dia tão glorioso por uma morte, tão feliz por um nascimento, que bem se pode competir dentro em si mesmo, ou a vencer feliz suas glórias, ou a vencer glorioso suas felicidades. Consagrou-se este dia às glórias do céu, com a morte do maior santo que nele reina, o divino Esposo da Virgem Maria, S. José, e consagrou-se outra vez o mesmo dia às felicidades de Portugal, com o nascimento felicíssimo do mais desejado rei, e mais benemérito, el-rei, nosso senhor, Dom João o iv, para que sobre os trinta e oito, que hoje conta, continue por muitos e mui compridos anos as prosperidades que goza. Morre hoje José, e nasce Sua Majestade. Que ventura tão recíproca! Nem José morrendo podia deixar no mundo melhor substituto, nem Sua Majestade nascendo podia entrar no mundo com melhor planeta. Estando Cristo, Redentor nosso, na cruz, olhou para S. João, o discípulo amado, e encarregou-lhe que tivesse cuidado de servir e acompanhar a sua Santíssima Mãe. Reparam alguns santos em não dar o Senhor este cargo a outro apóstolo, senão a S. João, porque, ainda que em São João concorriam todas as qualidades, em algumas era igualado, e em alguma excedido, e, para mordomo da Rainha dos Anjos, todos o excediam no atributo da ancianidade. Pois, se era mais moço João, e havia outros amados, e mais parentes, por que não escolhe Cristo a outro discípulo, senão a S. João para este ofício? A razão foi porque o ofício de acompanhar e servir à Senhora era ofício de S. José enquanto viveu, e para substituir em ausências de José, quem havia de ser senão João? Não é menos que de S. Cipriano o pensamento: Ut non tam Joseph oneretur tanti ministerii praepositura, sed Joannes. Morrera José, vagara no mundo aquele grande lugar, e para substituir em sua morte, para suceder em sua ausência, ninguém havia no mundo que estivesse a caber, senão quem? João, o amado de Deus. João, o amado de Deus, substitui a José: Non tam Joseph, sed Joannes. 358
sermão de são josé E isto quando? No dia de seu nascimento. Parece que não pode ser, porque nem o real nem o nascimento podem competir a S. João aqui. Ora, tudo foi. Quando Cristo deu a S. João o cuidado de servir à Senhora, as palavras que disse foram estas: Mulier, ecce filius tuus:4 Mulher, eis aí teu filho. Deinde dicit discipulo: Ecce Mater tua:5 João, eis aí tua Mãe. Mãe e filho, de que maneira? Mãe tinha S. João, mas era Maria Salomé; filho era, mas do Zebedeu. Pois, se estes eram seus pais, como se chama João filho da Senhora, e a Senhora mãe de João? É porque João tornou a nascer nesta hora, e nasceu só da Virgem por força das palavras de Cristo. Autores houve, e entre eles expressamente S. Pedro Damião, que disseram que, assim como as palavras hoc est corpus meum,6 ditas uma vez por Cristo, tiveram força para converter o pão em corpo do mesmo Cristo, assim as palavras: Mulier, ecce filius tuus tiveram força para fazer a S. João, e o converterem de filho do Zebedeu em filho de Maria. De maneira que S. João teve dois nascimentos: um nascimento natural, com que nasceu filho do Zebedeu; outro nascimento sobrenatural, com que nasceu filho da Mãe de Deus. Pelo primeiro nascimento nasceu nas praias do Tiberíades, pelo segundo nascimento nasceu ao pé da cruz. Pelo primeiro nascimento nasceu de geração humilde, pelo segundo nascimento nasceu da mais ilustre e real prosá4. Jo 19:26 [Ora, Jesus, vendo ali sua mãe e que o discípulo a quem ele amava estava presente, disse à sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho.] 5. Jo 19:27 [Depois, disse ao discípulo: Eis aí tua mãe. Edesde aquela hora o discípulo a recebeu em sua casa.] 6. [PL: Vol. 14: Opera Omnia S. Petri Damiani. Operum S. Petri Damiani in Editione Cajetani Tomus Secundus Complectens Sermones et Sanctorum Historias. Petrus Damianus: B. Petri Damiani Sanctae Romanae Ecclesiae Cardinalis, Episcopi Ostiensis, Ordinis S. Benedicti, Sermones Ordine Mensium Servato (c,g)* Sermo lxiv. De Sancto Joanne Apostolo et Evangelista.] 359
sermões pia que havia no mundo, filho de uma Senhora, herdeira de um rei morto à mão de seus inimigos: Jesus Nazarenus, Rex Judaeorum. Assim nasceu S. João segunda vez, e assim foi necessário que nascesse, para suceder no lugar de S. José, como sucedeu, porque só se pode substituir dignamente a morte de José, com quê? Com o nascimento real de um João, o amado de Deus: Discipulum quem diligebat: Mulier, ecce filius tuus: Non tam Joseph, sed Joannes.
ii Só vejo me podem reparar os curiosos em falar no dia de S. José por termos de morte, sendo que mais devia, com um e outro intento, chamar-lhe nascimento, porque assim chama a Igreja às mortes dos santos: Natalitia Sanctorum. Se eu não fora mais amigo da verdade que da propriedade, assim o fizera, mas as mortes de outros santos podem-se chamar nascimentos, a morte de S. José não. As mortes de outros santos podem-se chamar nascimentos, porque quando morreram à vida temporal nasceram à vida eterna. Não assim São José. Como não estava ainda aberta a porta do céu quando São José morreu, não foi o santo no dia de sua morte à glória, senão ao limbo. Ao limbo São José neste dia? Valha-me Deus, que duvidoso horóscopo! Não sei eu como poderei provar o que entrei dizendo, que não se podia nascer com melhor planeta. Dizem os matemáticos que nascer com os planetas debaixo da terra é prognóstico de infelicidades.7 Pois, se São José neste dia seu o temos debaixo da terra, o corpo na sepultura, a alma no limbo, que influências podemos esperar deste planeta em tão funesto sítio? Ora, digo que é felicíssimo auspício ter neste nascimento a São José debaixo da terra, porque, ainda que os planetas 7. Bocarra in Anacephaleosim Reg. lusit. 360
sermão de são josé debaixo da terra tenham perigosas influências, tiram-se por exceção os planetas que são Josés: os planetas que são Josés, para influírem felizmente, hão de estar debaixo da terra. Estava o patriarca José em Egito; morreu, e diz o texto sagrado que depois de sua morte cresceram muito os israelitas em número e poder: Quo mortuo, creverunt filii Israel, quasi germinantes multiplicati sunt: ac roborati nimis, impleverunt terram.8 Que os filhos de Israel crescessem pelos merecimentos de José não me admira; antes, assim havia de ser, que isso quer dizer José, aumento e crescimento: Joseph accrescens. O que me admira é que crescessem os israelitas depois dele morto: Quo mortuo. Se José quer dizer crescimento, e os filhos de Israel cresceram por sua influência, por que não cresceram em sua vida, senão depois de sua morte? A razão é porque, para se lograrem as influências de José, há de estar debaixo da terra. Delicadamente o tirou Hugo Cardeal do mesmo texto. Diz o texto que: Creverunt quasi germinantes: cresceram os filhos de Israel assim como crescem as plantas. Bem dito, diz Hugo: Uno grano emortuo, multa creverunt: Cresceram os filhos de Israel como as plantas, porque, assim como as plantas, para nascerem e crescerem, é necessário que a virtude de que nascem se enterre primeiro debaixo da terra, assim, para que a virtude de José influísse aumentos nos filhos de Israel, foi necessário que ele morresse e se enterrasse primeiro: Quo mortuo, creverunt. Os outros planetas hão de estar em cima, mas os Josés debaixo da terra. Grande advertência de Filo. Pode-se duvidar a razão por que José se mostrou tão benigno, e fez tantos favores e mercês a seus irmãos, de quem recebera tantos agravos. Digo que se pode duvidar, porque bem mostraram os primeiros 8. Ex 1:6–7 [Sendo, pois, José falecido, e todos os seus irmãos, e toda aquela geração, os filhos de Israel frutificaram, e aumentaram muito, e multiplicaram-se, e foram fortalecidos grandemente; de maneira que a terra se encheu deles.] 361
sermões dois irmãos, Caim e Abel, que não basta a razão de irmandade para abrandar corações. E se um irmão respeitado mata, um irmão ofendido, que fará? Pois, se José estava tão ofendido de seus irmãos, como se mostrou tão benigno e liberal com eles? A razão, disse Filo que foi por umas palavras que disseram a José os irmãos. Quando lhe deram conta de si, disseram que eram doze: os dez que ali estavam, um que ficara com o pai, e outro que morrera, que era o mesmo José. As palavras foram estas: Duodecim fratres sumus: minimus cum patre nostro est, alius non est super.9 O menor de todos, Benjamim, ficou com o pai; o outro, que era José, non est super: já não está em cima, está debaixo da terra. Já está debaixo da terra José? Por isso se mostrou tão benigno e liberal com os irmãos, diz Filo: Alius non est super, de se loquentes audiens, quid animi habere potuit? Ouvindo dizer José que já não estava em cima, senão que estava debaixo da terra, que outra coisa pôde fazer, senão amar, favorecer, influir beneficamente liberalidades? Os outros planetas, para influírem benignamente hão de estar em cima; mas José, quando não está em cima, senão debaixo da terra, como hoje (assim tem o hebreu: Hodie non est super) no dia em que não está em cima, senão debaixo da terra, então influi vida, mercês, felicidades e aumentos.
iii Temos visto o nascimento real de João, o amado, e o sítio do planeta em que nasce, debaixo da terra, no mesmo ou semelhante dia; e, porque os dias, como diz Davi, também se falam e se entendem uns com os outros: Dies diei eructat
9. Gn 42 :13 [E eles disseram: Nós, teus servos, somos doze irmãos, filhos de um varão da terra de Canaã; e eis que o mais novo está com nosso pai, hoje; mas um já não existe.] 362
sermão de são josé verbum;10 com razão perguntará o dia do nascimento de Sua Majestade ao dia em que nasce, de São José, que influências pode ou deve esperar de tão divino planeta. A resposta não é como a dos matemáticos, duvidosa e incerta, mas tão certa e sem dúvida como tudo o que dizem os evangelistas. Vamos ao nosso Evangelho, que é de São Mateus, no capítulo primeiro, e ouçamos com admirável propriedade o que diz, como se falara deste dia, e do nosso caso: Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph: Estava, diz, a Mãe de Jesus, Maria, desposada com José. Onde se deve advertir que a palavra desposada não significa promessa recíproca de bodas futuras, senão verdadeiro e atual matrimônio, por contrato, e palavras de presente, como consta do mesmo texto: Noli timere accipere Mariam conjugem tuam:11 mas a cortesia do evangelista não disse casada, senão desposada, como termo mais decente e decoroso. O que suposto, era a Senhora já Mãe de Jesus, porque tinha concebido ao Verbo Eterno, mas antes de mãe, primeiro desposada. E por quê? Como era e havia de ser sempre Virgem, tanto importava ser primeiro desposada, como depois: por que razão logo ordenou a providência divina que não concebesse ao Filho de Deus, senão depois de desposada: Cum esset desponsata Mater Jesu? A razão principal é porque convinha e era necessário que a conceição e parto da mesma Virgem estivesse encoberto: Ut virgineus partus celaretur. Assim o dizem São Jerônimo, São Basílio, São João Damasceno, Santo Ambrósio,12 São Ber10. Sl 18:3 [Um dia transmite esta mensagem ao outro dia, e uma noite comunica-a a outra noite.] 11. Mt 1:20 [E, projetando ele isso, eis que, em sonho, lhe apareceu um anjo do Senhor, dizendo: José, filho de Davi, não temas receber a Maria, tua mulher, porque o que nela está gerado é do Espírito Santo.] 12. [PL: Vol. 16: Sancti Ambrosii Opera Omnia. De lapsu Virginis Consecratae. Ambrosius Mediolanensis: Sancti Ambrosii Mediolanensis Episcopi de lapsu Virginis Consecratae liber Unus. (c,g,s)* Caput viii.] 363
sermões nardo, e é comum dos santos padres. Constava da Sagrada Escritura, pelo oráculo e testemunho do profeta Isaías, que o Messias e rei prometido para redentor do mundo havia de nascer de uma Virgem: Ecce Virgo concipiet, et pariet filium.13 E porque este rei, não só na terra, senão no mesmo inferno, havia de ter muitos êmulos e inimigos, esta era a importância e necessidade por que convinha e tinha ordenado a divina Providência que estivesse encoberto a todos, como com efeito se encobriu no desposório ou matrimônio da Virgem Santíssima com S. José, parecendo que não tinha mais mistério a conceição e nascimento daquele Filho, que o comum e ordinário dos outros homens. Que semelhança tem agora, ou que propriedade em São José, a providência de Deus neste mistério com o nascimento de Sua Majestade, que Deus guarde, no dia do mesmo santo? Disse-o Ruperto, com umas palavras que, se lhe pedíramos as fizesse de encomenda, não vieram mais nascida ao intento: Ut esset sponsus, custos que Beatae Mariae Virginis, ac nati ex ea regis: Desposa-se José com Maria, e nomeadamente com Maria Mãe de Jesus, porque o fim destes desposórios foi ser José esposo da Virgem, e guarda do rei nascido: Custos nati regis. Oh! grande excelência! Oh! grande glória! Oh! dignidade superior a todos os santos a de José! Que os foros da mesma onipotência nasçam debaixo de seu amparo, e que, não tendo Cristo anjo da guarda, porque é Deus, tenha por custódio um homem, que é São José: Custos nati regis! 14 Grande glória de José, e grande graça tam13. Is 7:14 [Portanto, o mesmo Senhor vos dará um sinal: eis que uma virgem conceberá, e dará à luz um filho, e será o seu nome Emanuel.] 14. [PL: Vol. 167 Col. 1540A: Opera Omnia Ruperti Tuitiensis. Rupertus Tuitiensis: R.D.D. Ruperti Abbatis Tuitiensis de Trinitate et Operibus Ejus libri xlii. R.D.D. Ruperti Abbatis Tuitiensis De Trinitate et Operibus Ejus libri xlii. In VaI. Quatuor Evangelistarum Commentariorum liber Unus. Caput vi. Quod in eadem generatione tres isti Abraham, David, 364
sermão de são josé bém do nosso rei e reino! Que o amasse Deus, e cuidasse do seu remédio com tão especial providência, que o patrocínio que deu em seu nascimento ao rei que havia de restaurar o mundo, esse mesmo patrocínio desse em seu nascimento ao rei que havia de restaurar a Portugal! Um e outro nasceu debaixo da mesma proteção, um e outro nasceu debaixo da tutela e amparo de São José: Joseph, custos nati regis. Sendo, pois, estes dois reis nascidos ambos reis, ambos redentores e ambos encobertos, o primeiro, como diz a profecia de Isaías: Vere tu es Deus absconditus, Deus Israel Salvator:15 O segundo, prometido pela profecia e; tradição de Santo Isidoro a Espanha, não com outro nome ou antonomásia„ senão a do Encoberto, vejamos quão particularmente encobriu a um e outro o que a um e outro deu Deus por guarda o cuidado e vigilância de São José. A Cristo encobriu-o como Esposo de Maria, nove meses e treze dias, desde suar conceição até depois de seu nascimento, em que o descobriu a estrela no Oriente, aos Magos, e os Magos, em seguimento dela, a toda Judeia. E como o encobriu Spiritus sanctus superveniet in te, et virtus Altissimi obumbrabit tibi. A Virgem, Senhora nossa, tinha dois esposos, um divino, outro humano. O esposo divino era o Espírito Santo; o humano, São José. Do primeiro esposo era obrai o filho concebido, como disse o anjo à mesma Virgem: Spiritus Sanctus superveniet in te: acrescentando: Et virtus Altissimi obumbrabit tibi: 16 que ar virtude do Altíssimo lhe faria sombra. et joseph, magis insignes sint, et quod ad istos per incrementa ternaria promissio Christi facta sit. Caput vi.] 15. Is 45:15 [Verdadeiramente, tu és o Deus que te ocultas, o Deus de Israel, o Salvador.] 16. Lc 1:38 [Lc 1:35] [E, respondendo o anjo, disse-lhe: O Espírito Santo descerá sobre tí, e a virtude do altíssimo te cobrirá com a sua sombra. E, por isso mesmo, o santo, que há de nascer de ti, será chamado Filho de Deus.] 365
sermões E que sombra foi esta? Ou quem foi esta sombra? Foi sem dúvida o segundo esposo, a cuja sombra esteve a Virgem depois de desposada, e, com a sombra e nome de pai, encobriu o que verdadeiramente não era seu filho. Assim ficou o rei e Redentor, que havia de ser do mundo, encoberto desde sua encarnação nove meses até seu nascimento e treze dias, até que a estrela, e os Magos, e Deus por eles, o descobriu ao mundo: Ubi est qui natus est rex Judaeorumt? 17 Mas, se São José guardou encoberto a Cristo nove meses e treze dias, que comparação tem este tempo, que não chega a um ano, com mais de trinta e seis anos inteiros em que teve encoberto ao rei encoberto de Portugal, desde o dia do seu nascimento até o felicíssimo de sua restituição? Vejo que me respondem que São José não só encobriu a Cristo naquele primeiro ano não acabado, mas em outros, cujo número certo se não sabe. Sabendo pelo anjo que Herodes, entre os inocentes de Belém, queria tirar a vida a Cristo, fugiu da Judeia para o Egito, e, depois da morte do mesmo Herodes, sabendo, também por aviso do céu, que reinava em Judeia Arquelau, seu filho, retirou-se para Galileia. De sorte que, para encobrir o primeiro rei nascido, tomou por meio tirá-lo diante dos olhos dos dois reis seus inimigos, e escondê-lo em terras estranhas. Porém, para encobrir o segundo rei, não só no seu nascimento, nem na sua infância, puerícia ou adolescência, senão na idade de varão perfeito em tantos anos, a traça com que o encobriu a outros dois reis, que não menos lhe podiam tirar a vida e a coroa, qual seria? Verdadeiramente milagrosa e digna da onipotência divina. Dentro na mesma Espanha, dentro no mesmo Portugal, e diante dos olhos dos mesmos reis, escondeu e encobriu de
17. Mt 2:2 [E perguntaram: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? Porque vimos a sua estrel no Oriente e viemos a adorá-lo.] 366
sermão de são josé maneira ao encoberto que, vendo-o, o não viam nem viram. É certo que assim foi, mas duvidoso, como podia ser. No dia da Ressurreição, ajuntou-se Cristo aos dois discípulos que iam para Emaús, os quais em todo aquele caminho o viam e ouviam, sem o conhecerem. Porventura transfigurou-se Cristo, ou mudou as feições do rosto? Por nenhum modo. Pois, se eram seus discípulos, costumados a vê-lo todos os dias, e agora o estavam vendo, e no seu rosto não havia mudança, como o não conheciam? Responde o evangelista: Oculi eorum tenebantur ne eum agnoscerent.18 A palavra tenebantur melhor se pode entender do que declarar na nossa língua: tenebantur, estavam detidos; tenebantur, estavam presos; tenebantur, estavam suspensos; tenebantur, estavam em si e fora de si, como extáticos, os olhos que o viam, e não conheciam. Fazendo este milagre nos discípulos a onipotência de Cristo, e nos reis, que tanto podiam temer e acautelar-se do que hoje é nosso, a mão invisível de São José. Desde o princípio, em que se fizeram senhores de Portugal aqueles reis estranhos, Filipe ii tinha diante dos olhos a senhora D. Catarina, Filipe iii ao Duque D. Teodósio, Filipe iv a Sua Majestade, que, finalmente, lhe tirou da cabeça a coroa, e, vendo-os, não conheciam o que neles deviam recear e temer, cegando-os São José com a mesma luz de seus olhos, encobrindo o seu e o nosso Encoberto com o descobrir. Assim desempenhou o grande santo a obrigação que tinha de encobrir e provar o nome de encoberto no novo rei nascido no seu dia; mas ainda lhe falta, ou nos falta, uma maior consideração e vigilância deste seu empenho. O ódio, a emulação, a cautela, o receio de perder o ganhado em Portugal, que tinham os reis estranhos, a grandeza do poder e a doçura do possuir, podia lisonjear e adormecer todo este 18. Lc 24:16 [Mas os olhos deles estavam como que fechados, para que o não conhecessem.] 367
sermões cuidado; mas da nossa parte, e em nós, os portugueses, além da dor do perdido, estava com os olhos abertos ao remédio o amor, o desejo e a necessidade. O amor, ainda que é cego para ver, é lince para adivinhar; o desejo é um afeto sempre ardente e inquieto, que não sabe sossegar um momento; sobretudo, a necessidade da redenção, da liberdade, e de rei natural, era a que mais apertava os cordéis a este tormento, e tinha com a soga na garganta todos estes afetos. E como podia ser que, sendo eles tão vigilantes, e tendo sempre o direito da corroa, e a pessoa do rei a quem pertencia diante dos olhos, de tal sorte a encobrisse S. José, que a ninguém viesse ao pensamento ser ele o que o havia de recuperar? Mas em encobrir o nosso Encoberto neste grande perigo de o declararem as evidências ou conjecturas de alguns destes afetos, mostrou o santo quão alta e delicadamente observou as obrigações do ofício de o guardar: Custos nati Regis; equivocando milagrosamente um rei com outro rei, e encobrindo um vivo com outro morto. Perdeu-se, ou morreu, na batalha de África el-rei Dom Sebastião, e puderam tanto as saudades de um rei, que se tinha perdido a si e a nós, que, sem se divertirem aonde deviam, deram em esperar dele, e por sua vida e vinda, a nossa redenção, e este foi o altíssimo conselho com que São José, debaixo das cinzas do rei passado e morto, conservou e teve encoberto o rei futuro e vivo. Não vemos conservar-se vivo o fogo, debaixo das cinzas que o encobrem? Pois, assim conservou e encobriu São José a vida de el-rei, que Deus guarde, debaixo das cinzas de el-rei D. Sebastião defunto. É o que diz expressamente Isaías no capítulo 61. Promete Deus ali de alegrar os tristes, de consolar os desconsolados, de libertar os cativos, e conclui que pelas cinzas lhe dará a coroa: Ut mederer contritis corde, et praedi-
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sermão de são josé carem captivis indulgentiam: ut consolarer omnes lugentes;19 e finalmente: Et darem eis coronam pro cinere. Assim estava Portugal triste, assim estava desconsolado, assim estava cativo, e assim lhe prometia São José a coroa perdida, debaixo das cinzas do rei morto reputado por vivo, e assim conservava vivo e encoberto aquele que verdadeiramente havia de restituir aos tristes, desconsolados e cativos a coroa perdida. De maneira que, encoberta a verdade debaixo do engano, a esperança debaixo da desesperação, a vida debaixo da morte, e a coroa debaixo das cinzas, aos príncipes estranhos, que tudo isto tinham por riso, não lhes dava cuidado, o remédio; e os vassalos, amigos e naturais, que o tinham, pouco menos, quase por fé, com milagrosa providência, enganada a sua dor, e o seu amor, o seu desejo e a sua necessidade, se consolavam e animavam da falsa e equivocada esperança, até que a verdade, debaixo dela encoberta, ao tempo destinado pelo céu, lhe trouxe a felicidade que hoje logramos.
iv Certo que ponderar cabalmente esta felicidade será causa de não faltar nunca Portugal ao eterno agradecimento a São José. Que uma vida (não sejamos ingratos, por não saber o que devemos a Deus) que uma vida, em que estavam fundadas as consequências que hoje se logram, apesar da emulação de dois reis, debaixo de sua mesma jurisdição se 19. Is 61 :1-3 [O espírito do Senhor repousou sobre mim, porque o Senhor me ungiu; ele me enviou para evangelizar os mansos, para curar os contritos de coração, e pregar a redenção aos cativos, e a liberdade aos encarcerados; para publicar o ano da reconciliação do Senhor, e o dia da vingança do nosso Deus, para consolar todos os que choram; para conceder e dar aos de Sião, que choram, uma coroa em vez de cinza, óleo de gozo em vez de pranto, um vestido de glória em troca de seu espírito de aflição; e os que habitarem nela serão chamados fortes na justiça, plantas do Senhor para lhe darem glória.] 369
sermões conservasse! Que nasça a décima-sexta geração de Portugal tão esperada, e que, sendo décima-sexta por três vias, nem o amor dos naturais, nem os ciúmes dos estranhos em trinta e sete anos o descobrisse! Vivo, apesar de tantas advertências políticas; encoberto, apesar de tantas evidências manifestas! Grandes milagres da providência divina, e este segundo, a meu ver, ainda maior. E, se não, pergunto: Qual foi a razão por que ordenou Deus que o Libertador que havia de ser de Portugal se conhecesse tantos anos antes no mundo, não pelo nome de Libertador, senão pelo nome de Encoberto? A razão foi porque maior milagre da Providência era conservá-lo encoberto, que fazê-lo libertador. Fazê-lo libertador, foi deliberarem-se os homens a uma coisa muito útil; conservá-lo encoberto, foi cegarem-se os homens a uma coisa muito manifesta; e maior milagre é encobrir evidências ao entendimento, que persuadir conveniências à vontade. O que todos ponderam, o que todos admiram, o de que todos fazem maior caso, é que se unissem e concordassem as vontades de todo um reino, para fazer o que fizeram. Muito foi, mas, bem considerado, não foi muito, porque, que muito que as vontades dos homens se persuadissem a uma coisa tão útil e tão honrosa, como ter reino, ter rei, ter liberdade, viver sem cativeiro e sem opressão? Porém, que o autor felicíssimo de todo este bem nascesse e vivesse entre nós tão retratado pelos oráculos divinos e ainda nomeado pelo próprio nome, e o tivesse Deus encoberto, sem que o amor nem a emulação, que são os dois afetos mais linces, o descobrissem! Que o vissem os olhos, e que guardasse segredo o entendimento! Que suspirassem os desejos, e que não bastassem as maiores advertências! Dissimulado a evidências, e encoberto a olhos vistos! Este é o maior milagre, esta a maior maravilha, mas agora exercitada, e muitos séculos antes já ensaiada: por quem? Pelo autor da mesma proteção, São José.
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sermão de são josé Conta o texto sagrado, no quarto Livro dos Reis, capítulo onze, que em uma ocasião quiseram tirar a vida tirânica os herdeiros do sangue real de Israel ao menino Joás; porém, que Josabá o livrou do perigo, e o criou escondidamente: Abscondit eum, ut non interficeretur,20 até que, passados alguns anos, os nobres do povo se uniram, e todos com as armas nas mãos entraram no paço real, e, impedindo as guardas em um sábado, aclamaram por rei a Joás, e o meteram de posse do reino que lhe pertencia, lançando do paço a Atália, uma senhora que então governava. Desta maneira refere o texto este caso, e bem se vê que é tão próprio do que sucedeu em Portugal que, se ao nome de Joás se mudara o s em m, se pudera trasladar este capítulo, e escrever-se em nossas crônicas. Bem está: mas quem fez isto? A quem se deve esta façanha? Quem há de levar a glória desta maravilha? Quem? São José. Diz Isidoro Isolano que Josabá, a cuja indústria deve sua vida e restituição Joás, foi figura de São José, esposo da virgem: Joseph profecto in Jozaba praefiguratus est, quae Joas infantem clam nutrivit et aluit, ac regem Israel tandem constituit. Hei de construir as palavras ao pé da letra, para maior glória de São José, e maior evidência do nosso caso. Joseph profecto in Jozaba praefiguratus est. Verdadeiramente São José foi figurado e representado em Josabá: Quae Joas infantem clam nutrivit et aluit: que guardou ao infante Joás vivo e encoberto: Ac regem Israel tandem constituit: e, finalmente, o fez rei de Israel, metendo-o de posse do reino que lhe tocava. E não é isto mesmo o que fez São José com o rei e reino de Portugal? Nem o caso pode ser mais próprio, nem eu quero dizer mais nesta matéria. 20. 4Rs 11:2 [Mas Jeoseba, filha do rei Jeorão, irmã de Acazias, tomou a Joás, filho de Acazias, e o furtou dentre os filhos do rei, aos quais matavam, e o pôs, a ele e à sua ama, na recâmara, e o escondeu de Atalia, e assim não o mataram.] 371
sermões Estas são as obrigações em que São José tem empenhado a Vossa Majestade, senhor, e as consequências delas são que, assim como São José não só foi salvador do Salvador, senão também do mundo, assim não foi só salvador do nosso libertador, senão também do reino libertado. Espero em Deus que o he de provar literalmente. Benedictio illius qui apparuit in rubo, veniat super caput Joseph:21 A bênção daquele que apareceu na sarça desça sobre José. Esta bênção foi lançada ao patriarca José, e diz o Pelusiota, e outros, que se cumpriu em São José, Esposo da Virgem. E qual foi a bênção daquele que apareceu na sarça a Moisés? Ele mesmo o disse: Vidi afflictionem populi mei, et descendi ut liberem eum:22 Vi a aflição de meu povo, debaixo do poder de um rei estranho, e desci do céu a libertá-lo. Pois, se a bênção do que apareceu a Moisés na sarça é ser libertador do povo oprimido do poder de um rei estranho, e esta bênção se cumpriu em São José, Esposo da Virgem, digam-me agora os historiadores quando se cumpriu esta bênção, senão na restauração de Portugal. Viu o santo as aflições deste povo verdadeiramente seu, e desceu do céu a libertá-lo, guardando com particular providência a vida do nosso felicíssimo libertador, como fez à de Cristo, segundo a proteção que tomou em um e outro nascimento: Custos nati regis, que foi o fim com que se desposou com a Virgem: Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph. 21. Dt 33:16 [E com o mais excelente da terra, e com a sua plenitude, e com a benevolência daquele que habitava na sarça, a bênção venha sobre a cabeça de José e sobre o alto da cabeça do que foi separado de seus irmãos.] 22. Ex 3:7-8 [E disse o Senhor: Tenho visto atentamente a aflição do meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus exatores, porque conheci as suas dores. Portanto, desci para livrálo da mão dos egípcios e para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e larga, a uma terra que mana leite e mel; ao lugar do cananeu, e do heteu, e do amorreu, e do ferezeu, e do heveu, e do jebuseu.] 372
sermão de são josé
v Tenho acabado o sermão: de todo ele quisera tirar somente uma coisa, queira o Senhor seja tão bem recebida nos ânimos de todos, como é a todos necessária e importantíssima. O que concluo de todo este discurso é que deve o Reino de Portugal tomar solenemente a São José por particular advogado, e protetor de sua conservação e aumentos. A razão que tenho para isto é a mais eficaz que pode ser: querer Deus que seja assim, nem nós devemos querer outra coisa. Sonhou el-rei Faraó que haviam de vir a seu reino aqueles catorze anos de vária fortuna, e dizendo-lhe que importava prevenir-se de algum varão de grande prudência, que superintendesse à conservação e remédio do reino: Placuit Pharaoni consilium,23 contentou o conselho ao rei, e voltando-se para José, disse: Numquid sapientorem et consimilem tui invenire potero?24 Porventura, José, posso eu achar algum que seja mais sábio, mais prudente, e em cujas mãos e conselho esteja mais segura minha monarquia? O cetro e a coroa ponho debaixo do vosso patrocínio: mandai, ordenai, despendei não como vassalo, mas como pai. O mesmo digo no nosso caso. Isidoro de Isolanis, já acima alegado, autor que há muitos anos que escreveu, admirando-se muito de que em seu tempo não fosse celebrado na Igreja o glorioso São José, conclui assim: Suscitabit Dominus Sanctum Joseph ad honorem nomini sui, caput et patronum peculiarem Imperii militantis Ecclesiae: Esteja embora esquecido por agora São José, e não seja sua memória tão celebrada como merece, que Deus levantará este grande santo a seu tempo, para que 23. Gn 41:36 [41 :37] [Agradou o conselho a Faraó e a todos os seus ministros.] 24. Gn 41:39 [Depois, disse Faraó a José: Pois que Deus te fez saber tudo isto, ninguém há tão inteligente e sábio como tu.] 373
sermões seja particular padroeiro do seu império na Igreja, militante: Patronum peculiarem Imperii militantis Ecclesiae. Duas coisas havemos de saber para entendimento destas palavras: uma, quando se começou a celebrar São José; outra, qual é no mundo o império de Cristo. O tempo em que se começou a celebrar São José foi pontualmente depois da perda de el-rei Dom Sebastião, de triste memória, e antes da felicíssima restituição à coroa de el-rei Dom João, nosso Senhor, para que, posto entre a ruína do reino e o remédio, compadecido da ruína, a remediasse. E o império de Cristo, qual é? O mesmo Senhor foi servido de no-lo explicar quando disse a nosso fundador, o senhor rei Dom Afonso Henrique: dolo in te, et in semine tuo imperium mihi stabilire: Quero em vós, e em vossa descendência, estabelecer o meu império. Pois, se Deus levanta no mundo a São José, quando quer levantar a Sua Majestade por rei, se o império de Cristo na Igreja militante somos nós, e São José há de ser particular padroeiro deste império, que resta, senão que efetivamente se conclua de nossa parte, que é o constituir e reconhecer com pública solenidade a São José por protetor particular do Reino de Portugal, e sua conservação, dizendo a este José o que os egípcios disseram ao outro: Salus nostra in manu tua est: respiciat nos tantum Dominus noster, et laeti serviemus Regi? 25
25. Gn 47:25 [E disseram: A vida nos tens dado; achemos graça aos olhos de meu senhor e seremos servos de Faraó.] 374
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LIVRO
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4 de janeiro de 2019
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N,1 ACAD·EMIA fLUE HAVIA EM Roma, .irno Pa/acio da SeremJfimtl RtlÍtiha de SucCla Chrtflina Alexal1dra, com a offlflel1cia de fnuytos Cardcaes; & Monfcl1hores )Jepropoz hum Problema 110 tlmtoae x674' cujo argumento fiy ef" te: Se o1í1undo era mau dig110 de rijo) Ot4 de /agri" 1n/lJ: & qual dos dom Gentios andàra mau prudente, (e DemoCt'ito, que riafempre; ou Heroe/i/o, que fempre chorava. E encarregando-!e efles dotU pontos. aos Padres ÂlZtoni() Vieyra, ir Jerony;ne Cataueo, ambos da Co mpa1ZhJade JESU, para cada hum defender 11 parte que e/colbel!e, deu oPadre Antonio v,eyra a eleyçaõ ao P(~dre Cataneo·) () qualttJmofJ partl(io rifo de Democrito, i~ ficand4 aQ Padre Vieyro (l coufa (/41 lagrimtU de Heracltla, adeftndeo cnge11ho/a , & e/t'gmitemente em língua ltalj(JfJa, que depoü fê traduzio 1Ja HefPa'1ho/a, & agora 1Ia, POl'tLJgIlCZfI, tirada do originai Italiano por Dom Fral1C1/co Xavier Jofcpll de Menezes,CoíJde eftl ~yriceyra, do Con!el/)o de S. MageJiade, Sargento General de batalha dos fcUG exerCltoí, & Deplltadp da Jmlltl doS/res Ejladas.
L~grimas de HeracIico defenàiJ.1s em Roma pdo Padte
Antonio Vic}'ra contra o ri(u de Democricu.
M(eu !ugarap- ()o)~lirua ttrga vitht, eho.. t-arli o ffidrno Rifo, Naó co, porque fe. defconfia'o Prancô, nao, da gue J & v~m drpois do Ri. (ua caufa , iovejd fó aO Ri(o io. Se toífe o Ri{o comoJa. a lua toccuo,_ Seo pranto, 8( O ij o Ri.
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Lágrimas de Heráclito
Na academia que havia em Roma, 65° no Palácio da Sereníssima Rainha de Suécia Cristina Alexandra, com a assistência de muitos Cardeais, e Monsenhores, se propôs um Problema no ano de 1674, cujo argumento foi este: Se o mundo era mais digno de riso, ou de lágrimas: e qual dos dois gentios andara mais prudente, se Demócrito, que ria sempre; ou Heráclito, que sempre chorava. E encarregando-se estes dois pontos aos Padres Antônio Vieira, e Jerônimo Cataneo, ambos da Companhia de Jesus para cada um defender a parte que escolhesse, deu o Padre Antônio Vieira a eleição ao Padre Cataneo, o qual tomou para si o riso de Demócrito, e ficando ao Padre Vieira a causa das lágrimas de Heráclito, a defendendo engenhosa e elegantemente em língua italiana, que depois se traduziu na Espanhola e agora na Portuguesa, tirada do original italiano por Dom Francisco Xavier José de Menezes, Conde da Eiriceira, do Conselho de S. Majestade, Sargento General de batalha dos seus exércitos, e Deputado da Junta dos Três Estados. Em seu lugar apareceu o pranto, porque segue e vem depois do riso. Se fosse o riso como Jano, qui sua terga videt, choraria o mesmo riso. Não desconfia o pranto, não, da sua causa: 377
sermões inveja só ao riso a sua fortuna. Se o pranto e o riso aparecessem neste grande teatro no traje da verdade (sempre nua), sem dúvida seria a vitória do pranto. Mas vestido, ornado e armado de uma tão superior eloquência, que o riso se ria do pranto, não é merecimento, foi sorte. De tudo quanto ri saiu vestido, ornado, e armado o riso: riem os prados, e saiu vestido de flores; ri-se a aurora, e saiu ornado de luzes; e se aos relâmpagos e raios chamou a antiguidade risus Vestae et Vulcani, entre tantos relâmpagos, trovões e raios de eloquência, quem não julgará ao miserável pranto cego, atônito, e fulminado? Tal é a fortuna ou a natureza destes dois contrários. Por isso nasce o riso na boca, como eloquente, e o pranto nos olhos, como mudo. Mas se interdum lacrimae pondera vocis habent, assim mudo, e com lágrimas, assim triste, e vestido de luto (como costumavam os réus no Senado da antiga Roma) se apresenta hoje o pranto diante da majestade do sólio real e tribunal retíssimo dos seus eminentíssimos juízes, não presumindo que há de alcançar vitória ou aplauso, mas esperando a piedade e comiseração, que nunca negaram aos miseráveis e aflitos, os espíritos generosos e magnânimos. Entrando, pois, na questão, se o mundo é mais digno de riso ou de pranto, e se à vista do mesmo mundo tem mais razão quem ri, como ria Demócrito, ou quem chora, como chorava Heráclito, eu, para defender, como sou obrigado, a parte do pranto, confessarei uma coisa e direi outra. Confesso que a primeira propriedade do racional é o risível, e digo que a maior impropriedade da razão é o riso. O riso é o sinal do racional, o pranto é o uso da razão. Para confirmação desta, que julgo evidência, não quero mais prova que o mesmo mundo, nem menor prova que o mundo todo. Quem conhece verdadeiramente o mundo, precisamente há de chorar, e quem ri, ou não chora, não o conhece. Que é este mundo, senão um mapa universal de misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças, de mortes? E à vista 378
lágrimas de heráclito de um teatro imenso, tão trágico, tão funesto, tão lamentável, aonde cada reino, cada cidade e cada casa continuamente mudam a cena, onde cada sol que nasce é um cometa, cada dia que passa um estrago, cada hora e cada instante mil infortúnios, que homem haverá (se acaso é homem) que não chore? Se não chora, mostra que não é racional; e se ri, mostra que também são risíveis as feras. Mas, se Demócrito era um homem tão grande entre os homens, e um filósofo tão sábio, e se não só via este mundo, mas tantos mundos, como ria? Poderá dizer-se que ele ria, não deste nosso mundo, mas daqueles seus mundos. E com razão, porque a matéria de que eram compostos os seus mundos imaginados, toda era de riso. É certo, porém, que ele ria neste mundo, e que se ria deste mundo. Como, pois, se ria ou podia rir-se Demócrito do mesmo mundo e das mesmas coisas que via e chorava Heráclito? A mim, senhores, me parece que Demócrito não ria, mas que Demócrito e Heráclito ambos choravam, cada um a seu modo. Que Demócrito não risse eu o provo: Demócrito ria sempre; logo nunca ria. A consequência parece difícil, e é evidente. O riso, como dizem todos os filósofos, nasce da novidade e da admiração, e cessando a novidade, ou a admiração, cessa também o riso; e como Demócrito se ria dos ordinários desconcertos do mundo, e o que é ordinário, e se vê sempre, não pode causar admiração nem novidade, segue-se que nunca ria rindo sempre, pois não havia matéria que lhe motivasse o riso. Nem se pode dizer que Demócrito se incitava a rir de alguma coisa que visse ou encontrasse de novo, porque sempre e em todo o lugar ria, e quando saía de casa já saía rindo: logo, ria do que já sabia; logo, ria sem novidade nem admiração; logo, o que nele parecia riso não era riso. Confirma-se mais esta verdade com o motivo e intenção de Demócrito, porque não pode haver riso que se não 379
sermões origine de causa que agrade: tudo o de que Demócrito se ria, não só lhe desagradava muito, mas queria mostrar que lhe desagradava; logo, não se ria; e se não ria, que era o que fazia, a que todos chamavam riso? Já disse que era pranto, e que Demócrito chorava, mas por outro modo. Ora, vede. Há chorar com lágrimas, chorar sem lágrimas e chorar com riso: chorar com lágrimas é sinal de dor moderada; chorar sem lágrimas é sinal de maior dor; e chorar com riso é sinal de dor suma e excessiva. Para prova da primeira e segunda diferença de chorar com lágrimas, ou sem elas, é notável o exemplo que refere Heródoto de Psaminito, rei do Egito. Perdendo Psaminito o reino, viu em primeiro lugar suas filhas vestidas como escravas, e não chorou; viu depois seu filho primogênito descalço e carregado de ferros, com mãos atadas e um freio na boca, e não chorou; e vendo este mesmo Psaminito, e com o mesmo coração, que um seu antigo criado pedia esmola, derramou infinitas lágrimas. Oh! grande rei e grande intérprete da natureza! Chora com lágrimas a miséria do criado, e sem lágrimas a desgraça dos filhos; assim respondeu ele à pergunta de Cambises: Domestica mala graviora sunt quam ut lacrymas recipiant. Com o mesmo pensamento, não menos régio nem menos varonil, Hécuba, com a coroa perdida e a pátria abrasada, proibiu as lágrimas às damas de Troia, dizendo-lhes assim: Quid effuso genas fletu rigatis? Levia perpessae sumus, si flenda patimu 1 A dor moderada solta as lágrimas, a grande as enxuga, as congela e as seca. Dor que pode sair pelos olhos não é grande dor; por isso não chorava Demócrito, e, como
1. Senec. in Trag. 380
lágrimas de heráclito era pequena demonstração da sua dor, não só chorar com lágrimas, mas ainda sem elas, para declarar-se com o sinal maior, sempre se ria. Nada digo que seja contrário aos princípios da verdadeira filosofiae da experiência. A mesma causa, quando é moderada e quando é excessiva produz efeitos contrários: a luz moderada faz ver, a excessiva cegar; a dor que não é excessiva rompe em vozes, a excessiva emudece. Desta sorte, a tristeza, se é moderada, faz chorar, se é excessiva, pode fazer rir; no seu contrário temos o exemplo: a alegria excessiva faz chorar, e não só destila as lágrimas dos corações delicados e brandos, mas ainda dos fortes e duros. Quando Minúcio, livre do cativeiro, apareceu ao seu exército, que era o romano: In laetitiam tota castra effusa sunt, ut prae gaudio militibus omnibus lacrimae manarent,2 diz Plutarco. Pois, se a excessiva alegria é causa do pranto, a excessiva tristeza, por que não será causa do riso? A ironia tem contrária significação do que soa: o riso de Demócrito era ironia do pranto: ria, mas ironicamente, porque o seu riso era nascido de tristeza, e também a significava; eram lágrimas transformadas em riso por metamorfoses da dor; era riso, mas com lágrimas, como aquele de quem disse Estácio: Lacrymosos impia risus audiit. Na guerra morrem muitos soldados rindo, e a razão é, diz Aristóteles porque são feridos no diafragma: não ria Demócrito como contente: ria como ferido; recebia dentro do peito todos os golpes do mundo, e tão mal ferido ria. Os olhos com injustiça se puderam queixar desta minha filosofia: o pranto chamava-se assim porque se batiam as mãos uma com a outra quando se chorava, porque para chorar não são precisos os olhos, e não seria próvida a natu2. Plutarch. in Fab. 381
sermões reza se, havendo sido a origem de tantos pesares, lhes desse um só desafogo; e, se choram as mãos, a boca, por que não há de chorar? Heráclito chorava com os olhos, Demócrito chorava com a boca; o pranto dos olhos é mais fino, o da boca é mais mordaz, e este era o pranto de Demócrito. De sorte que, na minha consideração, não só Héráclito, mas Demócrito chorava, só com a diferença de que o pranto de Heráclito era mais natural, o pranto de Demócrito mais esquisito, e tudo merece este mundo, digno de novos e esquisitos prantos, para ser bastantemente chorado. Mas porque esta minha suposição me separa do problema, e pode parecer que, como muitas vezes sucede, me aparte da opinião comum para fugir da dificuldade, seja embora o riso de Demócrito verdadeiro e próprio riso, apareçam em juízo um e outro filósofo, para que, ouvidos ambos, se veja claramente a razão de cada um, e confio do merecimento da causa, que será tão justa a sentença, que Demócrito saia chorando, e Heráclito rindo. Sêneca, no livro De Tranquillitate, falando destes dois filósofos, dá a razão por que sempre ria um, e chorava outro, com estas judiciosas palavras: Hic, quoties in pubblicum processerat, flebat, ille ridebat: huic omnia,quae agimus, miseriae, illi ineptiae videbantur: Demócrito ria, porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heráclito chorava, porque todas lhe pareciam misérias: logo, maior razão tinha Heráclito de chorar que Demócrito de rir, porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não seja miséria. As misérias e os trabalhos que padecem os mortais, ou por obrigação da natureza, ou por remédio da fortuna, ou por sustento da vida, ou por conservação do estado particular e público, são misérias, mas não são ignorâncias, porque as governa a prudência, por necessidade, por conveniência, por honra e por decoro. 382
lágrimas de heráclito Pelo contrário, todas as ignorâncias que se cometem no mundo, as que se fazem, as que se dizem, as que se cuidam, todas são misérias, porque todas se cometem, ou por erro do entendimento, ou por desordem da vontade, e este erro e esta desordem, não só é miséria, porque direitamente se opõe à luz e ao império da razão, na qual consiste toda a nobreza e felicidade do homem. Aquelas misérias causam ao homem dores e trabalhos, estas o fazem verdadeiramente miserável e infeliz; e, suposto que umas e outras sejam dignas de lágrimas, e as lágrimas das ignorâncias são lágrimas de pior cor, estas fazem corar o rosto, aquelas não. Foi esta distinção achada com alta filosofia pelo engenho de Ovídio nas lágrimas de Penteu: Essemus miseri sine crimine, sorsque querenda, Non celanda foret: lacrimae que pudore carerent.3 E como nem todas as misérias são ignorâncias, e todas as ignorâncias são misérias, e as maiores misérias, muito maior matéria e muito maior razão tinha Heráclito de chorar que Demócrito de rir; antes, digo que só Heráclito tinha toda a razão, e Demócrito nenhuma. Todas as misérias humanas eram o assunto de Heráclito, e o de Demócrito só uma parte delas; e como toda a miséria é causa da dor, e nenhuma dor pode ser causa do riso, o riso de Demócrito não tinha causa nem motivo algum que o justificasse. Pode ser que me responda algum metafísico que Demócrito distinguia nas ignorâncias aquilo que é ignorância daquilo que é miséria, e que se ria das misérias não como misérias, mas como ignorâncias. Porém, esta distinção, de mais de ser indigna de um filósofo moral, é falsa e impossível, por ser contra a natureza e essência do riso. O ridículo, ou o objeto do riso, como define Aristóteles: Est turve sine 3. Met. I. 31. 383
sermões dobre: É uma tal deformidade, que exclui todo o motivo de dor; e como a ignorância precisamente está sempre unida com o motivo da dor, que é a miséria, por isso nem é nem pode ser matéria do riso. Esta é a verdadeira e sólida razão por que no juízo de todos os filósofos se inventou a comédia. Viram os sábios das repúblicas que para desafogo, divertimento e alegria dos povos era necessária alguma matéria de riso; e porque o riso não podia nascer da deformidade ou vício verdadeiro, pela união natural que tem com a dor, que fizeram? Inventaram sabiamente as ficções da comédia, para que o ridículo da imitação, como suposto, e não verdadeiro, ficasse separado da dor. Um aleijado com um pé de pau, uma velha decrépita e trêmula, um pobre remendado e enfermo, um cego e um frenético, um insensato, no teatro, fazem rir. E por quê? Porque aqueles defeitos são supostos, e não verdadeiros, que, se fossem verdadeiros, seriam motivo de comiseração, e não de riso; e, como os defeitos e vícios de que ria Demócrito eram verdadeiros defeitos e verdadeiros vícios, não tinha o seu riso algum motivo; mas, se não tinha motivo, como ria? Ria-se por abuso intolerável do motivo oposto, colocando o riso sobre o motivo do pranto; ria-se das verdadeiras misérias e do verdadeiro motivo da dor, filosofia humana e contrária a toda a razão, e praticada unicamente na escola da inveja, da qual diz o poeta: Risus abest, nisi quem visi movere Dolores.4 E se o fim destes dois filósofos (como verdadeiramente era) foi manifestar ao mundo o desconcerto do seu estado, e persuadir aos homens o erro dos seus juízos, a desordem
4. Metam. 384
lágrimas de heráclito dos seus desejos e a vaidade das suas fadigas, também para este fim tinha muito maior razão Heráclito de chorar que Demócrito de rir. A primeira introdução e disposição de quem quer persuadir, ensinada e usada de todos os oradores, é conciliar a benevolência do teatro; esta conciliava Heráclito, e não Demócrito, porque quem chora lastima, e quem ri despreza, e a compaixão concilia amor, o desprezo ódio e aborrecimento; quem ri exaspera, quem chora enternece, e quem quer imprimir os seus afetos e a sua doutrina nos corações não deve endurecê-los, deve abrandá-los. O agricultor, para colher os frutos, rega as plantas; o impressor, para imprimir as letras, molha o papel; e assim o deve fazer com as lágrimas quem quer imprimir os seus afetos e colher o fruto das suas persuasões. Ulisses, naquela sua famosa oração contra Ajax, na contenda das armas de Aquiles, podendo fiar-se tanto da sua copiosa eloquência adornou o seu exórdio com lágrimas; e, porque não as tinha verdadeiras, chorava-as fingidas: Manuque simul veluti lacrymantia tersit Lumina.5 Não de outra sorte devia fazer Demócrito, ainda que fosse contra o jocoso do seu gênio. Devia aproveitar-se da boca, não para rir, mas para umedecer os olhos e fingir as lágrimas; assim o ensina, com a sua natural agudeza, aquele mestre que professou em Roma a arte de conciliar o amor e de abrandar os corações: Si lacrimae (negue enim veniunt in tempore semper) Deficiant, uncta lumina tinge manu.
5. Met. I. 15. 385
sermões Quanto à força e eficácia de persuadir, muito mais fortemente apertava e persuadia Heráclito chorando que Demócrito rindo, porque quem ri atenua e alivia os males, quem chora os acrescenta e faz mais sensíveis e pesados; quem ri mostra que são dignos de zombaria, quem chora prova que são dignos de lástima; quem ri, por exemplo e por simpatia, move a rir; quem chora, por exemplo e com razão, ensina a chorar, porque, se os meus males são tais, que movem a contínuas lágrimas nos outros, quanto mais os devo eu chorar, pois os padeço? Finalmente, Demócrito tia sempre, e Heráclito sempre chorava, e este sempre também era por parte de Heráclito, e contra Demócrito: por parte de Heráclito, porque ser o seu pranto contínuo o fazia mais eficaz; contra Demócrito, porque ser o seu riso contínuo o fazia ridículo. Não é minha a censura, nem é nova, mas apotegma antiquíssimo do filósofo Plistarco: O riso (dizia ele) se é pouco, passa; se é muito, ofende.6 Cícero, como se vê nas suas orações, respondia muitas vezes rindo aos argumentos da parte contrária, que é solução muito fácil, quando os argumentos são difíceis; mas que louvores deram a Cícero deste seu riso? Disse-o Plutarco. Sendo Cícero cônsul, e defendendo Murena, riu muito, como costumava, da doutrina dos estóicos, e, não podendo sofrê-lo Catão, lhe disse publicamente: Dii bani, quam ridiculum habemus consulem! 7 Com muita mais causa Demócrito, porque ria sempre, se fazia ridículo, e, zombando do juízo dos outros, expunha o seu a zombaria. Os meninos riem-se muito facilmente, e os doutos sempre se riem; e diz Aristóteles que os meninos se riem porque têm pouco siso, e os loucos porque de todo o não têm, e eu creio verdadeiramente que não faço grande ofensa a 6. Bruson. lib. 5. 7. Plutarc. relatus ibidem. 386
lágrimas de heráclito Demócrito, porque um homem que de um mundo via muitos mundos, era sinal que tinha perturbadas as espécies e enferma a fantasia, e quem se havia de mover a um tal riso? Não assim o pranto de Heráclito, que, por ser contínuo, se fazia mais forte e eficaz: Lacryma cito siccatur, praesertim in alienis malis, diz Túlio.8 E, sendo o pranto de Heráclito pelos males alheios, sem que nunca se secassem as suas lágrimas, que coração haveria tão duro e obstinado, que se não abrandasse e rendesse a um tal pranto? Eram as lágrimas de Heráclito como a água, que, caindo pouco a pouco, vai limando suavemente os mármores, e enfim os rompe. Não digo eu somente os mármores: Lacrimis adamanta movebis. diz atrevida mas verdadeiramente Ovídio. As lágrimas, como lhe chamou o melhor filósofo de Grécia, são sangue da alma, e este (não o outro fabuloso) é o que lavra os diamantes. O coração mais diamantino, como tantas vezes se queixava Agamenão, foi o de Aquiles; e contudo, confiava e presumia Briscidi que, sem dizer uma só palavra (como fazia Heráclito) com as suas lágrimas somente o despedaçaria e o desfaria em pó; assim o diz ela na discreta carta escrita ao mesmo Aquiles: Sic licet immitis, marisque ferocior undis, Ut taceam lacrimis comminuere meis.9 Tal era a eficácia invencível do pranto de Heráclito, e tal a debilidade ridícula do riso de Demócrito.
8. Cicer. de Partit. 31. 9. Ovid. in Ep. Briscil. ad Achil. 387
sermões Não quero, contudo, que seja minha a sentença entre estes dois filósofos: seja de outro filósofo, que os iguale em autoridade e ciência. O grande filósofo Dion, como refere Estobeu, falando do pranto e do riso, conclui assim: Mihi sane faties magis videtur ornari lacrimis quam risu: lacrimis enim ut plurimum bona aliqua doctrina conjungitur, riso vero lascivia, et flendo quidem nemo sibi conciliavit authorem contumeliae, ridendo autem spem decoris auxit.10 Esta é a sentença. Mas, deixando já o riso de Demócrito afogado no pranto de Heráclito, para acabar o meu primeiro argumento, busco outra vez a prova universal do mundo. Que esperança, que lugar pode ter neste mundo o riso, se todo o mundo chora e ensina a chorar? Choram os homens, como racionais e sensitivos, e ainda as coisas sem razão e sem sentido choram; estas são as lágrimas que o príncipe dos poetas chamou, profundamente, lágrimas de todas as coisas: Sunt lacrimae rerum, et mentem mortalia tangunt.11 Não residem as lágrimas só nos olhos que vêm os objetos, mas nos mesmos objetos que são vistos: ali está a fonte, aqui está o rio; ali nascem as lágrimas, aqui correm; e se as mesmas coisas que não veem choram, quanto mais razão tem o homem que vê, e se vê? Não quero o testemunho dos miseráveis, não; só quero o dos mais ditosos. Quem há neste mundo tão favorecido ou tão divinizado pela sua fortuna, que possa presumir de não ter que chorar. Aqueles mesmos que mais se riem por fora mais choram por dentro. Aqui tínhamos antigamente em Roma um cortesão chamado Heros, o qual chorava sempre, não tanto os males próprios, quanto os bens alheios, e diz assim Marcial: 10. Stob. Ser. 72. 11. Eneid. I. 388
lágrimas de heráclito Quam multi faciunt, quod Heros sed lumine sicco! Pars major lacrimas videt, et intus habet. Oh! se este intus se visse! São as lágrimas como as águas do rioAlfeu: este rio umas vezes caminha descoberto, outras se oculta por debaixo da terra, mas sempre corre: as lágrimas plebeias deixam-se ver; as lágrimas equestres, senatórias e consulares são invisíveis, mas lágrimas. Das lágrimas que se derramaram nas exéquias de Germânico dizia Tácito: Periisse Germanicum nulli jactantius moerent, quem qui maxime laetantur.12 O contrário é mais comum e mais verdadeiro: Qui jectentius laetentur, maxime moerent. Mas, quando ninguém chorasse, nem por fora nem por dentro, quando este mundo e todos oshomens rissem, então todo o mundo e todos os homens seriam mais dignos de comiseração e de lágrimas: Quid enim miserius misero non miserente seipsum? E se tudo isto não basta, senhores, para que a causa do pranto tenha merecido a seu favor os vossos votos, em nome do mesmo pranto apelarei eu da sentença para aquele justíssimo tribunal para quem apelou Apeles. Vencido Apeles em um concurso de pintores: Appello (disse) ad tribunal naturae. E porque os animais vivos se enganavam com os que ele havia pintado, e as aves com os frutos, a natureza fez a Apeles a justiça que lhe tinham negado os homens; assim o faço eu, se não venceu o pranto: Appello ad tribunal naturae. Seja meu intérprete o historiador da mesma natureza. Flens animal caeteris imperaturum a suppliciis vitam auspicatur; unam tantum ob culpam, quia natus est.13 Nasce o homem, diz Plínio, já chorando, e, sem outra culpa mais que haver nascido, fica condenado a perpétuo pranto, começa a vida e o pranto juntamente, para que saiba que, se vê a este 12. Annal. Lib. 13. Plin. in Praes. I. 7. 389
sermões mundo chorar, vem para chorar. O mais aprenderá depois, porque é arte; para o pranto nasce já ensinado, porque é natureza: Non aliud naturae sponte quam flere. Esta é a sentença irrefragável da natureza, e esta a natureza dos mortais: é o homem risível, mas nascido para chorar, porque, se a primeira propriedade do racional é o risível, o exercício próprio do mesmo racional, e o uso da razão, é o pranto. E se alguém me replicar que, se o homem não risse, ficaria ociosa a potência do rir, contra o fim da mesma natureza, a uma instância tão forte não posso responder só como filósofo natural (como observei em todo este discurso), mas responderei como filósofo cristão. Respondo, e pergunto: Se o homem, pela transgressão, não tivesse perdida a felicidade e em que foi criado, choraria ou não? É certo que nunca chorariam os homens, se fossem conservados naquele estado, e as lágrimas, que agora há, não as haveria então: logo, se na felicidade daquele tempo estaria ociosa a potência do chorar, na miséria deste tempo esteja ociosa a potência do rir, etc.
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paratexto
Vida e obra do Padre Antônio Vieira
sobre o autor Nascido em 1608 na cidade de Lisboa, Antônio Vieira era filho de Cristóvão Vieira Ravasco e Maria de Azevedo. Quando tinha seis anos, sua família transferiu-se para Salvador, onde Vieira estudou no colégio da Companhia de Jesus, na qual ingressou como noviço em 1623. Aos dezessete anos, tornou-se redator das cartas-ânuas e aos dezoito já era professor de Retórica em Olinda. Entre 1641 e 1652 permanece na Europa em missões diplomáticas na Inglaterra, França e Holanda. Em 1653 torna-se Superior das missões do Maranhão e Grão-Pará. Em 1661, embarca para Portugal, onde estava sendo processado pela Inquisição. Em 1665, está em Coimbra, proibido de retornar ao Maranhão. Será preso em outubro. O primeiro volume de seus Sermões foi publicado em 1679. Retornou para a Bahia em 1681. Aos 89 anos, em 1697, faleceu o grande jesuíta. A essa altura, tinha preparado para publicação doze tomos dos sermões. Embora a parte mais conhecida de sua obra sejam os mais de duzentos sermões, Antônio Vieira escreveu também uma abundante correspondência, somando mais setecentas cartas. Também deixou escritos proféticos, A história do futuro e A chave dos profetas.
393
sermões carta-ânua de 1626
As cartas-ânuas eram longas cartas-relatório que jesuítas escreviam anualmente informando os progressos do trabalho catequético. A primeira carta-ânua escrita por Vieira foi no ano de 1626. A carta tem cerca de quarenta páginas e dá notícias dos acontecimentos dos anos de 1624 e 1625. É o primeiro escrito preservado do famoso pregador. Vale citar a descrição geral da situação dos missionários: Sustenta esta Província do Brasil, pouco mais ou menos, 120 padres da Companhia: 90 sacerdotes, dos quais 31 são professos de quatro votos, de três solenes, 2, coadjutores espirituais formados, 20; 62 estudantes; coadjutores 50, e destes, 30 formados. Estes todos divididos em três colégios, seis casas, e treze aldeias anexas às mesmas casas e colégios. No colégio [da] Bahia residem comummente, 80; no de Pernambuco, 40; 35 no do Rio de Janeiro; na Residência do Espírito Santo, 12; na de Santos, 5; na de S. Paulo, 7; na Casa dos Ilhéus, 4; em Porto Seguro, 4; e 4 no Maranhão. Todos eles se ocupam em procurar de alcançar a salvação e perfeição própria e das almas, que é o fim da nossa Companhia.1
Após esta síntese da distribuição dos missionários, Vieira irá detalhar a situação de cada um destes lugares. As cartas de Vieira e de outros jesuítas, escritas sistematicamente, representam um diagrama verbal da formação das sociedades coloniais.
sobre a obra Aqui estão reunidos dez sermões dos mais representativos do padre Antonio Vieira. São textos que continuam mostrando uma das facetas mais impressionantes dos séculos xvi e xvii, que foi a aventura de missionários enviados 1. vieira, António. Cartas. Org. J. Lúcio de Azevedo. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1997, p. 4. 394
vida e obra do padre antônio vieira a essas distantes e desconhecidas terras para difundir a religião católica. O estilo de Vieira é muito elaborado e florido, isto é, é um autor que usa a língua portuguesa de maneira exemplar, explorando suas riquíssimas belezas expressivas. Seu texto é muito ornamentado, marcado por enumerações, interrogações, citações, marcado por uma fraseado musical e persuasivo. Talvez por isso, um poeta da envergadura de Fernando Pessoa chegou a declarar que Antonio Vieira era o melhor escritor da língua portuguesa. resumo dos sermões Sermão da Sexagésima
O sermão volta-se para sua própria composição e examina os 3 “concursos” essenciais que há nele (Graça, pregador e ouvinte), para saber qual deles pode ser causa da falta de eficácia dos sermões contemporâneos na reforma dos cristãos. Admitida que a falta apenas pode ser do pregador, examina as suas 5 “circunstâncias” (pessoa, estilo, ciência, matéria e voz) e admite em todas a existência de faltas graves, embora nenhuma delas possa ser tomada como causa principal do fracasso do sermão. Este deve-se sobretudo ao “falso testemunho” do pregador que, embora utilizando palavras de Deus, não as toma em seu sentido original, mas distorce-as segundo seus interesses eo propósito de agradar ao auditório, em vez de desenganá-lo e reformar os seus costumes como é sua obrigação. Sermão de quarta-feira de cinza
O sermão é conduzido da seguinte forma:
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sermões 1. Mostra que o verdadeiro ser do homem apenas se determina em função de seus limites no passado (o nada) e no futuro (a morte); 2. Que a própria morte tem limites: a ressurreição, a eternidade; 3. Que a eternidade pode cumprir-se alternativamente de duas formas: o ser do Paraíso e o não ser do Inferno; 4. Que um e outro apenas se definem em função dos atos da vida. Assim, o sermão propõe que, se é possível dizer que a vida é não ser (como a morte) face ao ser da eternidade, a consideração de que este apenas se define em função das escolhas feitas durante a vida obriga a entendê-la de modo mais complexo: pois a vida não é simplesmente não ser ou falsidade, quando tem consequências decisivas para o ser. Ou seja, o ser da eternidade define-se como efeito da existência, ainda que ela mesma não tenha senão um ser precário. Sermão de Santo Antonio
Os pregadores são o sal da terra, e, portanto, os que devem conservá-la na fé cristã. O estado atual de corrupção do mundo deve-se a falhas no pregador (que não prega a verdadeira doutrina, nem age de acordo com ela, mas segundo seus interesses próprios) e no ouvinte (que igualmente não deseja a verdadeira doutrina, e apenas age por interesses pessoais). Simula dirigir-se então aos peixes e não aos homens (à imagem do anedotário de S. Antônio). Tomando o que os peixes têm de bom, propõe para o pregador as funções “rêmora” (resistência à paixão do ouvinte), 396
vida e obra do padre antônio vieira “torpedo” (que o faz tremer pela autoridade), “quatro-olhos” (visão de recompensas e castigos) e “sardinha” (sustento dos pobres). Por outro lado, combate os defeitos de ouvintes, à imagem de tipos defeituosos entre os peixes: “roncadores” (que ameaçam, sendo fracos), “pegadores” (parasitas e bajuladores que dependem do poder alheio); “voadores” (ambiciosos que se enganam com sua condição); e, enfim, os que são “polvo” (padres oportunistas, sem caráter) — todos apropriadores dos bens alheios. Sermão do Espírito Santo
Para o ensino de bárbaros (uma vez que não há nações menos importantes que outras para a pregação cristã), há mais necessidade de amor do que de sabedoria. Em particular, é necessário amor para converter o índio do Brasil, pela condição bruta da gente e pela dificuldade de aprendizado das línguas. O esforço de domínio das línguas para propagação da fé é desdobramento do amor de Deus e da missão da Igreja. Os modernos sucessores dos apóstolos têm, no Novo Mundo, “fogo de línguas”, que aprendem não por milagre, mas por trabalho. O maior serviço de Deus que pode ser feito pelos apóstolos não é de contemplá-lo no Paraíso, mas o de enfrentar as “cegueiras da terra” de modo a produzir a saúde espiritual dos cristãos. Assim, o sermão inicia-se pela valorização do trabalho dos missionários, por meio da amplificação das dificuldades de entendimento dos ouvintes e das línguas indígenas, e avança até promover a extensão da tarefa da sua conversão ao conjunto dos moradores. Eclesiásticos e leigos estão todos sob o ministério divino e a autoridade da Igreja e fugir à responsabilidade da conversão equivale à recusa de Deus e ao castigo no Juízo.
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sermões Sermão da Epifania
O sermão propõe que o nascimento de Cristo renova-se com a nova cristandade resultante da conversão dos gentios pelos portugueses, causa final das conquistas portuguesas e da glória do Reino. Os missionários renovam a presença de Cristo na história e são condição da manutenção legítima da conquista da América, o que é reconhecido pelos próprios gentios, mas paradoxalmente ignorado pelos portugueses do Brasil, principal obstáculo à ação dos jesuítas. O sermão também defende a inalienabilidade dos poderes temporal e espiritual sobre os gentios, pois apenas se justifica a servidão que se padece por Deus, qualquer outra sendo contrária à razão e à justiça. Por fim, reclama medidas práticas imediatas da Corte lisboeta, entre elas: qualificação dos governadores; congregações eclesiásticas com prelados instruídos; garantia de cumprimento das leis dos índios na colônia. Sermão xiv do Rosário
O trabalho no engenho é comparado ao de Cristo no calvário, o que, por um lado, amplifica a injustiça e rudeza do tratamento dispensado aos escravos negros, e, por outro, justifica-o enquanto forma de conhecer a religião, desconhecida de seus pais, única forma de salvá-los espiritualmente. Ou seja, o escravo apenas aproveita de seu estado de privação da liberdade e sofrimento físico pela devoção, e o senhor do engenho apenas tem justificativa no que cativa e obriga o negro pelo que lhe ensina da religião que não tinha. Na ordem dos mistérios do Rosário, estão em primeiro lugar os “gozosos” (efetuados analogamente pelos senhores), depois estão os “dolorosos” (efetivados pelos negros) e finalmente os “gloriosos”. Os “gostos” desta vida costumam ter como consequência as dores na eterna, e vice-versa.
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vida e obra do padre antônio vieira Sermão da Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel
O Sermão identifica a raiz dos “males” do Brasil com a constante transferência de seus bens para a Metrópole. Propõe ao Vice-Rei que, agindo contrariamente ao que tem sido praticado pelos governantes, aplique na Colônia a riqueza produzida nela. Sermão dos Bons Anos
O sermão postula que a posse do trono português por D. João iv estava já profetizada, e assinala o início de um novo tempo de bonança. Em termos mais específicos, adota uma posição “neosebastianista”, na qual o Rei Encoberto das trovas populares não é D. Sebastião, dado efetivamente como morto, mas o novo rei brigantino: o rei “esperado” identifica-se assim com o rei atualmente empossado. O sermão também justifica três medidas tomadas no primeiro ano do governo de D. João iv: a restrição de gastos, a premiação de antigos vassalos e a convivência com os inimigos. Sermão de São José
D. João iv é o verdadeiro “Encoberto” das profecias do Bandarra, sob as saudades de D. Sebastião. O “encobrir” é propriedade de S. José, pois escondeu a paternidade divina de Cristo, ao tornar-se Esposo da Virgem. Ou seja, o sermão reinterpreta o mito popular do “Encoberto” por meio da figura de S. José, terminando por transferi-lo a D. João iv. Lágrimas de Heráclito
Em relação ao mundo terreno, são mais próprias as lágrimas de Heráclito do que o riso de Demócrito. Em primeiro lugar, porque o riso de Demócrito, uma vez que é constante e não se dá pela novidade, é irônico e tem o mesmo valor das lágrimas pelas misérias do mundo; em segundo, 399
sermões porque, a ser verdadeiramente riso, sua constância produz ridículo, enquanto a constância das lágrimas demonstra sua seriedade e “concilia” a benevolência do auditório. análise de um trecho do «sermão de santo antônio» Dos animais terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio2 tão amigo, ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem conosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor3 nos ajuda e nos recreia; e até as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento. Os peixes pelo contrário lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos,4 lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande, que se fie do homem, nem tão pequeno, que não fuja dele. Os Autores comumente condenam esta condição de peixes, e a deitam5 à pouca docilidade, ou demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que se não fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens tanto melhor: trato e familiaridade com eles, Deus vos livre. Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola: diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia: vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes:6 faça-lhes bufonarias7 o bugio, mas no seu cepo:8 contente-se o cão de lhe roer um osso, mas levado onde não quer pela trela:9 2. Macaco. 3. Ave de rapina que pode ser treinada para caçar animais pequenos. 4. Regiões profundas dos mares. 5. Neste caso, “deitar” significa atribuir. 6. Correias que se prendem à parte inferior da perna dos gaviões. 7. Gracejos, piadas. 8. Tronco ao qual se prende o macaco de estimação. 9. Coleira. 400
vida e obra do padre antônio vieira preze-se o boi de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo10 sobre a cerviz,11 puxando pelo arado e pelo carro: glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora: e se os tigres e os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com grades de ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens, e fora dessas cortesanias,12 vivereis só convosco, sim, mas como peixe na água.13
No “Sermão de Santo Antônio”, pregado no Maranhão em 1654, o padre Vieira afirma que apesar de fazer muita pregação, são poucos e poucas os que se convertem. As pessoas estão surdas aos conselhos e escolhem agir mal. Desiludido por ver o pouco fruto da palavra de Deus, o padre, nesse sermão, diz que vai pregar aos peixes, animais considerados insensíveis. Para isso, constrói um elogio do comportamento desses animais. No trecho reproduzido acima, o jesuíta compara os animais segundo os reinos a que pertencem: animais terrestres, animais aéreos e animais aquáticos. Em seguida, o autor dá exemplos de animais desses três reinos que se deixam amansar pelas pessoas em troca de um benefício material. Da terra cita o cão, o cavalo, o boi, o macaco e o leão. Do ar, o papagaio, o rouxinol, o açor e outra aves de rapina, como o gavião. Já os peixes, em contraponto, não querem manter relação nenhuma com pessoas, mostrando-se “reservados, desconfiados e prudentes”. Depois de considerar que os Autores da Antiguidade atribuem a insensibilidade dos peixes à bruteza, Vieira con10. Peça de madeira que prende o boi à carroça que ele puxa. 11. Parte de trás do pescoço. 12. Conjunto de formas de comportamento que caracterizam a vida social nas Cortes europeias, marcadas pela afetação e artificialismo. 13. vieira, Antonio. Sermões, vol. I. Org. Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2001, p. 321. 401
sermões sidera que talvez seja por prudência. Após, o padre retira a sentença moral ou o ensinamento que percorre o sermão: “Quanto mais longe dos homens tanto melhor: trato e familiaridade com eles, Deus vos livre”. Em seguida, Vieira desenvolve cada um dos exemplos dos animais que se deixam domesticar, associando a recompensa e o sacrifício da submissão: “contente-se o cão de lhe roer um osso, mas levado onde não quer pela trela”. Observe-se que todo o trecho é “inventado”. A fábula de Vieira é um argumento narrativo e um ornamento do discurso. Podemos supor que se estivéssemos na igreja ouvindo esse sermão, nos sentiríamos constrangidos e envergonhados pela comparação. Principalmente por não serem os peixes seres morais, mas seres que se orientam apenas pelo instinto. Esse constrangimento moral é chamado de contrição. É o remorso e o arrependimento por agir mal. A dor de consciência leva o fiel e a fiel a se corrigirem e não voltar a cometer o mesmo pecado.
sobre o gênero Os sermões se encaixam no gênero da prosa doutrinal, caracterizada pela oralidade, pois é pensada para ser falada de memória diante de uma plateia católica na igreja durante a missa. O objetivo do sermão é relembrar aos fiéis o caminho da salvação de suas almas. É um gênero de extensão média, contendo em geral entre vinte e quarenta páginas. Os sermões de Vieira são sempre divididos em muitas partes, que indicam os pontos em que seu pensamento vai se desenvolvendo. Quando publicados como livro, os sermões passaram a trazer algumas marcas fixas, como título, local e data em que foi pregado, às vezes, uma referência à ocasião e uma epígrafe retirada da Bíblia, que antecipa o 402
vida e obra do padre antônio vieira tema. O sermão tem muitos intertextos retirados da Bíblia, dos santos católicos e de outros autores antigos e modernos. A produção dos sermões de Vieira está inserida no contexto histórico do século xvi, marcado por uma série de mudanças tão intensas e impactantes que fez com que esse período ficasse conhecido como Renascimento. Isso porque, nos centros urbanos da Europa, havia uma sensação de que um mundo diferente estava nascendo, ou melhor renascendo. Esse mundo novo seria marcado pelo deslocamento da essência da existência humana da esfera coletiva e religiosa para a esfera particular e política. Em razão dessa mudança, o movimento literário do período também ficou conhecido como Humanismo. Essa renovação do pensamento que se apresentou no século xvi se alimentou muito fortemente nos autores gregos, como Aristóteles, e romanos, como Cícero. Esses autores passaram a ser conhecidos como “clássicos”. Por isso, a renovação artística que ocorre no século xvi, e que pode ser sintetizada pelo grande artista Leonardo da Vinci, também ficaria conhecida como Classicismo. Foi um século de renovação técnica e científica. O desenvolvimento da astronomia resultou no aperfeiçoamento dos mapas celestes. O astrolábio foi trazido por árabes e judeus para a Península Ibérica e seria adaptado para a orientação marítima. As técnicas de navegação e os próprios tipos de navio também se adaptam aos novos mares e os portugueses ganham a corrida pela exploração marítima por meio da caravela. Entre as revoluções técnicas, uma das mais relevantes seria a imprensa de tipos móveis, de Gutemberg, que faz com que a publicação de livros se expanda muito e vá ao encontro de um público novo que está se estabelecendo, os universitários.
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sermões Todos esses elementos contribuiriam para um dos maiores acontecimentos da história da Europa: a descoberta da América, em 1492, e oito anos depois, a descoberta do Brasil. Nas primeiras cinco décadas após a descoberta do Brasil, houve tráfego de pessoas entre a Europa e a costa da colônia lusitana, mas a Coroa Portuguesa ainda não havia enviado colonos. A primeira expedição de colonizadores chegaria a Salvador em 1549. Nela, viriam os seis primeiros missionários jesuítas, chefiados pelo Padre Manoel da Nóbrega. Os jesuítas instalaram os primeiros colégios na costa do Estado do Brasil. Vale lembrar que ainda não havia a ideia de Brasil, como entendemos hoje, por isso falamos em Estado do Brasil, para marcar a condição de dependência da Monarquia Portuguesa. A Costa do Brasil fazia parte de Portugal. Inicialmente instalados em Salvador, os jesuítas se dividiram e se dirigiram para o Recife, o Espírito Santo, São Vicente e, mais tarde, São Paulo de Piratininga e o novo estado do Maranhão e Grão-Pará, onde o padre Antônio Vieira seria missionário. Os padres vinham para fazer a catequese, isto é, a pregação e o ensino da religião católica. O objetivo era a conversão dos povos originários, que eram, na visão católica, pagãos. Por sua vez, a motivação dos colonizadores era a busca e exploração das riquezas naturais da nova terra. Essa dupla orientação colonizatória seria assunto de muitos sermões de Vieira, porque muitas vezes os padres entraram em conflitos diretos com os colonizadores, que não estavam muito interessados em salvar almas.
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Adverte-se aos curiosos que se imprimiu este livro em nossas oficinas, em 23 de fevereiro de 2022, em tipologia Libertine, com diversos sofwares livres, entre eles, LuaLATEX, git & ruby. (v. 5a1abd8)
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