Triste fim de policarpo quaresma em quadrinhos

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LIMA BARRETO

TRISTE FIM

DE POLICARPO QUARESMA Adaptação de Ronaldo Antonelli Ilustrações de Francisco Vilachã

São Paulo 1ª edição - 2021


Copyright © 2021 Joaninha Edições Todos os direitos reservados Responsabilidade editorial: Ana Mortara Coordenação editorial: Estúdio Caraminhoca Revisão: Equipe Casa de Letras

Catalogação na Publicação Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos - CRB-8/9166 A634 Antonelli, Ronaldo Triste Fim de Policarpo Quaresma / Lima Barreto (versão original); Ronaldo Antonelli (adaptação); Francisco Vilachã (ilustração) – São Paulo: Joaninha, 2021. ISBN: 978-65-990492-5-5 (Livro do Estudante) ISBN: 978-65-990492-7-9 (Manual do Professor) 1. História em quadrinhos. 2. Clássico da literatura brasileira. I. Barreto, Lima (versão original). II. Antonelli, Ronaldo (adaptação). III. Vilachã, Francisco (ilustração). IV. Título.

Índice para catálogo sistemático I. História em quadrinhos

São Paulo, 2021 - 1a- edição Todos os direitos reservados Joaninha Edições Ltda. Rua Fradique Coutinho, 1139 Vila Madalena - São Paulo - SP Tel. 011 2157-3687

CDD 741.5


LIMA BARRETO

TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

Adaptação de Ronaldo Antonelli Ilustrações de Francisco Vilachã

São Paulo 1ª edição - 2021


Havia mais de 20 anos que Policarpo Quaresma saía do arsenal de guerra onde era subsecretário, passava por alguma confeitaria e pela padaria francesa e descia do bonde em São Januário, às 4 e 15, sem erro de um minuto...

Olha o jantar, Alice! O major Quaresma já passou...

Vivia em casa própria e, além do ordenado, tinha outras rendas, mas não recebia ninguém. Não tinha amigo na redondeza, nem inimigos...

Para quê aquelas estantes cheias de livros se não é formado? Pedantismo!

É um homem cortês, mas muito esquisito!

Ultimamente, porém, seus hábitos mudaram um pouco. Antes só vinham o compadre e a afilhada, mas agora recebe esse tipo três vezes por semana!

Um violão numa casa respeitável!

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Vamos esperar o Ricardo, que hoje janta conosco, mana!

Lavou-se, trocou de roupa e foi esperar na biblioteca.

Policarpo, você precisa tomar juízo! Um homem de sua idade e posição, andando com um seresteiro... Um quase capadócio!

É preconceito supor que todo homem que toca violão é um desclassificado, Adelaide! A modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional, nós é que temos abandonado o gênero! Mas em Lisboa, no século passado... Isso foi em outro tempo; agora... Bem, continue lá com suas manias... Tardei, major?

“Em nenhuma outra região se mostra o céu mais sereno, nem madruga mais bela aurora; o sol em nenhum outro hemisfério tem os raios dourados...”

Não, chegaste à hora. Ricardo Coração dos Outros, célebre por sua habilidade em cantar modinhas e tocar violão na alta sociedade suburbana - uma sociedade que só é alta nos subúrbios, composta por funcionários públicos, pequenos comerciantes, médicos e tenentes de diferentes malícias - , mas com fama que já chegava a São Cristovão e aos jornais, esperando receber em breve convites de festas em Botafogo.

Em sua paixão patriótica, Quaresma meditara qual seria a expressão poético-musical da alma nacional. Consultou historiadores, cronistas e filósofos e concluiu pela modinha acompanhada de violão. E, assim, tratou de aprender o instrumento e os segredos da modinha. Já sabe dar o ré sustenido, major?

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Vamos jantar que a sopa está esfriando na mesa!

O senhor Ricardo há de nos desculpar a pobreza do jantar. Quis lhe fazer um frango com petit-pois, mas Policarpo não deixou: disse que petit-pois é estrangeiro e que eu substituísse por guando. Onde já se viu frango com guando?


Policarpo é patriota. Desde moço o amor pela pátria tomou-se por inteiro. Logo aos 18 anos quis fazer-se militar, mas a junta de saúde julgou-o incapaz. Impossibilitado de evoluir sob os dourados do exército, procurou a administração e dos seus ramos escolheu o militar. Durante os lazeres burocráticos, estudou, mas estudou a pátria. Suas riquezas naturais, sua geografia, sua literatura e sua política. Esse forte sentimento guiou sua vida até o fim.

Lá está o “Ubirajara”! Há um ano que estuda o tupi-guarani.

Senhor Azevedo, não seja leviano. Não queira levar ao ridículo aqueles que trabalham em silêncio para a grandeza da pátria!

Pela frente, os colegas o tratavam com respeito...

Ah! Meu Deus! Quando poderei ir à Europa!

... mas, pelas costas, vingavam-se, cobrindo-o de troças.

Uma terra de febre e mosquitos, isso sim! Arre, esse Quaresma, que cacete! Não tem outra conversa!

Ingrato! Tens uma terra tão bela, tão rica, e queres visitar a dos outros! Eu, se algum dia puder, hei de percorrer a minha do começo ao fim! 6

Depois de jantar e ver o jardim, Quaresma e Ricardo entram na sala para a aula, que dura uns 50 minutos. Olhe, major, o violão é um instrumento de paixão... É preciso encostá-lo, mas encostá-lo com maciez e amor, como se fosse a amada, a noiva, para que diga o que sentimos...


Desculpe, Ricardo, estou cansado! Cante alguma coisa...

Não tenho nenhuma composição nova... Cante uma outra, então!

Por Deus, dona Adelaide, só canto as minhas. O Bilac - conhecem? - quis fazer-me uma modinha, não aceitei. “Você entende de poesia, seu Bilac, mas não de violão!”. Vou cantar uma velha mesmo, Promessa, conhecem? Anda por aí como As pombas, do Raimundo.

“Prometo pelo santíssimo sacramento que serei tua paixão...” Vão vendo, quanta imagem, quanta imagem!

É o professor de violão do major Quaresma! Com licença, dona Adelaide!

Entra, Ismênia, e senta-te!

“... teu amor!!!”

Então, Ismênia, quando te casas? Não sei, Cavalcanti se forma para o ano... Papai está convidando todo mundo pra ir cantar com seu Ricardo lá em casa! Sabem, papai é do Norte, adora modinha!

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Na casa do general Albernaz todo aniversário era motivo pra festas: havia umas 30 por ano. Sua maior preocupação era casar as cinco filhas e arrumar um pistolão para o filho entrar no colégio militar.

Mês que vem é aniversário de minha praça, vou organizar uma chegança à moda do Norte. O senhor e seu Ricardo estão convidados! Parabéns, general! Uma maneira patriótica de celebrar nossas tradições!

Em toda a sua carreira Albernaz não viu uma batalha, nem teve comando. Foi só ajudante de ordens, escriturário, almoxarife e então se reformou como general. Tudo que sabia da vida militar eram histórias da guerra do Paraguai.

O senhor esteve na batalha general? Adoeci e vim para o Brasil na véspera. Mas soube pelo camisão que a coisa esteve preta!

Pai, o Cavalcanti conhece um poeta popular que pode servir para a festa que o senhor e o major estão organizando!

Foi em Lomas Valentinas...

Na noite da festa... A indicação do noivo de Ismênia, futuro dentista de formatura emperrada, leva-os até um velho poeta popular.

O que foi major, a brincadeira o deixou sem ar?

É um prazer atendê-los, minha vida é dedicada à riqueza de nosso folclore. Acho que a história do tangolomango pode servir pra festa de vocês. arranjem umas dez crianças que eu ensaio!

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No fundo essas tradições são todas estrangeiras, nenhuma é originariamente nossa, nem o tangolomango! Temos de ir mesmo aos tupis!


Ao receber uma visita do compadre Vicente e da afilhada Olga...

Que é isso, Policarpo?

Mas, meu padrinho...

Mas o que é isso, compadre?

Eis aí, vocês não têm noção das coisas da nossa terra! Queriam que eu apertasse a mão, isso não é nosso! Nosso cumprimento é chorar quando encontramos os amigos, como faziam os tupinambás!

Decerto, padrinho, parece até agouro...

Uma amizade antiga une o empreiteiro italiano ao major Quaresma, passando por cima das esquisitices do compadre.

É possível que isso seja bem brasileiro, compadre, ma é troppo triste, hein!

Quaresma socorrera o antigo quitandeiro, emprestando-lhe dinheiro num momento difícil. E, com seus bons conselhos, o impedira de cometer um desatino, matando um colega que quase o levara à ruína. Vicente Coleoni tornou-se empreiteiro, enriqueceu, casou e fez com que a filha fosse batizada pelo major. E havia entre Olga e Quaresma uma profunda afeição.

Então, padrinho, lê-se muito?

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Muito, minha filha, medito grandes obras. Uma reforma, a emancipação de um povo!


“... sabendo que, em nosso país, os autores e os escritores, com especialidade os gramáticos, não se entendem no tocante à correção gramatical...” Quá! Quá! Quá! “... vendo-se diariamente surgir azedas polêmicas entre os mais profundos estudiosos do nosso idioma...” Quá! Quá!

Naquele dia a leitura do expediente na Câmara dos Deputados teria sido recebida com a indiferença habitual, não fossem as gargalhadas dos jornalistas de plantão à leitura de certo requerimento...

Há! há! há! há! há! há! há!

“Policarpo Quaresma, cidadão brasileiro, funcionário público, certo de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil, Vem pedir que congresso nacional decrete o tupi-guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro...” (!)

O requerimento foi publicado em todos os jornais... “... A língua é a mais alta manifestação da inteligência de um povo, sua criação mais viva e original; e, portanto, a emancipação política do país requer como complemento e consequência a sua emancipação idiomática...”

... e assunto exclusivo de todas as palestras, inclusive na repartição de Quaresma!

Além de tudo, pretensioso!

língua origi“... o tupi-guarani, capaz de traica ún a nalíssima, é , de pôr-nos as lez duzir nossas be ssa natureza no m co ão aç rel em itamente a e adaptar-se perfe is e cerebrais, ca vo s nossos órgão vos que aqui po de por ser criação vivem...” da ain e m era viv

Ei, esse Quaresma é o nosso maluco, o “Ubirajara”!

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Esse Quaresma não é um funcionário do arsenal de guerra?

Tornou-se a caricatura do dia!

É o padrinho!


Filha, o que quer dizer isso? Non capisco!

O padrinho quer substituir o português pela língua tupi no Brasil, entende o senhor?

Sou um homem ignorante, mas reconheço o valor da cultura e da inteligência, por isso te fiz estudar e te acompanho toda noite ao teatro e à ópera, mesmo preferindo o sossego de casa. E sempre tive admiração pelo compadre, por suas leituras e sua sabedoria! Mas agora, per la madonna, acho que ele está ficando doido! O padrinho é um homem fora dos moldes, papai... Ousado, talvez, mas não doido!

A súbita notoriedade de Quaresma deixou a repartição furiosa. Nos meios burocráticos, não se suporta qualquer traição à mediocridade e ao anonimato papeleiro. Já se viu a presunção desse tolo, senhor diretor, dirigir-se ao congresso nacional!

A continuidade das troças o exasperava, e mais forte se enraizava nele sua ideia. Meditava a lembrança de cada pilhéria que engolia, examinava-a detidamente e comparava a situações semelhantes e, à medida que o fazia, sua convicção lhe mostrava a inanidade da crítica - e a ideia o absorvia cada vez mais.

Dê uma espiada no regulamento se não é caso de lhe aplicar uma censura, secretário!

Pst, aquele não é o homem da língua dos índios? Mas o cúmulo de sua exasperação veio quando entendeu que os colegas duvidavam de seus reais conhecimentos do idioma tupi. Homem, isso de saber é uma coisa, dizer é outra!

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O sujeito é um doido de pedra, só isso!


Ele, que há 30 anos estudava o Brasil e, em virtude desses estudos, chegara a estudar o rebarbativo alemão, não conhecer o tupi, a única língua verdadeiramente brasileira!

Admito que me chamem de louco, mas não que duvidem de meu patriotismo!

A indignação, a convicção patriótica e o amor ao idioma nativo se misturaram em sua febre, e ele nem percebeu que se pôs a redigir o relatório naquela língua.

Antes que percebesse o que tinha feito, chamaram-no para resolver um problema em outra sala e o ofício se juntou a outros, seguindo o curso normal da burocracia...

... passou pelo diretor que, como sempre, não reparou no que assinava...

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... e foi parar no ministério, onde causou perplexidade...


Quero saber duas coisas: que diabo de língua é essa e se é permitido oficiar em língua estrangeira! Consultem o doutor Rocha!

Deus do céu! Uma censura do ministro!

Três dias depois...

O doutor Rocha concluiu que é grego, pela quantidade de “y”. E como não há portaria dispondo sobre a língua usada nos ofícios, só sobre a ortografia, ele concluiu que deve ser irregular redigir em grego!

V. Ex.a mandou me chamar?

Então o senhor leva a divertir-se comigo? Quem escreveu isso?

Ei! Conheço essa letra! Isso é coisa do Quaresma!

Pois devolva ao arsenal com uma censura!

Fui eu. Ah! Então confessa!? Mas V. Ex.a não sabe...

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Como é que o senhor ousa me dizer isso!? Porventura tem o curso preparatório de Benjamin Constant? Estudou matemática, física, química, astronomia e moral? Como ousa dizer “V. Ex.a, não sabe” só porque leu uns romances e conhece um francesinho aí? Pois considere-se suspenso até segunda ordem!


O senhor parece que leva um pensamento forte hoje, major! É bom, pensar consola...

Na casa do general Albernaz, d. Maricota prepara a festa do esperado noivado da filha...

Estive no armazém das louças, comprei mais pratos, compoteiras e um centro de mesa. Afinal, a festa há de ser imponente...

Talvez, mas também nos faz diferentes, cava abismos entre os homens... Adeus, Ricardo!

Então, quando se casa, Ismênia?

Em março. Cavalcanti já se formou... Eu, se fosse você, comprava tudo no Roval, na rua da Constituição!

Então, Quinota, quedê o Genelício?

E eu ando atrás dele, por acaso? Dizem que o próximo casamento a ser marcado é o seu!

Finalmente vamos descontar essa letra... E você aí, mosca-morta, nem parece que vai se casar!

Ai! Mamãe! Que quer que eu faça? Na noite de festa o general Albernaz entretém seus convidados com histórias da batalha de Curupaiti...

O senhor esteve lá, não foi, general?

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Fiquei doente e voltei para o Brasil na véspera, mas tive amigos lá, o Camisão...


Eu sei bem os tropeços que tive!

Para aquela gente toda, Cavalcanti não era mais um simples homem, era homem e mais alguma coisa sagrada e de essência superior...

Aí vem seu genro formado!

Tenho um sobrinho formado em Engenharia! Está no Maranhão!

Sei, é funcionário do ministério e não perde uma oportunidade de puxar a cadeira, abrir a porta e acender o charuto dos chefes!

FInalmente conc luiu, hein, doutor!

Vejam quem está aí, o Genelício! Onde estiveste, rapaz?

Estive tratando de meus negócios... Está quase tudo garantido, tenho o ministro no papo! Cada ministro novo, ele dá um jeito de ser o orador e fazer a saudação em nome dos colegas! O discurso é sempre o mesmo, só muda o nome do indicado... Ah! Faz a mesma coisa com um soneto de parabéns nas festas de aniversário! Começa com: “Salve! Três vezes salve!”.

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Odontologia!... É bonito ser formado! Se tivesse ouvido meu pai, hoje quebrando a cabeça no dever e haver!

Este o general espera casar com a outra filha, a Quinota!

Sabe seu amigo Quaresma, general? Está no hospício! Ficou doido!


O major? Coitado! Quem te contou?

Aquele homem do violão! Encontrei com ele vindo da casa de saúde!

Não foi só isso! Também verteu em tupi um decreto-lei do ministro da guerra! Por um triz não saiu no diário oficial...

Logo vi que era coisa de doido aquele projeto do tupi como língua nacional!

Ah! É? E o cargo dele no arsenal, já que você está sempre informado de tudo... Vai ser exonerado?

Iam demiti-lo mas, considerando a doença, concordaram em aposentá-lo. Parece que o Quaresma já tem quase todo o tempo necessário... O seresteiro me disse que um amigo italiano do major está cuidando de tudo, um empreiteiro rico com relações no ministério.

Não se podia esperar outra coisa! Aqueles livros, aquela mania de leitura...

“O cuore miiiiio!!!”

No Paraguai houve muitos casos de loucura de guerra, como a de um conhecido que não aguentou o que viu na batalha de Humaitá! Realmente aqui foi além da conta!

Devia ser até proibido a quem não tem um título acadêmico ter livros! Evitavam-se assim essas desgraças...

O senhor tomou parte?

Por pouco, adoeci antes, mas esteve lá meu amigo Camisão...

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Aos domingos, Vicente e Olga vão agora quase sempre visitar o compadre e padrinho ora internado...

Desde quando esse doutor Armando Borges me procurou, percebi que estava botando gli occhi em cima da Olga! Não deve ter um tostão furado, mas enfim é doutor... Dinheiro tenho eu. A Olga precisa de um homem fino, com estudo! Se fosse na Europa, eu procurava pra ela um barão ou visconde; aqui um título de doutor quebra o galho...

O hospício fica na praia das Saudades, na entrada da baía...

De bonde chegava a maioria dos visitantes do manicômio. Como em todas as portas de nossos infernos sociais, havia gente de várias condições, nascimentos e fortunas. Não é só a morte que nivela; a loucura, o crime e a moléstia passam também sua rasoura sobre as distinções que inventamos...

Não vai ter jeito, já recusei três doutores que papai me arrumou em menos de um ano! Esse Borges parece que não tem um pensamento que não seja em sua carreira e seu prestígio, mas todos são a mesma coisa... Queria alguém, sei lá! Heroico, com ideias elevadas, que não cuidasse só de sua pessoa...

Olga pensava como nossa vida é variada e diversa, como é mais rica de aspectos tristes que de alegres, e como na variedade da vida a tristeza pode variar mais que a alegria e como que dá o próprio movimento da vida... Não reconhece a gente, Inácio? Sou Átila, rei dos hunos! Matei muita gente!

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Seu paciente já está vindo.


Então vieram sempre... Estava à espera!

Dona Adelaide manda lembranças, não pôde vir porque...

Eu sei, coitada! A mana não suporta me ver aqui dentro... Trouxe os livros que o senhor pediu e os jornais da semana, padrinho!

E a grande novidade que viemos trazer-te: nossa pequena vai se casar, compadre! Mas, Inácio...

Sou Átila, rei dos hunos,

já disse! E matei

muita gente!

Quem é teu noivo? Gostas dele?

O senhor Armando Borges, um doutorando...

Ela demora para responder a segunda pergunta...

Gosto.

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Átilaaa!!!


Então não acha que já está bom para sair daqui, major?

Melhor esperar mais um pouco, deixar assente bem as ideias... E, enquanto isso, abusar da bondade de vocês! Quem tem inimigos como eu, precisa ter amigos, não é?

O senhor Ricardo também tem sido um grande amigo, padrinho, na romaria da papelada para liquidar sua aposentadoria.

Por causa das modinhas, ele é conhecido em todo lugar, até nas repartições! Hoje não veio porque foi cantar num batizado, mas domingo que vem ele não falta...

Sempre bom, o compadre Coleoni se aproxima de uma mulher que chora na fila do bonde, à saída...

O que tem, minha velha?

Ai, meu sinhô! O meu filho... É pior que se tivesse morrido! Não conhece mais ninguém, não responde as perguntas, não olha pra gente! É coisa feita, sinhazinha!

Papai, fico feliz por tudo que o senhor faz pelo padrinho...

Filha, ao teu padrinho eu devo muito mais que o dinheiro emprestado com que comecei minha fortuna, o que não é pouco...

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Está vendo como o padrinho nunca foi doido, papai?

Se não fosse pelo conselho do major, eu teria matado aquele disgraziato... Estaria preso até hoje, não teria me casado e nem tido você, que é o que eu mais amo in questa vita!

Em casa do major, d. Adelaide e Ricardo Coração dos Outros aguardam notícias da visita. O violeiro já cumpriu sua obrigação no batizado. Imagine que conheci lá na festa, dona Adelaide, um autor argentino da maior importância, o senhor Paysandón, que me pediu exemplares escritos de minhas canções. Das letras tenho cópias, mas música não consigo escrever assim de uma hora para outra, sem ajuda...

Ei-los que voltam da visita a Policarpo!

Cá estamos, dona Adelaide! Precisa ver como o padrinho está bem! Manda-lhe lembranças.

Pra mal ainda maior dos pecados, dona Adelaide, apareceu-me agora um preto violeiro que está ganhando fama pelo subúrbio, em alguns lugares já citam o nome dele ao lado do meu, imagine só! não tenho nada contra pretos, minha senhora, mas se o violão já é um instrumento malvisto como coisa de capadócios, o que dizer então se um crioulo ganha fama como violonista!

Sente-se bem e até engordou! Mas prefere ficar mais um pouco pra se recuperar bem! Também lhe demos conta de teus esforços com a aposentadoria dele, Ricardo! Ficou contente e manda agradecer-te.

Meu pobre irmão!

Domingo que vem lá não falto!

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