poemas escolhidos
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Editora Hedra ltda Direitos cedidos à Editora Nexus
organização© Rodrigo Ribeiro Neves edição Jorge Sallum coedição Suzana Salama editor assistente Paulo Henrique Pompermaier capa e projeto gráfico Lucas Kröeff Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) F682p Fontela, Orides Poemas Escolhidos / Orides Fontela ; organizado por Rodrigo Jorge Ribeiro Neves. - São Paulo : Nexus Produções Artísticas, 2021. ISBN 978-65-994484-0-9 (Livro do Estudante) ISBN 978-65-994484-2-3 (Manual do Professor) 1. Literatura brasileira. 2. Poesia. I. Neves, Rodrigo Jorge Ribeiro. II. Título. 2021-1383 cdd 869.1 cdu 821.134.3(81)-1 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura brasileira : Poesia 869.1 2. Literatura brasileira : Poesia 821.134.3(81)-1 Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva – CRB-8/9410
Direitos reservados em língua portuguesa somente para o Brasil nexus produções artísticas Avenida Rebouças, 1511 (Conjunto 102) 05401-200 São Paulo sp 55 11 991876080 letigfernandes@gmail.com Foi feito o depósito legal.
poemas escolhidos Orides Fontela Rodrigo Ribeiro Neves (organização) 1ª edição
São Paulo
2022
Sumário
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
transposição [1966–1967] . . . . . . . . . . .
12
Transposição . Tempo . . . . . . Pedra . . . . . . . Meada . . . . . . Ludismo . . . . . Mãos . . . . . . . Núcleo . . . . . . Série . . . . . . . Fala . . . . . . . . Meio-dia . . . . Revelação . . . . Ode i . . . . . . . Destruição . . . Notícia . . . . . . Ode ii . . . . . . Lavra . . . . . . . Voo . . . . . . . . Girassol . . . . . Sensação . . . . Sede . . . . . . . . Fluxo . . . . . . . O nome . . . . . O equilibrista .
15 16 17 18 19 20 21 22 24 25 26 27 28 29 31 32 33 34 35 37 39 40 41
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A estátua jacente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
helianto [1973] . . . . . . . . . . . . . . . . . 44 Helianto . . . . . . . . . . . . Alvo . . . . . . . . . . . . . . Sob a língua . . . . . . . . . Herança . . . . . . . . . . . . Escultura . . . . . . . . . . . Caleidoscópio . . . . . . . . Sol . . . . . . . . . . . . . . . . As sereias . . . . . . . . . . . Sete poemas do pássaro Estrelas . . . . . . . . . . . . São Sebastião . . . . . . . . Stop . . . . . . . . . . . . . . . Oposição . . . . . . . . . . . Eros . . . . . . . . . . . . . . . Repouso . . . . . . . . . . . . Elegia (i) . . . . . . . . . . . Elegia (ii) . . . . . . . . . . . Estrada . . . . . . . . . . . .
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47 48 49 50 51 52 53 54 55 57 58 59 60 61 62 63 64 65
alba [1983] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 Alba . . . . . Poema . . . Trovões . . Prometeu . Centauros Relógio . . Mapa . . . . Espelho . . Fonte . . . .
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70 72 73 74 75 76 77 78 79
Silêncio . Nudez . . Migração Via. . . . . Flama . . . Ode . . . . Reflexos . Letes . . .
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80 81 82 83 84 85 86 87
rosácea [1986] . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88 Iniciação . . . . . . . . Errância . . . . . . . . . Herança . . . . . . . . . Kant (relido) . . . . . . O coração (Pascal) . Do Eclesiastes . . . . Pirâmide . . . . . . . . As coisas selvagens . Viagem . . . . . . . . . Habitat. . . . . . . . . . O Anti-César . . . . . cda (imitado) . . . . . cda (relido) . . . . . . Homenagens . . . . . Gatha . . . . . . . . . . . Bucólica . . . . . . . . . Rosas . . . . . . . . . . . Nuvem . . . . . . . . . . Lenda. . . . . . . . . . . Dom Quixote . . . . . Antigênesis . . . . . . Esconjuro . . . . . . . . Esfinge . . . . . . . . . .
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91 92 93 94 95 96 97 98 99 101 102 103 104 105 107 108 109 111 113 114 115 116 117
Origem A paz . . Ceia . . . Partilha
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119 120 121 122
teia [1996] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123 Teia . . . . . . . . . . . . . . . . Fala . . . . . . . . . . . . . . . . Exemplos . . . . . . . . . . . . Maiêutica . . . . . . . . . . . . Para cda . . . . . . . . . . . . Axiomas . . . . . . . . . . . . Newton (ou a gravidade) . Kairós . . . . . . . . . . . . . . Carta . . . . . . . . . . . . . . . O antipássaro . . . . . . . . . Fatos . . . . . . . . . . . . . . . Memória . . . . . . . . . . . . Do poder . . . . . . . . . . . . Teologia . . . . . . . . . . . . . Galo . . . . . . . . . . . . . . . . Gatos . . . . . . . . . . . . . . . Noite . . . . . . . . . . . . . . . Círculo . . . . . . . . . . . . . . Narciso (jogos) . . . . . . . . Porta . . . . . . . . . . . . . . . Cantiga . . . . . . . . . . . . . Balada . . . . . . . . . . . . . . Vésper . . . . . . . . . . . . . .
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126 127 128 129 130 132 133 134 135 137 138 139 140 141 143 144 146 148 149 154 155 156 157
poemas inéditos [1997–1998] . . . . . . . . . 158 Utopia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159
Da poesia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161 Autoimagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162 Teologia ii . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
paratexto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165 Sobre a autora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167 Sobre a obra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170 Sobre o gênero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173
Apresentação
Esta antologia consiste em uma reunião da poesia de Orides Fontela extraída de Transposição (1969), Helianto (1973), Alba (1983), Rosácea (1986), Teia (1996) e alguns poemas inéditos publicados em sua Poesia completa (2015). De maneira geral, o objetivo é apresentar um panorama e um roteiro da poética da autora. Vista, por alguns críticos, como continuadora da proposta de João Cabral de Melo Neto e, por outros, como voz necessária em um período em que já se esboçava um esgotamento das vanguardas dos anos 1950, Orides Fontela se lança na literatura brasileira como renovadora do Modernismo, e o leitor pode, aqui, observar as lições que ela aprendeu com esse movimento e o alcance de seu arrojado projeto literário. Poucas escritoras conseguiram encontrar uma voz tão própria, na contramão das tendências de seu tempo, como Orides Fontela. Por isso, é difícil definir a sua poesia em uma palavra ou expressão, mas talvez seja possível arriscar uma definição usando o título de seu último livro: teia. A poesia de Orides é como uma teia, cujos fios abrem uma infinidade de caminhos. Além de aprofundar algumas das principais conquistas do modernismo, a autora também dialoga com seu tempo, marcado pelo fim das vanguardas e por novas formas de avaliar o passado. Orides Fontela é uma das poetas mais importantes da literatura brasileira da segunda metade do século xx. A modernidade de seu processo criativo, as reflexões filosóficas, a 10
vitalidade e concisão da forma poética e a renovação das lições do passado a colocam como uma artista ainda bastante atual. Portanto, esta coletânea de poemas vem contribuir para que a escritora ocupe o lugar que merece na história da nossa literatura e da cultura brasileira, trazendo para a escola a reflexão e discussão de aspectos da linguagem e sua relação com o mundo que certamente irão contribuir na formação dos estudantes como leitores críticos e sensíveis da realidade.
11
transposição [1966–1967]
A um passo de meu próprio espírito A um passo impossível de Deus. Atenta ao real: aqui. Aqui aconteço.
i base
Transposição
Na manhã que desperta o jardim não mais geometria é gradação de luz e aguda descontinuidade de planos. Tudo se recria e o instante varia de ângulo e face segundo a mesma vidaluz que instaura jardins na amplitude que desperta as flores em várias coresinstantes e as revive jogando-as lucidamente em transposição contínua.
15
Tempo
O fluxo obriga qualquer flor a abrigar-se em si mesma sem memória. O fluxo onda ser impede qualquer flor de reinventar-se em flor repetida. O fluxo destrona qualquer flor de seu agora vivo e a torna em sono. O universofluxo repele entre as flores estes cantosfloresvidas. — Mas eis que a palavra cantoflorvivência re-nascendo perpétua obriga o fluxo cavalga o fluxo num milagre de vida.
16
Pedra
A pedra é transparente: o silêncio se vê em sua densidade. (Clara textura e verbo definitivo e íntegro a pedra silencia). O verbo é transparente: o silêncio o contém em pura eternidade.
17
Meada
Uma trança desfaz-se: calmamente as mãos soltam os fios inutilizam o amorosamente tramado. Uma trança desfaz-se: as mãos buscam o fundo da rede inesgotável anulando a trama e a forma. Uma trança desfaz-se: as mãos buscam o fim do tempo e o início de si mesmas, antes da trama criada. As mãos destroem, procurando-se antes da trança e da memória.
18
Ludismo
Quebrar o brinquedo é mais divertido. As peças são outros jogos construiremos outro segredo. Os cacos são outros reais antes ocultos pela forma e o jogo estraçalhado se multiplica ao infinito e é mais real que a integridade: mais lúcido. Mundos frágeis adquiridos no despedaçamento de um só. E o saber do real múltiplo e o sabor dos reais possíveis e o livre jogo instituído contra a limitação das coisas contra a forma anterior do espelho. E a vertigem das novas formas multiplicando a consciência e a consciência que se cria em jogos múltiplos e lúcidos até gerar-se totalmente: no exercício do jogo esgotando os níveis do ser. Quebrar o brinquedo ainda é mais brincar. 19
Mãos
Com as mãos nuas lavrar o campo: as mãos se ferindo nos seres, arestas da subjacente unidade as mãos desenterrando luzesfragmentos do anterior espelho Com as mãos nuas lavrar o campo: desnudar a estrela essencial sem ter piedade do sangue.
20
Núcleo
Aprender a ser terra e, mais que terra, pedra nuclear diamante cristalizando a palavra. A palavra definitiva. A palavra áspera e não plástica.
21
Série
Primeiro o apelo (paralela a palavra ao universo). Depois invocadas potências formas se tramam puro mapa lúdico. Enfim conclusão do ato o amor ser possível amanhece lúcido.
22
ii (—)
Fala
Tudo será difícil de dizer: a palavra real nunca é suave. Tudo será duro: luz impiedosa excessiva vivência consciência demais do ser. Tudo será capaz de ferir. Será agressivamente real. Tão real que nos despedaça. Não há piedade nos signos e nem no amor: o ser é excessivamente lúcido e a palavra é densa e nos fere. (Toda palavra é crueldade.)
24
Meio-dia
Ao meio-dia a vida é impossível. A luz destrói os segredos: a luz é crua contra os olhos ácida para o espírito. A luz é demais para os homens. (Porém como o saberias quando vieste à luz de ti mesmo?) Meio-dia! Meio-dia! A vida é lúcida e impossível.
25
Revelação
A porta está aberta como se hoje fosse infância e as coisas não guardassem pensamentos formas de nós nelas inscritas. A porta está aberta. Que sentido tem o que é original e puro? Para além do que é humano o ser se integra e a porta fica aberta. Inutilmente.
26
Ode i
O real? A palavra coisa humana humanidade penetrou no universo e eis que me entrega tão-somente uma rosa.
27
Destruição
A coisa contra a coisa: a inútil crueldade da análise. O cruel saber que despedaça o ser sabido. A vida contra a coisa: a violentação da forma, recriando-a em sínteses humanas sábias e inúteis. A vida contra a vida: a estéril crueldade da luz que se consome desintegrando a essência inutilmente.
28
Notícia
Não mais sabemos do barco mas há sempre um náufrago: um que sobrevive ao barco e a si mesmo para talhar na rocha a solidão.
29
iii (+)
Ode ii
O amor, imor talidade do instante totalização da forma em ato vivo: obscura força refazendo o ser. O amor, momen to do ser refletido eternamente pelo espírito.
31
Lavra
A semente em seu sulco e o tempo vivo. A semente em seu sulco e a vida rítmica fluindo para a realização do fruto.
32
Voo
Flecha ato não verbo impulso puro corta o instante e faz-se a vida em acontecer tão frágil lucidez breve do movimento acontecido.
33
Girassol
Quero expressar a flor e o girassol me escolhe: helianto bizâncio ouro luz ouro ouro Variando de horizonte porém sempre audazmente fiel fitando a luz intensamente o girassol me escolhe: adoração dourada fixação tranquila calor lúcido. Flor para sempre e muito mais que flor.
34
Sensação
Vejo cantar o pássaro toco este canto com meus nervos seu gosto de mel. Sua forma gerando-se da ave como aroma. Vejo cantar o pássaro e através da percepção mais densa ouço abrir-se a distância como rosa em silêncio.
35
iv fim
Sede
i Beber a hora beber a água embriagar-se com água apenas. ii Água? É só isso que purifica. iii Fonte maior e não oculta fonte sem Narciso nem flores. iv Bendita a sede por arrancar nossos olhos da pedra. Bendita a sede por ensinar-nos a pureza da água. 37
Bendita a sede por congregar-nos em torno da fonte.
38
Fluxo
A gênese das águas é secreta e infinita entre as pedras se esconde de toda contemplação. A gênese das águas e em si mesma. ...................... O movimento das águas é caminho inconsciente mutação contínua nunca terminada. É caminho vital de si mesma. ...................... O fim das águas é dissolução e espelho morte de todo o ritmo em contemplação viva. Consciencialização de si mesma.
39
O nome
A escolha do nome: eis tudo. O nome circunscreve o novo homem: o mesmo, repetição do humano no ser não nomeado. O homem em branco, virgem da palavra é ser acontecido: sua existência nua pede o nome. Nome branco sagrado que não define, porém aponta: que o aproxima de nós marcado do verbo humano. A escolha do nome: eis o segredo.
40
O equilibrista
Essencialmente equilíbrio: nem máximo nem mínimo. Caminho determinado movimentos precisos sempre medo controlado máscara de serenidade difícil. Atenção dirigida olhar reto pés sobre o fio sobre a lâmina ser numa só ideia nítida equilíbrio. Equilíbrio. Acaba a prova? Só quando o trapézio oferece o voo e a queda possível desafia a precisão do corpo todo. Acaba a prova se a aventura inda mais aguda se mostra mortal intensa desumana desequilíbrio essencialmente.
41
A estátua jacente
i Contido em seu livre abandono um dinamismo se alimenta de sua contenção pura. Jacente uma atmosfera cerca de tal força o silêncio como se jacente guardasse o gesto total do segredo. ii O jacente é mais que um morto: habita tempos não sabidos de mortos e vivos. O jacente ressuscitado para o silêncio possui-se no ser e nos habita.
42
iii Vemos somente o repouso como uma face neutra além de tudo o que significa. (Mas se nos víssemos no verbo totalizado — forma que se concentra além de nós — (Mas se nos víssemos na contenção do ser o repouso seria expressão nítida.) Vemos apenas repouso: contenção da palavra no silêncio. iv Jaz sobre o real o gesto inútil: esta palma. A palavra vencida e para sempre inesgotável.
43
helianto [1973]
A Antonio Candido com amizade e reconhecimento
Menina, minha menina Faz favor de entrar na roda Cante um verso bem bonito Diga adeus e vá-se embora cantiga de roda
Helianto
Cânon da flor completa metro / valência / rito da flor verbo círculo exemplar de helianto flor e mito ciclo do complexo espelho flor e ritmo cânon da luz perfeita capturada fixa na flor verbo.
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Alvo
Miro e disparo: o alvo o al oa centro exato dos círculos concêntricos branco do a a branco ponto branco atraindo todo o impacto (Fixar o voo da luz na forma firmar o canto em preciso silêncio — confirmá-lo no centro do silêncio.) Miro e disparo: oa o al o alvo.
48
Sob a língua
Sob a língua palavras beijos alimentos alimentos beijos palavras. O saber que a boca prova O sabor mortal da palavra.
49
Herança
O que o tempo descura e que transfixa o que o tempo transmite e subverte o que o tempo desmente e mitifica.
50
Escultura
O aço não desgasta seus espelhos múltiplos curvas arestas apocalíptica fera. O aço não se entrega e nem se estraga é forma — presença imposta sem signos. O aço ameaça — imóvel — com a aspereza total de seu frio. Ó forma violenta pura como emprestar-te algo humano uma vivência um nome?
51
Caleidoscópio
Acontece: um giro e a forma brilha. Espelhos do instante filtram a ordem pura cores forma brilho (e sem nenhuma palavra). Acontece: outro giro outra forma e o mesmo brilho. Ó espelho dos instantes fragmentos estruturados em reflexos fúlgidos! Acontece: novo giro… O caleidoscópio quebra-se.
52
Sol
Sol. Sol maiormente. Alucinado. Sol trespassante: há aberturas no sangue há janelas de vidro na mente. Que mito subsiste — que infância — sob este Sol que ternura nos resta? Só o mito maior deste Sol puro. Sol sem nenhuma sombra possível.
53
As sereias
Atraídas e traídas atraímos e traímos Nossa tarefa: fecundar atraindo nossa tarefa: ultrapassar traindo o acontecer puro que nos vive. Nosso crime: a palavra. Nossa função: seduzir mundos. Deixando a água original cantamos sufocando o espelho do silêncio.
54
Sete poemas do pássaro
i O pássaro é definitivo por isso não o procuremos: ele nos elegerá. ii Se for esta a hora do pássaro abre-te e saberás o instante eterno. iii Nunca será mais a mesma nossa atmosfera pois sustentamos o voo que nos sustenta. iv O pássaro é lúcido e nos retalha. Sangramos. Nunca haverá cicatrização possível para este rumo. 55
v Este pássaro é reto; arquiteta o real e é o real mesmo. vi Nunca saberemos tanta pureza: pássaro devorando-nos enquanto o cantamos. vii Na luz do voo profundo existiremos neste pássaro: ele nos vive.
56
Estrelas
Fixar estrelas no mapa móvel zodíaco. Jogar com astros e fixar-se no próprio jogo. Nomear constelações — submeter os astros à palavra. Buscar estrelas. Viver estrelas — animal siderado e siderante.
57
São Sebastião
As setas — cruas — no corpo as setas no fresco sangue as setas na nudez jovem as setas — firmes — confirmando a carne.
58
Stop
Estado de sítio estado de sido estase.
59
Oposição
Na oposição se completam os arcanjos contrários sendo a mesma existência em dois sentidos. (Um, severo e nítido na negação pura de seu ser. O outro em adoração firmado.) Não se contemplam e se sabem um mesmo enigma cindido combatem-se, mas abraçando-se na unidade da essência. Interfecundam-se no mesmo bloco de ser e de silêncio coluna viva em que a memória cindiu-se em dois horizontes. (Sim e não no mesmo abismo do espírito.)
60
Eros
Cego? Não: livre. Tão livre que não te importa a direção da seta. Alado? Irradiante. Feridas multiplicadas nascidas de um só abismo. Disseminas pólens e aromas. És talvez a primavera? Supremamente livre — violento — não és estátua: és pureza oferta. Que forma te conteria? Tuas setas armam o mundo enquanto — aberto — és abismo inflamadamente vivo.
61
Repouso
Basta o profundo ser em que a rosa descansa. Inúteis o perfume e a cor: apenas signos de uma presença oculta inútil mesmo a forma claro espelho da essência inútil mesmo a rosa. Basta o ser. O escuro mistério vivo, poço em que a lâmpada é pura e humilde o esplendor das mais cálidas flores. Na rosa basta o ser: nele tudo descansa.
62
Elegia (i)
Mas para que serve o pássaro? Nós o contemplamos inerte. Nós o tocamos no mágico fulgor das penas. De que serve o pássaro se desnaturado o possuímos? O que era voo e eis que é concreção letal e cor paralisada, íris silente, nítido, o que era infinito e eis que é peso e forma, verbo fixado, lúdico o que era pássaro e é o objeto: jogo de uma inocência que o contempla e revive — criança que tateia no pássaro um esquema de distâncias — mas para que serve o pássaro? O pássaro não serve. Arrítmicas brandas asas repousam.
63
Elegia (ii)
Os extremos do vento sons partidos. Os extremos os mais agudos cumes da tensão viva amor — criação viva — agora par tidos luz e lira inertes. Os extremos do amor: áridos restos.
64
Estrada
A estrada percorre o bosque entre árvores mudas entre pedras opacas entre jogos de luz e sombra. A estrada caminha e o seu solo (ancestralmente fundo) não tem som. A estrada prossegue e seu silêncio fixa presenças densas e embriaga sufocando toda a memória…
65
alba [1983]
Para Davi Haquira Lucia Ana Maria
Que bien sé yo la fonte que mana y corre, aunque es de noche. san juan de la cruz
A um passo do pássaro res piro.
Alba
i Entra furtivamente a luz surpreende o sonho inda imerso na carne. ii Abrir os olhos. Abri-los como da primeira vez — e a primeira vez é sempre. iii Toque de um raio breve e a violência das imagens no tempo.
70
iv Branco sinal oferto e a resposta do sangue: agora!
71
Poema
Saber de cor o silêncio diamante e/ou espelho o silêncio além do branco. Saber seu peso seu signo — habitar sua estrela impiedosa. Saber seu centro: vazio esplendor além da vida e vida além da memória. Saber de cor o silêncio — e profaná-lo, dissolvê-lo em palavras.
72
Trovões
Trovões invadem casas coisas quebram louças gráficos vidros. Anulam o supérfluo: articulam um campo para o destino. Trovões transportam raízes a altas distâncias nuas tentando armar uma flor com o que resta — ainda — do silêncio.
73
Prometeu
A Lei cinzenta — ave de rapina — voa mas pesa: desce e busca o Sangue o Sangue: agravo o Sangue: gravidade. Peso da Lei peso do Sangue — destruição rubro-cinza.
74
Centauros
Centauros derrubam ídolos centauros derrubam-se centauros centauros. Mas a memória — texto pul sante — mas a memória — rito do sangue — mas a memória — sempre a memória — absorvendo o ímpeto floresce.
75
Relógio
Hora dos peixes hora dos náufragos hora do es pesso concreto abismo hora das algas lentas flu tuantes hora das ondas brandas in findas hora dos peixes densos obscuros na obscuridade líquida.
76
Mapa
Eis a carta dos céus: as distâncias vivas indicam apenas roteiros os astros não se interligam e a distância maior é olhar apenas. A estrela voo e luz somente sempre nasce agora: desconhece as irmãs e é sem espelho. Eis a carta dos céus: tudo indeterminado e imprevisto cria um amor fluente e sempre vivo. Eis a carta dos céus: tudo se move.
77
Espelho
O espelho lúcido branco imóvel lâmina o espelho:
silente fluxo corola branca
o espelho branco centro da vertigem enorme corola áspera forma vazia do branco o espelho flor sem memória — intensa corola branca.
fluência
78
Fonte
A fonte (oculta) ignora-se. Escamas: sóis intranquilos torrente: luz que se quebra oferta multi plicada. … mas na escura gruta intacta a fonte — serena — expande-se.
79
Silêncio
i A madrugada. Seu coração de silêncio. ii O silêncio cheio de peixes de irisados peixes úmidos. iii Grandes árvores ânforas transbordantes de silêncio. iv Galos no alto silêncio impressos seda translúcida do silêncio.
80
Nudez
Ainda há maior nudez: barreira ininterrupta do silêncio guardando em si a evidência das formas. Ainda há maior nudez: evidência sem mais sinais exata em sua luz interna. Ainda há maior nudez: a luz infinda simplicidade sem apoio além de si mesma.
81
Migração
Do leste vieram pássaros rápidos leves nem sombra nem rastro deixam: apenas passam. Não pousam.
82
Via
i Há um caminho solitário construído a cada passo: não leva a lugar algum. ii Na floresta um branco pássaro oculta-se em seu silêncio. iii No alto — jubilosamente — uma estrela apenas.
83
Flama
Tensa uma flama no denso silêncio vela imóvel brilha intensa vigília áurea esfera cálida — brilho e sigilo — no intenso silêncio vibra e vela.
84
Ode
O início? O mesmo fim. O fim? O mesmo início. Não há fim nem início. Sem história o ciclo dos dias vive-nos.
85
Reflexos
No espelho a vida a pura vida já sem palavras. A vida viva. A vida quem? A vida em branco espelho puro: ninguém ninguém.
86
Letes
Ó rio subterrâneo ao ritmo do sangue ó água frígida clara que elimina toda a sede ó água abissal sem gosto nem vestígio algum de tempo ó fonte sem mais música audível: água densa que nos limpa de todas as palavras.
87
rosácea [1986]
Coisas varridas e ao acaso mescladas — o mais belo universo heráclito
novos
Iniciação
Se vens a uma terra estranha curva-te se este lugar é esquisito curva-te se o dia é todo estranheza submete-te — és infinitamente mais estranho.
91
Errância
Só porque erro encontro o que não se procura só porque erro invento o labirinto a busca a coisa a causa da procura só porque erro acerto: me construo. Margem de erro: margem de liberdade.
92
Herança
Da avó materna: uma toalha (de batismo). Do pai: um martelo um alicate uma torquês duas flautas. Da mãe: um pilão um caldeirão um lenço.
93
Kant (relido)
Duas coisas admiro: a dura lei cobrindo-me e o estrelado céu dentro de mim.
94
O coração (Pascal)
As ignotas (des)razões do espanto.
95
Do Eclesiastes
Há um tempo para desarmar os presságios há um tempo para desamar os frutos há um tempo para desviver o tempo.
96
Pirâmide
Ei-la dor de milhares de humanidade anônima (do faraó nem cinzas).
força
97
As coisas selvagens
— a firme montanha o mar indomável o ardente silêncio — em tudo pulsa e penetra o clamor do indomesticável destino.
98
Viagem
Viajar mas não para viajar mas sem onde sem rota sem ciclo sem círculo sem finalidade possível. Viajar e nem sequer sonhar-se esta viagem.
99
lúdicos
Habitat
O peixe é a ave do mar a ave o peixe do ar e só o homem nem peixe nem ave não é daquém e nem de além e nem o que será já em nenhum lugar.
101
O Anti-César
Não vim. Não vi. Não havia guerra alguma.
102
cda (imitado)
Ó vida, triste vida! Se eu me chamasse Aparecida dava na mesma.
103
cda (relido)
Caio ver ticalmente e me transformo.
104
Homenagens
cda No meio do caminho a flor nasceu. mb A rosa só (mas que calor danado!) A estrela d’alva, o escândalo a vontade de morrer (mas era um calor danado!) J. J. Rousseau *** les riches très sensibles dans toutes les parties de leurs biens. (Du contrat social)
105
bucólicos
Gatha
O vento, a chuva, o Sol, o frio tudo vai e vem, tudo vem e vai. Tenho a ilusão de estar sonhando. Tenho o manto de Buda, que é nenhum. Myosen Xingue (Meu nome como leiga Zen-budista)
107
Bucólica
Vaca mansamente pesada vaca lacteamente morna vaca densamente materna inocente grandeza: vaca vaca no pasto (ai, vida, simples vaca).
108
Rosas
As rosa (brancas as claras rosa calam-s e floresce o silêncio. Flor terra silêncio vento ausência de pensamento. Encanto e espanto; o adorável adorante helianto. Simples a água o amor mais simples. Luz fria. Pelos caminhos as rosas brancas em lágrimas. 109
A chuva lavou-me toda sem deixar vestígios de ontem. Pedrinha redonda fria estrela branca nas águas. Noite vaso negro e o silêncio uma flor branca.
110
Nuvem
Asa sem pássaro se vai ou vem se vem ou vai quem sabe? Leve
vazia
branca.
A flor do céu. A forma do silêncio.
111
mitológicos
Lenda
Na raiz cega deste espanto há um cristal: quem o fitar ah, quem o fitar com os olhos em sangue com as mãos em sangue com o sangue vivo quem o fitar não dormirá mas será cristal de espanto — ficará lúcido para sempre.
113
Dom Quixote
És filho do desejo e do espírito e (como a carne é impureza) a loucura não te salva de ser, e cais Triste Figura mesmo se o delírio te eleva à potência do abismo Triste Figura mesmo na alta planície em que eternizado, morres herdeiro do desejo e do espírito.
114
Antigênesis
Abóbada par tida os céus se rompem. Terra solvida. Vida finda. O Sopro reabsorve-se e a escuríssima água bebe a luz.
115
Esconjuro
Vai-te, Selene, vai-te daqui vampira Diana estéril selvagem assassina vai-te, vai-te daqui, noiva do Hades Perséfone vai-te caveira pedra morta Medusa vai-te, Medeia feiticeira, Circe, dona do abismo amargo do mar doido dona do mênstruo, vai! Vai-te daqui, cadela Helena infame vai-te, luz falsa, vai-te puta virgem infernal Hécate! Vai-te daqui vai!
116
Esfinge
Não há perguntas. Selvagem o silêncio cresce, difícil.
117
antigos
Origem
Nem flor nem folha mas raíz absoluta. Amarga. Nem ramos nem botões. Raiz íntegra. Sórdida. Nem tronco ou caule. Nem sequer planta — só a raiz é o fruto.
119
A paz
não reconstrói: elide a trama e o verbo. A Paz não organiza: explode o núcleo-tempo. A Paz não é letal: vivifica. A Paz não apazigua: fere. A Paz não acalma: renova o ser e o sangue.
120
Ceia
A mesa, todos interligados pela realidade do alimento pelo universo único do ser a mesa, todos coexistem no júbilo comungando a oferta pura das coisas.
121
Partilha
Partilharemos somente o que em nós se continua: a singeleza a luta a esperança. Partilharemos somente esta maior intensidade: absoluta palavra que nos pertence integralmente. Partilharemos somente o pão unificado e a água sem face.
122
teia [1996]
A lucidez alucina Todas as grandes coisas são difíceis e raras spinoza
fala
Teia
A teia, não mágica mas arma, armadilha a teia, não morta mas sensitiva, vivente a teia, não arte mas trabalho, tensa a teia, não virgem mas intensamente prenhe: no centro a aranha espera.
126
Fala
Falo de agrestes pássaros de sóis que não se apagam de inamovíveis pedras de sangue vivo de estrelas que não cessam. Falo do que impede o sono.
127
Exemplos
Platão fixando as formas Heráclito cultuando o fogo Sócrates fiel ao seu Daimon.
128
Maiêutica
Gerar é escura lenta forma in forme gerar é força silenciosa firme gerar é trabalho opaco: só o nascimento grita.
129
Para cda
i O boi é só. O boi é só. O boi. ii Que século, meu Deus! disseram os ratos. iii Perdi o bonde (e a esperança), porém garanto que uma flor nasceu. iv Ôpa, carlos: desconfio que escrevi um poema!
130
axiomas
Axiomas
Sempre é melhor saber que não saber. Sempre é melhor sofrer que não sofrer. Sempre é melhor desfazer que tecer. Sem mão não acorda a pedra sem língua não ascende o canto sem olho não existe o sol.
132
Newton (ou a gravidade)
i A maçã cai e os astros dançam. ii O abismo atrai o abismo: caio em mim.
133
Kairós
Quando pousa o pássaro quando acorda o espelho quando amadurece a hora.
134
Carta
Da vida não se espera resposta.
135
o antipássaro
O antipássaro
Um pássaro seu ninho é pedra seu grito metal cinza dói no espaço seu olho. Um pássaro pesa e caça entre lixo e tédio. Um pássaro resiste aos céus. E perdura. Apesar.
137
Fatos
… fatos são pedras duras. Não há como fugir. Fatos são palavras ditas pelo mundo. (Extraído de A hora da Estrela, de Clarice Lispector.)
138
Memória
A cicatriz, talvez não indelével o sangue agora estigma.
139
Do poder
Dentes: positivos. Presas a preendem incisivos cortam. Dentes: decisivos.
140
Teologia
Não sou um deus, Graças a todos os deuses! Sou carne viva e sal. Posso morrer.
141
galo [noturnos]
Galo
Canta o galo e a noite se aprofunda em plena meia noite: o galo é negro. Galo abissal — galo invisível canta e tudo o mais se cala. No vazio só — opaco — per siste o galo negro.
143
Gatos
i Os gatos secretos saltam somem no abstrato escuro. ii Gatos no negro fluem: fosforecem arranham vidros espectros farejam todos os rumos.
destroçam
iii No vácuo insone na meia-noite lúcida cuidado: gatos agindo. Numa hora 144
secreta as águas dormem (rios detidos fontes inertes introvertido oceano) numa hora impossível cessa o fluxo e eis a estrela: amor cristalizado.
145
Noite
Esconder (esquecer) a face soterrar (ocultar) a luz escurecer o amor dormir. Aguardar o que nasce.
146
figuras
Círculo
O círculo é astuto: enrola-se envolve-se autofagicamente. Depois explode — galáxias! — abre-se vivo pulsa multiplica-se divindadecírculo perplexa (perversa?) o unicírculo devorando tudo.
148
Narciso (jogos)
Tudo acontece no espelho.
149
A vida é que nos tem: nada mais temos.
150
Nunca amar o que não vibra nunca crer no que não canta.
151
O espelho dissolve o tempo o espelho aprofunda o enigma o espelho devora a face.
152
vésper [finais]
Porta
O estranho bate: na amplitude interior não há resposta. É o estranho (o irmão) que bate mas nunca haverá resposta: muito além é o país do acolhimento
154
Cantiga
Ouvir um pássaro é agora ou nunca é infância ou puro momento? Ouvir um pássaro é sempre (dói fundo no pensamento).
155
Balada
Os anjos são livres. Podemos sofrer podemos viver o acontecer único — os anjos são livres — podemos morrer inocentemente — e os anjos são livres até da inocência.
156
Vésper
A estrela da tarde está madura e sem nenhum perfume. A estrela da tarde é infecunda e altíssima: depois dela só há o silêncio.
157
poemas inéditos [1997–1998]
Utopia
i Poema: casa ao contrário o exato in verso do abrigo. ii Avisos. Perigos. FugasAlta tensão nas torres. iii Poema: abrigo im possível casa jamais habitada
159
i só é paraíso ontem porém amanhã tem circo. ii Paz? no futuro. Glória? no passado. iii Nunca há paraíso aqui e agora — mas amanhã tem circo!
160
Da poesia
Um gato tenso tocaiando o silêncio
161
Autoimagem
Por ser cego e irrefletido meu espelho disse a verdade: quebrei-o. Sete anos sete anos sete anos de enganos!
162
Teologia ii
Deus existir ou não: o mesmo escândalo.
163
Paratexto
Sobre a autora
rodrigo ribeiro neves Selvagem, assim como o silêncio que cresceu difícil de um de seus versos, nasceu Orides Fontela, em 21 de abril de 1940, na cidade de São João da Boa Vista, interior de São Paulo. Filha de pai analfabeto, recebeu da mãe suas lições ainda cedo, chegando a escrever seus primeiros versos entre os seis e sete anos de idade. Em entrevistas, Orides comentou que compunha, nessa época, umas quadrinhas infantis, a mesma fonte de que muitos grandes poetas beberam, como Manuel Bandeira, um de seus mestres na fase adulta. Na sua cidade natal, frequentou o ginásio e a escola normal, formando-se como professora primária, em 1955. No ano seguinte, publicou seus primeiros poemas, no jornal O Município. Com apenas 16 anos, saía seu primeiro escrito no cabeçalho das colunas socinais d’O Município: Noite calma de outono. Céu límpido e estrelado. Uma menina caminhava rapidamente pelas ruas paralelepípedos, de braços dados com seu pai e agarrada a um guarda-chuva. Usava um vestido branco com mangas bufantes e muitos saiotes para aumentar o volume de seu vestido, tentando esconder um corpo muito magro. Não olhavam pra ninguém. Viviam num mundo fechado, só deles. Iam ao cinema, como faziam todas as semanas. Este era o programa preferido dos dois… Seu nome? Orides Fontela.1 1. Disponível em: http://www.mulheresdesaojoao.com.br/index_arquivos/OridesFontelaBiografia.htm. 167
Alguns anos mais tarde, se mudou para a capital paulista, para estudar filosofia na usp, formação que influenciou muito na seu fazer poético. Os poemas iniciais, publicados naquele periódico paulista, chamaram a atenção de um conterrâneo, o crítico Davi Arrigucci Junior, de quem Orides se tornou amiga. Sobre ela relembra o crítico: A conheci ainda menina em São João da Boa Vista. Ela foi minha companheira de período no Grupo Escolar “Coronel Joaquim José”. Era uma menina um pouco peculiar, como foi a vida inteira, pois não sabia controlar os risos e as lágrimas. Os anos foram passando… Algumas vezes eu a via no consultório médico de meu pai. Orides ia com o pai, com quem se dava muitíssimo bem. Eu também o conheci. Era um marceneiro, homem bom, simples, modesto e pobre, com uma inteligência viva, arguta, perguntadora e também muito engraçado e, neste sentido, ela era bastante parecida com ele. Às vezes eu a via no cinema acompanhada do pai. Gostava de fazer comentários altos, sem se incomodar se atrapalhava as pessoas. Ela não tinha muito a medida do outro.2
Arrigucci Junior foi um dos principais responsáveis por trazer a obra de Orides Fontela para uma comunidade maior de leitores, além de intelectuais e críticos paulistas, coordenando a publicação de seu primeiro livro, Transposição, de 1969. Seu terceiro livro, Alba, de 1983, contou com prefácio de Antonio Candido e ganhou o prêmio Jabuti, o que sugeria a consolidação de uma carreira literária. Muitos a viam como uma continuidade do modernismo de João Cabral de Melo Neto, outros, como uma renovadora da fase heroica do movimento, e outros ainda, como uma voz necessária em um período em que já se esboçava um esgotamento das vanguardas dos anos 1950. 2. Disponível em: http://www.mulheresdesaojoao.com.br/index_arquivos/OridesFontelaBiografia.htm. 168
Na verdade, Orides Fontela aparece como uma voz única e dissonante das tendências que se formavam em seu tempo, por mais dispersivas e múltiplas que, em geral, elas sejam caracterizadas. A influência do modernismo na formação intelectual e artística de Orides Fontela foi fundamental, no entanto, ela também dialogou com preceitos de seu tempo, como a visualidade na construção dos poemas, à maneira dos poetas concretos. A dimensão dos símbolos com o qual ela trabalhou fez com que alguns a enxergassem como neossimbolista, na esteira de uma Cecília Meireles, mas os vestígios dessa estética a aproximam mais de outra poeta modernista, a mineira Henriqueta Lisboa. Entre os poetas de sua geração, ela não se alinha a nenhum grupo. E essa ausência de relação reflete não apenas a inserção de sua obra, mas também o seu lugar como intelectual. Infelizmente as dificuldades financeiras e o seu temperamento considerado difícil a lançou em situações de privação. Morou de favor em uma residência estudantil na região central de São Paulo e se isolou cada vez mais dos amigos. Passou os últimos dias de sua vida em um sanatório, em Campos do Jordão, onde faleceu em 2 de novembro de 1998. Dois anos antes, havia publicado sua última obra, Teia, conquistando o prêmio da apca, a Associação Paulista de Críticos de Arte. Uma obra, assim como todas as demais, tecida com os fios do tempo, que amadurece diante da nossa espera.
169
Sobre a obra
Esta edição reúne poemas escolhidos da obra de Orides Fontela a partir dos livros Transposição (1969), Helianto (1973), Alba (1983), Rosácea (1986), Teia (1996) e inéditos escritos entre 1997 e 1998, publicados em sua Poesia completa (2015). Os textos estão organizados na ordem cronológica de lançamento dos livros e foram selecionados de acordo com o que consideramos representativo para a compreensão dos principais aspectos da poesia de Orides Fontela e de sua importância para a literatura brasileira. Seu livro de estreia, Transposição, contém poemas escritos entre 1966 e 1967. A sua publicação teve a colaboração do crítico Davi Arrigucci Junior, conterrâneo de Orides e de quem se tornou grande incentivador e amigo. O livro se divide em quatro seções, “Base”, “(–)”, “(+)” e “Fim”, numerada com algarismos romanos. A primeira sugere o estabelecimento dos fundamentos construtivos de sua poética, como se fossem os alicerces de uma edificação. A partir do primeiro poema, que intitula a obra, somos levados a acompanhar um movimento entre o real e o símbolo, em um jogo de perda e de alcance do que é possível. Os sinais negativo e positivo indicam essa tendência: ora o impasse e a dor, ora a lucidez e a contemplação. É a transposição do ser, daquilo que ele é e daquilo que falta, para a dimensão simbólica, que o sustenta e o resgata. Helianto traz poemas de 1973. Enquanto no primeiro havia uma noção de deslocamento de um ponto a outro, aqui surge a noção de movimento circular, também expresso 170
na epígrafe com uma cantiga de roda. A palavra que intitula a obra é uma designação, em Botânica, para se referir às plantas do gênero Helianthus, das quais, uma das mais conhecidas é o girassol, portanto, os signos de lucidez permanecem como elementos de sua poética, mas, desta vez, eles giram, atando as pontas entre a palavra e o ser que ela busca representar. É um dos livros em que Orides mais explora a geometria e materialidade visual de seus poemas. Os textos de Alba são de 1983 e acompanham um prefácio de Antonio Candido, conferindo uma estatura consolidada na recepção crítica de sua poesia. Não por acaso, o livro rendeu a Orides o Prêmio Jabuti. O título tanto remete à primeira claridade da manhã quanto a um gênero lírico medieval em que há a despedida de dois amantes nesse mesmo instante do dia. De uma certa maneira, podemos pensar nesses dois amantes como o ser e o símbolo, a claridade é a poesia. O instante da despedida, no entanto, não é a separação consumada, mas o que a antecede e a suspende, tornando-os conscientes, lúcidos, de que o momento seguinte os divide, mas aquele em que expressam isso, o presente, ainda os mantém. Não por acaso, Alba é um livro mais maduro em relação à linguagem poética e à destinação da própria poesia como uma atividade do espírito. A epígrafe de San Juan de la Cruz dialoga com o aspecto místico-religioso que também aparece nos poemas, não de forma temática, mas na sobriedade e gravidade na representação das paixões. A composição de Rosácea, de 1986, é mais heterogênea em relação aos anteriores e se divide em seções, “Novos”, “Lúdicos”, “Bucólicos”, “Mitológicos” e “Antigos”. As questões que permeiam sua obra até aqui estão presentes, mas os movimentos circulares e de transposição possuem referências intelectuais, culturais e afetivas, com nomes de poetas, filósofos, familiares, entre outros. A sigla de Carlos Drum171
mond de Andrade (cda), por exemplo, uma das grandes influências para a poeta, é uma das mais recorrentes. Essas referências não são um mero repositório de informações biográficas e bibliográficas. A poesia de Orides Fontela rejeita qualquer tom confessional ou de reconstituição nostálgica de algum passado. O tempo é o da experiência poética, que atualiza essas referências em face do inevitável destino da poesia. Por fim, Orides lançou Teia, de 1996, premiado pela apca, a Associação Paulista de Críticos de Arte. O livro se divide nas seções “Fala”, “Axiomas”, “O antipássaro”, “Galo [Noturnos]”, “Figuras” e “Vésper [Finais]”. Em seu último livro, a poeta retoma as questões e as imagens que a acompanharam em seu fazer poético, expressão do silêncio extraído dos símbolos em seu encontro com o real. A imagem da teia reforça a atividade literária, artifício de quem tece o seu texto à espera de agarrar o que resta do tempo, das coisas e da vida. Ou de quem sabe da permanência da própria espera, de quem está à espreita, a um passo do pássaro e de acontecer. Acrescentamos ainda, nesta edição, cinco poemas dentre os seus inéditos, escritos no fim da vida da poeta, mas só publicados postumamente na reunião de toda sua obra. Neles também estão presentes certa religiosidade, a lucidez, a visualidade, os deslocamentos e giros entre o ser e os símbolos, além da consciência da poesia como destino e do tempo da experiência poética. Para o estabelecimento do texto, utilizamos a edição de Poesia completa, lançada em 2015 pela editora Hedra e organizada por Luis Dolhnikoff. Foram mantidas todas as epígrafes e as seções dos respectivos livros, pois funcionam como elementos compositivos na estruturação dos poemas em cada edição.
172
Sobre o gênero
Para uma primeira definição de poesia enquanto gênero literário, poder-se-ia recorrer à definição do professor Domingos Paschoal Cegalla, para quem “poesia é a linguagem subjetiva, carregada de emoção e sentimento, com ritmo melódico constante, bela e indefinível como o mundo interior do poeta visa a um efeito estético”.1 Aprofundando um pouco essa definição, o crítico Antonio Candido expande a definição de poesia ao diferenciá-la do verso. Para o crítico, a poesia enquanto ato criador do artista independe da forma métrica do verso, que passa a ser apenas um dos registros possíveis do poético: A poesia não se confunde necessariamente com o verso, muito menos com o verso metrificado. Pode haver poesia em prosa e poesia em verso livre. […] Pode ser feita em verso muita coisa que não é poesia.2
Delineada, de forma breve e geral, a forma poética, pode-se pensar agora em seus três gêneros básicos: lírico, épico e dramático. Para o crítico Anatol Rosenfeld, a lírica é o gênero mais subjetivo, no qual uma voz central exprime um estado de alma traduzido em orações poéticas. Seria a expressão de emoções e experiências vividas, “a plasmação
1. cegalla, Domingos Paschoal. Novíssima Gramática da Língua Portuguesa. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008, p. 640 2. candido, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Terceira leitura, 1993, p. 13–14. 173
imediata das vivências intensas de um Eu no encontro com o mundo, sem que se interponham eventos distendidos no tempo (como na Épica e na Dramática)”.3 Devido a essa característica central da lírica, a expressão de um estado emocional, Rosenfeld considera que o eu-lírico, nesse gênero, não se delineia enquanto um personagem. Embora possa evocar personagens e narrar acontecimentos, a lírica entendida enquanto gênero puro afasta-se sobremaneira da apreensão objetiva do mundo, que não existe independente da subjetividade intensa que o apreende e exprime. Assim, na lírica prevalece a fusão entre o sujeito e o objeto, que serve mais a realçar os estados profundos de alma do poeta. Sobre os aspectos formais do gênero, Rosenfeld nota: À intensidade expressiva, à concentração e ao caráter “’imediato” do poema lírico, associa-se, como traço estilístico importante, o uso do ritmo e da musicalidade das palavras e dos versos. De tal modo se realça o valor da aura conotativa do verbo que este muitas vezes chega a ter uma função mais sonora que lógico-denotativa. A isso se liga a preponderância da voz do presente que indica a ausência de distância, geralmente associada ao pretérito. Este caráter do imediato, que se manifesta na voz do presente, não é, porém, o de uma atualidade que se processa e distende através do tempo (como na Dramática) mas de um momento “eterno”.4
A poesia de Orides Fontela, evidentemente lírica, também não pode ser separada dos debates que rondaram a escritora acerca das inovações poéticas herdadas do modernismo. Aos 25 anos, quando foi descoberta por Davi Arrigucci Jr., Orides Fontela viu-se subitamente no centro de
3. rosenfeld, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 22. 4. Ibidem, p. 23. 174
um grande embate nas letras brasileiras, talvez o mais duro desde as repercussões da Semana de Arte Moderna de 1922. Como escreve o escritor e crítico literário Luis Dolhnikoff: Tratava-se da luta de vida e morte pela herança modernista, no palco armado pelos adeptos das novas vanguardas visualistas do final dos anos 1950 (das quais o concretismo era a mais visível), que pretendiam tirar de cena os defensores do verso moderno. Pois nada do verso tradicional restara depois da revolução modernista, que, entre outras coisas, aproximou a linguagem poética da sintaxe brasileira contemporânea, além de implodir, explodir e repudiar todas as formas antigas, incluindo estruturas (como a do soneto) e ritmos (como as medidas tradicionais de versos). As novas vanguardas, então, vieram para dizer que o que o modernismo fizera ao revolucionar o verso estava feito e bem feito, mas não mais bastava. A revolução tinha de continuar. E, para tanto, sacrificar no altar do Novo o próprio verso modernista, que resultara, de um modo ou de outro, por caminhos e vieses múltiplos, na maior e melhor poesia brasileira, incluindo nomes como Carlos Drummond, João Cabral, Murilo Mendes, Ferreira Gullar e Vinicius de Moraes.5 O verso modernista, porém, 5. João Cabral de Melo Neto iniciou sua obra próximo do surrealismo e da “geração de 45”. Em mais de um aspecto, portanto, muito longe do modernismo. Mas apenas se entendido como o Modernismo de 22. Pois Cabral não se engajou em um “retour à l’ordre” (para lembrar a expressão de Picasso ao voltar à figuração depois de ajudar a criar o abstracionismo, via cubismo), caso em que se deveriam encontrar, por exemplo, traços parnasianos em sua linguagem. Cabral, o “antilírico” por excelência, ou, dito de outro modo, um representante do “objetivismo”, que engloba obras tão variadas como as de Wallace Stevens, Carlos Williams e Francis Ponge, é por isso mesmo um dos grandes representantes do modernismo internacional. No caso de Gullar, bastaria citar o Poema sujo, uma “lição de coisas” das incontáveis possibilidades do verso modernista. Vinicius, naturalmente, além dos justamente famosos sonetos, também se dedicou ao verso livre (e escreveu sonetos como “A pera”). 175
apesar da potência então ainda inconclusa dessas obras, estava repentinamente morto — ao menos segundo as novas vanguardas visualistas. A poesia futura seria visual ou não seria.6
Em meio a esse embate, como bem descreve Dolhnikoff, a crítica “ou rejeitava as novas obras e as novas teses ou, ao menos, rejeitava a nova tese de que a nova poesia visual não podia ou não devia conviver com o ‘velho’ verso modernista”.7 Orides Fontela surgiu no meio desse quadro e, com sua poesia ousada, revitalizou o verso do modernismo brasileiro. Muitos críticos descrevem sua poesia como “antilírica”, no sentido de que o eu-lírico, ao longo de seus versos, perde espaço para a própria palavra, que ganha protagonismo e parece se sustentar autônoma, questionando seus limites de apreensão e representação da realidade e da experiência. É uma característica que a aproxima das vanguardas visualistas, como o concretismo, movimento que, em certa medida, parece também ter influenciado Orides na composição de seus versos que jogam e brincam com a espacialidade branca do papel, fazendo da posição da palavra no poema outro elemento para a definição de seu sentido. No entanto, ao contrário dos visualistas, a poesia de Orides não pode ser considerada “abstratizante”. Na definição de Dolhnikoff, a poesia “abstratizante” é “aquela que busca, consciente ou inconscientemente, restringir a condição referente da palavra” através de vários mecanismos, “como o uso cifrado, idiossincrático, para ‘iniciados’, o vocabulário esdrúxulo, os neologismos injustificados, as apropriações extraculturais, os estrangeirismos ‘de butique’ (ou da moda)
6. dolhnikoff, Luis. “Introdução”. In: fontela, Orides. Poesia completa. São Paulo: Hedra, 2015, pp.7-88. 7. Ibid, p. 8. 176
etc”.8 Orides, no entanto, considerava esse tipo de poesia algo próximo do barroco, sem sentido ou força poética no século xx. Nem visualista, nem “abstratizante”, a poeta pode ser considerada uma renovadora do modernismo, o que reafirma a força incontornável de sua obra poética.
8. Ibid., p. 10. 177
Adverte-se aos curiosos que se imprimiu este livro em nossas oficinas, em 23 de fevereiro de 2022, em tipologia Libertine, com diversos sofwares livres, entre eles, LuaLATEX, git & ruby. (v. 5a1abd8)
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