Rio de Sonhos — Maria Valéria Rezende

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Maria Valéria Rezende

Rio de sonhos


Rio de sonhos Maria Valéria Rezende © Lamparina editora Direção Tereza Andrade Direção de arte Fernando Rodrigues Desenhos Maria Valéria Rezende Paratexto Raphaella Lira Revisão Alvanísio Damasceno O texto deste livro foi adaptado ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990, que começou a vigorar em 1o de janeiro de 2009. Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja reprográfico, fotográfico, gráfico, microfilmagem etc. Essas proibições aplicam‑se também às características gráficas e/ou editoriais.

Catalogação na fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros R357r Rezende, Maria Valéria, 1946– Rio de sonhos [Texto e ilustração] Maria Valéria Rezende 1ª edição, Rio de Janeiro, Lamparina, 2021 72p, ilustrado, 13,5 × 20,5cm ISBN (Rio de sonhos) 978 65 88791 05 9 ISBN (Rio de sonhos: manual do professor) 978 65 88791 06 6 1 Novela brasileira I Título 21-69743 CDD 869.3 CDU 82-32(81) Meri Gleice Rodrigues de Souza, bibliotecária, CRB-7/6439 Lamparina editora Rua Joaquim Silva, 98, sala 201, Lapa 20241‑110, Rio de Janeiro, RJ, Brasil 21 2252 0247 www.lamparina.com.br lamparina@lamparina.com.br Facebook editoralamparina Instagram lamparinaeditora


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I 7 ii 20 III 23 Iv 48 v 52 vi 56 Paratexto Maria Valéria Rezende: vida e (esta) obra 58



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Era lua quase cheia, viam‑se as miríades de estrelas, que tanto faltaram a Paulo nos últimos três anos passados no Recife, no céu de verão quase completamente despejado, senão pelas poucas nuvens tocadas pelo vento do sertão para irem chover muito longe dali. O cenário e a certeza de que era sua última chance de criar coragem e passar uma noite assim, por uma vez, deram‑lhe o empurrãozinho que faltava para a aventura, tantas vezes sonhada e adiada, de enfrentar qualquer assombração para ver o rio adormecer e despertar. Esperou que todos fossem se deitar, pulou da rede armada na varanda, apanhou a mochila com o caderno de desenho e os lápis de cor, caminhou pelo terreiro até a rua, com mansos passos de gato. Paulo estava decidido. Naquela noite, deixaria para trás seus medos de menino e se tornaria um homem feito. Já não era sem tempo: estava no cursinho pré‑vestibular, 7


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em poucos meses faria os exames para a seleção da histórica Faculdade de Direito de Pernambuco, onde haviam estudado Rui Barbosa, José de Alencar, Castro Alves e tantos outros gênios, como seu pai não cansava de repetir, para estimulá‑lo. Estavam‑se acabando os feriados em casa. Aquele ano de 1988, porém, haveria de marcar sua vida. Atravessou o silêncio de Petrolândia adormecida e tomou o caminho do trecho deserto do rio São Francisco, que ia desaparecer, dentro de pouco tempo, sob as águas do lago da hidroelétrica de Itaparica. Queria passar aquela noite ali onde as águas corriam rápidas e profundas, lá embaixo, entre rochas avermelhadas e angulosas, seu antigo esconderijo nos momentos de mágoa ou de raiva, lugar de seus sonhos de criança, paraíso povoado por seres estranhos, mistura de medo e atração, de perigos tremendos e grandes atos de coragem apenas imaginados. O velho mandacaru indicador do bom ponto para descer até a margem do Velho Chico ainda estava lá, abrindo para o céu as estranhas formas de seus muitos braços. Descalçou os tênis, amarrou‑os na cintura e começou a descer o paredão do cânion, agarrando‑se às reentrâncias que a lua mostrava, até junto da correnteza. Encontrou a pedra saliente que procurava, sentou‑se e apoiou as costas na parede de rocha, sentindo a água respingar‑lhe as pernas nuas. Sentindo a solidão daquele lugar, ficou imóvel e fechou os olhos, para retomar o fôlego e acalmar as batidas do coração. Finalmente estava lá, sozinho em plena noite, esperando o momento mágico de que tanto ouviu falar desde criança e perguntando‑se, sonhador: − Será mesmo verdade que, por volta da meia‑noite, 8


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o São Francisco adormece por alguns minutos, toda correnteza cessa, até as cachoeiras de Paulo Afonso e de Itaparica param de jorrar, os peixes deitam‑se nas areias do leito, tudo fica imóvel e silencioso para não perturbar o sono do rio? Será verdade que então as almas dos afogados podem escapar do fundo e voar rumo às estrelas, e a Mãe‑d’água vem sentar‑se à margem das águas para pentear seus longos cabelos? Um calafrio percorreu‑lhe as costas e Paulo abriu os olhos, deixando entrar e desejando gravar para sempre nas retinas aquela beleza prestes a desaparecer debaixo da água, mas uma nuvem escondeu a lua e tudo se cobriu de sombra. Inquieto, olhou à sua volta e assustou‑se, acreditando ver uma cobra enrolada na margem, um pouco acima do ponto em que estava sentado. Ficou paralisado, os olhos fixos na serpente, até que a nuvem acabou de passar, tudo ficou mais claro e ele percebeu que era apenas uma grossa corda, perdida por algum pescador. Relaxou e riu de si mesmo, reconhecendo que sua imaginação estava mesmo esperando por perigos e monstros. Sentindo nas costas a rocha fria, ouvia, como num sonho, mas um sonho tão vivo quanto uma experiência real, as vozes de barqueiros, pescadores e vaqueiros. Entrelaçadas em sua memória, elas contavam as deliciosas e apavorantes histórias do sono do rio, do Negro‑d’água e da Mãe‑d’água, do Minhocão, dos afogados, das grutas e dos castelos submersos lá no fundo, que embalaram suas noites de criança. Sua razão de estudante da capital lhe dizia que nada daquelas coisas assombrosas aconteceria naquela noite, era tudo pura lenda, mas seu coração tinha uma vontade danada de acreditar que era verdade. Eram tantos os casos, contados por tantas 9


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testemunhas, jurados com beijos nos dedos cruzados, que, até os 13 anos, vivendo no mundo do rio São Francisco, Paulo nunca tinha duvidado de que fosse tudo verdade. Assim que completou 14, o pai mandou‑o para o Recife, estudar e morar na casa do Tio Teodoro. Mergulhou então num mundo muito diferente, onde descobriu logo que não havia lugar para essas personagens que lhe povoavam memória e imaginação. A primeira vez em que falou do rio adormecido, das almas dos afogados e da Mãe‑d’água, os colegas puseram‑se a mangar dele: − Você está falando sério? Mas isso é mesmo um matuto atrasado e ignorante! Nunca mais abriu a boca para falar de sua terra e de seu rio, mas sobreviveu, dividido entre a saudade dos assombros de sua infância e o desafio de igualar‑se aos meninos da cidade. Agora, estava ali de novo, e a força de encantamento do São Francisco fazia reviver a esperança de deslindar mistérios. Pelos seus cálculos, faltava ainda um bom tempo para o rio começar a adormecer. Paulo queria guardar aquelas imagens também com sua arte de desenhista. Tirou da mochila o caderno e os lápis de cor e começou a esboçar o que via: as águas rápidas encrespando‑se em torno das cristas de pedra no meio da correnteza, os paredões rochosos arroxeados pela luz da lua, verticais, desde a margem até as silhuetas negras dos mandacarus e xiquexiques, lá em cima, recortadas contra o escuro azul do céu e o pisca‑pisca das estrelas. Terá sido o cansaço de um longo dia, o movimento macio dos lápis sobre o papel, acompanhando o sussurro das águas, ou foi o São Francisco que silenciou e adormeceu, levando o garoto a cochilar também? O fato é que Paulo acordou assustado, com o desenho quase pronto e o rio correndo e borbulhando como sempre naquele 10


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trecho. Ficou confuso. Quanto tempo teria dormido? Já passara a meia‑noite, a hora do mistério? Nunca saberia se o rio dormia mesmo? Entre a dúvida e a decepção, Paulo olhou seu desenho, gostou. Só falta a Mãe‑d’água, pensou, pelo menos no desenho ela ainda podia aparecer. Ia pegando um lápis para traçá‑la quando, de repente, ele viu. Viu, com o coração batucando feito doido, duvidando do que via, mas viu, com toda a certeza: era a Mãe‑d’água, aparecendo e sumindo para voltar a aparecer, nitidamente visível contra o rastro de luz que a lua traçava sobre as águas. Só podia ser ela! Que outra moça se arriscaria assim, em plena noite, na parte mais perigosa do rio? Só podia ser ela, com aqueles longuíssimos cabelos negros dançando à superfície da água, mesmo quando submergia. Paulo, fascinado, perdeu a noção do tempo, olhando aquela figura inacreditável, lutando contra a violência das águas. Contra as águas? Subitamente, ele compreendeu o que via. Uma mulher lutava desesperadamente para escapar da correnteza, salvar‑se da força que a puxava para o fundo. Sentiu que ela já não aguentava o esforço, cada vez que afundava, demorava mais a reaparecer. Paulo escapou do mundo das lendas, voltou à realidade. Num impulso de coragem ou de loucura, largou caderno e lápis, esticou‑se e apanhou a corda que havia visto, passou um braço em torno da pedra em que se sentara e aproximou‑se da beira da água, ferindo as canelas nas pedras, as águas já cobrindo‑lhe os joelhos. Enrolando firmemente uma ponta da corda numa das mãos, lançou a outra ponta, com um nó, o mais longe que pode para o meio do rio e gritou. Mas a correnteza levava rapidamente a corda para perto da margem, a jusante, o lado contrário de onde 11


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vinha a moça. Assim seria quase impossível que ela alcançasse a corda. Era preciso recolhê‑la, enrolando‑a no braço, para lançá‑la de novo, a montante do rio, cada vez, até que nadadora e corda pudessem se encontrar. A grossa corda, molhada, pesava muito e Paulo só tinha uma mão livre. Nem soube onde encontrou força e fôlego para lançar a corda várias vezes, gritando o mais que podia para chamar sua atenção. Ela já vinha bem perto, arrastada pela correnteza, em pouco tempo ultrapassaria o ponto em que ele estava. Paulo já nem sentia o braço, tinha a impressão de fazer um esforço enorme para gritar sem emitir nenhum som, a voz afogada pelo rugido das águas. Desesperava, quase desistia quando sentiu um puxão no punho. Recuperou o ânimo e, com imenso esforço, recolheu a corda, agora muito mais pesada, o coração pulando no peito, uma mistura de medo e euforia como daquela primeira vez em que, menino pequeno ainda, sentira um peixe grande morder seu anzol. De repente, ela estava ali, a Mãe‑d’água de longos cabelos negros, como ele a imaginava, agarrando‑se nas pedras e no braço dele, deixando‑se cair desacordada na margem, ao seu lado. Depois de um tempo que não pôde contar, tonto pelo cansaço, pelo susto e pela falta de ar, Paulo finalmente conseguiu respirar, reabriu os olhos, içou‑se para fora da água e olhou para o vulto deitado sobre as pedras, uma figura de outro mundo sob a luz azulada da lua. Olhou melhor: a moça encantada que ele tinha arrebatado das águas do rio não teria mais que 15 anos, vestia camiseta branca e bermuda jeans com as beiras desfiadas, trazia no pescoço uma medalhinha num trancelim, duas argolinhas rebrilhavam em suas orelhas, contrastando com a escuridão dos cabelos muito lisos e 12


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compridos, espalhados sobre as pedras. Seria mesmo a Mãe‑d’água? Enquanto o rapaz se perguntava quem era ela, a menina abriu os olhos, moveu a cabeça para um lado e outro, em grande aflição, e murmurou: − Me ajude… me ajude… pelo amor de Deus, me ajude − mas logo fechou os olhos e parecia ter desmaiado de novo, embora agitando‑se e dizendo palavras incompreensíveis. Paulo, então, sentando‑se e firmando bem as costas contra a parede de pedra, com todo cuidado, levantou‑a nos braços, deixou que a cabeça dela descansasse no seu peito. Teve certeza: era apenas uma menina, de carne e osso, esguia, quase tão alta quanto ele, mas muito mais leve. Passou os braços em torno dela para que não escorregasse de volta às pedras e ao rio. A menina, sem abrir os olhos, aquietou‑se entre seus braços, até que a respiração deles foi aos poucos voltando ao ritmo normal e ambos adormeceram assim, abraçados. Quando os raios do sol tocaram o rosto de Paulo, ele emergiu do sono com a impressão de sonhar que tinha entre os braços um animalzinho tentando escapar, que ele procurava reter junto ao peito. Abriu os olhos e viu a menina tentando libertar‑se de seu abraço. Lembrou‑se de tudo. Então era verdade! Ele tinha passado a noite junto ao rio e salvado da fúria das águas a garota cheia de arranhões nas mãos, nos pés, nos joelhos! Abriu os braços, deixou‑a livre para mover‑se. Ela afastou‑se dele, olhou‑o, assustada, por alguns segundos e, surpreendentemente, perguntou: − É Paulinho de seu Leopoldo, é? Foi você quem me salvou? Mais espantado que ela, perguntou: 13


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− E você? É a Mãe‑d’água, é? Como sabe meu nome? Ela riu, recolheu os cabelos na nuca para que ele visse melhor seu rosto moreno, seus olhos puxados, e perguntou: − Você não está me conhecendo, não? Não sou a Mãe‑d’água de verdade, mas sou a Iara, Iara de Janaína. Minha mãe lavava roupa na sua casa e eu ia sempre lá com ela. Janaína… Paulo lembrava‑se, sim, meio vagamente, da mulher bonita e jovem, com traços indígenas, que vinha lavar roupa e conversar com sua mãe, e da menininha, igualzinha a ela, muito quieta, sentada no batente da porta da cozinha, modelando panelinhas de barro. Devia ser, sim, a filha de Janaína essa garota de estranhos olhos cor de mel, com um brilho de coragem e desafio, chamando a atenção em contraste com a pele morena, os lábios cheios, bem desenhados. Perguntou: − E por que você estava à noite, sozinha, quase se afogando no rio? E sua mãe, seu pai? Ela não respondeu imediatamente, virou o rosto para o rio, deixou seu olhar dourado afundar nas águas, ficou assim, triste, por uns minutos, depois suspirou, voltou‑se para ele com ar de quem chegava de muito longe e respondeu: − Minha mãe morreu num acidente há três anos. Foi visitar uma tia, o caminhão em que ela viajava virou numa ribanceira. A última vez que vi meu pai foi no enterro dela, ele gemendo desesperado, com olhos de louco. Dali mesmo ele foi‑se embora, ninguém sabe para onde. Paulo sentiu um aperto no peito, ouvindo aquela história tão triste, com vontade de abraçá‑la, mas não teve coragem. Parecia tão segura de si, tão adulta! Ela recomeçou a falar: 14


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− Fiquei com meus avós, aqui em Petrolândia mesmo. Meu avô é índio pankararu, mas queria ser vaqueiro, saiu da aldeia muito novo e casou‑se com minha avó, que era da cidade. − Pobre da sua avó! Deve estar preocupadíssima por você ter sumido de casa uma noite inteira! Vamos! Vou levar você para casa agora mesmo. Está toda machucada, precisa fazer logo um curativo nesses arranhões. − Não há ninguém me esperando. Minha avó adoeceu e morreu no ano passado. Vô Batista diz que foi de tristeza por causa da notícia desse projeto da hidroelétrica que vai afundar num lago a cidade de Petrolândia, mais a cachoeira sagrada de Itaparica onde vivem nossos Encantados e o cemitério dos pankararu, onde estão os ossos dos nossos antepassados. Então a irmã dele quis me levar para a aldeia, porque não achava certo eu ficar sozinha em casa cada vez que meu avô sai vários dias para levar gado pelo sertão adentro ou acompanhando o São Francisco até Minas Gerais. − E o que você estava fazendo aqui, sozinha, tão longe da aldeia? O rapaz percebeu os olhos dela molhados de lágrimas. Ela continuou, com a voz rouca: − Eu não quis ficar na aldeia. Não podia deixar meu avô abandonado. Desde a morte de vovó, ele ficou muito esquisito, diz que o projeto de hidroelétrica que vai cobrir Petrolândia de água é tudo mentira, que quem vai destruir tudo é o Minhocão, vai furar uma barranca do rio e se meter por dentro da terra, escavar por baixo da cidade até que Petrolândia afunde na terra, não nas águas. Só pensa nisso, só fala disso. Se ninguém cuidar, ele nem come. Quase não dorme mais. Em noite clara de lua, ele pega um machado de pedra dos ancestrais, que encontrou enterrado 15


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na Gruta do Padre, e sai pelo mundo dizendo que vai procurar e destruir esse Minhocão do rio, que vai salvar a cidade e então minha avó e a filha dele, minha mãe, vão voltar. Diz que só ele pode descobrir onde o monstro está escondido, porque só ele sabe ler os segredos escritos pelos antepassados no Letreiro do Sobrado. E agora, que já vão fechar as comportas da barragem e a água vai começar a subir, e nós tivemos de abandonar nossa casa velha lá no meio da caatinga, ele ficou desesperado, não quis de jeito nenhum ir para a casa que nos deram na nova Petrolândia e sumiu há mais de três dias. Ninguém viu mais Vô Batista. Achei que ele veio atrás do Minhocão. Desde anteontem que eu procuro nas margens do São Francisco, sem dormir nem comer quase nada e sem achar nem sinal dele. Estava tão cansada e aflita que acabei caindo na correnteza. Ela já estava chorando abertamente, parecendo mesmo uma garotinha, e Paulo, querendo consolá‑la, pegou sua mão e disse: − Não se desespere assim, Iara. Ele foi levar alguma boiada para o sertão ou para Minas. Vai ver que era caso de urgência, nem teve tempo de avisar! Iara soltou a mão dele, afastou os cabelos dos olhos e respondeu: − Pensei nisso, mas sei que não foi. Desde que ele ficou estranho, ninguém mais lhe confia as boiadas, acham que está fraco do juízo. Depois que ele sumiu, voltei lá na casa velha, vazia. A sela, as esporas, o chapéu e o traje de couro ainda estavam lá, pendurados nos ganchos de madeira na parede do quarto dos fundos. Não tive coragem de levar essas coisas para a casa nova sem o consentimento dele. Acho que ainda estão lá, por milagre, porque já tiraram as telhas, já arrebentaram uma parede para pegar os tijolos. E Telegrama, o cavalo dele, está solto lá perto. 16


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Ela levantou‑se, enxugou as lágrimas e continuou, em tom decidido: − Ele está por aí e eu vou continuar procurando. Paulo sentiu que não podia deixá‑la seguir só e que não desejava separar‑se dela por nada deste mundo. Então disse: − Eu vou com você. Juro que não deixo você sozinha nesse desespero. Mas assim, exausta, machucada, descalça e com fome, não pode continuar. Vamos até a minha casa, minha mãe cuida de você, você descansa, minha irmã Lúcia lhe empresta roupa limpa e calçado. Daí, juntos, vamos encontrar seu avô. Sem ânimo para resistir, Iara deixou‑se levar por Paulo, que a obrigou a calçar os tênis dele, enormes para os pés dela, amarrou as pontas da corda na cintura de ambos para ajudá‑la a subir com segurança pela parede escarpada do cânion. Mesmo amparada por Paulo, a menina estava tão cansada que mal podia andar e não teriam chegado à casa, na cidade nova, se Seu Izídio não parasse com a caminhonete para lhes dar carona. A mãe de Paulo reconheceu Iara na hora: − Você é a cara de sua mãe! Ainda mais assim com o trancelim e os brincos dela! Dona Aurora logo tomou conta da menina, tratou as feridas, fez com que se banhasse e se alimentasse bem, preparou‑lhe uma rede num canto fresco. Iara caiu na rede e adormeceu imediatamente. Com a garota em segurança, Paulo explicou brevemente à mãe o acontecido e resolveu agir logo. Vestiu calça marrom, camiseta e boné camuflados e tênis velhos encardidos de barro, para confundir‑se com a vegetação da caatinga, passar despercebido e poder entrar na cidade velha, já abandonada à força pelos moradores e 17


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vigiada pelos seguranças da usina, para que ninguém mais voltasse lá. Era perigoso. A qualquer hora as comportas podiam ser fechadas e a água subiria rapidamente. Paulo procurou e encontrou um saco de estopa bem grande, de que ia precisar. Para chegar à antiga casa de Iara e do avô, na cidade abandonada, tinha de dar a volta pelo mato, se conseguisse enganar a vigilância dos guardas da usina. Foi o que fez, com a ajuda da roupa camuflada: rastejando devagarinho para não fazer ruído, embora arranhando‑se nos cactos, conseguiu passar, sem ser visto, a poucos metros de um vigia armado. A casa já estava meio demolida e inteiramente vazia, mas no quarto do fundo encontrou, como esperava, todos os apetrechos de um vaqueiro. Recolheu tudo, vestiu o gibão, o chapéu de couro e os protetores para as pernas, enfiou a sela, estribo, relhos e todo o resto dentro do saco e tomou o caminho de volta, que seria ainda mais longo e difícil, com a carga que levava. O saco pesava, a roupa de couro incomodava, apesar de muito ter brincado de vaqueiro, vestindo as roupas e montando o cavalo de Tio Leopoldo. A carga, porém, era útil para o que ia fazer. Queria achar o cavalo Telegrama. Por mais de uma hora, em grande tensão, Paulo meteu‑se pela caatinga, sem ver sinal do cavalo. Meio se arrastando, meio correndo, curvado, conseguiu ultrapassar a linha dos vigias. Quando se sentiu mais seguro, descuidou, correu mais depressa e não se importou em fazer ruído, o que lhe custou um enorme susto. De repente, ouviu alguém gritar: − Quem quer almoçar preá assado? Imediatamente ouviu o tiro, uma chuva de chumbo voou por cima da cabeça dele, caindo um pouco mais adiante, e sentiu um estilhaço tocar a copa do chapéu 18


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de couro. O susto derrubou‑o e ficou deitado entre os garranchos e cactos da caatinga, quase paralisado de medo, o coração descompassado, prendendo a respiração e ouvindo os passos e gritos dos vigias procurando a caça. Foram minutos infindáveis, até que ouviu um deles gritar, afastando‑se: − Não era preá nada, era o cavalo daquele vaqueiro Batista, meio maluco. Está solto por aqui. Se ele continuar aí, quando eu for embora levo o bicho para mim! Paulo custou a recuperar a respiração e o ritmo do coração, mas saber que o cavalo estava perto animou‑o. Avançou com mais cuidado para o lado de onde vieram as vozes, até perceber movimento no mato. Finalmente, viu o cavalo. Seria mesmo o Telegrama? Não ia se espantar e fugir de novo? Aceitaria que ele o selasse? Foi chegando devagar, o animal não parecia agitado, beliscava as poucas touceirinhas de capim seco que havia por ali. Devia estar faminto. Paulo apanhou um bom punhado de capim e começou a chamar baixinho: − Telegrama, aqui, Telegrama. O cavalo olhou para o lado de Paulo, que já estava bem perto, com a mão estendida oferecendo o capim, aproximou‑se mansamente e avançou para o alimento oferecido. Comeu da mão de Paulo e, em seguida, esfregou o focinho no flanco do rapaz vestido com o gibão de couro. Reconhecia o cheiro do dono! Daí por diante foi fácil. Paulo puxou‑o pelo cabresto até uma distância segura, selou‑o sem dificuldade, amarrou o saco com o resto das coisas na garupa, montou e voltou para a cidade nova.

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Telegrama entrou no quintal da casa sem protestar, nem sequer se espantou com o velho barco de enorme carranca que enfeitava o jardim da nova casa, velha relíquia já sem forças para carregar nem proteger nenhum barqueiro contra o Minhocão, o Caboclo‑d’água ou os espíritos dos afogados que se podiam levantar do fundo do rio quando este adormecia. Iara ainda dormia na rede da varanda. Paulo chegou de mansinho, sentiu um aperto no peito, vendo‑a assim tão desamparada e tão linda, ficou um tempão olhando, abraçado com as coisas que tinha trazido, até que a mãe dele o chamou, baixinho. Ele deixou os objetos do vaqueiro Batista junto à rede e ia se afastando, mas a menina acordou. Olhou espantada para Paulo, em seguida para a roupa de couro e então pareceu lembrar‑se de tudo: − Paulo… você foi buscar isso lá na casa velha? Mas não está proibida a passagem? 20


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Paulo sentiu certo orgulho de seu feito, mas disse com ar de modéstia: − Foi fácil. E trouxe o Telegrama também! Iara saltou da rede, correu para fora, atravessou o quintal, abraçou‑se com o cavalo e começou a chorar como criança, dizendo entre soluços: − Telegrama, querido, Telegrama, só você pode achar meu avô. Você vai me ajudar, não vai? Paulo, se a gente soltar Telegrama assim selado, pelo campo, ele vai achar meu avô, ele sabe que o Vô Batista precisa dele quando lhe bota a sela. Ele vai procurar! E vai achar! Ouvindo isso, Paulo teve uma ideia: − Então nós podemos soltá‑lo para que vá procurar seu avô por um lado e nós dois vamos procurar por nosso lado. Iara animou‑se, parando de chorar e lançando os braços em volta do pescoço de Paulo: − É isso que vamos fazer, Paulo; é isso. O garoto emocionou‑se, ficou com vontade de ficar assim, com os braços na cintura dela, sentindo a cabeça de Iara encostada no seu ombro, mas a menina se soltou logo e correu para a casa, para se preparar e pôr o plano em prática. Prontos para sair, com um farnel, sanduíches de carne de sol e queijo de coalho e frutas secas, preparado pela mãe de Paulo, o rapaz com os binóculos do pai a tiracolo e uma peixeira na cintura, planejaram os movimentos que fariam: soltar Telegrama na caatinga para o lado do sertão e percorrer os lugares em que o avô podia ter ido buscar orientação para impedir o alagamento da velha Petrolândia e de seus arredores. O velho queria era salvar o Letreiro do Sobrado, a Cachoeira de Itaparica, sagrada para ele, a Gruta do Padre e a aldeia do povo pankararu, em que ele tinha nascido e aonde gostava de voltar para as 21


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festas, rituais e para consultar o pajé. Haviam de encontrar Vô Batista. Dona Aurora prometeu ajudar rezando e acendendo uma vela para Nossa Senhora da Ajuda.

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Arrearam Telegrama, montaram os dois, Paulo na sela, de posse das rédeas, Iara na garupa, agarrada à cintura dele, vestida com velhas roupas e tênis de Lúcia, irmã de Paulo, também de cores fáceis de se confundir com a paisagem. Levavam amarradas, dos dois lados da sela, as peças da armadura de couro e os bornais do vaqueiro. Decidiram primeiro aproveitar a ajuda de Telegrama para cumprir em tempo seu itinerário de buscas, só depois de percorrer alguns lugares é que o soltariam para seguir sozinho. O cavalo era mesmo forte e rapidíssimo. Iara contou a Paulo que o animal tinha sido criado pelo avô, desde potrinho, e treinado com a ambição de que se tornasse o cavalo mais veloz do sertão do São Francisco. Por isso, Vô Batista lhe tinha dado o nome daquilo que ele conhecia de mais rápido: um telegrama! Galoparam até o Letreiro do Sobrado. Encontraram sem dificuldade, quase à beira do rio, o pequeno abrigo 23


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naturalmente escavado na pedra, cujas paredes eram cobertas de pinturas e gravações rupestres, belas e misteriosas, uma verdadeira escrita de milhares de anos atrás, que só Vô Batista acreditava poder ler. Os jovens tinham a esperança de encontrá‑lo lá, tentando decifrar mensagens dos antepassados sobre a crise que o rio e seu povo estavam vivendo agora. Ambos conheciam bem o local. Paulo o descobrira trazido por seu pai, que adorava arqueologia, e tinha voltado muitas vezes por conta própria, nas suas andanças de adolescente sonhador. Iara tinha vindo ali muitas vezes, na garupa de Telegrama, acompanhando seu avô, atraídos ambos pelos segredos escritos naquelas paredes. Com emoção, desmontaram e correram para a pequena gruta, cheios de esperança. Seus olhos custaram alguns segundos a acostumar‑se à pouca luz do local, até que puderam ver que estava completamente vazio, a não ser pelos misteriosos sinais nas paredes. Ficaram ambos um tempo parados e silenciosos, em parte pela decepção, mas também porque outros sentimentos iam tomando conta de cada um. Paulo lembrava que a beleza do que vira ali, na primeira visita, despertara nele o desejo de ser artista. Algumas vezes tinha voltado sozinho, com seus cadernos e lápis de cor, para inspirar‑se. Só então, porém, tomava consciência da importância daquele lugar na vida dele, maior ainda de agora em diante, ligando‑o a Iara. A menina, por seu lado, profundamente absorta nas inscrições das paredes, com um misto de esperança e agonia, tentava adivinhar o que o avô poderia ter imaginado ler nos sinais e quem sabe assim encontrasse uma pista para procurá‑lo. 24




















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Passados alguns minutos, saindo cada um de seus pensamentos e sentimentos pessoais, concluíram que ali não achariam mais nada e tinham pouquíssimo tempo para cumprir todo o plano de busca, antes que escurecesse ou que as águas começassem a subir. Em silêncio, os dois caminharam, de mãos dadas, até Telegrama, que se deixou montar tranquilamente, e seguiram caminho a galope para os lados da Cachoeira de Itaparica, onde haveria também seguranças da usina impedido a aproximação. Chegaram o mais perto possível da cachoeira, perceberam que a vigilância não lhes permitia continuar a cavalo. Teriam de rastejar com todo cuidado. Decidiram que era a hora de se separarem de Telegrama para que ele fosse cumprir sua missão. Iara, com as lágrimas escorrendo pelo rosto, abraçou‑se ao pescoço do animal e lhe disse ao ouvido: − Vá, meu amigo, coragem, encontre e salve o nosso velho. Você vai conseguir! Parecia que o animal tinha entendido perfeitamente o que lhe pediam, levantou a cabeça, cheirou o ar para um lado e outro, pareceu decidir‑se e saiu a trote como quem sabia muito bem em que direção devia ir. Quando ele desapareceu em meio à vegetação, Iara encostou‑se, ainda chorando, ao peito de Paulo, cujos olhos também estavam molhados, mas eles não podiam se demorar. Logo, logo o sol começaria a baixar e, se não achassem o avô na cachoeira e nem na Gruta do Padre, ali perto, restaria muito pouco tempo para chegarem até a aldeia pankararu antes que anoitecesse. No escuro seria impossível acharem o caminho. Corajosamente, os dois jovens rastejaram sem fazer barulho por um longo trecho, até ultrapassarem a linha dos guardas armados. O som da cachoeira jorrando, voz dos Encantados, protetores dos pankararu, guiava‑os e lhes 45


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dava ousadia e força para prosseguir. Conseguiram atravessar o perigo e chegar, exaustos mas dispostos a tudo, a um ponto em que já podiam ver a cachoeira espumando. Será que Vô Batista estava por ali? Paulo se perguntava, descrente. Como saber se ele estava lá, como achá‑lo entre tanta vegetação, tanta pedra e água? Não queria afligir Iara ainda mais e parou, desconcertado, sem saber o que fazer, mas a menina correu para mais perto das águas, subiu a um rochedo alto e, de repente, Paulo ouviu a voz dela elevando‑se nítida sobre a zoada da queda‑d’água, entoando um aboio típico dos vaqueiros sertanejos. O menino ficou parado, imóvel, ouvindo aquilo. Era do jeito que ele imaginara a Mãe‑d’água, cantando sobre um rochedo, a pentear os cabelos. Paulo nem soube quanto tempo ficaram assim, ele ouvindo, completamente encantado, e ela cantando, iluminada pelo sol da tarde. Vieram‑lhe à memória os versos de Castro Alves, de seu livro A cachoeira de Paulo Afonso, que o pai lhe dera de presente num aniversário desafiando‑o a aprender de cor alguns poemas: Era a hora em que a tarde se debruça Lá da crista das serras mais remotas… … E te amei tanto — à flor das águas frias — Da lagoa agitando a verde cana, Que sonhava morrer entre os palmares, Fitando o céu ao tom dos teus cantares!… Por ele, teria continuado assim para sempre, mas Iara, afinal, parou de cantar, virou‑se para o companheiro e disse: 46


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− Não, ele não está aqui. Se estivesse teria reconhecido seu próprio aboio em minha voz e teria aparecido. Ainda temos de procurar. Vamos! A gente passa no cemitério de nosso povo, na Gruta do Padre, que ainda quero rezar ali antes de as águas cobrirem tudo, e pode ser que meu avô tenha tido o mesmo desejo. Se não estiver lá, vamos correndo para a aldeia pankararu. Enquanto falava, descendo do rochedo, a menina deixava as lágrimas correrem‑lhe pelo rosto. Paulo tinha vontade de carregá‑la nos braços, mas ela, sem lhe dar tempo de fazer um gesto, já enveredava pelo caminho que levava à gruta. Lá também não encontraram nem sinal de Vô Batista. Paulo quase desacreditou de que conseguissem chegar à aldeia, mas Iara corria, certa do caminho, tirando forças do fundo de seu desejo de achar o avô, e o rapaz acompanhou‑a, tirando forças de seu desejo de estar junto dela. Chegaram, afinal, quando a única luz que restava para alumiar‑lhes o caminho vinha dos últimos raios avermelhados do sol refletidos pelas nuvens.

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A menina dirigiu‑se logo a uma das casas no centro da aldeia, junto da igreja, e Paulo, que tinha ficado para trás, viu sair um rapaz novo e forte em cujos braços Iara se aninhou e ficou, assim abraçada, falando no ouvido dele, ele passando‑lhe carinhosamente as mãos nos cabelos dela e respondendo‑lhe com expressão de imenso carinho. Paulo parou a certa distância, sem jeito, sem saber o que fazer, olhando aquela cena, da qual ele não fazia parte, iluminada só pela luz que vinha de dentro da casa e sem poder ouvir o que diziam. Custou a perceber que a angústia que lhe crescia no peito era ciúme, porque ainda não tinha tido tempo de dizer a si próprio que seu sentimento por Iara era, pela primeira vez na vida, verdadeiro amor. Ficou ali, quieto, maravilhado com aquela revelação, até que Iara soltou‑se dos braços do outro e veio buscá‑lo pela mão, dizendo: − Venha conhecer meu tio Juca, filho mais novo de 48


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meus avós, que escolheu voltar para a aldeia e viver como pankararu. Juca, este é o Paulo, que me salvou das águas do rio. Juca abraçou Paulo com força, como a um grande amigo, e levou‑os para dentro de casa, fez com que se sentassem à mesa e se alimentassem enquanto lhe contavam tudo o que tinha acontecido. O tio de Iara primeiro zangou‑se, ao saber que a sobrinha tinha se arriscado tanto, sozinha, em vez de vir avisá‑lo para que ele fosse procurar o pai, mas Iara explicou: − Tio, eu pensei que você nem estava na aldeia, porque sabia que andava pelas comunidades com o pessoal do sindicato de agricultores, apoiando as famílias prejudicadas pela construção da barragem. Sei que essa é uma luta dura e não quis preocupar você mais ainda. Juca entendeu, acalmou‑se e disse: − De fato, cheguei agora à tardinha, para trazer notícias da situação. De qualquer maneira, vocês já procuraram muito e no escuro não podemos fazer mais nada. Ainda mais que dizem que é esta noite mesmo que vão fechar as comportas e a água vai começar a subir. Agora é com o Telegrama. Se pai estiver na região, o cavalo é mesmo bem capaz de achar. O povo todo vai se reunir na igreja esta noite e o pajé vai animar a oração, para a gente ter força para enfrentar tudo isso. Mas vocês, não. Estão mortos de cansaço. Eu armo as redes, vocês ficam descansando aqui, enquanto eu vou à igreja. Os dois garotos nem tiveram coragem para protestar, estavam mesmo exaustos e adormeceram logo. Despertaram no meio da noite, ouvindo gritos e passos correndo na rua. Saltaram das redes e correram para fora também. O povo estava se juntando no meio da aldeia e os gritos diziam que as águas já estavam subindo. O clima era 49


Rio de sonhos

de grande tensão. Paulo custou a entender por quê. Até aquele dia, apesar de tudo o que o afetava, pensava que a construção da hidroelétrica era uma coisa necessária e boa para todos, ia trazer desenvolvimento para a região. Agora estava confuso, ouvindo o que Juca e os outros diziam. Então as coisas não eram tão simples como pensava? Mas todos não desejavam ter luz elétrica à vontade? O país não precisava crescer, desenvolver‑se, modernizar‑se? Nem todos estavam de acordo com seu pai, que se entusiasmara com a construção da barragem? Paulo percebia que precisava saber mais, que havia muitos lados da questão, queria agora ouvir o outro lado. Ninguém mais pensou em dormir. Juca e um grupo de pankararu resolveram sair logo e subir para uma serrota de onde se podia avistar a cachoeira de Itaparica e até a velha cidade de Petrolândia, para ver o que ia acontecer com o fechamento das comportas. Ninguém conseguiu impedir Iara e Paulo de irem também. As emoções que vinham vivendo e que sentiam à sua volta pareciam produzir neles uma força inesgotável. Caminharam muito e já se via surgir a barra do dia no horizonte, quando chegaram ao alto da serrota. Durante a caminhada, de mão dada com Iara, Paulo encheu Juca de perguntas, ouviu atento as respostas e foi‑se dando conta de como eram complicadas as questões das políticas de desenvolvimento, de quantas coisas havia que considerar, dos direitos de todos que era preciso proteger, ficou profundamente inquieto, pensativo, desejando dedicar‑se a estudar tudo aquilo e descobrindo que o povo pobre também tinha o que dizer. Paulo sentia que já se tinha transformado em outra pessoa, muito mais madura, que sua vida nunca mais seria a mesma depois de tudo o que lhe estava acontecendo naquelas últimas horas. 50


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O grupo todo sentou‑se no alto da elevação para esperar o dia clarear, menos Iara, que se ia afastando, querendo ir mais longe, querendo ver o vale lá embaixo, como quem continua a procurar. Paulo correu para perto dela e, naturalmente, passou‑lhe o braço pela cintura. Iara deitou a cabeça no ombro dele, estava chorando mais uma vez e, afinal, parou, olhando atenta para as sombras que iam pouco a pouco se retirando da paisagem. Sentaram‑se os dois, um pouco afastados do grupo, em silêncio, um sentindo a emoção do outro, mistura de tristeza e encantamento.

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Onde estaria Telegrama? Onde estaria Vô Batista? O que seria de Iara se ele não voltasse? O que seria dela e de Paulo quando chegasse a hora da partida dele para Recife, no fim da tarde daquele mesmo dia? Como poderiam separar‑se, depois de tudo o que haviam vivido juntos? Olhavam, cada um deles por seu lado, tentando ainda achar Vô Batista. O rapaz, que conhecia bem a região toda pelas excursões de férias com o pai e o avô, distraiu‑se lembrando tudo o que sabia da história do rio São Francisco e de como ele estava mudando ao longo dos anos. Empunhou seus binóculos e sua vista viajou longe, pela paisagem e pelas lembranças. Coisas nas quais já não pensava havia anos desfilaram pela memória de Paulo. Recebera‑as, e agora as percebia como uma herança e um privilégio, das longas conversas de seu bisavô e de seu avô. Eram descendentes de uma das mais antigas famílias a se estabelecerem ali, desde o século XVIII, 52


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criando bois e cabras, pescando no rio, secando as carnes e os peixes para abastecer os tropeiros e aventureiros que por ali passavam indo ou vindo das Minas Gerais. Os velhos orgulhavam‑se disso, prezavam sua história e as belezas da região, acreditando sempre que um dia chegaria a fartura para todos. Queriam que seus descendentes continuassem sua tradição e suas esperanças. Rapidamente corriam pelo pensamento e pelo coração do rapaz as histórias do rio que, segundo os muito antigos, nascia no próprio Paraíso Terrestre fazendo de suas margens uma terra abençoada, destinada a um futuro maravilhoso. O rio em cujas margens José Bonifácio, Patriarca da Independência, quisera estabelecer uma nova capital para o império do Brasil, o caudaloso rio cuja água Dom Pedro II imaginou poder distribuir a todo o sertão do Nordeste para salvar seu povo das secas e da fome, ideia que voltara à baila recentemente, nomeada “projeto de transposição” das águas. Era como se Paulo visse, pelas lentes de seus binóculos, a segunda usina hidroelétrica construída no Brasil, na queda de Angiquinho, um dos braços da cachoeira de Paulo Afonso, construída ainda no começo do século XX, por Delmiro Gouveia, um dos heróis de seu avô e de seu pai. Voltou‑se então para o lado de Alagoas e imaginou ver de novo a primeira fábrica brasileira de linhas e tecidos que ali fundara Delmiro, cuja vida, dizia‑se, tinha sido tirada pelos ingleses que antes dominavam o mercado de fios no Brasil. Paulo sabia que depois de assassinado o pioneiro brasileiro, suas fábricas e todas as suas máquinas foram destruídas e lançadas ao fundo do rio. Às vezes, andando com o avô pelas margens alagoanas, tinha mergulhado em busca de alguma peça de ferro, possível relíquia daquela história triste. 53


Rio de sonhos

Enquanto Iara continuava esperando o milagre de ver Vô Batista e Telegrama em algum lugar, Paulo, amparando‑a com seu braço, ainda continuou a sonhar por alguns minutos, com a Serra do Umbuzeiro e seus monumentos de pedra que ele agora mais imaginava do que via, ao longe… E com o Raso da Catarina, onde algumas vezes tinha acampado com o avô, por uma tarde e uma noite toda, para apreciarem o espetáculo das ararinhas‑azuis que chegavam em revoada para aconchegar‑se nos ocos dos paredões de pedra da Toca Velha e da Serra Branca. Aquele isolado Raso que servira de esconderijo para Lampião e seus cangaceiros e antes tinha sido palco de duras batalhas da Guerra de Canudos. Lembrando o que profetizava Antônio Conselheiro, que um dia “o sertão ia virar mar”, voltou subitamente ao presente e se deu conta de que estavam ali esperando que as águas da barragem inundassem o vale e cobrissem a cidade onde nascera e se criara. Não, não podia ser disso que o Conselheiro falava, pois o que aconteceria dali a alguns minutos ou horas estava trazendo tanto sofrimento para os mais pobres e não a justiça prometida pelo beato! Passou‑lhe ainda pela lembrança o quanto se impressionara com um romance de Jorge Amado, Seara vermelha, e como aquela história de sofrimento dos retirantes da seca não fora resolvida até aquele momento. Paulo então vislumbrou o futuro que desejava para si. Não, não queria ser doutor advogado, viver trancado em escritórios e fóruns. Queria uma profissão que lhe permitisse explorar e refazer a história daquela região na qual tinha suas raízes e, agora, seu grande amor. Havia de ser geógrafo, ou historiador, ou arqueólogo, agrônomo ou ambientalista, ou tudo isso junto… Teria de pensar e tomar informações para poder saber por onde 54


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começar esse novo caminho. O pai haveria de se aborrecer um pouco, mas tudo se arranjaria com bons argumentos. Seu coração se expandia no peito, pensando na vida futura, para sempre de mãos dadas com Iara, sua Mãe‑d’água encantada.

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Ficaram assim um bom tempo, abraçados, sem coragem de dizer nada, esperando o sol despontar por trás de outra serra. Então, no exato momento em que os primeiros raios iluminaram diretamente o vale, o milagre aconteceu. Foi Iara quem ouviu primeiro, vindo de longe, do lado contrário ao rio, o aboio tão conhecido e querido que anunciava sempre a chegada do vaqueiro Batista. A menina levantou‑se de um salto, puxou Paulo pela mão e correram ambos para o lado de onde vinha o canto. Então Paulo também ouviu. Lá de cima, claramente, puderam ver quem cantava: um vaqueiro montado, todo encourado, conduzindo terra adentro várias dezenas de reses. Era ele, só podia ser, só ele cantava aquela toada. Telegrama tinha conseguido, tinha encontrado Vô Batista e o vaqueiro tinha encontrado sua boiada! Um dia ele voltaria são e salvo. O sol nascente não podia rivalizar com o brilho de 56


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alegria, amor e promessa que Paulo viu nos olhos de Iara, quando ela, apaziguada, deu as costas ao vale e virou‑se inteiramente para ele. Então Paulo compreendeu que a lenda se realizava: uma parte do seu querido rio estava adormecendo para sempre sob um lago e ele tinha sido trazido para o reino da sua Mãe‑d’água, ficaria encantado também, para sempre.

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Maria Valéria Rezende: vida e (esta) obra

Maria Valéria Rezende nasceu em Santos, em 1942, e publicou seu primeiro livro de ficção aos 59 anos. Entre um nascimento e outro, foi – e ainda é – múltipla. Educadora, freira da Congregação de Nossa Senhora, Cônegas de Santo Agostinho –, andarilha, passou anos vivendo à risca os ideais missionários que julgava parte essencial de um projeto de vida. Esses fatos colocados assim, em linha reta, esboçam um retrato da mulher que assina esta obra, mas pouco deixam entrever da autora que Maria Valéria se tornou. À época em que o destino das mulheres consistia no casamento, ainda praticamente obrigatório, e na maternidade, consequência direta desse, Maria Valéria 58


Maria Valéria Rezende: vida e (esta) obra

escolheu uma outra vida, que lhe abriu um mar de possibilidades. Viajou o mundo, conheceu povos e culturas muito diferentes, sem nunca perder no horizonte o que significava fincar os pés no chão e pertencer a um lugar. Desde os seus 30 anos, escolheu o Nordeste, para viver, começando pelo sertão do São Francisco e finalmente João Pessoa como casa. É de lá que escreve Rio de sonhos. Foi também de lá que escreveu suas outras obras, conhecidas e premiadas, como Quarenta dias e Outros cantos. Ainda que a distância entre sua data de nascimento civil e sua primeira publicação literária seja maior do que aquela que foi popularizada pela contemporaneidade, a autora é hoje considerada um dos nomes de maior destaque do cenário literário brasileiro. Essa projeção, traduzida hoje em prêmios como o Casa de las Américas e o Oceanos – para citar apenas dois dos mais importantes com que já foi laureada, além do Jabuti –, também alimenta uma série de questionamentos sobre o que a levou a escrever e por que hoje, apesar de escritora célebre, Maria Valéria segue integrante ativa de sua congregação religiosa. Leitora voraz, além de ser a mais velha de cinco irmãos, a autora escolheu o que parecia o meio‑termo entre fé e pragmatismo. Como sempre havia feito parte da Juventude Estudantil Católica, optar por uma vida religiosa e missionária parecia um equilíbrio acertado. Por ter integrado ainda jovem a liderança desse movimento estudantil, acabou tendo a oportunidade de trabalhar por todo o Brasil enquanto se formava em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC‑SP), em Língua e Literatura Francesa pela Universidade de Nancy através da Aliança Francesa 59


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e, por fim, obtendo um mestrado em Sociologia na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Mais do que tudo, porém, Maria Valéria sempre esteve ao lado do povo, misturada às massas anônimas, trabalhando com o que acreditava. Recapitular os eventos cronológicos que perfazem a biografia de um autor é sempre um exercício de atenção e seleção. Atenta‑se para aquilo que, olhando de fora, parece relevante e, por fim, faz‑se um recorte que tem, sobretudo, o objetivo de apresentar um perfil acabado para um leitor. É comum que personagem e pessoa real se confundam na medida em que não é possível acessar mais a tecitura da personalidade real. Na falta do autor, ficam os fatos, que para sempre serão apenas uma pálida ideia, um relato despido de complexidade e espessura. A dificuldade se mostra ainda maior no caso de autores que ainda caminham entre nós, talvez muito mais sensível no caso de uma figura como Maria Valéria Rezende. A idade e a postura parecem colaborar para que os fatos de sua biografia sejam lidos como escolhas que resultaram na literatura, ou ainda, na escrita literária. Da infância vivida nos barrancos à beira do rio São Francisco – que ganha vida nas páginas desta obra – à solidão de uma idosa que vaga pelas ruas de Porto Alegre, sua prosa parece trazer à tona parte da complexidade da vida vivida pela própria autora. Enquanto freira que diariamente está lidando com os marginalizados, com os esquecidos pelo Estado e pelo sistema, a autora é, o tempo todo, atravessada por essas narrativas. Seus personagens são sujeitos periféricos, anônimos, que oscilam entre espaços urbanizados e abandonados, esquecidos. 60


Maria Valéria Rezende: vida e (esta) obra

O movimento de vai e vem entre autor e obra não é uma maneira de empregar um na intenção de explicar o outro. A obra de Maria Valéria Rezende não corresponde à sua vida, assim como a vida da autora não foi transposta para a ficção. Afirmar, no entanto, que há pontos em que ambas se encontram não é o mesmo que procurar semelhanças que expliquem eventos e escolhas. O tempo da vida, inexorável, não corresponde ao tempo da ficção. A mulher que hoje escreve – e que escolhe imortalizar aquilo que afeta quem vive à margem do rio São Francisco ou a angústia de uma idosa perdida nas ruas de umas das principais capitais do Brasil – é evidentemente filha de seu tempo, testemunha interna da história de um país e um continente. Ademais, é preciso dizer que Maria Valéria é uma das fundadoras da iniciativa Mulherio das Letras, cuja articulação hoje chega a envolver em torno de 7.000 autoras. Através dela, ocorreu o estreitamento de laços entre as profissionais da área, que também tiveram amplificadas suas demandas por igualdade no mercado editorial. A ideia é que o coletivo exista enquanto for necessário, ou seja, enquanto as mulheres não desfrutarem de condições iguais a seus colegas homens do meio. Para além de escritora, Maria Valéria Rezende é também tradutora, ofício esse que exerceu durante muitos anos, e possui diversos livros infantojuvenis publicados. Na verdade, quando se tornou conhecida, celebrada e premiada como ficcionista madura, a autora já desfrutava de uma carreira bem‑sucedida como escritora de narrativas infantojuvenis. É claro, sabendo o espaço dedicado a esse tipo específico de 61


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produção, não é de se estranhar que Maria Valéria permanecesse uma desconhecida do grande público. Afinal, a quem interessam os livros que carregam essa marca particular, senão aos professores, pedagogos, bibliotecários e, principalmente, aos próprios jovens? Apesar de sabermos que se trata de um público numeroso, essa faixa etária é, contudo, uma audiência efêmera. O tempo passa depressa e talvez carregue de maneira semelhante consigo as leituras e preferências que tivemos na escola. Chegamos, assim, à encruzilhada que representa Rio de sonhos. Produção que, apesar de poder ser lida como claramente destinada a um público mais jovem, carrega todos os elementos de uma narrativa madura. Apesar do breve período de tempo de que dá conta – todos os acontecimentos da narrativa acontecem em um espaço de tempo de 24 horas –, ela nos aproxima de um universo tensionado entre modernidade e tradição, entre a vida adulta e a infância. Paulo, protagonista da obra, é um rapaz que, muito embora venha do interior e lá se sinta de fato em casa, vive o dilema de muitos adolescentes nascidos fora do eixo das grandes capitais à beira‑mar do Brasil: precisa sair da casa dos pais para estudar e mora já há três anos no Recife. É, no entanto, na casa dos pais, no espaço familiar representado pela pequena cidade à beira do rio São Francisco, que o rapaz se sente à vontade. Movido pela curiosidade e talvez já saudoso da vida que iria abandonar de vez, Paulo decide passar uma noite à luz da lua, deitado à margem do rio São Francisco. É nesse ponto que narração, mito e as questões urgentes da realidade brasileira se encontram: em um misto de sonho e realidade, Paulo 62


Maria Valéria Rezende: vida e (esta) obra

vê se descortinarem à frente de seus olhos tanto as lendas e tradições dos povos ancestrais quanto o poder inevitável – e nefasto – da marcha do progresso. Ao longo de uma jornada breve e intensa, o jovem revê seus planos e se dá conta de que, muitas vezes, o que é divulgado como benéfico para a população urbana vem a um custo muito alto para às populações do interior do país. Parte essencial da jornada de descobrimento de Paulo passa pelo momento em que ele salva a jovem Iara do afogamento. Como o próprio nome sugere, Iara aparece como um misto de sonho e realidade, um fragmento vivo de uma lenda tipicamente nacional. Ela também é salva numa noite de lua cheia, mas o que chama atenção aqui é que essa é uma narrativa pertencente à cultura tupi‑guarani, considerada um mosaico cultural que abrange alguns dos principais povos originários da história do continente, englobando populações que viveram desde o que hoje se reconhece como território brasileiro até Argentina, Paraguai e Uruguai. A Iara de Paulo, que emerge em desespero das águas do São Francisco, acaba, no fundo, salvando o próprio rapaz de um afogamento pior e muito mais real: é ela que vai acompanhá‑lo, pegar em sua mão, guiá‑lo através de um território ameaçado e mostrar a necessidade de preservação, não apenas das riquezas naturais, como seria óbvio, e sim de uma série de conhecimentos quase invisíveis para as populações litorâneas do país. O São Francisco é um dos maiores rios do território brasileiro. Essa informação, no entanto, sequer se aproxima da real importância, não apenas para o Brasil, como para toda a América Latina. O rio atravessa cinco 63


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estados e mais de 500 municípios. É responsável pelo fornecimento de água e também de luz elétrica, já que existem em seu curso cinco usinas hidroelétricas. Novamente, empilhados, esses fatos pouco traduzem a verdadeira importância do “Velho Chico”. Um rio, assim como um povo, é um universo. Embora as margens possam parecer limites para quem olha de fora, é ali que a vida aflora, que as populações florescem e que os animais se alimentam. Dizer que o rio São Francisco é só um dos mais importantes do Brasil não passa a real ideia de sua grandeza. Historicamente, foi acompanhando sua penetração no território nacional que muitos povos tradicionais garantiram durante anos sua existência e sua subsistência. Os primeiros colonizadores que entraram em contato com o rio no território nacional o fizeram ainda na primeira fase da colonização, em torno de 1530, e desde então o protagonismo do rio apenas cresceu e ganhou projeção inegável, principalmente em um cenário em que o crescimento econômico parece guiar todas as ações governamentais. Ainda hoje o rio é considerado como um símbolo da integração nacional, é graças à irrigação propiciada por suas águas que são possíveis alguns cultivos, incluindo uma significativa produção de frutas, para além de ser responsável pela subsistência de inúmeras populações que vivem às suas margens. O que vem a ser a jornada de Paulo e Iara, a princípio uma busca pelo avô da menina, desaparecido após ter sucessivamente perdido pessoas que amava, é também um mergulho em um Brasil dividido entre a tradição e o crescimento econômico, e principalmente, a que custo vem esse progresso. Em uma passagem da 64


Maria Valéria Rezende: vida e (esta) obra

obra, os jovens encontram uma caverna com pinturas rupestres, depois são recebidos em uma aldeia, e a narrativa caminha para o único desfecho possível: aponta na direção das escolhas que fazem os jovens e na importância que elas de fato podem ter na sociedade. Há, também, uma cena importantíssima, na qual Paulo e Iara, ainda em busca do avô desaparecido da menina, vão à uma aldeia pankararu, onde ficam evidentes os laços reais da menina, quem é sua família e sua ascendência. É lá também que se desenrola um dos momentos mais sutis da narrativa, pelo olhar de Paulo, agora deslocado para a posição de estranho, quase estrangeiro, que observa a aldeia com curiosidade e atenção. Em um momento raro, é possível ver como o jovem se aproxima dos indígenas despido dos estereótipos corriqueiros que tanto se popularizaram. Aqui, o indígena é mostrado, inclusive através da figura da própria Iara, como sábio e educado, passando ao largo das figuras que se popularizaram na literatura brasileira ao longo dos séculos. Os pankararu, etnia que historicamente se localiza na região do São Francisco desde a chegada do colonizador, tiveram seu direito à terra reconhecido apenas em 1987, por mais que fosse possível remontar sua origem e seu deslocamento na área desde esse período tão remoto. A narrativa, que se passa no ano de 1988, mostra os indígenas já em seu próprio território. É ainda na aldeia que Paulo vai testemunhar o que está acontecendo e ter contato com a dimensão real da construção de uma barragem. Até então, como habitante de Recife, ainda que sua origem fosse interiorana, o que ele vinha ouvindo dizia respeito apenas ao progresso, à capacidade de, 65


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teoricamente, aprimorar a vida material da população. Não há, no entanto, nem nunca houve um monumento do progresso que não deixasse atrás de si um rastro de barbárie, como já afirmava o filósofo alemão Walter Benjamin. Elementos indissociáveis, faces da mesma moeda, civilização e barbárie convivem em cada uma das decisões que são tomadas em prol do progresso. A epifania que o jovem Paulo terá em relação ao que se desenrola durante esse interlúdio em que, ao lado de Iara, procuram por seu avô, é a revelação de como, na verdade, nossas vidas é que são indissociáveis da natureza, e que sua alteração ou destruição possui relação direta com a nossa qualidade de vida. Rio de sonhos foi inspirado pela construção da barragem Luiz Gonzaga e pela emergência de uma reavaliação da relação da sociedade com a natureza. Todos os lugares por onde os jovens passam, ao longo das 24 horas narradas pela obra são reais, e ainda mais do que isso, são os espaços que ainda hoje correm perigo. Os habitantes desses lugares, personificados muitas vezes por metonímias como o camponês, o interiorano, o sertanejo e mesmo o indígena se relacionam com a terra de maneira muito distinta, sem a noção de posse privada de território que parece ser inerente às comunidades urbanizadas. Para esses grupos, a terra não é apenas um espaço, ela é a própria vida, parte fulcral da realidade, e qualquer alteração a ela imposta é sentida na carne. A escolha final de Paulo em trilhar um caminho que passa pela defesa da terra não é apenas um artifício narrativo, é uma necessidade pois, sem ela, a vida desses povos e comunidades não existe. É interessante acrescentar que não houve a tempo, pelo menos até onde se tem conhecimento, ninguém 66


Maria Valéria Rezende: vida e (esta) obra

que tenha conseguido salvar o território do alagamento e preservar a região como Paulo queria, ao final da narrativa. Petrolândia foi, de fato, inundada para a construção da hidroelétrica e hoje é possível encontrar inúmeras imagens na internet que mostram uma famosa catedral submersa no lago artificial da usina. Isso não quer dizer, no entanto, que a motivação de Paulo, seu desejo e sua jornada talvez possam – e devam – servir de inspiração para aqueles que venham a ler Rio de sonhos. Os dilemas do contemporâneo podem não ter a objetividade, ou quem sabe a concretude do que é vivido por Paulo, mas isso não quer dizer que, ainda hoje, em nome do progresso instâncias governamentais venham fazendo escolhas e tomando decisões que podem ter impactos imensos na vida de inúmeros grupos e comunidades. Paulo pode ser jovem, mas seu olhar sobre o que é necessário não tem idade. Ainda assim, é importante mencionar também que Rio de sonhos não é apenas uma história sobre jovens, para jovens. Seus personagens são representados como maduros e seus dilemas e questões são mostrados como sendo importantes e indispensáveis. A adolescência, que com frequência é vista como uma mera via de passagem para a idade adulta, aqui ganha espessura e relevância, pois a visão que esses adolescentes vão ter de um território ameaçado permite também que se acesse a questão de maior relevância dos últimos tempos, não apenas no Brasil, como mundo afora: se nossa existência depende da natureza, se com ela somos de fato um, por que seguimos tomando decisões que a colocam em risco e prejudicam nossa própria vida? Delicado e relevante, Rio de sonhos é uma obra juvenil escrita por uma das figuras mais interessantes da literatura 67


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brasileira contemporânea, que, sem cair no ambientalismo despido de preocupação estética, consegue equilibrar tradição, ficção e preservação em forma de rito de passagem da adolescência para a idade adulta.

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Velhos, homens, mulheres, jovens, crianças. Brancos, negros, pardos, índios. Carregavam pequenas malas, trouxas, sacolas, saquinhos. Carregavam bebês. Alguns empurravam carrinhos. Outros apoiavam nas bengalas. Um grupo de idosas desdentadas com velas acesas na mão. … uma senhora cheia de trouxas equilibrando uma galinha na cabeça, um senhor de cara retorcida como um tronco de árvore puxando uma vaquinha magra pela corda, um homem alto envolvido em uma capa roxa e outro ao lado em uma capa preta, um grupo de meninas e meninos com estilingues na mão observando as árvores à procura de passarinhos, uma senhora com um cesta de filhotes de algum bicho, uma mulher com uma lamparina, dois porquinhos na frente de um casal de camponeses com um bando de filhos atrás, uma senhora levando uma cesta com a foto colorida de Santa Maria Gorettti rodeada de flores silvestres, um homem com avental de açougueiro, manchas amarronzadas de sangue lavado, um casal de mendigos, roupas molambentas. Eram tantos. Homens e mulheres, a grande maioria na flor da idade, embora curvados, como se vencidos. – Para onde vocês vão? – Maria perguntou. (Maria José Silveira, Maria Altamira)





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