O surgimento da noite — Anne Ballester Soares

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o surgimento da noite Mitologias Yanomami


copyright

Editora Hedra ltda Direitos cedidos à n-1 Edições

tradução© Anne Ballester organização© Anne Ballester edição Luisa Valentini e Jorge Sallum coedição Suzana Salama editor assistente Paulo Henrique Pompermaier revisão Luisa Valentini e Vicente Sampaio capa e projeto gráfico Lucas Kröeff Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) S676s Soares, Anne Ballester O surgimento da noite: Mitologias yanomami / Anne Ballester Soares (organização e tradução). – São Paulo : N-1 edições, 2021. ISBN 978-65-86941-35-7 (Livro do Estudante) ISBN 978-65-86941-36-4 (Manual do Professor) 1. Mitologia indígena. 2. Mitologias yanomami. 3. Histórias. 4. Culturao. I. Título. 2021-1380

cdd 398.2 cdu 397

Índices para catálogo sistemático: 1. Mitologia indígena 398.2 2. Mitologia indígena 397 Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva – CRB-8/9410 Direitos reservados em língua portuguesa somente para o Brasil n-1 editora Rua Frei Caneca, 322 (Conjunto 52) 01307-000 São Paulo sp 55 11 991876080 financeiro@n-1edicoes.org Foi feito o depósito legal.


o surgimento da noite Mitologias Yanomami Anne Ballester (organização e tradução) 1ª edição

São Paulo

2022



Sumário

Para ler as palavras yanomami . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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o surgimento da noite . . . . . . . . .

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O surgimento da noite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

11 15 19 27 37 45 49 55 61 67 71 77 87

Horonamɨ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O surgimento do tabaco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Horonamɨ e o tatu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O surgimento da banana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A anta que andava nas árvores . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os comedores de terra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A vingança de Horonamɨ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Como morreu o monstro kuku . . . . . . . . . . . . . . . . . . Omawë . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O surgimento da maniva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O dilúvio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O surgimento da primeira mulher . . . . . . . . . . . . . . .


paratexto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91 Como foi feito este livro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

93 » Sobre o autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 » Sobre a obra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96 » Sobre o gênero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99


Para ler as palavras yanomami

Foi adotada neste livro a ortografia elaborada pelo lingüista Henri Ramirez, que é a mais utilizada no Brasil e, em particular, nos programas de alfabetização de comunidades yanomami. /ɨ/ vogal alta, emitida do céu da boca, e que soa próximo a I e U /ë/ vogal entre o E e o O do português /w/ U curto, como em “língua” /y/ I curto, como em “Mário” /e/ vogal E, como em português /o/ O, como em português /u/ U, como em português /i/ U, como em português /a/ A, como em português /p/ como P ou B em português /t/ como T ou D em português 7


o surgimento da noite /k/ como C de “casa” /h/ como o RR em “carro”, aspirado e suave /x/ como X em “xaxim” /s/ como S em “sapo” /m/ como M em “mamãe” /n/ como N em “nada” /r/ como R em “puro”

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O surgimento da noite



O surgimento da noite

H

oronamɨ procurou aquilo que nos permite dormir. Ele fez aquilo que nos fará dormir. Aconteceu em toda a floresta. Ele procurou sem desistir, procurou, procurou e acabou encontrando essa coisa perto da sua moradia. A cauda da coisa já estava visível, pendurada em um galho, mas Horonamɨ pensava que a coisa estaria sentada na raiz de uma árvore e continuou procurando longe, em todas as direções. Não foi a noite que surgiu sozinha, de repente, para nós dormirmos. Assim, quem fez não foi outro. Não foi outro que fez anoitecer: foi Horonamɨ, e apenas Horonamɨ, quem soprou nosso sono — somente ele. Qual a razão dessa procura? Como de dia ninguém parava de fazer sexo — vocês também não fazem sexo de dia? — e como a noite não existia — era sempre luz forte do dia — para ele esquecer os outros fazendo sexo, ele procurou a noite para envolver todos na escuridão. 11


o surgimento da noite A noite estava empoleirada em cima de uma árvore não muito distante. Parecia com um mutum empoleirado, cuja cauda repousava na parte alta de um galho inclinado de uma árvore paikawa.1 Assim era a escuridão. Apesar de a noite parecer um mutum, Horonamɨ conseguiu encontrá-la. A noite também cantava como um mutum. Nessa época, os animais — como arara, mutum, queixada, anta, veado, caiarara, maitaca, irara, tamanduá-bandeira, papagaio e jabuti — eram Yanomami e, como os Yanomami, moravam em xapono. Horonamɨ designou cada espécie de animal e deu-lhes seus nomes. Naquela época, ele procurou pela terra firme sem descanso, quando não havia xaponos espalhados pela selva; havia somente o xapono dele.2 Os animais também viviam em xapono.3 Quando Horonamɨ soprou a escuridão com sua zarabatana para nós dormirmos, ele queria que anoitecesse. Ele encontrou a escuridão e soprou. Depois de fazer cair a escuridão, ao mesmo tempo se desenhou um pequeno círculo no chão, 1. Árvore baixa, chamada localmente de pé-de-maçarico. 2. Horonamɨ realiza diversas buscas para encontrar tudo que os Yanomami usam para viver. 3. Isto é, eram gente. 12


o surgimento da noite embaixo do lugar onde estava empoleirado o dono da escuridão. O pai do cunhado de Horonamɨ se chamava Manawë. Ele era uma boa pessoa, e avisou: — Ele vai achar agora! Tomem cuidado! — avisou Manawë no xapono. Quando Horonamɨ flechou o mutum da noite, apesar de estar perto da sua moradia e de retornar correndo, ele também sofreu, porque anoiteceu de uma vez. Depois de ter soprado a noite em todos os cantos, e de ter corrido, ele adormeceu. Naquela noite, os Yanomami também sofreram. Não anoiteceu devagar. Até Horonamɨ passou fome, pois não tinha como fazer fogo. Ele acabou ficando na escuridão, apesar de estar perto do seu xapono. Como foi assim que aconteceu, a mãe dele também sofreu, todos ficaram tontos de fome à noite. A escuridão perseguiu Horonamɨ bem de perto, e ele estava com fome. Depois de a noite apagar o dia, os que moravam com ele morreram de fome, pois comiam somente terra, comiam terra vorazmente e sofriam. Não sobreviveram. Até seu próprio cunhado sofreu e quase morreu. Horonamɨ ficou angustiado.

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o surgimento da noite Havia então três pajés: o avô, o avô mais novo e o cunhado, e eles esquartejaram a noite, fazendo reaparecer a luz do dia. Para as pessoas não comerem mais terra, Horonamɨ foi caçar. Ele nos ensinou a caçar. Ele tinha uma zarabatana, que alguns Yanomami usam para soprar, era isso que ele usava. Ele soprava os animais, tinha um sopro forte, e foi assim que ele nos ensinou a matar a caça com veneno. É assim, é a própria história dos antepassados. É a história daquele que se apossou da floresta, é o início de tudo, a história do primeiro dono da floresta, Horonamɨ.

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Horonamɨ

qem nos fez? Esta é a verdadeira história de nosso surgimento: quando a floresta era virgem, apareceu Horonamɨ, personagem principal de nossa história, por causa de seus ensinamentos. O grande pajé1 yanomami Horonamɨ surgiu dele mesmo; surgiu ao mesmo tempo que esta floresta e foi quem ensinou os Yanomami a morar nela. Assim foi o início. Não existia Yanomami como os de hoje, nem outro ser humano. Ele propagou sua sabedoria para que nossa história fosse sempre lembrada e discutida, como fazemos agora. Aconteceu bem antes de os tuxauas yanomami passarem a existir como exis-

1. Ser pajé, nestas histórias, quer dizer que o personagem em questão é ou tem a capacidade de se transformar em espírito e, com isso, fazer coisas extraordinárias. 15


o surgimento da noite tem hoje.2 Horonamɨ foi o primeiro habitante da floresta e nos ensinou a morar nela, assim como ensinou também aos estrangeiros, os napë.3 Ele não tinha pai, mas mesmo assim ele surgiu. Ele surgiu em uma floresta maravilhosa. Quem morava com Horonamɨ? Horonamɨ morava com seu cunhado, Wɨyanawë, que, apesar de não ter desposado sua irmã, era seu verdadeiro cunhado.4 Horonamɨ sempre o levava consigo nos períodos que passavam dentro da mata, chamados wayumɨ, e ensinou os descendentes como ir de wayumɨ.5

2. No Amazonas, onde vivem as comunidades de Ajuricaba e Komixipɨwei, usa-se “tuxaua” ou “liderança” para designar a pessoa de referência de uma comunidade indígena, por essa razão optou-se por esses termos na tradução. 3. O termo napë designa os estrangeiros, em geral os brancos, ou quem adotou seus costumes. 4. Os Yanomami, tradicionalmente, não podem chamar uns aos outros por seus nomes próprios, por isso usam termos de parentesco. Quando não há consanguinidade, são usados termos de afinidade, como cunhado ou sogro. Cunhado é também um termo positivo, na medida em que indica alguém em quem se pode confiar. 5. Longas estadias coletivas na floresta. Em geral são motivadas pela falta de comida no xapono. A comunidade pode se dividir em vários grupos quando se trata de um xapono populoso, e se desloca num vasto círculo, fazendo acampamentos sucessivos. 16


horonamɨ Apesar de sua mãe não ter parido Horonamɨ, pois ele surgiu de repente, o nome de sua mãe era Yotoama. O pajé Horonamɨ foi quem procurou e descobriu nossa comida, nosso conhecimento da floresta e o habitat dos animais, para que, quando os Yanomami ocupassem a floresta, eles fossem capazes de aplacar sua fome de carne. Ele descobriu o nome dos animais quando eles viviam como nós. Apesar de serem animais, antes eles viviam do mesmo modo que os Yanomami. Como ele fez aparecer a água para acalmar a sede dos Yanomami? Ele abriu várias veredas na floresta. Abriu veredas em todas as direções, de forma que elas nunca sumam e que sempre bebamos água. Horonamɨ tinha seu próprio xapono6 , onde moravam também seus aliados, que se tornaram muito importantes. Como se chamava o xapono pertencente a Horonamɨ? Esse xapono chamava-se Horona. O xapono vizinho, que ficava do outro lado do rio, se chamava Menawakoari. Os primeiros habitantes desse xapono também se chamavam 6. Os xaponos são as casas coletivas circulares onde moram os Yanomami. Cada casa corresponde a uma comunidade; em geral não se fazem duas casas numa mesma localidade. 17


o surgimento da noite Menawakoari. Penewakoari era o tuxaua e morava com o grupo dos Kapurawëteri. O tuxaua dos que moravam com Horonamɨ se chamava Penewakoari. Kapurawë era o nome do xapono e da região dos Kapurawëteri.7 Penewakoari morava com eles e estava destinado a se transformar num monstro. Penewakoari depois se transformou no monstro Xõewëhena, faminto de carne e comedor de crianças. Mas, quando ainda era Yanomami, Penewakoari morava no xapono Kapurawëteri, vizinho ao xapono Horona. Nesses xaponos moravam poucas pessoas. Com o tempo, nos xaponos vizinhos foram aparecendo mais tuxauas. Os primeiros tuxauas que viviam nos xaponos vizinhos, os xaponos dos aliados, não eram nossos antepassados, eram outros. Sobre eles se contaram estas histórias.

7. “Habitantes”: Em alguns casos o xapono tem o nome de seu tuxaua. 18


O surgimento do tabaco

E

sta é a história de Hãxoriwë, o dono do tabaco. Antes ninguém usava o tabaco, porque ninguém conhecia suas sementes, nem as soprava para semear. “É desse jeito que se coloca o tabaco no lábio!” Ninguém pensava assim. Eles não conheciam o tabaco; por isso, ninguém andava com brejeira no lábio, ninguém o usava, pois o desconheciam. Nessa época, Hãxoriwë morava sozinho, não tinha esposa nem filho. Quando Horonamɨ por acaso o encontrou, ele fez perguntas a Hãxoriwë. Horonamɨ o encontrou pois era pajé e se deslocava facilmente. Quando Horonamɨ o encontrou, ele o viu comendo a fruta pahi, um tipo de ingá. Hãxoriwë estava comendo, mas não usava tabaco. Ele tinha vontade de usar tabaco, por isso chorava. Hãxoriwë chorava. Estava sofrendo por causa do tabaco, e assim nos ensinou a ter vontade de usar o tabaco — por isso choramos quando não tem tabaco. 19


o surgimento da noite Horonamɨ apareceu naquele momento; Hãxoriwë estava comendo. Ele comia frutas pahi sem parar. Os galhos estavam cheios de frutas agrupadas, que estavam penduradas nos galhos carregados. Horonamɨ o viu comer. Horonamɨ estava vindo sem nada, não tinha brejeira, mas fez aparecer no seu lábio um tabaco sem cor. Ele fez aparecer o tabaco taratara.1 Enquanto Horonamɨ ainda estava de pé, ele perguntou a Hãxoriwë: — Quem é você? Você aí, quem é? — Não pergunte quem sou! Sou Hãxoriwë! —disse ele. — Meu filho,2 é você? — Sim. — Você, quem é você? — Sou Horonamɨ, sou Horonamɨ — disse. — O que você está comendo? — Não pergunte o que é! — retrucou. — Eu como fruta. Eu como fruta. É a fruta pahi! — disse Hãxoriwë. Quando ele disse isso, Horonamɨ olhou. Ele queria fazer aparecer o tabaco. Ele não fez aparecer o tabaco da forma que o conhecemos, pois 1. Trata-se de uma variedade forte de tabaco, muito apreciada. 2. Modo carinhoso usado por parentes mais velhos ao se dirigerem a parentes mais novos, mais especificamente entre pais e filhos ou avós e netos. 20


o surgimento do tabaco ninguém, sequer ele mesmo, sabia preparar o tabaco depois de soprar as sementes e de misturar as folhas com cinzas. Como Horonamɨ era pajé, ele fez sair o tabaco de dentro de Hãxoriwë. Depois de fazer sair o tabaco sem cor, ele o usou. Hãxoriwë olhou e quando viu o tabaco: — Hı̃ɨɨ! — chorou logo. Era um ardil para que Horonamɨ lhe desse o tabaco: — Brejeira! Meu filho! Brejeira! — chorou Hãxoriwë. — Hı̃ɨɨ! Meu sogro! Você está sofrendo tanto assim⁈ — Sim! Estou querendo, meu filho! Divida o que você tem no lábio! — chorou ele. — Meu sogro está sofrendo muito, mesmo! Me dê algumas das frutas que você está comendo e eu lhe darei tabaco para você provar! — disse Horonamɨ. Com essa conversa, Hãxoriwë jogou uma ou duas frutas. Ele estava sovinando as frutas, guardando-as só para si. Horonamɨ experimentou as frutas. Depois de chupar as frutas, os caroços caíam por si sós, de tão maduras: 21


o surgimento da noite “Hıɨ̃ ɨ! Prohu! Prohu!” elas faziam ao cair. — Sogro! As sementes estão moles. Tem muitas frutas ali grudadas, tire para mim! — Não, primeiro me passe a brejeira! Hãxoriwë nos ensinou essa palavra: brejeira. Assim, quando Horonamɨ a guardou no lábio, ele disse: — Minha brejeira! Não apareceu logo esse nome, tabaco.3 Ele só apareceu quando Hãxoriwë pronunciou essa palavra, até então desconhecida. Horonamɨ lhe deu a brejeira. Horonamɨ aproveitou a situação e pediu outras frutas. Assim, Hãxoriwë lhe deu mais uma, mais uma e mais uma. Essas frutas penduradas, depois de colhidas, pareciam cachos de banana. — Vamos, meu sogro! Experimente! — disse Horonamɨ. — Prova! “Tëɨ!”, Hãxoriwë caiu. — Dê aqui! Traga aqui! — choramingou. Como Hãxoriwë estava chorando, Horonamɨ lhe deu o tabaco e ele logo o colocou no lábio. Quando o colocou na boca, ele já ficou tonto, e tremia de tontura. Ele chorava, embriagado. A 3. Nesta narrativa os dois termos são tratados como sinônimos. 22


o surgimento do tabaco força do tabaco o pegou imediatamente. Ainda com o tabaco na boca ele cuspiu, e a espuma caiu no chão. Onde a espuma caiu, surgiu um broto de tabaco, que logo cresceu e se espalhou de uma vez. As folhas de tabaco logo ficaram grandes, como as folhas da jurubeba. Horonamɨ fez aparecer o tabaco através de Hãxoriwë. O conhecimento das sementes foi transmitido, por isso nossos antepassados as pegaram e hoje nós usamos o tabaco, apesar de ele se originar do cuspe de Hãxoriwë. — Meu sogro, depois de melhorar, você dirá: é só tabaco! — disse Horonamɨ. Enquanto Hãxoriwë estava pendurado e inebriado, uma espuma grande saiu da sua boca, por causa da força do tabaco. Ele se engasgou e cuspiu, e foi dessa espuma que surgiu o tabaco, do cuspe de Hãxoriwë, que se tornou tabaco. E um dia, quando os antepassados foram de wayumɨ, como de costume, um deles encontrou o tabaco. Assim, fizeram se multiplicar as sementes e ficaram conhecendo o tabaco. Quem fez aparecer o tabaco? Nós já sabemos, não foi outro que o fez aparecer. Não foi um Yanomami comum. 23


o surgimento da noite Havia nessa época os Yanomami do xapono Warahiko, e foram eles que encontraram o tabaco, foi um deles. Quando viram o tabaco, disseram: — Õooãa! Uau! Uma plantação de tabaco! Foram eles que pronunciaram o nome do tabaco. Em uma região ali perto, moravam dois Wãimaãtori, de outro xapono. Quando os do xapono Warahiko encontraram um deles, lhe contaram a respeito do tabaco. — Meu filho! Qual é o nome disso? — Ah, é tabaco! — assim retrucaram os dois Wãimaãtori. Foi assim que aconteceu: Hãxoriwë, os Warahikoteri e os dois Wãimaãtori descobriram o tabaco primeiro. Foi assim que o uso do tabaco se desenvolveu. Os napë não fizeram surgir o tabaco depois de soprar as sementes. Foi a partir do lugar onde surgiu o tabaco que ele se espalhou por todo canto. Assim foi. Como surgiu o tabaco? Já sabemos: Hãxoriwë iniciou o processo quando Horonamɨ fez aparecer o tabaco, enquanto Hãxoriwë estava olhando. É obra de Horonamɨ, foi ele quem o fez surgir. Ele é um grande pajé, por isso, o maior. Depois de o tabaco se espalhar, quando os Warahikoteri eram Yanomami, eles até desmai24


o surgimento do tabaco aram com a força do tabaco taratara. Sofreram de tontura. Os dois Wãimaatori que moravam mais além, apesar de serem resistentes ao tabaco, também desmaiaram e ficaram duros por causa da força do tabaco taratara. Mas depois eles melhoraram. Foi assim que, em seguida, pegaram as sementes de tabaco e as espalharam, fazendo-as se multiplicarem aqui. Assim foi. Hãxoriwë morava aqui. Depois da história do sofrimento de Hãxoriwë, surge a história do encontro de Horonamɨ com o Tatu.

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Horonamɨ e o tatu O surgimento do cipó e da embira

O

Tatu era Yanomami e era muito comprido.1 Horonamɨ encontrou o Tatu. Por que Horonamɨ cortou o Tatu bem na cintura? Nós, Yanomami, amarramos terçados e fazemos as cordas de arco com o cipó-de-apuí que se ergue na mata. Nós o cortamos e descascamos. É com isso que nós amarramos nossas redes, com as embiras de cipó-de-apuí. Horonamɨ cortou o Tatu. Antes disso não havia linha de pesca. Nossos antepassados não tinham corda de rede. Depois de encontrar o Tatu, depois de esticar suas tripas, depois de destruí-lo, ele o cortou em pedaços. Foi Tatu quem fez aparecer o machado, pois foi ele quem o fabricou. Ele percebeu que certo tipo de madeira dura parecia um cabo de machado. 1. Era gente, e tinha os hábitos e o corpo semelhantes aos dos Yanomami. Trata-se aqui do tatu-de-rabo-mole-comum (Cabassous unicinctus). 27


o surgimento da noite Assim, o Tatu possuía o único machado. Ele ensinou aos napë como fabricar o machado. Então ele não tinha dificuldade em tirar o mel, pois tinha o machado. Ele fez um cabo comprido, depois de quebrar um pau, enfiou e amarrou o machado de pedra em um pau, era um machado de pedra; depois de amarrá-lo, ele partiu um tronco e tomou mel. Os antepassados não tomavam mel, não sabiam tomar. Ele ensinou a tomar mel, ele que existiu primeiro, quando os Yanomami não existiam, quando este inventor não morava entre eles, ele ensinou a tomar mel. Esse tatu se chama moro. Horonamɨ o encontrou. Ku, kõu, kõu, kõu, kõu, kõu!, fazia Tatu, cortando o tronco. Horonamɨ ouviu esse som pela manhã. — Ho! Quem produz esse som, eu quero ver. Dá para ouvir de longe — disse Horonamɨ. Ele logo foi em direção ao som. O Tatu estava sozinho; o som fazia zoada. Horonamɨ estava indo na direção do som e parou. Tatu derramava o mel tima,2 ele o derramava de uma árvore à qual deu o nome de roa3 . Horonamɨ ficou de pé parado, perto de Tatu, fazendo um som com a 2. Mel de uma abelha de mesmo nome, que faz sua colméia no oco dos troncos, próximo ao solo. 3. Árvore alta e de madeira dura. 28


horonamɨ e o tatu boca para chamar sua atenção. Aí fez outro som com a boca, mas Tatu nem olhava, ele cortava sem parar, com as pernas abertas. Naquela época, ninguém chamava o outro de “sogro”, Horonamɨ nos ensinou então a chamar de “sogro”:4 — Hı̃ɨɨ, meu sogro! — disse. — Meu sogro! — disse Horonamɨ com uma voz assustadora. Quando disse isso, o Tatu parou. — Ɨ̃ı̃! Õ! — disse assustado. — Ɨ̃! Õ! De quem é essa voz? — O Tatu falava assim. — De quem é essa voz? — ele respondeu, com uma voz que não era normal. Era o seu jeito de falar mesmo. Horonamɨ olhou, sorriu. — Sogro! O que você está comendo? O que é isso? — disse Horonamɨ. — Não pergunte quem eu sou! — ele disse — Você sabe quem eu sou! Sou o Tatu! — disse ele. Dizendo isso, ele perguntou: — Qual é o seu nome? — ele desafiou Horonamɨ a dizer seu nome. — Ɨ̃ɨ, eu sou Horonamɨ. 4. Sogro, ou tio. O uso desse termo indica uma relação de respeito. Horonamɨ quer se aproximar de Tatu. Trata-se também de uma observação irônica, pois as mulheres ainda não existem no período em que acontecem as histórias de Horonamɨ, e portanto as relações de aliança (sogro/cunhado) não são uma possibilidade. 29


o surgimento da noite Horonamɨ falava com uma voz bem bonita, pois ele era bonito. — Hı̃ɨ, meu filho, eu sou o Tatu. O Tatu era esbranquiçado. Ele era branco, como os napë. Ele o chamou logo. — O que você está querendo fazer? O que você está cortando? — Ɨ̃ı̃! Estou comendo assim! Estou comendo isto. — Eu quero experimentar — disse Horonamɨ. — Quero experimentar um pouco! Posso beber? Que tipo de mel é? — Não pergunte o que é! É o mel tima — disse o Tatu. A partir desse momento, nós, Yanomami, aprendemos a chamar esse mel de tima. — Lá tem mel tima! — ao vê-lo, eu direi assim. Foi o Tatu que ensinou o nome. Horonamɨ chegou mais perto daquele que estava falando. O Tatu maroto chamou Horonamɨ. — Vai! Experimente, meu filho! Experimente, meu filho! O buraco da colmeia ficou aberto. Pise nesse buraco e entre nela! — disse. Era uma armadilha para fazer Horonamɨ entrar no buraco da árvore. Horonamɨ aceitou: 30


horonamɨ e o tatu — Hı̃ɨɨ! Será que o buraco tem espaço suficiente? O mel está jorrando, está gotejando mesmo. O buraco da colmeia está em baixo. A colmeia acaba aí. Entre lá dentro! Fique mais em cima, pise para baixo! Eu estou olhando! — disse o Tatu, malicioso. Quando ele disse isso, Horonamɨ cedeu e entrou logo. Foi logo e entrou, a colmeia fazia barulho, e ele foi até o alto da colmeia. Ficou de pé lá no alto dela. De pé, onde ele entrou, pelo buraco que Tatu tinha feito. O Tatu fechou o buraco, e não havia outra saída. O Tatu prendeu Horonamɨ lá em cima. Horonamɨ gritava lá dentro. Não tinha como sair. Se Horonamɨ fosse um Yanomami como outro qualquer, ele jamais sairia. Ele gritou e gritou lá de dentro, sofrendo, gritando e chorando. Chorava como criança. O Tatu, que o prendeu, fugiu correndo para longe. Aquele que estava preso por si só fez espocar a árvore. O Tatu já estava longe. — Ele não vai me seguir — pensou o Tatu, muito seguro de si. Horonamɨ, com seu pensamento e seu sopro forte, arrebentou a árvore roa. Ele ficou de pé e

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o surgimento da noite olhou ao redor, mas o feioso que o prendeu não estava mais ali. Horonamɨ ficou sozinho. — Hı̃ɨɨ! Depois de pular com a explosão, passou pegando a dala e a zarabatana que estavam penduradas. Colocou nas costas. — Hıɨ̃ ɨɨ! — gemeu. — O que tem o nome de Moro, esse feioso, ele ferrou comigo! — disse, triste. Horonamɨ não errou de lugar: ele correu logo para onde o Tatu havia ido, e foi rápido, ensinando-nos a correr. Horonamɨ correu na direção do lugar onde havia muitas pedras saídas da terra; ele correu e correu, seguindo os rastros do Tatu, como fazem os cachorros. Daí, Horonamɨ correu dando uma volta, e cortou o caminho do Tatu. Horonamɨ o encontrou e o Tatu se assustou. Como o Tatu o havia prendido, ele ficou com medo e com raiva por dentro, e tentou agradá-lo, mas não conseguiu suscitar a compaixão de Horonamɨ. O Tatu apareceu. — Taha! Arrá!— disse Horonamɨ. Era mesmo o Tatu. Ele espreitava, com a mão sobre a testa, à procura de mel. Olhava passando entre as árvores. Horonamɨ já estava de pé, pegou um atalho e deu uma volta. O Tatu se con32


horonamɨ e o tatu fundiu na floresta e acabou chegando justo onde estava Horonamɨ. Horonamɨ estava de pé, atrás da árvore, e deu um susto grande nele. Horonamɨ queria cortar aquele que o havia aterrorizado. Ele decidiu levá-lo até um tronco, fingindo que ali havia uma colmeia, para fazê-lo se abaixar. O Tatu pegou o machado. — Hı̃! Meu filho, aqui está! Aqui está! — disse. — Hõ, hõ, hõ, hõ! Meu filho! Hõ, hõ, hõ, hõ! Venha cá ver! Olhe aqui! Meu filho, aqui está! — disse Horonamɨ. Horonamɨ dizia isso tentando agradar o Tatu, e ia indo atrás dele. — Hıɨ̃ ɨ! Me passa isso que você tem aí no ombro, está afiado mesmo? — disse Horonamɨ, astuto. A falsa colmeia fazia barulho, e Horonamɨ fez diminuir esse barulho, para que o Tatu abaixasse a cabeça para ver melhor a colmeia. Enquanto o Tatu olhava para a colmeia com a cabeça abaixada, enquanto ele estava nessa posição baixa, ele dizia: — Aqui está a entrada da colmeia! Quando o Tatu disse isso, o machado já estava na mão de Horonamɨ e, enquanto o Tatu abaixava a cabeça, Horonamɨ o cortou bem na cintura.

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o surgimento da noite Krihii, kriihii!, fez Horonamɨ, cortando o Tatu para se vingar, pois ele tinha sofrido por causa do Tatu. — Ëëëëããaaë! — gemeu a parte de cima do longo corpo do Tatu. Apesar de ser só um pedaço, a parte superior correu embora, sofrendo. Do lado de cá ficou a parte inferior; as tripas vinham se esticando e a parte superior ficava rolando. Assim, as tripas foram se esticando até lá, elas não se arrebentaram. A parte superior daquele que Horonamɨ havia cortado, e que ele queria que se tornasse o tatu moro, foi lá para cima, até onde estão os espíritos. Foi para lá que fugiu a parte superior do Tatu. Aqui no chão ficou a parte inferior. Só um pedaço do Tatu chegou aos espíritos. Suas tripas não apodreceram; elas foram até onde se erguem as árvores e subiram nelas. Uma parte das tripas do Tatu se transformou em cipó-de-apuí e outra parte se transformou na embira xinakotorema, com a qual, depois dessa transformação, os Yanomami começaram a amarrar as cabeças das redes de cipó. Foi assim. Apesar de nossos antepassados saberem fazer redes de cipó, eles se deitavam no chão, pois não 34


horonamɨ e o tatu havia corda. Eles se deitavam no chão — colocavam a rede de cipó no chão para deitar. Como foi que eles descobriram a rede de cipó? Eles não sabiam descascar o cipó-titica com os dentes, então era assim.5 Até as moças deitavam no chão. Deitavam uns em cima dos outros, como os cachorros. Sofriam na escuridão. Eles eram assim. Dormiam passando frio. Para que nossos antepassados não passassem mais necessidades, as tripas de Tatu se tornaram cipó-de-apuí que amarra as redes. Foi assim. Depois da transformação das tripas, eles passaram a usar o cipó para fazer terçados e machados de pedra, e para amarrar a cabeça das redes, também feitas de um tipo de cipó. Depois, com o passar do tempo, eles teceram cestos. No início eles também não sabiam tecer cestos. Assim foi. Esta história acabou.

5. O cipó-titica é usado na fabricação de cestos. 35



O surgimento da banana

A

história da banana-pacovã. No início era assim. Nossos antepassados surgiram e não sabiam plantar bananas. Não fosse por isso, não haveria essas bananeiras. Não teria aparecido esse tipo de banana. Como pensou e agiu aquele que fez surgir a banana, depois de morar e se estabelecer? Geralmente a gente vai à mata e encontra um lugar como se alguém tivesse roçado, um lugar queimado e limpo, bem no meio da selva. A gente chama esse lugar de “queimado do Fantasma”. Nesse tipo de lugar se encontra um telhado de palha, como aquele que nós costumamos tecer. Embora ninguém tenha dito ao Fantasma, “teça as palhas assim!”, ele as teceu, apesar de ninguém ter ensinado para ele. Depois de Horonamɨ ver o queimado, ele encontrou o Fantasma, dono do queimado, que morava ali. Nesse tipo de lugar, erguem-se os pés de sororoca, que são semelhantes às bananeiras, mas não dão banana. 37


o surgimento da noite O surgimento das bananeiras, não foi porque o Fantasma cortou, queimou e roçou a sororoca. Ele não as plantou. Elas simplesmente surgiram no dia seguinte. Proto! Pauximɨ! Proto! Rokomɨ! Proto! Monarimɨ! Proto! Pakatarimɨ! Proto! Nakoaximɨ! Rokoya! Rokoroko! Roorewë! Estas bananeiras e sororocas simplesmente saíram delas mesmas. Dois dias depois, o Fantasma voltou ao lugar onde havia queimado as sororocas e viu que tinha nascido também batata-doce. Não foi em outros xaponos que ele pegou. Lá onde Fantasma tinha seus alimentos, onde havia as bananeiras, as sororocas se transformaram em bananas-pacovãs e a batata-doce surgiu. Ali também dava cará, ária, pimenta e o mamoeiro. Foi o Fantasma que fez aparecer as bananeiras. Elas vêm do Fantasma. Por que ele as fez aparecer? Porque ele tinha um filho, que ele tinha de alimentar. Ao ouvir a voz do filho do Fantasma, Horonamɨ descobriu a sua moradia e pegou com ele umas mudas de bananeira. O Fantasma não tinha outros parentes. Ele mostrou aos Yanomami que é possível ter somente 38


o surgimento da banana um filho. Ele fez apenas um filho, apesar de sua esposa ser moça. Agora ele não é mais pajé, como foi em vida. Aquele que vinha, Horonamɨ, encontrou as bananeiras e pediu mudas ao Fantasma. Quando não existiam nem roças, nem Yanomami, depois de Horonamɨ pegar as bananeiras, ao chegar ao seu xapono, ele deu nomes a elas, deixando com isso o ensinamento de como plantar as bananeiras. Ele as pegou para nós as termos. Até hoje existem as bananas de diferentes variedades: rokomɨ, nakoaximɨ, rokoya, pauximɨ, monarimɨ, pakatarimɨ. Assim foi. Nossos antepassados e os antepassados dos napë não comeram banana desde o início. Hoje, tanto os napë quanto os Yanomami plantam bananas, a partir do ensinamento de Horonamɨ.

como os napë descobriram a banana Como aconteceu a descoberta da banana pelos napë? Qual foi o Yanomami que levou as bananeiras aos napë? Ninguém levou as mudas de bananeira aos napë. Uma moça estava reclusa. 1 1. Quando a menina yanomami tem sua primeira menstruação, ela fica em reclusão por um período entre uma semana e dez dias, 39


o surgimento da noite A água saiu e as roças afundaram. Essa água levou a mulher e por onde a levou, levou também as bananeiras afundadas, até aonde os napë vivem; foi o rio que levou as bananeiras para que eles, os napë as descobrissem. O rio desejava a mulher menstruada porque ela era bonita. No que ela se tornou? O rio a levou porque a desejava. Da mulher menstruada que as águas levaram, sua imagem se espalhou nos rios. Multiplicou-se a partir dela mesma. Foi a água que a pegou. O rio disse: — Meu sogro, quero uma mulher! Me dê a sua filha! O rio entrou, perseguindo a mulher. O rio entrou rápido. Olha só a água! Ela entrava por trás das casas, apesar de a terra ser alta. — Prako! Prako! — dizia o grande rio. O pai mandou pintar a filha, nessa hora ele a pintou, seu irmão a pintou. O pai mandou seu filho pintá-la. Ele estava com muito medo de se afogar na água, que vinha ameaçadora, se mexendo como em plena tempestade. A água se mexia com grandes banzeiros, nos quais a mulher pintada foi dentro de um pequeno cômodo feito de folhas de açaí no xapono. Essa reclusão a protege do assédio de espíritos num momento em que ela fica em evidência. Aqui a moça atrai o interesse do rio, que a carrega para fora do xapono para se casar com ela. 40


o surgimento da banana jogada, apesar da sua beleza. Seu pai a fez afundar. O rio levou a sua filha, e não a devolveu. Ela não se afogou, e o rio a levou como sua esposa. — Eu, apesar de ser água, farei dela a mãe d’água! Eu vou pegá-la — disse o rio. Por isso, esta Yanomami se tornará a mãe do rio. O rio se retirou. Depois de pintarem seu rosto com desenhos bonitos, colocaram penas de cauda de papagaio nas suas orelhas. Feito isso, as folhas de açaizeiro da reclusão foram removidas e a água entrou. O xapono dele era como os nossos. — Mãe! Mãe! Pinte minha irmã! Enfeite-a! Enfeite-a depressa! — disse o irmão da moça.2 — Essa ideia dói muito, meu filho, mas não tem jeito, entregue mesmo tua irmã! Apesar de ser o rio, assim falou o pai. Ele mandou entregar a filha. Foi assim que ele disse. Existe um canto sobre a mulher levada pelo rio, há um canto sobre ela: Xiri tõi! Xiri tõi, Xiri tõiwë, Xiri tõi, 2. A moça enfeitada normalmente seria entregue a um marido humano, não a um marido rio. 41


o surgimento da noite Xiri tõi, Xiri tõi, Xiri tõiwë! Ela cantou. Quando ela pronunciou o nome de seu marido, o rio respondeu: — Tuuuuuuuuuuuu! — Xiri tõi! Xiri tõi! Xiri tõi! — cantou o pai. Ele falou assim, cantou assim e, quando parou de cantar, o xapono quase caiu, levado pelo rio. O irmão a pegou para jogá-la, apesar de ela estar chorando. Ela chorava, por causa do seu irmão: — Ɨ̃ɨaaaı̃ɨ! Meu irmão! Meu irmão! Não fique triste! Meu pai! Meu pai! Não fique triste! Minha mãe! Minha mãe! Não fique triste! Enquanto ela chorava assim, o irmão a pegou. — Hı̃ɨ! — Kopou!, ele a jogou de cabeça. Fazendo assim, a água a pegou e logo a levou. O rio cheio já estava esperando. Quando o rio se retirou, revelou uma grande extensão de terra. —Puuu! — disse o rio. Foi assim, o rio desceu de uma vez só. — Aëëë! — ela disse. A mulher se tornou boto, aquele que boia na superfície da água, pois a jogaram na água quando ela estava menstruada; ela estava de reclusão, a 42


o surgimento da banana vagina dela estava ainda sangrando. Por isso se tornou a mãe da água. A imagem dela se espalhou e ocupou todos os rios. Aquelas bananeiras rokoroko que a água levou, bem como as pacovas, se multiplicaram na terra dos napë. Assim foi, as bananeiras se multiplicaram.

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A anta que andava nas árvores

F

oi Horonamɨ quem perguntou os nomes dos animais. Horonamɨ encheu a floresta de animais. Horonamɨ encontrou a anta Xamari, que andava como Yanomami. Ela andava nos galhos baixos, vindo em sua direção. Hukru! Hukru! Prãããõ! ela fez ao cair. Ela andava nas árvores como os cuatás. Afinal, ele encontrou a anta andando nas árvores. Felizmente, ele fez com que ela descesse, para que nós pudéssemos comê-la. É sempre um acontecimento quando matamos uma anta para comê-la! A anta não andava no chão: andava nas árvores de uma espécie nativa de louro, atravessando os galhos e comendo as frutas maduras. Horonamɨ fez quebrar o galho para que a anta caísse. Depois de cair, ela se acostumou a andar no chão. A anta chegou ao xapono dos esquilos, mas lá não deu certo, então ela foi para a mata. Os 45


o surgimento da noite esquilos se juntaram quando anta ainda era Yanomami, e a chamaram. Queriam saber quanto ela aguentava comer. Os esquilos viviam como Yanomami: moravam em um xapono no alto das árvores e faziam festas como nós, embora eles fossem se tornar animais. Um dia, eles chamaram as cutias, os caititus, as queixadas, as antas, os papagaios e as maitacas. Havia muita comida, mas os convidados não conseguiram comer tudo. Até a anta também desistiu de comer, pois pressentiam que algo ia acontecer. De repente, todos eles se transformaram em animais. As queixadas também eram Yanomami. Os cipós se arrebentaram e elas caíram. Foi lá, na região do xapono dos esquilos onde não conseguiram comer, pois estavam prestes a se transformar. Não havia nenhuma queixada antes de eles se transformarem. Nessas regiões, não havia queixada. Subiram até o alto, subiram, estavam subindo até a ponta do cipó. Lá, o cipó arrebentou no meio. Queixada! Se isso não tivesse acontecido, lá naquela floresta, hoje as queixadas andariam nas árvores.

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a anta qe andava nas árvores A anta foi quem caiu primeiro e passou a andar no chão, tornando-se um animal terrestre. Em seguida, o cipó das queixadas arrebentou. Outros Yanomami, que ficaram na parte superior do cipó se transformaram em macacos cuatás. Assim foi. As queixadas ocuparam toda a floresta. Elas desceram rio abaixo. Horonamɨ conseguiu assim fazer a anta descer ao chão, e hoje nós as comemos. Assim que foi. Não havia animais no início, pois eles viviam espalhados, como os Yanomami, em vários xaponos. Yãukuakua! Yãukuakua! Ninguém fazia assim. É assim mesmo. Esse grande animal que anda no chão, quando estamos famintos de carne, nós a comemos, ela anda mesmo no chão. Nós a comemos.

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Os comedores de terra

E

sta é a história dos nossos antepassados que aos poucos se multiplicaram. Ela começa na época em que não havia Yanomami como os de hoje. Os Comedores de Terra sofriam, porque eles comiam terra. Os primeiros que surgiram sofreram. Nós também quase que teríamos sofrido, como as minhocas, por cavar a terra e tomar vinho de barro, se não fossem os acontecimentos que seguem. Só havia os Comedores de Terra. Eles não conheciam os alimentos que hoje nos alimentam, apesar de serem muitos, como ingá, como maparajuba, como conori. Havia cabari, bacaba, mas eles não sabiam tomar vinho de bacaba; tomavam vinho de barro e de flores, depois de cortá-las lá em cima, eles tomavam vinho delas. Devoravam as embaúbas novas, e as chamavam de comida. Se nossos antepassados tivessem surgido nessa época, nós estaríamos sofrendo hoje. 49


o surgimento da noite Quem descobriu os alimentos comestíveis? Morava com eles Horonamɨ, aquele cujo nome aparece no início, na origem. Ele mostrou a todos os alimentos que até hoje nós comemos. Depois de perguntar, experimentar e carregar os alimentos por todos os cantos, ele ensinou os Comedores de Terra a comê-los. Foi ele, Horonamɨ, não outro. Assim foi. Tudo isso não aconteceu embaixo deste céu, mas do céu que caiu e amassou os primeiros habitantes. Abriram o céu e assim nossos antepassados surgiram. O céu caiu, mas antes ele estava lá em cima, antes da existência dos nossos antepassados, antes de algum napë, entre nós, perguntar assim: — Tudo bem? Eles morriam de fome, pois comiam terra, flores, frutas, excrementos de minhoca, folhas novas de cabari. É essa a história dos ancestrais. Os ancestrais no início não comiam os alimentos que comemos hoje. Eles comiam a pasta que se forma nas árvores junto às casas de cupim. Dizem que a comiam com voracidade. Apesar de só comerem isso, não ficavam doentes, pois não existia malária, e não precisavam curar ninguém, pois 50


os comedores de terra não havia doença, não havia dor, nem tosse, portanto não havia necessidade de remédio — não havia doença, pois não havia napë. Viviam bem, sem doenças, até terem muitos cabelos brancos. As mulheres ficavam velhas até terem a cabeça branca, pois não havia doença. Era assim, no início: não sofriam com conjuntivite, nem com feridas, nem tinham marcas de furúnculo. Tinham a pele bonita e somente sofriam de fome, por causa da terra que comiam. Apoiavam-se em paus para andar, por causa da fome. Assim era. Nessa época, não sabiam comer carne, mas eles estavam bem e, quando um velho morria, ninguém chorava. Não choravam por causa de um velho morrendo de doença, pois ninguém morria de doença. Nem havia cobra para picar, dar dor e matar. Eles viviam bem. Os espíritos não pegavam a alma de ninguém para matar. Era assim. Eles não ficavam fracos com diarreia, isso não acontecia, apesar de eles não tomarem remédios. Era assim quando não existia napë, antes de os napë se misturarem; nessa época, os napë existiam? Sabemos que não! Não existiam.

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o surgimento da noite Os rios, apesar de serem grandes, dizem que eram vazios. Dizem que não se escutava o som de motor subindo o rio fazendo tu, tu, tu, tu, tu, tu! Ũ, ũ, ũ, ũ, ũ! Não se escutava o som do avião, por isso os velhos não morriam de doença. Morriam de cegueira. Era assim que morriam, por causa da cegueira. Tornavam-se cegos e a respiração parava, não por causa de doença, mas de fome. Isso só aconteceria depois. Aconteceu assim. Ninguém dizia: — Alguém lá pegou doença e morreu; eles estão chorando lá! Mesmo quando tinham cabelos brancos, eles andavam saudáveis. Morriam de velhice. Ficavam cegos, os olhos secavam, o sangue acabava, por isso morriam. Mandavam deixar os mortos fora do xapono,1 para que voltassem como mortos-vivos. Retornavam sempre na forma de mortos-vivos, quando não havia napë entre eles. Os ancestrais ficavam alegres por comer frutas, não era como agora. Quando comeram carne, eles endoideceram e passaram mal. Não havia fogo e comiam cru. Endoideceram por comer cru. 1. Os xaponos são as casas coletivas circulares onde moram os Yanomami. Cada casa corresponde a uma comunidade; em geral não se fazem duas casas numa mesma localidade. 52


os comedores de terra Depois de eles aprenderem a comer os verdadeiros alimentos, eles se tornaram como nós. Tornaram-se assim, comendo carne cozida. Quando aconteceu, as crianças se multiplicaram, saudáveis, em um e outro xapono. Fizeram um grande xapono, outros se agruparam, e não pararam de se multiplicar, todos saudáveis.

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A vingança de Horonamɨ

O

nde o sol se põe, naquela parte da floresta, foi naquela parte que se transformaram. Os Cuatás viviam como Yanomami. Eles são gente. Moravam como nós, na planície. Pica-Pau Vermelho morava junto com os Cuatás, os Rapoahiteri e Lagartixa. Pica-Pau Vermelho e Lagartixa, os salvadores de Horonamɨ, moravam com os Rapoahiteri. Horonamɨ os encontrou, ele mesmo. Ele os viu comendo. Eles comiam abios. Eles o chamaram, ardilosamente, para subir; provocaram o encontro para fazê-lo gritar. Horonamɨ subiu, eles o fizeram subir, subir… Eles o chamaram e quando ele subiu e chegou bem no centro da árvore, em vez de comer, eles puxaram outra árvore, como se estivesse amarrada, e enquanto desciam por ela, disseram a Horonamɨ: — Fique aí comendo! Aí você ficará satisfeito! Coma essas frutas que ninguém pegou! — disseram eles. 55


o surgimento da noite Eles fizeram com que Horonamɨ ficasse ali. Cuatá, do abieiro onde estava, puxou a árvore taxizeiro com o fio esticado e a ponta mal encaixada, segurando-a somente pelas folhas. Todos os Cuatás saíram, e aquele que eles tinham chamado ficou sozinho. Eles o deixaram preso no abieiro. O taxizeiro deu um impulso. Ficou só o abieiro. Horonamɨ ficou agoniado, mesmo sendo Horonamɨ. Ficou gritando de cima, ficou gritando, ficou preso lá. Quem iria buscá-lo? — Quem virá me buscar? — pensava ele, chorando. Agoniado, estava muito triste, gritava e pedia socorro; os Rapoahiteri e os Cuatás o deixaram naquela situação. Esse é o nome dos primeiros habitantes, os que viviam na mesma época que os primeiros humanos, Rapoahiteri. Foram eles que o deixaram ali agoniado. Bem depois, Lagartixa escutou os gritos de Horonamɨ. Lagartixa subiu, para fazê-lo descer, queria buscá-lo, queria carregá-lo nas suas costas, mas ele recusou, receando escorregar com ele. Horonamɨ estava com medo de descer de cabeça para baixo com Lagartixa.

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a vingança de horonamɨ — Não, você não vai me fazer descer direito — disse Horonamɨ — Você vai me fazer cair! — Vamos tentar! — disse Lagartixa — Não tenha medo, eu não vou te fazer cair! Eu te seguro bem forte! Coloque suas mãos, assim! Apesar de Lagartixa dizer isso, Horonamɨ tentou, mas os dois ficaram de cabeça para baixo. Ele gritava, quase caiu de cima, Lagartixa quase o fez cair e, como não dava certo, Horonamɨ desistiu. Quando ele desistiu, porque infelizmente não dava certo, Pica-Pau Vermelho escutou a voz de Horonamɨ: — De quem é essa voz, de quem é essa voz? Parece a voz de alguém em dificuldade — disse — Alguém parece estar sofrendo mesmo, a voz, qual é seu problema, ıɨ̃ ɨ? — disse. O Pica-Pau Vermelho chegou até lá e fez uma série de buracos, fez uma espécie de escada no tronco da árvore. Ele fez a linha de buracos chegar certinho à forquilha da árvore onde estava Horonamɨ. Ele mandou: — Vai! Coloque suas mãos nos buracos e desça. Você não vai cair! Os buracos estão prontos! — disse. Ele fez muitos buracos, Pica-Pau Vermelho. Foi ele quem resolveu o problema. Esses pica-paus 57


o surgimento da noite são os que fazem buracos nas árvores. Foi ele quem fez Horonamɨ descer, tirando-o daquela situação. É o nome dele mesmo, Pica-Pau Vermelho, ele era gente. Graças à ação dele, os nossos antepassados se reproduziram e se multiplicaram. Foi assim. Pica-Pau Vermelho não era um animal, era um Yanomami. Ele existia como Yanomami e foi ele que fez Horonamɨ descer. — Não responda mais, nem sempre você encontrará alguém para te ajudar, tome outro rumo quando alguém te chamar! — ele aconselhou a Horonamɨ. — Sim, você é meu amigo, eu gosto mesmo de você, vou te proteger, eu não vou te fazer mal! — agradeceu Horonamɨ. Depois disso, como vingança, Horonamɨ estragou nossos alimentos, ele nos fez comer alimentos amargos, ele tornou os alimentos estranhos, nos anestesiou a boca para os alimentos comestíveis, fez nosso paladar estranhar outros alimentos. Ele enfiou uma flechinha envenenada nos alimentos, enfiou em todos. O monstro Kuku devorou Horonamɨ porque ele agiu assim, ele estragou todos os alimentos dessa forma. Ele os tornou amargos. 58


a vingança de horonamɨ No início, eles comiam cabaris crus, quando eram saborosos, pois não eram amargos, antes de ele os envenenar.1 Eles os comiam e eram gostosos, assim, comiam cabaris gostosos como beiju. Simplesmente os cozinhavam; cozidos, os cabaris eram comidos no mesmo instante. Apesar de eles serem assim, depois de Horonamɨ os picar com a flechinha — ele picou todas as sementes das frutas com o veneno — ele os tornou amargos, todos. Foi o que ele fez, e mostrou para eles. Ninguém mostrou a ele os frutos amargos, foi ele que os tornou amargos, picando-os com veneno. Quando ele terminou de picar todas as frutas, ele avisou: — Isto que vocês comem são cabaris — disse Horonamɨ. — São cabaris, e eram bons, mas vocês não os prepararão mais como preparavam. Depois de algumas noites, vocês pisarão em cima deles e eles ficarão sem gosto, aí vocês vão buscá-los, vocês os comerão. Agora eles são amargos! — disse ele — A preparação vai demorar muitos dias! — acrescentou. Assim fizeram. Aconteceu. Não foi qualquer pessoa que estragou as frutas, foi Horonamɨ quem surgiu primeiro e as estragou, não foi um des1. Para comer os cabaris, é preciso deixá-los muitos dias na água e pisá-los para remover seu veneno. 59


o surgimento da noite cendente dele. Depois de fazer isso, estragar os alimentos com o veneno, a seta com veneno estragou a cutia, grudou ao rabo da cutia, e está lá ainda. O rabo das cutias se tornou a seta da zarabatana de Horonamɨ, foi o que ele fez, e a cutia sofreu muito. Horonamɨ fez isso com todos os alimentos, aqueles que eram gostosos, as frutas que eram gostosas. — Não sobrou nenhum! De fato, nenhum sobrou mesmo, por isso ele disse assim. Ele os picou com um veneno muito amargo. Quando ele terminou, ele foi se acabar também: Kuku o comeu. Assim que foi. Como Horonamɨ não ficava quieto, ele acabou numa situação difícil.

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Como morreu o monstro kuku

D

epois de tudo que nos ensinou, Horonamɨ acabou morto pelo monstro Kuku. Sua mulher estava no final da gravidez e, quando ela sentiu as primeiras dores do parto, o monstro matou o pai. Quem esfregou a barriga para a criança nascer rapidamente foi Yoahiwë ou Yoawë, o irmão mais velho de Horonamɨ. A partir do momento que o tuxaua Horonamɨ sumiu, Yoahiwë soprou a montanha, que era a casa dos espíritos, pois queria matar o monstro Kuku e vingar a morte de seu irmão. Ele fez um tipo de arma. Por ser de pedra, a montanha era indestrutível. O monstro Kuku guardava os ossos de Horonamɨ dentro da montanha e os devorava quando a criança nasceu. Nascida a criança, Yoahiwë a pegou com a placenta e a lavou em água limpa. O tio pegou logo a criança recém-nascida e a soprou para secá-la e acalmá-la. Enquanto isso, ele 61


o surgimento da noite preparava a zarabatana e escolhia as pedras. Fazendo isso ele nos ensinou a matar. Ele conseguiu vingar Horonamɨ. A criança o fazia se lembrar do irmão bonito que lhe fora arrancado enquanto ele a mantinha deitada sobre seu peito: — Ũa, ũa, ũa — fazia a criança. A criança não havia deitado com a mãe e nem mamado ainda quando Yoahiwë soprou fortemente sua boca. Perto, havia um cipó pendurado, um cipó bem duro, que ele torou; amontoou e amarrou muitas pedras, ele escolheu uma pedra bem grande e volumosa, colocou-a na zarabatana e fez a criança soprar. Apesar de a criança ser pequena, saiu um sopro forte. — Meu filho, teu sopro já é forte! — falou. — Kuxu, kuxu, kuxu! — fez para a criança, que estava sentada nas coxas do tio. — Vamos, meu filho, já fortaleceu teu sopro? — perguntou. — Hɨhɨ! — assentiu a criança. — Experimente! Experimente com isso! — Hɨhɨ! Ela ficava de pé vacilante, como os filhotes de jacamim.

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como morreu o monstro kuku — Kuxu, kuxu, kuxu! Fique firme, fique firme! — O tio apoiava a criança contra seu peito. — Tente! Tente! Apesar de ser recém-nascida, paha! Ela não soprava devagar. Ele segurava a criança na cintura, apoiando-a contra seu peito. Ela fazia as pedras se soltarem com um som forte, parecido com o som dos conoris quando abrem. O cipó-de-apuí representava a imagem do monstro Kuku que ele iria mesmo matar. Tëı̃ɨɨɨɨ! O cipó se destruiu em pedaços. — Vamos! Outro, outro, outro, só mais um! Ela soprou novamente. Paha! Ouviu-se o som. O meio do cipó explodiu em pedaços. — Bem, o teu sopro já é forte — Ele fez explodir o pedaço de cipó que sobrava. Ele riu. Ela foi perseguir o monstro, essa mesma criança que havia nascido naquele dia, de manhã cedo. — Hoaa, é mesmo o meu filhinho! Pegou a criança nos seus braços para vingar o pai dela. Apesar de ser pequena, a criança vingou seu pai.

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o surgimento da noite Apesar de a montanha ser dura, ela resistiu? Não! A criança fez explodir um pedaço da serra, pois as pedras eram duras. Paha! A criança fez cair a serra no chão em um monte de pedaços. Os pedaços de pedra zoavam. Tuuuuu! Ela fez zoar os pedaços de pedra. Enquanto isso, o monstro Kuku chorava de medo. Ele se lamentava, enquanto eles se aproximavam. Ele chorava muito: — Ɨ̃ɨɨɨ! O que vai ser de mim? — ele gemia, assustado. Os últimos pedaços da montanha ficaram pendurados lá. O último pedaço caiu com o monstro e o destruiu: — Ku! Ku! Ku! Ku! — fez o monstro. Embora o monstro estivesse morrendo, ele conseguiu matar o bebê. Com muita dor pelo irmão bonito, que o monstro conseguiu extinguir quando a criança nasceu, o tio a deitou sobre seu peito para fazer dela o instrumento da sua vingança. Yoahiwë ficou com muita raiva da morte do seu sobrinho, a quem tinha se apegado como se fosse seu próprio filho, iludindo-se com a idéia de criá-lo. Como perdeu seu sobrinho, o irmão mais velho de Horonamɨ fugiu rapidamente num 64


como morreu o monstro kuku tipo de jangada e, enquanto fugia, transformou-se em espírito. Seus dois irmãos Yoahiwë e Omawë correram e seguiram pelo rio, zangados. — Aë, aë, aë, aë, aë, aë! — dizia ele sem parar, de raiva pela morte do seu sobrinho. Sim. Assim fizeram.

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Omawë

E

sta história começa com o nome dos Hoaxiwëteri. Omawë e Yoasiwë moravam com os Hoaxiwëteri. O tuxaua Hoaxi, Caiarara, convivia com eles, por isso se chamavam Hoaxiwëteri. Nesse mesmo lugar, junto com os Hoaxiwëteri, moravam Omawë, que era o irmão mais novo, e Yoasiwë, o mais velho. Omawë, mais novo, nasceu depois de Yoasiwë. Então, Yoasiwë e seu irmão mais novo, Omawë, moravam com os Hoaxiwëteri. Eles pegaram a filha do monstro Raharariwë. Os dois viram a filha de Raharariwë. Totewë, outro nome de Yoasiwë, viu a filha de Raharariwë sentada, pegando piabas — ensinando assim a pegar piabas. Yoasiwë desceu ao rio e, apesar de ele não ter anzóis, onde estava pegando piabas, ele fez aparecer um tipo de anzol. Não existia anzol, mas com seu pensamento, ele o fez surgir e o amarrou em uma espécie de gancho de pau. 67


o surgimento da noite Raharariwë e suas filhas moravam no rio Tanape. Era lá que ficava o xapono de Raharariwë. Omawë as encontrou no rio Tanape. Era a própria filha de Raharariwë que se chamava Tepahariyoma, Mulher Matrinxã, aquele peixe branco, de rosto bonito. A irmã mais nova se chamava Peixe. No início, quando não havia mulher nos outros xapono, quando não existia mulher entre os homens, os dois pegaram e levaram a filha mais velha de Raharariwë. O irmão mais novo, que era lindo, conseguiu pegá-la, embora os dois fossem anambés-azuis muito bonitos. — Que passarinho bonito! — Vocês dizem assim, pois Omawë era bonito. Foi para ele que a mulher se entregou. O irmão mais velho de Omawë se chamava Hëɨmɨriwë, Anambé-Azul, queria se transformar em anambé-azul;1 o nome do irmão mais novo era Omawë, saíra-paraíso, bonito, para conseguir pegar as duas mulheres, foi ele quem fez as duas mulheres se levantarem. Depois de os dois pega-

1. O anambé-azul fornece penas azuis usadas para fazer os brincos dos pajés. 68


omawë rem essas duas mulheres, não perguntem o que aconteceu! Omawë e seu irmão mais velho, Yoasiwë, o menos bonito, não foram ao rio, pois estavam em um lugar diferente. Não moraram logo no lugar onde pegaram as filhas do monstro aquático Raharariwë: foi a imagem deles que se deslocou, na forma de passarinho. Omawë não andava na terra, a história de Omawë é essa, ele não andava na terra para pegar mulher, pois queria se tornar espírito. Ele não criou os Yanomami. Ele era sozinho, independente, pois queria se tornar eterno. A imagem dele ainda chega aos Yanomami, é ele que se chama Omawë.

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O surgimento da maniva

Quem pegou e espalhou a maniva para nós comermos? Não havia maniva. Nossos antepassados não possuíam maniva como a que nós plantamos. Não tinham maniva, ela não existia. No início, quando o monstro Raharariwë morava com suas filhas, sem outros parentes, seu xapono ficava no fundo da água. Raharariwë não morava em terra seca. No início, ele tinha sua casa dentro da água. As manivas estavam em uma casa que tinha a estrutura fincada, como a nossa. Ela tinha esteios de maniva fincada. Ele possuía maniva. Morava com elas, Raharariwë, ele mesmo. No início, era ele que a possuía, a maniva que foi multiplicada e dividida. Quando ninguém tinha plantação de maniva, ele amarrava sua rede lá onde ela estava. Ele guardava essa casa de maniva fincada. Se não fosse ele, nós sofreríamos, se Raharariwë não possuísse a maniva. 71


o surgimento da noite — Vou plantar maniva. — A gente nem diria isso. A partir de Raharariwë, a maniva se espalhou e nós comemos farinha. A maniva se espalhou como alimento. Ele possuía a maniva, aquele cujas filhas foram pegas. Omawë a quebrou e a pegou. Quem foi traiçoeiramente chamado para dentro dessa casa? Quem chegou? A filha entrou com ele dentro da casa de Raharariwë. Ela entrou maliciosamente com ele dentro da água. A filha estava lá de pé. Olha só a água! Olhe a superfície da água! A filha estava de pé dentro da água escura. Ela o levou maliciosamente, para que o pai o assustasse. Ele assim conseguiu chegar até Raharariwë, mas só para passar medo. Chamava-se Omawë. Ele tinha o nome daquela saíra verde tão bonita, não de outro passarinho! Foi ele mesmo, Omawë, que levou a filha de Raharariwë. Ele conseguiu entrar na água depois de fechar as narinas, foi sua mulher que as fechou: — Kopou! Ũi, ũi, ũi, ũi, ũi, ũi! — ela fez assim. — Você não se afogará! — disse ela. — Hı̃ɨɨ! Tëɨ! O xapono logo ficou sem água. A casa estava pintada de vermelho escuro como as frutas hũria 72


o surgimento da maniva bem maduras, como o vermelho cor de sangue das asas de papagaio em movimento. Raharariwë morava em uma casa bonita e Omawë chegou até lá. A filha lhe falou: — Pai! É teu genro! Eu trouxe teu genro, eu casei! Raharariwë olhou para Omawë. — Aquele é teu? Hı̃ɨɨ! É teu? — Pai! É meu marido! Eu casei! Ele é bonito, tu não achas? Ele sorriu. Lá, aquelas raízes saídas da terra pareciam enormes. Onde o sogro estava, havia um pau grande, enfeitado e bonito, no chão, parecido com a pele das costas de um poraquê. A filha sentou com Omawë. — Vai te sentar naquele pau com teu marido, filha querida! Ele o fez sentar em cima do pau iwaiwakana para assustá-lo. Esse pau se mexeu como se mexem os jacarés. Ele o fez sentar em cima de um pau que se mexia por si só. Omawë se sentou e perguntou a ela: — Isto é madeira?

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o surgimento da noite — Não é madeira! É maniva! São manivas! — disse a mulher. Nós chamaremos de maniva, foi ela que ensinou o nome maniva. — Como se faz aquilo? — Ele quebra para fazer beiju, ele faz beiju e come — respondeu ela. — Hoaa! — exclamou. Ele tirou algumas mudas de maniva que estavam juntas: — Kero! Eu plantarei minhas manivas! — Omawë disse reservadamente à esposa. Raharariwë quase comia o genro, se a filha não o protegesse, guardando-o sentado no seu colo. — Tu me pegas e me fazes sentar no teu colo. E assim outras farão, fazer sentar o marido no colo. Assim ela fez e ensinou a fazer. Omawë ficou com medo por causa do pau que se mexia, ficou assustado, gritou e chorou como uma criança. Chorou de medo. Como o pau estava se mexendo, Omawë se tornou caba e grudou ao pau, se transformou em caba tutu si, daquelas branquinhas. Ele ficou abalado. 74


o surgimento da maniva Ela conteve o pai: — Pai! Não faça isso! É meu, eu casei! Não faça isso, por favor! Se você fizer isso, eu não ficarei aqui! Vamos voltar, nós dois! Ela mostrou a frente da casa. Raharariwë quase comeu Omawë, por isso ela fugiu com ele. Ela também fugiu, pois Raharariwë quase comeu o marido. — Tu, tu, tu, tu, tu, tu! — ele já estava dizendo.1 Aquele que levou as manivas de Raharariwë boiou com elas e as deu aos seus parentes. Nós comemos o que ele deixou para acompanhar nossa comida, para não sentir mais fome, ele pegou para nós comermos. Ele levou as mudas de maniva, cujos brotos ficaram chorando. Já havia realmente fugido. Levaram manivas cujos irmãos ficaram chorando. — Pai! Pai! — choravam assim. Assim fizeram.

1. Aqui há um jogo com o verbo tu-, cozinhar em água. 75



O dilúvio O ressurgimento dos yanomami e o aparecimento dos napë

D

epois da morte do irmão e do sobrinho, Yoahiwë e Omawë fugiram rio abaixo. Havia somente um rio, o rio Tanape. Eles encontraram, no percurso, outro sobrinho, filho de Manakayariyoma, cuja mãe se considerava a irmã dos dois, por ter o mesmo nome que a irmã deles. Como se deu esse encontro? Enquanto os dois estavam no meio do rio, eles escutaram um chamado vindo de cima. To! To! Escutaram um som descendo na direção deles. Hı̃ tuuuuu! Fazia o bebê descendo na direção deles. O sobrinho desceu na sua direção com sede. Hı̃ɨɨ tëɨ! A criança estava amarrada em uma haste de palmeira. — Ũa, ũa, ũa! Tio! Tio! Acabava de descer ao chão, sentado no meio daquela haste de palmeira: 77


o surgimento da noite — Sede! Sede! Tio! Sede! Eles o agarraram. Não foi gente que deu à luz esse bebê. Ele não tinha pai gerador, mas apenas apareceu nessa haste de palmeira. Levaram-no, muito sedento. Ninguém o gerou! Levaram-no, pois era o sobrinho. Foi lá que os dois encontraram o filho de Manakarariyoma. Por causa desse bebê encontraram o grande rio fechado. Os humanos foram exterminados por causa daquele bebê sedento que surgiu do nada. Como? Omawë não abriu sem razão essa água na qual se afogaram os Yanomami; foi por causa do sobrinho cujo fôlego se apagava. Ele morria de sede. Como se deu esse evento? — Ẽ, ẽ, ẽ! — assim ele respirava. Vendo a criança arfar, com a moleira se esvaziando, o tio chorava por causa da sede do bebê. — Não vou deixar meu pequeno sobrinho morrer! Não vou ficar feliz, não! — dizia chorando e recuando. Os olhos do bebê estavam virando e Omawë dava a espuma de sua baba para ele beber. O bebê chupava, mas chupava em vão. Sua boca se 78


o dilúvio enganava com a urina do tio. Ao final, o irmão mais novo refletiu e decidiu conseguir água de qualquer forma. Ele previu que a água estava guardada embaixo de uma pedra. Tuku, tuku, tuku! A água batendo debaixo da pedra fazia esse som. A pedra era muito dura, estava bem fincada; mesmo assim ele conseguiu tirar um pouco, não de vez. Ele suspendeu a pedra só um pouco, inclinando-a para o lado, não por baixo. Assim que ele a empurrou um pouco, a água jorrou. O bebê, que já estava morto, ressuscitou por causa dessa água. Tuuuuuuuu! Fez a água. A água logo jorrou longe. O jorro caiu lá, bem em baixo. A água se curvou e escondeu o céu. A água jorrou durante duas noites e o rio encheu rapidamente. Por causa da sede daquele bebê, a gente daquela época desapareceu. Foi depois desse evento que nossos antepassados surgiram; a água levou os mortos lá pra baixo, onde os dois preparavam redes. Omawë, Yoasiwë e o sobrinho fizeram uma cerca de paxiúba dura como ferro fincado na água, para reter os mortos levados pelo rio. No mesmo lugar onde Omawë e 79


o surgimento da noite Yoahiwë se localizavam, eles fizeram outro jirau bem forte para moquear os mortos e fazer aparecer os napë. Feito isso, a água já trazia outras pessoas sofrendo, os afogados. O rio ficava bem estreito no meio da terra dos napë. Pegaram os mortos lá bem perto da terra dos napë, lá em baixo. Chegavam pelas águas os quase mortos, onde estavam os dois. O que fizeram Omawë e seu irmão? Eles usaram aquelas redes que haviam tecido. O irmão mais velho, que era mais esclarecido, disse: — Irmão menor! Faça logo, os meus já estão passando! Meu irmão, os primeiros já estão passando! Prepararam corda de embira. Os dois teceram um tipo de tarrafa transparente. Eles salvaram as pessoas com tarrafa de embira omaoma. Não paravam de lançar a rede onde chegavam os mortos, pegando um a um. Puxaram a rede como se fossem peixes, muitos peixes. Feito isso, ele e o irmão mais novo os jogaram em cima do jirau, um por um, quando o fogo grande se erguia; eles os assaram como se fossem caça. 80


o dilúvio Xãaaai! O fogo crescia com a gordura derretida de gente. O irmão mais novo cortou as folhas novas de sororoca e as deixava no chão. Em cima dessas folhas, juntava os corpos cremados, enquanto o outro recuperava os corpos no mesmo instante. O sobrinho, que rapidamente cresceu, ajudava seu tio. Eles os jogavam em cima das folhas, os corpos cremados. O irmão mais velho recuperava os corpos e os raspava. Ele raspava os corpos cremados com um tipo de colher grande. Xoe! Xoe! Xoe! A pele dos cremados produzia esse som. Eles jogavam os corpos cremados em cima das folhas novas de sororoca, que estavam no chão uma perto da outra. Aqueles que estavam bem raspados, eles separavam, pegando-os com um tipo de arpão. Tuuuuuuuu! Eles não erravam. — Aë, aë, aë, aë, aë, tãrai! — faziam os dois assim. — Aë, aë, aë, pei kë oooo! Tãrai! Fizeram assim levantar os Yanomami ressuscitados com flechas na mão.

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o surgimento da noite — Todos, todos, todos, todos! Tãrai! De pé! — disse Omawë. Primeiro ressurgiram os Yanomami e depois apareceram os napë. Somente os Yanomami Horonamɨ se ergueram com as flechas na mão. — Kia! Kia! Kia! Ha, ha, haaaa! — diziam eles. — Tãrai, ha asi ı̃ɨɨ! Eram gordos, pintados e enfeitados, com as penas de cauda de arara, altivos. — Ha, ha, ha, ha! O irmão mais velho riu sem parar dos que estavam se transformando. Olha aqui! As mulheres púberes se erguiam elegantes, apesar de terem morrido afogadas, elas reapareceram como moças novas. Depois de ter amontoado a metade dos corpos cremados, eles os jogaram na água. Os mortos não caíram na água em silêncio. O primeiro a dizer: Ĩxima! Ĩxima! se tornou piranha. Ĩxima! Ĩxima! Todos que disseram isso se tornaram piranhas. — Koooorooouuu! Kuxu, kuxu, kuxu! — faziam.

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o dilúvio Os demais se transformaram em matrinxã. Apareceu um monte de peixes flutuando. A superfície da água ficou completamente coberta e sumia de tanto peixe, a água não se mexia mais de tanto peixe, de cuja carne gostamos tanto. Quando dizemos: — É um pacu! — na verdade, comemos a carne de gente que se tornou peixe, comemos a carne preta de Yanomami. Da nossa carne de Yanomami surgiram os napë. Os napë surgiram a partir dos Yanomami que se transformaram. A partir dos nossos corpos cremados, com a transformação, os napë surgiram. Antes mesmo da existência dos napë, já havia aparecido a moradia deles, antes do surgimento dos motores, do canto do galo, e antes dos próprios ancestrais. Embora sejam a origem de tudo isso, antes da existência dos napë e das napëyoma falando uma língua estrangeira, Omawë e Yoasiwë se surpreenderam quando ressuscitaram e rasparam os outros. Os ressuscitados ficavam de pé, elegantes, e atiravam flechas para provar que estavam sãos e salvos. 83


o surgimento da noite — Irmão menor, aqueles que eu queria fazer surgir, eu os deixei à deriva na água! Veja o resultado! — disse o irmão maior, porque havia ressuscitado todos eles. Omawë se transformou e, onde se transformou, a imagem dele se tornou napë. Ele criou os napë. Lá a sua imagem se misturou e ainda está lá, eles não a veem. — Eu sou aquele que ressuscitou vocês! — ele diz isso? Omawë não diz isso. Ele existe ainda, ainda está vivo em algum lugar. — Sou aquele que ressuscitou vocês! — Omawë não nos diz isso. Não fica perto onde eles estão morando. Os dois que realizaram essa ressurreição são os que deram origem aos napë. Apesar de os dois ficarem lá longe em seguida, outros napë chegaram. O que aconteceu? Se vocês forem pra lá, vocês não chegarão. Os dois foram até os napë de pele vermelha. O rio abaixo fica dentro da terra. Como qualquer rio, a cabeceira da água nunca fica baixa, quando as fontes das águas se juntam, elas descem; assim as águas do dilúvio se juntaram e formaram o mar. O rio não desce plano, o rio acaba e entra na terra. 84


o dilúvio Os dois que fizeram a transformação moram lá, além dessa parte do mundo, rio abaixo, lá onde emboca a mãe do rio, onde entra um rio só. Eles são eternos. Onde você pode ir? Não há aonde ir. Lá fica o rio, onde não há floresta, onde não há nada. Daquele lado vivem os dois, que fizeram a grande transformação. Os napë se espalharam. Lá, eles se reproduziram, rio abaixo; não há mais ninguém onde ressuscitaram. Eles se dividiram rio abaixo. Foram morar em outros rios. Sim. Foi assim, nenhum dos que viviam antes sobreviveu. Quando o rio levou os Yanomami, sobreviveram somente dois xaponos. Os antepassados renasceram e se desenvolveram. Eles sobreviveram para sempre. As montanhas altíssimas se chamavam Ũaũaiwë, Rapai e Wãima. Os sobreviventes conseguiram subir até o cume da serra Rapai, se agruparam como carapanãs, como moscas, e estavam tristes. A serra Ũaũaiwë acabou afundando; restou somente o cume da montanha. O céu parecia se apoiar no cume das montanhas Rapai e Wãima. 85


o surgimento da noite Não deu para o rio atingir o cume dessas montanhas.

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O surgimento da primeira mulher

A

gora vem a história dos Unissexuais. O nome deles, os Unissexuais, vem do fato de a mulher não ter aparecido imediatamente. Eles se agruparam. O surgimento dos nossos antepassados aconteceu a partir da perna de Japu. Ainda não havia surgido a mulher. Depois do rapto da filha de Raharariwë, segue a história dos Unissexuais que moravam juntos, quando não havia mulheres. Apesar de serem homens, eles faziam sexo entre eles. Apesar de terem pênis, eles faziam sexo entre eles. No meio da copulação deles, surgiu Japu. Depois do surgimento de Japu, lá os ancestrais dos Waika, dos Xamatari, dos Parahiteri e dos Xirixianateri nasceram. Na parte carnuda abaixo do joelho da perna de Japu, apareceu uma vagina.

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o surgimento da noite Nossos antepassados não nasceram da perna de Japu. O surgimento dos nossos ancestrais é outra história. Nessa época, os antepassados dos Waika se reproduziram a partir da perna de Japu. Nossos antepassados e, consequentemente, nossas gerações já nasceram de mulher e não a partir da perna de Japu. Foram outros os antepassados dos Waika. Os antepassados dos Waika nasceram da vagina da filha de Japu. A história deles é diferente.1 Japu apareceu e se misturou a eles. Aquele que ia ser o marido dele já morava no xapono. Depois de a vagina aparecer, foi ele quem falou com o marido para fazer sexo. A vagina apareceu, semelhante àquela das mulheres. Os Unissexuais se satisfizeram com a perna de Japu. Daí, nasceu a primeira mulher, o que possibilitou aos Unissexuais fazerem sexo. 1. O par waika/xamatari parece ter sido usado originalmente para designar outros grupos yanomami vivendo em região geográfica diversa de quem fala, os primeiros ao norte e oeste, e os segundos ao sul, reconhecendo-se neles conjuntos de características que os particularizam. Os termos foram atribuídos em diferentes momentos pelos brancos para designar grupos específicos de forma estável e, no caso de xamatari, para designar a própria língua do tronco yanomami usada pelos Parahiteri que fizeram este livro. 88


o surgimento da primeira mulher Foi graças à perna de Japu, portanto, que eles se satisfizeram. Nossos primeiros ancestrais são oriundos da perna de Japu. Primeiro, nasceu uma mulher, depois nasceu outra. Assim se fez. Depois, outra. Assim. Fizeram outra. Depois de nascer a primeira mulher, a partir da qual nasceram as outras, surgiram os parentes de nossos antepassados. — Prohu! — logo disse o homem que nasceu primeiro. Chamaremos o primeiro homem que nasceu assim de nosso antepassado. Eles se multiplicaram a partir da mulher que nasceu da perna de Japu, a partir da filha mais velha de Japu. Continuaram a se multiplicar. Nasceram cinco mulheres. Nasceram assim. Depois de elas nascerem, a vagina sumiu da perna de Japu, porque ela já havia feito as mulheres. Já estavam se reproduzindo. Nós os chamamos de nossos parentes. Nossos antepassados se reproduziram, continuaram a se reproduzir. Se não fosse a perna de Japu, nossos parentes não existiriam. Aqueles com os quais nos misturamos e fazemos amizade são nossos parentes, nossos verdadeiros parentes. Foi o que aconteceu. 89


o surgimento da noite Depois de nascerem, eles ocuparam toda a floresta. Não são outros que nos fizeram! Não foi Omawë que nos criou! Omawë mora em cima, apesar de ter morado primeiramente nesta floresta. Ele fugiu da condição de Yanomami. Ele voou, ele foi morar lá em cima, assim eram os dois irmãos no início. Foi assim mesmo. Nossos ancestrais saíram da perna de Japu; ele não morou mais ali, foi a um lugar diferente. Japu se chamará Napërari, quando se tornar espírito. Seu marido também. Apesar de ter um pênis igual a nosso, ele fazia sexo com outro homem, apesar de ter o pênis amarrado, ele engravidou a perna de Japu, gerando as mulheres, na perna dele mesmo. A vagina na perna menstruava, e ficava sentada no chão no tempo da menstruação, ensinando a sentar no chão em período menstrual. Fez aparecer a barriga na perna. Depois de nascer, a mulher chorou, o pai se levantou rapidamente, ele a pegou logo, cortou o cordão umbilical e ela cresceu rapidamente. Naquele momento, Japu se tornou homem novamente. Foi assim. Essa história acabou.

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Paratexto



Como foi feito este livro

anne ballester soares

sobre o autor Os Yanomami habitam uma grande extensão da floresta amazônica, que cobre parte dos estados de Roraima e do Amazonas, e também uma parte da Venezuela. Sua população está estimada em 35 mil pessoas, que falam quatro línguas diferentes, todas pertencentes a um pequeno tronco linguístico isolado. Essas línguas são chamadas yanomae, ninam, sanuma e xamatari. As comunidades de onde veio este livro são falantes da língua xamatari ocidental, e ficam no município de Barcelos, no estado do Amazonas, na região conhecida como Médio Rio Negro, em torno do rio Demini.

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o surgimento da noite Além dessas quatro línguas, no Brasil há um total de 154 línguas indígenas faladas por todo o território brasileiro, mas antes do Brasil colônia, tínhamos entre 600 e 1000 línguas. O trabalho de registro feito pelos pesquisadores em conjunto com as comunidades indígenas é de extrema importância para conseguir conservar a história desses idiomas. Não somente para consultas posteriores, mas para a organização da própria comunidade. Em 2008, as comunidades Ajuricaba, do rio Demini, Komixipɨwei, do rio Jutaí, e Cachoeira Aracá, do rio Aracá — todas situadas no município de Barcelos, estado do Amazonas — decidiram gravar e transcrever todas as histórias contadas por seus pajés. Elas conseguiram fazer essas gravações e transcrições com o apoio do Prêmio Culturas Indígenas de 2008, promovido pelo Ministério da Cultura e pela Associação Guarani Tenonde Porã. No mês de junho de 2009, o pajé Moraes, da comunidade de Komixipɨwei, contou todas as histórias, auxiliado pelos pajés Mauricio, Romário e Lauro. Os professores yanomami Tancredo e Maciel, da comunidade de Ajuricaba, ajudaram 94


como foi feito este livro nas viagens entre Ajuricaba e Barcelos durante a realização do projeto. Depois, no mês de julho, Tancredo e outro professor, Simão, me ajudaram a fazer a transcrição das gravações, e Tancredo e Carlos, professores respectivamente de Ajuricaba e Komixipɨwei, me ajudaram a fazer uma primeira tradução para a língua portuguesa. Fomos melhorando essa tradução com a ajuda de muita gente: Otávio Ironasiteri, que é professor yanomami na comunidade Bicho-Açu, no rio Marauiá, o linguista Henri Ramirez, e minha amiga Ieda Akselrude de Seixas. Esse trabalho deu origem ao livro Nohi patama Parahiteri pë rë kuonowei të ã — História mitológica do grupo Parahiteri, editado em 2010 para circulação nas aldeias yanomami do Amazonas onde se fala o xamatari, especialmente os rios Demini, Padauiri e Marauiá. Em 2013, a editora Hedra propôs a essas mesmas comunidades e a mim que fizéssemos uma reedição dos textos, retraduzindo, anotando e ordenando as narrativas para apresentar essas histórias para adultos e para crianças de todo o Brasil. Assim, o livro original deu origem a diversos livros com as muitas histórias contadas pelos pajés yanomami. 95


o surgimento da noite

sobre a obra Este livro reúne histórias contadas por pajés yanomami do rio Demini, sobre os tempos antigos, quando seres que hoje são animais e espíritos eram gente como os Yanomami de hoje. Estas histórias contam como o mundo veio a ser como ele é agora. Trata-se de um saber sobre a origem do mundo e dos conhecimentos dos Yanomami que as pessoas aprendem e amadurecem ao longo da vida, por isto este é um livro para adultos. As crianças yanomami também conhecem estas histórias, mas sugerimos que os pais das crianças de outros lugares as leiam antes de compartilhá-las com seus filhos. Ao apresentar narrativas sobre os mitos de criação sob a perspectiva Yanomami, O Surgimento da Noite desvela outros modos de existência e crenças que transbordam da lógica ocidental e eurocêntrica. Apesar do título do livro fazer referência ao surgimento da noite, as narrativas encontradas ao decorrer da leitura abordam o surgimento de outros elementos também. Encontraremos o surgimento do tabaco, do cipó e da banana através das aventuras do personagem Horonamɨ. 96


como foi feito este livro Horonamɨ é um grande pajé que surgiu dele mesmo, assim como é relatado na narrativa. Surgiu junto com as florestas e ensinou aos Yanomamis como morar nelas. Além de compartilhar os conhecimentos com os Yanomamis, ele também compartilhou suas histórias com os estrangeiros. a lógica cristã e o mito de criação indígena

Assim que se iniciou a colonização do Brasil, os portugueses acreditavam que tudo aquilo que não se pareciam com eles poderia ser denominado de selvagem. A Coroa Portuguesa sempre foi muito conhecida por ser extremamente católica, logo a sua história é repleta de perseguições e intolerância em relação as novas religiões. As missões jesuíticas são as provas de como a intolerância cultural era altamente disseminada no século xvi e xvii. A metrópole envia padres que tinham como missão catequizar a comunidade indígena e os fazerem acreditar na existência de um Deus, em conceitos maniqueístas e a supremacia da cultura europeia. Sob a perspectiva cristão, o mundo foi criado em sete dias por um Deus único e onipresente. Após os sete dias, a humanidade foi criada a par97


o surgimento da noite tir de Adão e Eva. Tudo o que existe no mundo foi criado exclusivamente por um único ser. Quando acompanhamos as narrativas dos Yanomamis, não temos a figura de um Grande Criador e único, mas temos a criação dos elementos e o surgimento dos fenômenos físicos, como a noite ou o dia, a partir de aventuras vividas em conjunto pela comunidade. A ideia de coletivo e a concepção do surgimento de elementos a partir de ações ou reações é a linha de raciocínio das comunidades. Não existe uma figura única que deva ser respeitada, mas existe um conjunto de ações da natureza e todos os seus elementos e quando uma comunidade trabalha em conjunto, a natureza poderá fornecer novos conceitos e outros novos elementos. De leitura rápida, O Surgimento da Noite é recheado de histórias fantásticas. A valorização da natureza e de seus elementos é a peça fundamental para entender a cultura Yanomami. O modo de narrar apresentado é muito semelhante as aventuras de Macunaíma, obra de Mario de Andrade. O autor modernista mergulhou nas histórias brasileiras para construir seu herói e suas aventuras.

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como foi feito este livro É importante conhecermos e valorizarmos os relatos e as culturas que já existiam no Brasil antes da colonização. Os registros fonéticos e fonológicos realizados pelos pesquisadores são como um tesouro que devem ser compartilhados e bem cuidados. Ler as narrativas Yanomamis é poder se conectar com o Brasil anterior aquele que aprendemos nas aulas de história.

sobre o gênero Essas narrativas podem ser classificas como mitologias indígenas pois relacionam-se ao contexto específico de produção de mitologias e crenças dos povos originários. Como esses povos primeiros eram ágrafos, isto é não tinham um sistema de escrita, estas narrativas eram tradicionalmente transmitidas pela oralidade. A narrativa oral é caracterizada por alguns elementos específicos: normalmente é entoada, como uma canção, o que ajuda na memorização da história; revela mitos e histórias relacionados à cosmovisão de um povo; envole a criação de um espaço diferente, uma demarcação de sacralidade em contraposição ao espaço profano do cotidiano, se formos pensar com o mitólogo romeno Mircea Eliade. 99


o surgimento da noite Entre o povo Guarani, por exemplo, são comuns as rodas para fumar petygua, cachimbo de tabaco, para a contação de histórias. Já os Hupd’ah, povo do Alto Rio Negro, narram suas histórias em rodas que fumam tabaco e mascam coca. Entre os Yanomami, a prática é a ingestão de yãkoana, pó feito com cascas de árvores secas e pulverizadas, que iniciam o indígena no conhecimento xamânico de seu povo. Como relata o líder indígena Davi Kopenawa em A queda do céu, o consumo de yãkoana está intimamente relacionado à transmissão das narrativas tradicionais yanomami, pois permite ao xamã ouvir as palavras de Omama, demiurgo da cosmogonia yanomami, possibilitando-lhe a transmissão de histórias e narrativas que atravessam gerações. É através da yãkoana, igualmente, que o xamã pode visualizar os xapiri, os espíritos da floresta, presentes em cada elemento natural, seja um animal, árvore ou mesmo a terra e a água. Percebe-se, assim, como a narrativa tradicional yanomami está intrinsecamente ligada à construção de espaços e rituais específicos. Registradas em livro, essas narrativas aproximariam-se do gênero conto, que “remonta aos 100


como foi feito este livro primórdios da própria arte literária”. De linguagem concisa, por vezes poética, o conto é unívoco e univalente, sob a perspectiva do ângulo dramático: Etimologicamente preso à linguagem teatral, “drama” significava “ação”. E com o tempo passou a designar toda peça destinada à representação. Na época romântica, dado o princípio da fusão de gêneros, entendia-se por drama o misto de tragédia e comédia. Transferido para a prosa de ficção, o termo “drama” entrou a significar “conflito”, “atrito”. Nesse caso, “ação” “conflito” se tonaram equivalentes, uma vez que toda ação pressupõe conflito, e este, promove a ação, ou por meio dela se manifesta; em suma, ambos se implicam mutuamente. O conto é, pois, uma narrativa unívoca, univalente: constitui uma unidade dramática, uma célula dramática, visto gravitar ao redor de um só conflito, um só drama, uma só ação. Caracteriza-se, assim, por conter unidade de ação, tomada esta como a sequência de atos praticados pelos protagonistas, ou de acontecimentos de que participam. A ação pode ser externa, quando as personagens se deslocam no espaço e no tempo, e interna, quando o conflito se localiza em sua mente.1

Partindo da definição de Massaud Moisés sobre o conto, evidencia-se a principal característica desse gênero literário: a unidade de conflito, con1. moisés, Massaud. A criação literária. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 40. 101


o surgimento da noite densada em ações que se completam em um único enredo. Ao conto, ainda seguindo Moisés, aborrecem as divagações e os excessos, pois há uma concentração de efeitos e pormenores essenciais, em sua brevidade, para o bom funcionamento do conto. Cada construção, cada palavra nesse gênero tem sua razão de existir, pois integra a economia global da narrativa. São contos, no entanto, com uma nítida dimensão mítica, pois têm seus componentes essenciais na esfera do sagrado, buscando equacionar grandes questões espirituais e materiais dessa sociedade. Nota-se que, tradicionalmente, não existia uma diferença entre a narrativa histórica e a mítica, pois através do próprio mito se explicava a criação do mundo, dos seres viventes e da sociedade tal qual encontra-se. Como é o caso, visto acima, dos mitos de criação cristãos. Vale ressaltar, por fim, que, apesar de o português ter se sobressaído como a língua oficial do Brasil, por se tratar do idioma do colonizador, muitas das palavras e dos mitos indígenas foram assimilados pelos falantes do português.

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Adverte-se aos curiosos que se imprimiu este livro em nossas oficinas, em 23 de fevereiro de 2022, em tipologia Libertine, com diversos sofwares livres, entre eles, LuaLATEX, git & ruby. (v. 5a1abd8)

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