1ª edição Narramundo | 2011 Francisco Ludermir Ferreira | Maria Socorro Liberal Peixoto | Rafaela de Melo Vasconcellos
Realização Rede Coque Vive Entrevistas | Maria Liberal, Rafaela Vasconcellos Textos e Edição | Maria Liberal, Rafaela Vasconcellos Fotografia | Chico Ludermir, Sandokan Xavier Ilustrações | Anaíra Mahin Produção editorial | Chico Ludermir, Maria Liberal, Rafaela Vasconcellos Revisão | Lara Holanda Colaboração | Anaíra Mahin (entrevista), Jonathan de Lima (foto), Katarina Scervino (foto) Transcrições | Alana Lima, Ivanilson Martins, Luiza Ramos, Maria Liberal, Rafaela Vasconcellos Projeto gráfico e editoração | Farache Comunicação Rede Coque Vive Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - Pró-Reitoria de Extensão (Proext) Narramundo Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis (Neimfa) Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (Mabi) Apoio Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) - UFPE Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) - UFPE Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) - UFPE Farache Comunicação Promoção Programa realizado com o apoio do Proext 2009 - MEC/SESu
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Ferreira, Francisco Ludermir, 1989Senhoras do Coque / Francisco Ludermir Ferreira, Maria Socorro Liberal Peixoto, Rafaela de Melo Vasconcellos ; ilustrações: Anaíra Mahin ; fotografias: Chico Ludermir, Sandokan Xavier. – Recife: Narramundo, 2011. 100p. : il. 1. COQUE – RECIFE (PE) – VIDA E COSTUMES SOCIAIS. 2. COQUE – RECIFE (PE) – HISTÓRIA. 3. MULHERES – COQUE – RECIFE (PE) – VIDA E COSTUMES SOCIAIS. 4. MULHERES – COQUE – RECIFE (PE) – BIOGRAFIA. 5. MULHERES – COQUE – RECIFE (PE) – NARRATIVAS PESSOAIS. 6. NÚCLEO EDUCACIONAL IRMÃOS MENORES DE FRANCISCO DE ASSIS – RECIFE(PE). I. Peixoto, Maria Socorro Liberal, 1984-. II. Vasconcellos, Rafaela de Melo, 1985-. III. Mahin, Anaíra. IV. Xavier, Sandokan, 1989-. V. Título.
PeR – BPE 11-0281
CDU 39(813.4) CDD 390
Dedicamos este livro a todas as senhoras que fazem parte do Neimfa. Esperamos que se sintam representadas, acarinhadas e reconhecidas por essas cinco histórias que, por ora, escolhemos. Esperamos, o quanto antes, nos aproximarmos mais e mais de cada uma de vocês, ouvindo e aprendendo tanto sobre a vida, quanto sabemos, que vocês têm a nos ensinar. Dedicamos também ao Neimfa, que completa 25 anos de história em 2011. Presenteamos a casa com sua própria história, que está marcada na pele dessas mulheres. Cada traço em seus rostos são marcas do tempo, desse tempo que está totalmente envolvido com essa associação que elas escolheram pra fazer parte de suas vidas. Dedicamos à vida, à história e ao amor presentes bem ali, no Coque.
Sumário
Do encontro: aprendendo a apurar nossos sentidos ................................................................. 07
Dona Paulina: Madrinha Paulina ................................................................................................... 10
Dona Luiza: Cura, cuidado e provisão ........................................................................................... 30
Dona Valda: Todo o amor de Valda ................................................................................................ 48
Dona Zezé: As duas lagoas vivas de Zezé ..................................................................................... 66
Dona Geralda: O que se esconde por detrás da timidez ........................................................... 84
Do encontro: aprendendo a apurar nossos sentidos Zezé, Paulina, Luiza, Valda e Geralda, cinco senhoras. Todas têm sua história traçada num lugar no coração do Recife: a comunidade do Coque. Elas fazem parte de uma associação muito singular que existe há 25 anos ali, encravada nas terras de barro dessa comunidade: o Núcleo Educacional Irmãos Menores Francisco de Assis (Neimfa). Uma casa colorida, meio templo, meio escola, o Neimfa é formado por pessoas que desejam compartilhar sonhos, realizar atividades coletivas, solidárias, que beneficiem a comunidade. Logo ao se aproximar, você percebe que a instituição tem uma base forte de mulheres. Há um grupo de, em média, uma centena de ‘mães’, senhoras que se encontram, desde 1984, todos os domingos, para discutir textos religiosos, rezar, cantar. Amigas, que dividem dores, alegrias e fé. Nos aproximamos de três mulheres desse grupo (Zezé, Paulina e Geralda) e de mais outras duas senhoras (Valda e Luíza) que nos ajudaram a entrar em contato com a história da associação, mas também da história do Coque, do Recife. Luiza, inclusive, não é moradora da comunidade, mas fizemos questão que ela fizesse parte deste livro porque o pertencimento de que estamos tratando é de outra ordem, está ligado à presença, ao vinculo, ao afeto que nos liga ao lugar e às pessoas. Nossos encontros com essas senhoras foram momentos muito bonitos, de carinho, conselhos, ensinamentos. São mulheres que trazem em seus sorrisos uma felicidade fundada na simplicidade. Nas marcas do tempo em seus rostos, estão escritas histórias de sabedoria. São “pessoas simples que aprenderam a lidar com o sofrimento”, como disse Zezé. Ao ouvir essas mulheres, percebemos que não há ninguém melhor para contar nossa história do que nós mesmos. Assim, nós aprendemos a estar atentos a ouvir justamente as histórias comuns, aquelas que não são fato de jornal, sobre as quais comumente não pousamos nosso olhar, nossos ouvidos, nossos sentidos. O primeiro exercício de escuta foi feito numa disciplina da Universidade Federal de Pernambuco, no curso de jornalismo, a cargo da professora Yvana Fechine, do Departamento de Comunicação Social, sob monitoria de João Vale Neto. Ouvimos 24 mulheres e, depois, retribuímos o presente que foi ter escutado as histórias delas, recontando-lhes em forma de narrativas. Entregamos, a cada uma, uma caixinha de madeira com suas histórias recontadas (escritas e em áudio) e com fotos do nosso primeiro encontro. Narramos. Com o desejo de deixar essas histórias virem mais ainda à tona, agora revisitamos as senhoras, cinco delas. Mergulhamos fundo nas suas memórias seguindo e compartilhando a tri-
lha de suas lembranças e acabamos construindo uma narrativa conjunta, tanto na hora de ouvir as mulheres, de perguntar-lhes, quanto no delicado exercício de passar suas histórias do oral para o escrito. Transcrevemos horas de entrevistas, selecionamos os fragmentos que mais nos tocaram e costuramos alguns trechos que sentíamos necessidade de relacionar no texto. Valorizando a própria forma de contar delas, fomos os vetores que espalharam essas lindas histórias. Tais como os pássaros e abelhas que apenas ajudam as flores. Fotografamos. Queríamos dar rosto a essas histórias e, assim, ainda mais vida e beleza. Enquanto escutávamos, também olhamos bem pra elas, tentando transformar fala em imagem. Os retratos revelam quem são essas mulheres de histórias tão bonitas. Eternizam seus atos de narrar, suas práticas do cotidiano e (por que não?) suas poses. Consonam com a forma digna que elas devem ser representadas. Já que as fotos atuais, diferentemente das palavras, não têm o poder de acessar memórias antigas, pedimos às senhoras que nos mostrassem algumas fotos do passado para comporem este livro. Temos certeza de que, daqui a uns bons anos, seremos nós que recorreremos a fotos de 2011 para rememorar. As fotos têm essa magia. Além dos fotógrafos Chico Ludermir e Sandokan Xavier, convidamos dois de nossos alunos de fotografia para participarem deste livro. Trazer Jonathan (Dondinho, 10 anos) e Katarina Scervino (16 anos), ambos moradores do Coque e alunos do Neimfa pra perto deu ainda mais prazer na realização do Senhoras do Coque. Ilustramos. Os bonitos traços, ora fortes, ora serelepes, que percorrem cada uma das histórias foram feitos por uma amiga muito querida, Anaíra Mahin. Ela é, de fato, uma pessoa especial, por isso lhe fizemos o convite. Sensível que só ela. Conheceu as mães num momento muito bonito, na inauguração da Exposição das Relíquias do Buda, em maio de 2010, no Museu da Abolição, quando as senhoras nos deram a honra de ouvi-las cantando. Foi, de fato, um momento que nos tocou, a todos, e criou uma comunhão ali, nós todas abraçadas, emocionadas de ver aquilo. Foi por isso que convidamos Anaíra agora, nesse novo encontro com essas lindas mulheres. Senhoras do Coque está dentro de uma proposta maior, que vem se desenvolvendo há cinco anos na comunidade do Coque, a partir da Rede Coque Vive, que conecta o Neimfa, jovens da comunidade, integrantes de um coletivo: o Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (Mabi), e atores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Buscando valorizar as formas de vida dos moradores de periferia, nos propomos a construir outras memórias da comunidade, desvinculadas das marcadas imagens de violência e carência que estigmatizam o bairro. Assim, Senhoras do Coque só foi possível graças a essa experiência de encontro com um lugar que tanto nos tem ensinado a respeito da cidade em que vivemos, que tem nos proporcionado transformações do olhar, do ouvir, do sentir. Chico Ludermir, Maria Liberal, Rafaela Vasconcellos e Sandokan Xavier
Senhoras do Coque
Foto: Chico Ludermir
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Dona Paulina Madrinha Paulina Dona Paulina parece ser tímida, mas está sempre com um sorriso leve no rosto, como que nos convidando para chegar mais perto. E, aos poucos, fomos chegando. Nos sentimos cada vez mais à vontade na sala de sua casa, numa tarde cheia de revelações, lembranças e histórias do Coque. Aos 64 anos, a senhorinha negra, de cabelos curtos e cachinhos grisalhos, ainda deixa transparecer a vitalidade de seu olhar por detrás das lentes de grau. Com a mesma leveza com que vai nos contando suas memórias, fala com os netos, que brincam pela casa. E com toda energia, caminha conosco pelos becos do Coque, cumprimentando um e outro por onde passa. Dona Paulina é muito bem articulada na comunidade. Dos vizinhos de sua rua até o bingo da esquina da rua de trás. Falar da comunidade, do NEIMFA, do grupo das mães e da família parece encher o coração dessa mulher. Foi dela que nos aproximamos em dois momentos: em 2008, quando outros estudantes da universidade a entrevistaram, e agora, em 2011, quando a revisitamos pra ouvi-la mais um pouco. Em meio à voz de seu netinho João Pedro, interferindo por vezes, Paulina compartilhou conosco um pouco de sua história, que se confunde com a história do Coque. Ela fala de si falando do bairro, do mangue, das cheias, das mudanças, dos bailes, das “sedes”. Se confunde também com a história do NEIMFA, onde ela é “a madrinha”, como todos a chamam. Foi na casa dela que a instituição começou. Daí em diante, ela deu todo o suporte para as ações se manterem e, hoje, ela é uma das coordenadoras do grupo das mães, junto com dona Zezé. Paulina parece ter um alto astral permanente, tá sempre sorrindo, brincando. É uma pessoa leve, dessas que todo mundo quer mesmo ter como madrinha.
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Da união da família de Paulina: uma lição de três gerações Sempre morei aqui no Coque. Meu pai e minha mãe vieram do interior pra aqui. Eu só não sei distinguir a data que eles vieram. Só sei que eles vieram do interior pra cá e se fincaram aqui. Meu pai era de Caruaru; agora, minha mãe, eu não sei. Alzira e Honório. Meu pai era negociante. Ele trabalhava lá no mercado São José, negócio de manteiga, queijo, essas coisas, mas não era emprego fixo, não. Quando não era isso, ele pintava. Depois ele adoeceu, aí deixou. Ficou na aposentadoria. Ela era dona de casa. Depois trabalhou numa venda, numa barraca. A gente mesmo botava a barraca. Ela ia e vendia as coisas tudinho. Depois, vinha pra casa, porque também ela não podia trabalhar, porque ela era deficiente. Ela era uma pessoa muito cativante. Tinha sua deficiência física, mas fazia tudo dentro de casa. Ela andava normal, mas se ela caísse, ela não se levantava só. A maior lição que meu pai e minha mãe dava foi a união da família. E eu sempre passo pras minhas filhas que eu não quero ver elas brigando, que eu não quero assim, como tem muito por aí, que tem briga entre os irmãos e ficam de mal. Eu não aceito isso. Meu pai, se a gente brigasse e não falasse com o outro... A mais danada era eu mesmo. Aí, ele não aceitava. Tinha que fazer as pazes. Ele fazia a gente fazer as pazes, dar a mão ao outro, tudinho. Isso, eu sempre digo a minhas meninas e eu quero passar isso pra elas. Desavença pode haver, né? Todo mundo tem, mas não de um irmão ficar brigado com outro irmão. O que minha mãe me ensinou, graças a Deus, eu aprendi e passo pras minhas filhas. E, graças a Deus, até onde eu estou viva, elas não têm esse problema de viver brigando. Pra mim, isso é fundamental. Pra mim, eu vendo elas unidas e eu unida com elas, é a maior felicidade do mundo. E, graças a Deus, minhas filhas são tudo assim, sem fazer inimizade com ninguém. Minha mãe me ensinou para aprender a ser amigo sem arrumar inimizades.
Infância no Coque: brincadeiras de ontem e de hoje Pouco eu tive infância. Meu pai não tinha muito trabalho. Não é como agora. Hoje em dia, as meninas têm tudo e acham que não têm nada. Pior era naquela época, a gente não tinha era nada! Se quisesse brincar, era pra brincar com aquela brincadeira de roda mesmo. Era brincadeira de roda, de academia, barra-bandeira, que naquele tempo existia muito. Brincava de bola de gude, que tinha também, de várias coisas que hoje em dia pouco tem. De roda mesmo, as meninas pouco brincam. Brincava de roda, às vezes cozinhado. De contar história, história que a gente inventava mesmo. Pouca boneca se tinha pra gente. Brincadeira só era isso, mas foi bom. Hoje em dia, é muito difícil as crianças estarem brincando. Elas gostam é de assistir televisão, filme ou andar pelo meio da rua. Agora, ainda tem algumas que ainda brincam de bola de gude, até as meninas mesmo, de bola, os meninos de pião. As brincadeiras de hoje em dia é isso. As meninas também inventam de brincar de bola de gude, de bola e de pião, as meninas mesmo. De boneca é muito difícil, só brincam de boneca quando estão com uns três, quatro, cinco anos, mas depois não querem mais saber de brincar de boneca, não.
Foto: Chico Ludermir
“Pra mim, eu vendo elas unidas e eu unida com elas, é a maior felicidade do mundo”
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Dos cinemas, dos piqueniques, dos bailes e do futebol: os divertimentos da mocidade Na idade de hoje, você tem muito mais divertimento do que tinha naquela época. Hoje em dia tem muitos clubes, muitas coisas, e naquela época, a gente ficava mais em casa. Apesar de que, naquela época, a gente tinha muito cinema, a gente ia muito pra cinema. E a maioria dos cinemas que tinha, acabou-se. Tinha onde hoje é as Lojas Maia, era o Eldourado; tinha o São Jorge, que parece que era por aqui pela Estrada dos Remédios; tinha o cinema Central, que hoje no lugar dele é o Itaú de Afogados. Eu ia muito pro cinema naquela época. E, naquela época, “Paixão de Cristo” eu não deixava de assistir. Tinha muito esses filmes de gladiador, e eu gostava muito. Naquela época, passava muito, e, hoje em dia, passa pouco.
Foto: Chico Ludermir
Filme de época também. Tinha filme de romance, de bang-bang. E tinha muito filme nacional e eu assistia muito filme de Oscarito, que morreu há muito tempo, de Zé Trindade. E esse pessoal era daqui do Rio, parece. Eu via muito filme nacional. Era Oscarito, Grande Otelo. Grande Otelo foi
uma pessoa muito falada na TV, e não faz muitos anos que ele morreu, não. Eu acho que fazem, no máximo uns dez anos. Zé Trindade também, não faz esses anos todos que ele morreu. Tem um também que fazia “A Praça é Nossa”, que fazia filme nacional, que também morreu agora há pouco. Antigamente, meu divertimento era fazer piquenique. O pessoal fazia e a gente pagava e ia com os amigos passar o dia. Era cinco reais; dependendo do local, era três, quatro reais. Lotava o ônibus e ficava barato. Ia pra Porto de Galinhas, Cachoeira do Urubu, São José da Coroa Grande. Tem uns lá pro lado de Olinda também, Itamaracá. Cada um levava seu lanche ou senão seu almoço. Ia de manhã e voltava de quatro horas. Mas, às vezes, a gente ia pra lugar que dava pra ir a pé, porque ninguém tinha dinheiro naquela época. Eu já fui pra vários por aqui. Tinha Brasília Teimosa, que não era como hoje em dia. Era só palafita e casebre. Brasília agora tá uma princesa do que era antigamente. Hoje em dia ainda tem, muita gente aqui ainda faz. Mas agora não vou mais, também, mais, não. Mas tem muitas pessoas que fazem isso. Tinha baile. Gostava muito, visse? De dança. Era brega, bolero, samba, forró, era tudo. Não tinha muito essas danças que tem agora, não. Brega tinha, mas não tinha funk e nem outras coisas que eu não sei dizer o nome. Antigamente, os bailes, criança de menor não ia. Só a partir de dezoito anos, acima. Se a gente fosse pra uma festa que tivesse um baile, tinha que abrir exceção até dez horas da noite. A partir de dez horas da noite, a pessoa saía e pra só entrar adulto. Uma que os pais não deixavam mesmo, né? Pra começar. Meu pai dizia assim: pra fazer uma festa, era só até dez horas. “Dez horas é pra tá em casa”. A gente preferia não ir, ficava em casa. Tinha muitos clubes aqui nesse lado aqui. Eu não frequentava, mas, pra cá, nessa parte aqui, tinha “Os veloz”, “Juventude”, tudo isso era time de futebol com festividade de dança. Tinha os “Caducos Futebol Clube”. Mas os “Caducos” fechou, acabou-se. Fechou e agora é uma igreja de crente. “Mocidade” era uma sede, de futebol e de dança. Ainda tem. Hoje, a gente não frequenta mais, mas ela existe. É lá do outro lado, ali na Realeza. Quando tá com violência, briga, ele para de funcionar. Depois, ele retorna novamente. Agora mesmo, eles tão fazendo essa festividade. Vez em quando, bota grupo de pagode. Tá funcionando já de novo. Foi muito bom a “Mocidade”. Jogavam aqui mesmo nos campos. Quando não era isso, ia pros interior. E a gente ia. A gente se juntava e dia de domingo a gente ia tudinho. O clube alugava um ônibus. A gente ia tudinho, cada um pagava sua parte. Valda foi muito também, era eu e Valda. A gente ia pra torcer mesmo, porque a gente era sócia lá do Mocidade, mas a gente ia só pra se divertir, né? Eram todos amigos.
As amigas de sempre Tem Valda, tem Di. Valda, os irmãos dela tudinho conheço desde pequeno. Os meninos de Di eu vi nascer, vi crescer tudo. Era tudo junto, nós morávamos tudo junto. Valda morava um pouquinho pra trás. Eu morava na frente. Ela morava mais pra perto da maré, mas a gente só vivia junta. Me sinto feliz, até hoje a gente tá tudo junto, nunca nos desentendemos. Toda vida fomos amigas: eu, Di, Valda. Sempre fomos unidas.
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Foto: Chico Ludermir
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Marido e mulher, até que a morte os separe: mais uma mulher chefe de família no Coque Só tive dois namorados. Um morreu assassinado logo e o outro era o pai das minhas meninas. Conheci o pai das minhas meninas numa festividade da “Mocidade”. Eu já conhecia a mãe dele, conhecia algumas pessoas dele também. A mãe dele era daqui do Coque também. Ele morava aqui perto. Quando eu conheci, meu pai já tinha falecido. Eu casei com trinta e poucos anos. Quando ele faleceu, uma filha tinha 15 anos e já ia fazer 16, uma com nove e Valéria com 13. Passei por algumas dificuldades, porque era ele que sustentava a casa. Eu era doméstica mesmo. Nunca trabalhei fora, não. Sou pensionista por conta do pai das minhas meninas. Mas, graças a Deus, encontrei os meninos daqui que me deram apoio e o meu irmão. Hoje, eu sou muito agradecida ao meu irmão, porque aí é quando eu digo que tá o apoio da família. Ele era o irmão que tinha mais posse e, como a pensão das meninas não tinha saído, ele era que sustentava eu e minhas filhas. Eu sinto falta de uma presença masculina, porque você sabe, né? Um homem dentro de uma casa é melhor do que às vezes só morando mulher. Porque, às vezes, você precisa do apoio de um homem. Mas eu tou muito feliz só com minhas três filhas. E nunca pensei em procurar outro homem, não, outro companheiro nem nada. Tem muitas pessoas que têm chefe de família seus maridos, mas a maioria é mãe, fazendo a parte do pai e da mãe, a mãe se responsabilizando pelas duas partes. Na mesma hora, é mãe; na mesma hora, é pai, é tudo uma coisa só.
As três joias de Paulina: o amor e o cuidado com as filhas Tenho três filhas, dois netos e crio duas netas. Moram no Coque, todas as três. Uma mora comigo ainda, a que é solteira. Andréa mora numa rua depois, e a Valéria mora na minha rua. Graças a Deus, eu não tenho o que reclamar das minhas filhas, não. Elas nunca me deram dor de cabeça e nem se envolveram com ninguém que tivesse envolvido em drogas. Nenhuma delas nunca gostaram de bebidas e nem de fumo. A gente mesmo, eu e minhas vizinhas que tinha lá, a gente ia levar e buscar da escola todo dia. Hoje em dia, tem muita mãe que não tem mais paciência com isso. Mas a gente ia, mesmo elas já grandinhas. Não dava oportunidade delas largarem e ficarem no meio da rua. Tenho muita lembrança especial de Andréa, que é quando ela e os primos brincavam ali naquela rua que eu morava perto. Elas brincavam ali de bola, de boneca, de se esconder, mas tudo ali junto da gente mesmo, era muito bom. Tava tudo pertinho, e a gente não se preocupava com briga nem com ninguém se agarrando. Era primo e as vizinhas também que moravam perto de mim também. E brincavam tudo junto e não tinha problema nenhum. Quando brigavam, um defendia o outro, cada um puxava a sardinha para os outros.
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Meu maior sonho agora é ver minhas filhas com seus empregos, cuidando dos seus filhos. E se eu fechar os olhos, elas tenham um trabalho pra não tá precisando. Meu sonho é muito isso. E seguir em frente. Eu fico preocupada em fechar os olhos e elas não ter como caminhar, porque você sabe, né?! Mãe é assim mesmo, né? Se por acaso elas não tiverem, elas dão pra filha e ficam sem. A gente pensa muito nisso mesmo, no encaminhamento delas na vida.
Do Coque que os pais de Paulina viram: mangue, cheias, água de chafariz e energia de poste de pau Eles falavam que aqui era mangue, e ainda é mangue, e as pessoas vinham chegando, aterrando e fazendo suas casas aqui. A gente vivia morando perto da maré. Quando era tempo de maré grande, a maré enchia, chegava até as casas. Depois, secava, a gente enxugava. Quando a gente
Foto: arquivo pessoal Paulina
“Mãe é assim mesmo, né? Se por acaso elas não tiverem, elas dão pra filha e ficam sem”
Foto: Chico Ludermir
ia sair – que antigamente não era metrô, era o trem – a gente, se queria ir pra cidade, tinha que ir lá pra Rua Imperial pra apanhar o ônibus. Aí, a gente saía com a sandália na mão. Chegava em cima da linha, enxugava os pés, calçava e ia simbora. Agora me lembrei de Valda, que Valda falou sobre isso. Mas era assim a vida da gente. Aqui teve três cheias. Agora tou esquecida a última que foi grande mesmo, não sei se foi de setenta ou foi setenta e cinco. Foi a grande mesmo que teve que abandonar o local, muita gente foi pra colégio. A gente saiu tudinho, foi pra casa de um amigo da mulher de meu irmão: eu, minha mãe e meu pai. Perdemos tudinho: móveis, essas coisas. Tinha umas pessoas que saíam, iam pra cima da linha. Depois, quando a maré baixava, a gente voltava. Mas essa foi a maior mesmo, que foi pra ali pra Afogados, Torre, por aí abaixo. Encheu tudo. Perderam casa e tudo. Nessa grande, teve até gente da nossa comunidade que morreu, foi levada pela cheia.
Foto: Chico Ludermir
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Senhoras do Coque
Não tinha energia, não tinha água encanada. A luz era de candeeiro, como eu me lembro quando eu era pequena. Não tinha luz, não tinha água, mas era bom. Tinha um chafariz aqui, a gente carregava do chafariz. A gente enchia o barril e era lata d’água na cabeça. Tinha um dono e era quem recebia o dinheiro. A gente juntava as roupas e ia lavar em Jaboatão, no rio de Jaboatão, ia de trem. Colocava a roupa na cabeça e ia; quando voltava, o peso dobrava. Não enxugava lá, tinha muito mato, nas pedras. Hoje não existe mais não. Vários anos a gente foi, deixou de ir quando botaram água na comunidade. Foi uma alegria muito grande, a gente tomou banho, fizeram uma festa! A gente ficou foi contente porque a gente ficava até de madrugada carregando água! A energia, era tão engraçado antigamente, quando eu era adolescente: tinha uns postes de pau e algumas pessoas que tinham dinheiro passavam e a gente pagava, pois a gente não tinha posse de botar diretamente. E tinha um horário, não era o dia todo como é agora, não.
A cidade vem chegando no Coque aterrado ou “Dá licença, que o metrô quer passar”: de quando as tábuas são derrubadas e sorteiam-se paredes de tijolos Depois, foi chegando a evolução. Foi evoluindo mais dentro da comunidade, se aterrou. Onde a gente morava, lá na rua, não chegava táxi, nada, tinha que atravessar pra pegar na Rua Imperial também. Depois, foi aterrando, aterrando. Depois, já entrava caminhão de gás. O negocio do metrô, primeiramente, tirou o pessoal que morava perto da linha do metrô. As pessoas construíam no lugar que não deviam, eles vinham, derrubavam, mas o pessoal ia, fazia de novo. Foram essas primeiras vilas que vieram. Depois foi a gente. A gente morava em casa de tauba, era tudo
Aí, graças a Deus, foi uma boa depois desse projeto da expansão do metrô. Começou tirando as casas na beira da linha e começou as brigas das lideranças, porque o pessoal queria castigar o pessoal só da beira da linha. Mas aí começou as lutas dos líderes comunitários, aí a URB fez as casas e botou a gente de lá pra cá, e outros que moravam mais pra trás ficaram e fizeram outras vilas também, no lugar onde a gente morava. No dia que foi pra a gente receber a chave, o pessoal da URB veio com a gente tudinho, sorteou as casas. Porque era assim: eles fizeram as casas e depois faziam o sorteio pra vê qual era a casa que você pegava. Faz uns 15 anos que estamos pro lado de cá.
Foto: Chico Ludermir
casa de tauba. Às vezes eu dizia assim: “Oxe, tá vendo que a gente nunca vai morar numa casa que tenha alvenaria”. Você sabe, quando a pessoa é assim de baixa renda, ela não pensa em prosperar. Eu mesma nunca pensei em ter uma casa de vila, de tijolo, porque lá na Rua da Zoada a casa da gente era de tauba. A maioria das casas, eram pouquíssimas que tinham tijolo. Aí eu não tinha esperança, nunca tive expectativa de morar numa casa de tijolo.
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De quando derrubaram o “Casarão” da Pitangueira Tinha um sítio bem grande na Rua da Zoada, tinha um casarão antigo, era bem pertinho da beira da linha. Dizem que era dos holandeses. Teve uma vez que passou na televisão que tinha ouro, mas cavaram e não tinha nada. Eu sei que era dos holandeses, depois ficou um homem tomando conta, depois essa pessoa morreu e trouxeram a delegacia para cá e ficou como patrimônio da delegacia. Ela era lá na Pitangueira e foi transferida para esse casarão, era abandonado. Depois derrubaram e construíram casas.
Paulina lembra da Pitangueira, das escolas, do “barracão” e do ‘Coclube’ Tinha um colégio lá dentro que chamava-se Pitangueira. Pra gente atravessar pra ir pra lá, era uma ponte, mas só que era uma ponte de coqueiro. Depois, tiraram a Pitangueira, foi pro Janga. Aí pronto, tiraram esse pessoal dali, aterraram. O lugarzinho, a gente chamava Pitangueira! Ainda hoje em dia tem uma igreja de crente ali que tem o nome Pitangueira. Tinha mais umas escolas assim, tipo particular, eu ia nas casas estudar. Tinha escola Anchieta, lá do outro lado da Realeza, que hoje em dia é a “Mocidade”. Tinha o ‘barracão’, o barracão da prefeitura, onde o povo ensinava. Era de tauba, aí chamava barracão. Davam aula pra criança, pela prefeitura mesmo, às vezes, eles traziam coisa, doavam. Era leite, várias coisas que davam pra comunidade. Tinha o “Coclube”, onde os meninos ensinavam. Tinha médico, tinha tudo. Quando não era isso, as pessoas iam estudar lá no Joaquim Nabuco ou senão numa escola que fica ali em Afogados, Maria de Medeiros. Aqui não tem muito colégio, depois foi que fizeram o Costa Porto. Tinha um posto aqui na Cabo Eutrópio, depois derrubaram, fizeram casa e mais colégio, era pra ajudar porque colégio não tinha muito. Só tinha um. Depois fizeram outro.
Da saudade que vem com a lembrança do cheiro de maré: a felicidade de viver aconchegada com os pais e os irmãos Já vi muita gente chegar, muita gente ir embora. Teve uma grande mudança. Naquela época, o que a gente via era maré, lama. Hoje, a gente reclama, mas pior era naquela época. A paisagem era muito casa de tauba. A casa da gente não era calçada, não tinha pé de árvore, era só o cheiro da maré. Mas a gente vivia feliz, apesar que era uma vida muito precária. Mas tenho saudade daquela época, porque tava com minha mãe, meus pais, meus irmãos. Depois meus irmãos foram casando e indo embora, depois morreu meu pai. Só ficou eu e minha mãe.
“A gente vivia feliz, apesar que era uma vida muito precária”
Da Paulina moradora do Coque: o pertencimento à comunidade Gosto de morar aqui, é perto de tudo! Eu gosto da cidade, se eu quiser ir pra Afogados, vou. Eu gosto do Neimfa. É o meu divertimento, de casa para o Neimfa. A minha segunda casa é o Neimfa. Nunca tive medo de morar aqui, não, apesar do pessoal dizer agora que é o local mais violento do mundo. Eu gosto de morar aqui e nunca vi ninguém com vontade de mudar, e nem minhas meninas tem vontade de mudar daqui. Eu acho que não me adaptaria em outro local não. Eu gosto daqui e da convivência aqui, apesar do pessoal dizer que é muito violento. Eu acho assim, mas talvez quem mora agora não vá pensar. Eu como moradora daqui, acho que tem lugar mais violento que aqui, mas como aqui já pegou fama, aí quando você pega fama acabou-se, para tirar é difícil. Isso me incomoda, mas não posso fazer nada. Não pode discutir, porque isso é uma coisa que é falado em todos os lugares, que é o mais violento, e quando diz que é o mais violento eu me sinto mal; mas, fazer o quê? Mas eu vejo os locais muito mais perigosos que aqui.
Foto: Chico Ludermir
Você sabendo viver dentro da sua comunidade, ela é um lugar como outro qualquer. Quem faz o lugar é você mesmo. Eu acho sabe. Porque eu mesmo, graças a Deus, nunca tive problema nenhum aqui dentro da comunidade do Coque, nem eu nem as meninas. Nunca ninguém desrespeitou nem nunca passei por nada que me incomodasse tá aqui dentro. Eu acho assim, uma coisa eu fico pensando, morar lá fora, eu não vou. Se é pra dizer que é por causa da violência, tanto faz a violência lá fora como aqui dentro. E outra coisa, aqui eu tou acostumada com o meu pessoal, com o Neimfa, e pra eu vim de lá pra cá, é mais difícil. Aí eu nunca tive vontade de ir, assim, sonho, sonho de morar fora.
Senhoras do Coque
Da Paulina madrinha do Neimfa: como tudo começou Não sei se vocês sabem, mas o Neimfa começou na minha casa, há 20 anos atrás, e era lá na Rua da Zoada. Xerxes veio atrás da mãe de um adolescente que tava na FEBEM, que pediu a ele pra vir procurar a mãe dele que não sabia que ele estava lá. Ele veio e se prontificou a ficar vindo visitar ela. Daí ele ficou vindo todos os domingos pra aqui pro Coque. Às vezes trazia ajuda de roupa, de feira pra mãe desse menino mesmo, pra outras pessoas. E foi aí que, um dado domingo, eu conheci ele. Aí eu fiquei acompanhando, aos domingos, ele pelas casas. Depois de, acho que um ano mais ou menos, foi quando a gente cedeu o quartozinho pra ficar a reunião lá, onde eu morava lá na Rua da Zoada. (Eu digo no quarto porque era um quartozinho, né, não era uma casa diretamente, era um quarto). Era ele só que vinha. Aí depois ele veio trazendo os meninos, trouxe Alexandre, Aurino, veio Antônio, Luiza, veio Emília. Eles vinham, faziam as reuniões do domingo com ele, sempre pelas ruas. Nós não ficávamos dentro da casa. Iniciava lá, mas saía com as visitas na casa das pessoas. Saíam com a gente, dentro da comunidade do Coque, lá na antiga Rua da Zoada, que agora é Rua Nova Aurora. (O pessoal apelidou de Rua da Zoada, diziam que era porque o pessoal brigava muito, outros já diziam que era porque tinha uma dança lá que chamava “Nova vida”). É quando era o Coque, lá dentro. Depois que fizeram essas vilas, nós viemos pra cá. Aí o Neimfa veio também. Aí ficamos numa antiga delegacia que tinha aqui, até a primeira casa do Neimfa. Depois os meninos, Alexandre e Aurino, principalmente Alexandre, começou a fazer os projetos da ONG. Aí fez a primeira casa, a segunda, a terceira... aí chegou até a terceira casa, que é essa aqui. Três casas aqui.
Foto: arquivo Neimfa
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Foto: Chico Ludermir
Nós saíamos de casa em casa fazendo as visitas. Os menino iam junto. Depois que o Xerxes trouxe os meninos, aí é que a gente foi fazendo trabalho com criança. Ele trazia as coisas pras crianças justamente por causa da gente, porque a gente ia e levava os filhos da gente. Na época só tinha evangelização, mas depois que compraram a casa e fizeram o projeto e mudaram o nome para Núcleo Educacional, veio estudo para criança e tudo. Eles chegaram bem jovens: Aurino, Alexandre, Emilia. Alexandre quase não falava direito, mas depois se desenvolveram e ficaram. Xerxes se afastou e, graças a Deus, eles ficaram. Dona Luiza ficou junto com as mães mesmo, foi fazendo a parte dela das gestantes, e assim continuou.
Dois grupos das mães: o de Dona Paulina e o de Dona Zezé Os grupos de mães, desde que o Neimfa começou, que tem. Eram mais mães que vinham. Com o Xerxes mesmo, era só mãe. Agora, tem umas cento e poucas mães, entre os dois grupos, entre o meu e o de Dona Zezé. O maior é o de Dona Zezé. Antigamente, só eram mais as idosas, idosa que eu digo assim, de seus quarenta, cinquenta. Tem comadre Nina, tinha Di, dona Lenira, dona Neuza também é daquela época. Dona Zezé se aproximou das reuniões, quando faleceu um filho dela, e ficou com a gente até hoje. Todo domingo, Dona Zezé canta. Antigamente, quando ela
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Foto: Chico Ludermir
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podia sair, ia cantar nas procissões e eu também ia, mas depois deixei. Todo domingo ela canta, principalmente essa música, “A barca”. Agora tem pessoas até de trinta, trinta e poucos anos. É difícil os homens ficar porque veem tanta da mulher que desistem. Ficam intimidados, não ficam. Aí só é mais mãe, não tem homem. Eu faço parte assim: apoio em ajudar nas reuniões. Um apoio a elas, espiritual, de como se viver aqui na comunidade, de participar das atividades. Falamos sobre a importância da mãe, de como educar seus filhos, trazemos os filhos delas aqui pra dentro do Neimfa, porque tem o educacional. Os meninos aqui dão aula de evangelização, de teatro. Tem várias coisas que trabalham com essas crianças, aos domingos. No domingo, tem umas trezentas crianças aqui dentro com aula de várias coisas. Tem sala que tem 30 meninos, outras tem 20. E, durante a semana, tem os cursos.
“Aqui eu sou budista, sou espírita, sou tudo. Agora eu abraço a todos, desde que seja para o bem. Porque o Deus é um só”
Foto: Chico Ludermir
Paulina abraça a todos: dos caminhos da espiritualidade A bem da verdade, quando a gente entrou aqui, eu era espírita, eu participava de um centro espírita “Deus à procura de seus filhos”. Na cheia, na última cheia que teve aqui no Coque, alagou o centro. Como eram quatro pessoas idosas, se juntaram e compraram uma casa lá no Ibura pra elas, aí o centro mudou-se pra lá. Mas eu estudei lá no centro espírita. Meus irmãos eram tudinho de lá. Só quem não participava muito era meu pai e minha mãe – meu pai, porque bebia, e minha mãe, porque era deficiente -, mas a gente vivia dentro. Só que, naquela época, a gente não participava da reunião mediúnica, porque as crianças não participavam. Hoje, não. Hoje, é aberto pra criança, adolescente. Naquela época, não. A gente não participava, participava da reunião pública. Mas, aqui, eu sou budista, sou espírita, sou tudo. Agora, eu abraço a todos, desde que seja para o bem, porque o Deus é um só.
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Foto: Chico Ludermir
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A segunda família de Dona Paulina: uma declaração de amor ao Neimfa Todos aqui dentro, pra mim, são maravilhosos. É a minha segunda família. Olha que eu vivo mais aqui do que com minha família. Porque meu irmão mora em Águas Compridas e é difícil eu ver meu irmão. Os meus outros sobrinhos e minha cunhada moram em Prazeres. Mas, sempre que eu tenho um tempinho, eu vou lá. No domingo, eu passo todo o dia aqui no Neimfa. Dia de semana, eu venho e vou embora logo, mas todo domingo eu venho aqui. Praticamente, a minha segunda família é o Neimfa. Os meninos não são de sangue, mas eu adotei como uma segunda família pra mim. Pra mim, o Neimfa é fundamental. Talvez alguém não possa nem acreditar, mas eu mesma me sinto muito feliz aqui dentro. Não tenho nenhum problema com ninguém aqui dentro, e, graças a Deus, todo mundo me trata bem. Tenho uma liberdade com o pessoal aqui dentro, que eu não tenho lá fora com os adolescentes mesmo, parece meus filhos. Se tirar alguma coisa deles, é como se tivesse tirado dos meus filhos. Me considero alegre e contente ao mesmo tempo. Tem as tristezas, mas mesmo assim minhas tristezas são na parte familiar, e não em relação a onde eu vivo. Dentro do Neimfa, eu me dou bem com todos. Eu fico contente em me dar bem com todos os meninos, os adolescentes, os adultos mesmo e as mães também. Nós vivemos tudo junto. Os adolescentes me respeitam, eu respeito eles também. Nunca tive desavença nenhuma com nenhum dos adolescentes, graças a Deus. Toda vez, me dei bem por isso. Eles perturbam tudinho, mas nunca me desapontaram.
“Me sinto como criança, sem ser. O pessoal não diz que, depois de certa idade, a pessoa vira criança de novo, né?”
Claro que o Neimfa já faz parte de mim. Pra mim, o Neimfa teve muita consequência de apoio pra mim e pra minhas filhas. Inclusive a Andréa mesmo, que hoje é presidente aqui do Neimfa, só veio se empolgar assim nos estudos depois que ela começou a fazer um curso aqui, parece que era de Agente Comunitário. Aí ela se interessou mais pelos estudos, se empolgou mesmo, como ela tá fazendo a faculdade. A Laudicéia não ficou muito, porque partiu pra outra dimensão, ela é evangélica e se afastou um pouco daqui. E a Valéria tá na reciclagem. O que eu fico mais alegre é quando eu tou dentro do Neimfa: nas festividades, nas reuniões do domingo, nas quartas-feiras. O único lugar que eu vou só é lá mesmo. O que ia me deixar mais triste, se não for a parte familiar, é um dia ter que me afastar no Neimfa. Aí eu vou ficar triste, porque eu vou pra onde mais? Vou ficar enfurnada dentro de casa, não vou ter mais pra onde ir nem onde brincar com esses meninos mesmo. Eu só brinco assim, se fizerem uma festa no Neimfa, se for uma coisa assim. Quando não tem dança, tem outras coisas. Sempre tem o Carnaval, no Carnaval do Neimfa, eu vou lá, brinco e tudo.
Paulina se sente criança outra vez: a felicidade de passar o Ano Novo em Maragogi Pra mim, a melhor coisa que aconteceu na minha vida, é passar o Ano Novo com os meninos lá do Neimfa. Foi a melhor coisa que aconteceu depois da minha velhice, foi isso! Porque eu me sinto muito bem com eles lá, brinco, me sinto como criança sem ser. O pessoal não diz que, depois de certa idade, a pessoa vira criança de novo, né? Aí pronto, me divirto muito, muito mesmo com eles lá. Porque Natal tem a vigília daqui do Neimfa. No Natal, a gente passa a noite aqui na vigília. E pro Ano, a gente vai com os meninos lá e é uma animação só. Mas eu não sou muito fanática de praia, não. Eu gosto mesmo é do clima de lá, das brincadeiras. Eu sei que minhas meninas ficam bem aqui, então eu fico lá despreocupada, fico no céu. Texto e Edição: Maria Liberal e Rafaela Vasconcellos Fotos: Chico Ludermir, Acervo pessoal de Dona Paulina e Acervo do Neimfa
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Dona L uiza
Cura, cuidado e provisão Ela diz que não é muito dada a relações, mas toda a sua vida dedicou às pessoas: curando feridas, físicas e espirituais, ajudando mães na gestação de novas vidas por vir, provendo alimentação para todos. Ela chegou já reclamando, “Que cheiro ruim! Lugar mais apertado!”, bem no estilo Dona Luiza de ser. Mas, com o tempo, foi se abrindo, contando sua história. Luiza é assim, diz que não gosta de muito contato com as pessoas, muita relação. Mas foi só conversarmos com jeitinho, e ela foi amolecendo, contando toda a sua vida, se entregando à sua própria história, revivendo, ora chorando, ora sorrindo. No fim, estávamos as duas, e todos os outros presentes, partilhando um momento de emoção, de contato, de relação. Percebemos que ela tem seu jeitinho próprio de demonstrar afeto: ocupando uma função de provedora, querendo ver todo mundo bem alimentado e estando sempre atrás de aprender mais e mais. Ela não para, está sempre procurando algo novo pra fazer, pra aprender, e pra ajudar as pessoas. E foi assim, arrumando o estúdio bem direitinho, ligando o ar pra ficar bem confortável, abrindo nossos sorrisos pra acolhê-la, que Luiza se entregou a gente e a gente se entregou a escutá-la, numa tarde de domingo, nesse lugar de nome hoje tão afetuoso para todos nós, chamado Coque.
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Origens de Dona Luiza Meu nome é Luiza Margarida de Freitas, nasci em Carpina. Meus pais, minha família, todos são de Carpina. Mãe chamava-se Margarida Rita da Silva. E meu pai era Sebastião Caboclo da Silva. Quando ele era solteiro, ele cortava cana mesmo, morava nos engenhos. Só era ele e outro irmão e mãe dele. Depois, quando ele foi ficando mais de idade, ele trabalhava nos engenhos marcando as canas, a quantidade de eito (que chamava-se eito na época). Depois ele veio embora pra Carpina, saiu do engenho. Aí lá ele foi trabalhar na prefeitura, como funcionário na prefeitura. Chegou a trabalhar até no cemitério. Trabalhou dezoito anos no cemitério. Quando ele desencarnou, ele trabalhava no cemitério. Já tava aposentado também. Minha mãe tinha banco de comida, vendia sarapatel, inhame, carne, essas coisas assim, bebida. E ela levava a gente. Num ficava ninguém em casa, nem o cachorro! Ia pra lá, só saía quando ela voltava. Eu tinha sete anos quando ela começou. Por isso que eu me criei cozinhando. Porque a minha mãe já trabalhava, eu ajudava em tudo. Ela era muito limpa, muito organizada. Ela deixava as mesas todas, era tudo muito limpo, tudo no lugar. Eu acho que eu peguei isso dela, a ligeireza também. Ela num gostava de trabalho sentado, era “trabalho de preguiçoso”. Quando eu nasci, ela ficou na preocupação do sobrenome. E, graças a Deus, tirou o Caboclo e botou o Margarida, achando que Margarida era sobrenome. Tinha promessa com São Luiz, pra eu me criar, porque ela tinha filho, mas morria. Aí ficou Luiza Margarida da Silva. Já os meninos ela colocou os Caboclo (risos). Os que viveram: José Caboclo da Silva, Antônio Caboclo da Silva. Aí Margarida, ela botou o nome dela Margarida Rita da Silva Filha, olha. Ficou as Três Margaridas! É difícil a gente ver esse nome ‘Caboclo’. A minha avó, a mãe de meu pai, era Josefa Cabocla. Ela só tinha ele e outro. Meu pai era o mais velho, e, naquela época, quando era pra entrar no exército, eles vinham buscar na porta. Aí vieram buscar o meu tio e levaram. E não levaram o meu pai porque ele era o mais velho. Ele veio, segundo meu pai, fez carreira aqui em Recife, ia pra Nazaré. Eles eram de Vicência, dos engenhos, aí iam pra Nazaré. De Nazaré, ele veio pra Recife. Eles também mudavam muito de um engenho pra outro. E terminou se perdendo o contato, e eles não se viram mais. Minha vó morreu na companhia de meu pai, mas num viu mais esse outro filho. Aí eu num sei a descendência desse nome.
“Tinha promessa com São Luiz, pra eu me criar, porque ela tinha filho, mas morria. Aí ficou Luiza Margarida da Silva”
Da cura: a realização de um sonho Eu vim pra Recife, com 20 anos, já pra trabalhar. Minha mãe não queria que eu trabalhasse fora, ela queria que eu continuasse com ela, no banco de comida. Mas eu não queria, num era o meu sonho. Meu sonho era sair pra um outro lugar, pra trabalhar e estudar. A gente lia muito gibi... gibi não, era Sétimo Céu, era Capricho. E quando tinha aquelas histórias de enfermagem, de guerra, eu me entusiasmava, eu me sentia a enfermeira. E eu pensava assim, trabalhar sempre no centro cirúrgico e quando o paciente saísse da sala na maca – olha que sonho -, eu sonhava carregar o soro (risos). E num é que aconteceu mesmo? Eu fui trabalhar no centro cirúrgico, aí o que acontece? Eu gorda, forte desse jeito – toda vida fui gorda – quando empurrava a maca eu segurava o soro, as meninas: “Pelo amor de Deus, empurra a maca, tu só quer carregar o mais fácil”. E, realmente, eu só pegava o soro. Mas era justamente aquilo que já estava, né, condicionado na minha mente de sair da sala carregando o soro... (risos). Mas foi muito bom, foi um sonho que eu realmente realizei e fui muito feliz na minha profissão. Eu fazia estágio no Hospital de Carpina, na Unidade Mista. Fui fazer um estágio de três meses, e nesse estágio de três meses passou quase dois anos de estágio. Foi quando uma amiga minha me chamou e me levou pra o Hospital Getúlio Vargas, ela me apresentou como filha dela, dizendo que eu já tinha 2 anos de estágio. Aí lá eu fiz um testezinho na hora com as freiras e ela disse: “Venha trabalhar amanhã”. Isso era uma quinta-feira, ela disse “venha trabalhar na sexta”. Mas eu tinha que arrumar as roupas, as coisas, né? Aí eu disse: “Não, eu venho no sábado”. Comecei num dia de sábado. Aí comecei a trabalhar no dia 7 de dezembro, parece que de 67. E eu trabalhei 30 anos.
Foto: Chico Ludermir
“Foi um sonho que eu realmente realizei e fui muito feliz na minha profissão”
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Luiza é mãe Mãe tinha esse banquinho de comida, que vendia sarapatel, feijão, um bocado de coisa. Tinha um rapaz que já morava aqui em Recife, que sempre ia pra lá, beber, comer o sarapatel. Ele já ia lá há muito tempo, ele me conheceu, eu tinha 13 anos, e, segundo ele, dizia que já namorava comigo, mas eu nunca namorei com ele não, né? (risos) E certa feita, uma menina disse assim: “Esse freguês do Recife, aquele que vem todo mês, ele tá muito olhando pra tu, ele quer namorar contigo”. Aí eu: “Oxe, menina, quero lá namorar com esse homem!”. Pra ser sincera, eu casei com ele, mas antes dele falar pra namorar comigo, nunca passou pela minha cabeça, um pensamento, que eu me casaria com ele nem namorasse, de maneira alguma. Aí de repente, ele vem e fala pra namorar comigo, no dia 1 de dezembro de 67. Quando ele falou, eu disse: “Eu vou pensar”. E nesse pensar eu passei seis meses. E ele indo já e dizendo que era já meu namorado. E eu ficava naquela porque eu não tinha o sonho de me casar, eu não queria me casar, eu queria trabalhar e estudar, mas também achava bonito ser mãe. Mas na época eu não podia ser mãe sem ter um marido, sem ter um pai pros meus filhos, porque era muito difícil, os pais da gente não aceitavam. Ave Maria, era o mesmo que matar né, naquele tempo eu não sei por quê. Se fosse pra casar tinha que ser realmente com véu, capela, como realmente me casei.
Foto: Chico Ludermir
Quando eu disse que ele tinha dito pra namorar comigo, minha mãe disse: “Logo agora, que você quer ir trabalhar no Recife, arranja um namorado? Ah meu Deus do céu, o povo vai falar!”. O povo se preocupava muito com o que o outro dizia, e eu era muito malcriada, como ainda sou, e eu disse pra ela: “No final do mês, num são eles que dão de comer a gente! Num estou nem me incomodando, eu quero é trabalhar!”.
“Quando dava cinco horas da tarde, quando eu ia largando, ele tava do lado de fora, num sorriso colgate”
Depois que cheguei aqui, continuei namorando com ele. Ele era solteiro, era mais velho do que eu 15 anos, trabalhava, era decorador e muito bom pra mim, eu não tinha motivo pra acabar. Eu tinha muito cansaço, eu trabalhava muito, eu trabalhava no Hospital do Câncer, de sete à uma. Largava, ficava descansando um pouquinho dentro da lavanderia, pra vir pra o curso, largava de cinco e pouca, e ia para o Barão, passava a noite trabalhando. Quando dava cinco horas da tarde, quando eu ia largando, ele tava do lado de fora, olha, num sorriso colgate. Casei no dia 30 de setembro, em outubro eu já tava grávida. O primeiro foi Alexandre. Entrei em trabalho de parto no dia 16 de julho, e ele veio nascer no dia 17, às dez e trinta e cinco da noite. Aí foi um período muito longo de trabalho de parto, mas foi parto normal, correu tudo bem. Eu fiquei tomando comprimido e, quando foi depois de dois anos, aí eu parei; no mês de setembro, engravidei de Emília de dezembro pra janeiro. Eu programei, eu disse: “Eu vou parar, vou engravidar, pra ela nascer no mês de outubro, pra eu passar novembro, dezembro e janeiro em casa” (risos) Fiz aquela programação e deu certo. Ela nasceu no dia 18 de outubro de 76. Simão tinha um bom relacionamento com os meninos, nunca chamaram ele nem de pai, chamavam de ‘Mão’. Era Mão pra lá, Mão pra cá. Quando ele completava ano, eles botavam “Feliz aniversário”, aí botavam uma mão assim “Mão” (risos). Ele é de 18 de fevereiro, às vezes a gente tava nas praias, no Carnaval, aí ele fazia a festa de aniversário dele nos acampamentos . Foi uma pessoa boa. Agora era assim, muito descansado, eu sou uma pessoa elétrica, meu negócio é pra ontem, pra ele tudo era pra amanhã, pra depois. Aí a gente num bate, mas num dizem que os opostos, né, são assim? (risos). Alexandre uma vez disse, “Mãe, se Mão fosse igual a senhora, a senhora comprava o mundo a dinheiro e vendia fiado” (risos)
O cuidado com os filhos No meu tempo, o meu sonho era trabalhar e estudar. Eu num pensava em casar, não. Casei porque veio a sequência da vida. Mas meu sonho mesmo era estudar. Por isso que eu fiz tudo pra que meus filhos estudassem. Eles só estudaram colégio pago até o primário. Depois foi quando eu vi a realidade, porque realmente eu ganhava bem, mas eu coloquei na minha cabeça assim, se eu colocasse um num colégio particular – meu sonho era Alexandre estudar no Salesiano ou no Marista – como eu ia colocar a outra? Aí ia faltar, porque meu marido não tinha dinheiro certo, tanto fazia ele ganhar muito como não ganhar nada. Ele trabalhava muito mês de setembro, outubro, novembro e dezembro. Mas chegava janeiro, fevereiro, março, abril e maio tinha serviço não. Então, quando chegou a época deles estudarem - Alexandre saiu do primário -, eu corri pro Colégio de Aplicação, ele fez a primeira prova lá e não passou. Tinha um amigo nosso, era um
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Foto:s Chico Ludermir
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professor, aí eu fui e disse a ele, eu e uma tunfa de mãe, eu disse: “Não, meu filho num tirou essa nota não”. A gente foi até pro reitor. Foi aquela confusão danada. No outro dia mudaram, aumentaram a nota dos que já tinham passado e aumentaram a nota dos nossos. Mas já tava escolhido já. Aí eu disse: “Tem rolo, vamo procurar outro”. Aí fui pra o da Católica, que é ali no Liceu de Artes e Ofícios. E eu subi aquelas escadas, na época era de tábua. Eu subi, cheguei lá, falei com o rapaz, aí ele “Pra ficar aqui, ele vai ter que fazer uma prova. Mas pra ele fazer esse teste, tem que trazer uma carta de um deputado”. Aí eu disse “Como é a história moço?”. Ele disse “É, se a senhora tiver algum conhecimento com algum político, aí fica”. Aí eu disse “É? Se eu tivesse conhecimento, sabe com quem eu pediria essa carta? Ao governador, chegar na porta e marcar audiência pra falar com ele; agora, como é assim aqui, eu nem quero mais meu filho aqui”. Aí saí chorando (choro), batendo aquelas escadas, aí eu disse “Também nesse colégio tão feio (choro) eu num quero meu filho estudando aqui não”.
Foto: Katarina Scervino
Aí entrei no Colégio Marista, saí perguntando o preço, fui no Colégio Salesiano. Cheguei em casa chorando tanto. Aí ele tava assim e disse: “Por que a senhora tá chorando? Mãe, o que foi? O que foi que houve?” Aí eu disse, “Não, é porque eu queria que você estudasse no Colégio Marista ou no Salesiano, mas eu não tenho condições”. Ele disse “Nem deve, porque a senhora paga, eu sei que a senhora não é de dever a ninguém. Mas eu não vou concorrer dentro do colégio nem com o lanche, com o sapato, com a roupa. E não é justo eu estudar e depois a senhora não ter
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condições de pagar pra Emília. Emília tem mais necessidade do que eu. Quem quer estudar, mãe, estuda em qualquer lugar!”. Ele tinha 11 anos. “Estuda em qualquer lugar, porque o currículo é o mesmo”. Aí me acalmou, né? A gente almoçou e eu disse: “Vamos procurar o colégio”. Tava em cima das matrículas! Aí fomos no Pedro Augusto. Quando eu cheguei lá, num tinha ninguém, só tava só a menina da limpeza. Ai ela “Ô gordinho, venha pra aqui mesmo, que aqui é bom, tem lanche, tem num sei quê, tem num sei quê”. Eu disse “Tá certo, quando é o dia?”. Aí ela me deu o papelzinho, eu anotei tudinho e saí. Eu disse “Alexandre, vamos agora no 13 de maio”. Quando eu cheguei lá, a moça disse “Tem que ser o nome na urna; se for sorteado, fica”. Eu disse: “Aqui deve ter é duas urnas, uma pros pobres, outra pros peixes”. Mas botei o nome dele lá. Depois saí, e, ao lado, tem o João Alfredo, mas ele é integrado. Quando eu cheguei – eu tinha, nesse tempo, um problema na tireoide e eu não sabia – aí eu fui, falei com o homem, e o homem disse “Olhe, aqui só fica assim, quando é curso integrado, num fica não”. Aí daqui a pouco eu comecei passando mal, aquele cuspe grosso. Aí Alexandre “Mãe, vamos simbora que eu já escolhi meu colégio”. Ele até foi chamado pra esse outro, mas eu num quis, porque ele disse “Não, mãe, eu já escolhi, vou pro Pedro Augusto, porque, olhe, eu apanho um ônibus só, desço, só ando um pedacinho pra chegar lá. Na volta, faço retorno na frente da Mesbla (naquele tempo, era Mesbla, né?) pra senhora num ficar preocupada. Ai pronto, ele fez. Quando começou a estudar lá no Pedro Augusto, num passou seis meses, um dia ele disse assim “Mãe, eu vou dar umas aulas à filha da professora” (que era Ângela, professora de geografia lá do Pedro Augusto). Aí eu disse “Dar aula à menina de Ângela? A menina de Ângela num estuda no Marista? Ele disse “Mãe, o programa é o mesmo! A menina lá tem que passar, e eu tenho que ir mesmo pra dar essas aulas”. Ficou muito amigo dos professores, e teve um professor de lá, de matemática, ele chegou em casa no primeiro dia: “Mãe, o professor disse assim: ‘Quem quiser estudar, eu estou aqui pra ensinar; quem não quiser, não tem o que fazer. Quem aprender vai crescer, quem num vai, vai empurrar carroça. E graças a Deus carroça é redonda, porque se fosse quadrada era melhor, porque cada empurrão é um empurrão pra frente’”. Aí, ele disse que ficou meio assim, achou o professor meio chato. Mas ele disse que tava esperando ônibus na Mesbla, e chegou um gari – tinha uns pezinhos de árvore ali na frente, chegou ali com o carro, botou ali, tirou o chapéu, disse que ele tava tão suado que ele torceu, pegou a panelinha, almoçou. Ai ele disse “É, eu tenho que estudar, porque se eu não estudar eu vou empurrar carroça”. Aí ele disse “Olhe, mãe, hoje eu vi essa cena”. Tudo ele me contava, a gente conversava muito. Aí eu disse “Então estude, meu filho”. Num passou um ano, ele recebeu um chamado pra estudar inglês num curso, uma bolsa. Depois chamaram, ele ganhou outra bolsa pra estudar informática. Quer dizer, eu nunca paguei estudo deles. Quando ele terminou o ginásio lá, aí ele fez Edificações , fez a prova na Escola Técnica, fez Edificações. Terminou Edificações, foi pra universidade, no mesmo ano. Eu pensando que ele ia fazer Engenharia, ele fez Pedagogia. Ele disse que o que ele queria realmente era ensinar. Aí pronto, até hoje. Emília também terminou lá na Cebolinha, foi pro Pedro Augusto. Do Pedro Augusto, ela foi pro Sílvio Rabelo e fez magistério. Aí começou logo a trabalhar. Emília terminou no mês de outubro. Completou 18 anos em outubro, já tava trabalhando pela prefeitura. Parou, não quis dar conti-
Foto: Chico Ludermir
nuidade aos estudos, ela ensinava no Santa Maria, e eu sempre em cima “Emília, cuide estudar, Emília”. Ela sempre teve vontade de morar sozinha, de ter a casa dela. Aí, ela ensinava no Santa Maria e na prefeitura. Aí eu disse a ela “Se você quiser sair daqui, você sai. Agora, só saia quando você tiver condições realmente de se assumir. Porque depois, do portão pra fora, eu num assumo mais nada”. Aí, ela baixou o facho e ficou. Quando ela viu realmente que tinha que voltar a estudar, voltou. Também, o governo exigiu que, quem tivesse o magistério, tinha que ter um curso superior. Aí foi quando ela fez Educação Artística e, depois, licenciatura em arte, e já fez o mestrado, e agora disse que vai fazer o doutorado. Graças a Deus! Quando ela foi morar fora, eu chorei um pouquinho. Aí depois eu disse “Sabe o que mais? Eu num vou chorar mais não, que eu num vou pagar casa, num vou fazer nada, ela é quem vai tar fazendo tudo”. Sempre foi um sonho dela, morar sozinha. E é muito bom quando a gente realiza os sonhos da gente, né? Eu num realizei, eu também queria morar só. Num realizei por causa da época... meus pais, a minha mãe, as coisas eram diferentes. Em casa, nunca fui assim, de estar mandando eles estudar. Eu comprava muitos livros pra eles lerem, de todas as cores, tinha até em quadrinho, pra eles ouvirem, ficar contando as historinhas. E eu ficava contando pra eles. Quando eu tava abusada com eles, que eles tavam me aperreando, eu dizia “Olha,
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“Menino, traz uma cocada pra mim! Tu só compra livro!”
toma esse livro, lê e me conta a história daqui a pouco”. Mas eu lia o livro antes, né? (risos) Depois eu ia ter que saber a história, né? E eles liam mesmo. E deu certo! É tanto do livro lá em casa que eu num tenho mais onde botar! (risos) Eu digo “Meu Deus do céu, num para de comprar livro não, é? O homem é fisgado num livro! Ele sai daqui pra o Rio, só entra numa livraria, vai pra São Paulo, num sei pra onde, só chega cheio de livro. “Menino, traz uma cocada pra mim! Tu só compra livro!” (risos) E assim, eu nunca me aperriei com eles, nunca tive problema não. Graças a Deus, eu só tenho que agradecer e, principalmente, depois que eu cheguei à casa espírita. Porque aí eles começaram também a participar, foi mudando. Muitas vezes, as nossas dificuldades a gente vai abrindo o conhecimento dentro da doutrina, e sai tudo bem, graças a Deus. Num tenho o que me queixar não, só tenho que agradecer. Eu até tenho dito (choro) “Eu posso até morrer hoje, mas eu morro tranquila, porque eu vou deixar todos dois muito bem. Eu durmo tranquila”.
Encontro com o Espiritismo Eu era católica, mas não praticante, simplesmente porque me batizei. Minha mãe, meus pais tinham muita fé em Deus, em Padre Cícero, eles iam muito pra Juazeiro, todo ano eles viajavam. Mas num eram muito da Igreja. E eu também não me encontrava muito na igreja. Eu lia muito, já li o Antigo Testamento, o Novo Testamento. E eu achava que a igreja tinha muita coisa que não batia comigo. E eu sempre dizia a mim mesma: “Quando meus filhos tiverem grande, eu vou levar eles pra Federação Espírita”. E o tempo foi passando, a vida vai passando rápido, nas correrias do dia a dia. Aí, quando meu pai faleceu, eu fiquei sentindo a presença dele. Um dia, os meninos estavam desfilando em Jardim São Paulo. Um sol quente, e eu morrendo de frio. Aí, uma colega minha passou e disse “Tu tais é doente, tu tais com um espírito aí, visse, e é de família, junto de tu”. E eu disse “Oxe, conversa! Num gosto dessas coisas, não”. Aí ela disse, “É”.
Mas aí eu num levei em conta. Quando foi um dia, a gente voltando do Barão. A gente vinha, apanhava um ônibus que vinha pela Várzea, que é o “Curado” – eu já tava morando no Curado –, e a gente passava na frente de um núcleo espírita Luz, Esperança e Caridade, ali perto da Universidade Federal. E eu passando ali, ela disse “Olha, uma casa espírita, tu vai ter que vir ai, vamos marcar pra a gente vir”. Eu disse: “Quando for sexta-feira, a gente vem”. Aí na sexta-feira ela não foi. Mas, como eu já tinha avisado em casa que ia descer lá, eu desci. Eu já tinha lido uns livros espíritas – os pacientes do Hospital do Câncer, eles liam muito livro espírita. Quando eu cheguei lá na casa espírita que eu entrei, eu fiquei tão apavorada depois que eu desci do ônibus que eu disse “Meu Deus, o que é que eu vim fazer aqui?”. Eu devia ir era pra Federação, aí a menina: “Não, Lu, aqui é igual a Federação”. Aí, quando eu entrei que eu vi os livros, eu me encantei com os livros, fui logo comprando. E, na hora da reunião, tinha o Evangelho. E tinha na época um grupo, de um professor, Ivan, que saía nos núcleos espíritas fazendo o curso. Aí eles anunciaram que na segunda-feira ia estar ali presente pra a gente fazer curso de tratamento, curso de passe, curso de mediunidade. Aí, na segunda-feira, eu fui pra fazer a consulta. Enquanto a gente fazia a consulta, a gente já assistia uma aula com a esposa dele, que ele levava um grupo, dali da Torre pra lá. Na hora da consulta, eles disseram que era uma pessoa muito amiga, uma pessoa que me amava, que estava presente na minha vida. Mas que já estava atrapalhando, tava querendo ajudar e, ao mesmo tempo, tava criando um problema, que eu estava adoencendo. Aí foi quando eu cheguei a conclusão que era ele, era meu pai. Pronto, foi através dele que eu cheguei à casa espírita. Aí um dia eu convidei Alexandre. Minha vizinha não queria ir, meu marido tava ficando bravo porque eu chegava tarde, o ônibus demorava muito, era um ônibus que rodava muito pra poder chegar. Aí eu disse “Alexandre, hoje vai ter uma palestra sobre drogas. É um pessoal de Carpina que vem do Luz, Esperança e Caridade pra lá. Aí ele disse “Eu vou com a senhora, que é pra senhora não deixar de ir”. E comecei a comprar livros, e Alexandre começou a ler. E Alexandre também nunca se encontrou dentro da igreja. Eu ia mais pra levar eles assim, pra assistir as missas. Fez a Primeira Comunhão, fez catecismo, ele foi convidado pra participar da igreja do grupo jovem. Ele disse “Mãe, eu não me encontro dentro da igreja”.Aí quando eu comecei indo na casa espírita, que convidei ele, ele começou lendo os livros, ele disse “Eu vou com a senhora”. Aí foi nesse dia. Quando terminou a palestra, eu disse “Tu gostou?”. Ele disse “É isso que eu quero na minha vida. É isso que eu quero fazer quando eu tiver estudando”. Ele não foi mais participar, mas eu tive que me operar de urgência e passei uns meses sem ir pra casa espírita. Quando eu voltei, meu marido disse “Vamos acabar com esse negócio de estar indo pra casa de espírito”. Ele nem era católico nem era nada. Mas começou impondo. Era o ônibus, ele demorava muito, se perdesse um ônibus, ave Maria! Teve uma vez que perdi o ônibus, num tinha mais ônibus, foi a maior confusão pra poder chegar em casa. Aí, eu fui e falei com o diretor, o presidente da casa, aí Seu Carlos me deu esse nome: Jesus no lar.
“Foi através dele que eu cheguei à casa espírita”
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As origens do Neimfa Quando eu fui pro Jesus no lar, comecei levando Alexandre. E lá nós conhecemos Xerxes, Aurino, Sebastiana. Lá, foi quando Xerxes nos convidou pra ir pra Federação. Aí Alexandre começou participando da Federação, já estudando. Depois foi quando ele convidou pra vir pra aqui, para o Coque, pra trazer alguma coisa. Xerxes já tinha vindo, através do menino, Luizinho, que estava preso, lá na FEBEM. Ele foi visitar uma pessoa amiga na FEBEM e encontrou esse menino chorando. Aí perguntou por que, ele disse que era porque tava preso e a mãe não sabia. Aí ele: “Como é o seu nome e o nome da sua mãe?”. - “O nome dela é Delaziu, moro na rua da Zoada”. Aí Xerxes se comprometeu de vir avisar à mãe dele. Quando ele veio, chegou aqui, avisou. Ela foi e tirou ele da prisão. Aí Xerxes ficou vindo aqui, trazia roupa, trazia comida. Aí convidou os meninos, os meninos começaram a vir. Eu não, eu vim já fazia muito tempo.
Quando Dona Luiza chega ao Coque Um dia Alexandre chegou em casa, botou o almoço e disse assim: “Mas, mãe, eu tou tão triste”. – “O que foi?”. – “Dona Dulce, hoje, o almoço dela ia ser uma gordurinha de charque com farinha e ela ainda convidou a gente pra almoçar. Aí Xerxes foi e levantou o pratinho que tava coberto, que já tinha sido Dona Maria Redonda que tinha dado. E eu com um prato de comida desse?”. Eu disse: “Esqueça Dona Dulce e coma seu prato de comida, depois a gente pensa em Dona Dulce”. Aí foi quando eu, no domingo seguinte, fiz umas compras e me assumi mesmo, todo mês eu trazia as compras pra Dona Dulce e as filhas. Levava ela pro hospital. Foi quando eu comecei vindo mesmo pra aqui.
Cura A gente se encontrava ali, na época num tinha essas casas, num tinha metrô, era trem. Era mais aquelas palafitas mesmo, as casas em cima da água. As melhores casas eram de Paulina. Ela tinha várias casas, o pai dela alugava. A casa dela era bem grande. Mas o restante eram coisas sérias mesmo, como diz a história. A gente chegava, ficava na casa de Paulina e trazia as coisas: feijão, roupas usadas. A gente fazia nossa oração e se dividia em grupo pra visitar. Eu sempre fazia as visitas, antes de fazer o trabalho com as gestantes. E às vezes eu fazia o trabalho com as gestantes e, depois, a gente fazia as visitas. A gente ia nas casas mesmo, né? As pessoas da comunidade diziam “Fulaninho tá doente”. Aí, nos convidavam pra a gente ir lá fazer uma oração, conversar com ele, ver “tá com uma dificuldade, tá batendo na mulher, tá num sei quê”, a gente ia pra conversar, e elas vinham, tinha aquela abertura de chegar e conversar conosco. A gente levava os nomes lá pro Jesus no Lar, pra fazer o tratamento de desobsessão à distância. Também tinha o caso de doença, o povo ficava doente, chamava Antônio, me chamava, a gente ia fazer curativo. Teve uma época, eu num me lembro, eu num sei quem é essa mulher, eu tenho tanta vontade de conhecer essa mulher, que eu num me lembro mais. Disseram que ela tava internada no Hospital da Restauração e mandaram de volta pra casa, aí mandaram me chamar, eu e Antônio, a gente ia fazer os curativos. As costas da mulher tava toda se desmanchando, num sei que doença era aquela, e colocava a mão assim, o pus era saindo, e se dissolvia mesmo a parte do couro, pegava da cabeça e já tava no meio das costas. A gente lavava, lavava, quando era pra cobrir, eu não sabia como cobrir. Passava a atadura, tinha que pegar daqui e terminar por debaixo dos braços. Mas nem adiantava, porque aquilo molhava demais. Eu disse “Meu Deus, essa criatura num pode ficar aqui não, dentro de casa, o chão batido. Na época, as casas eram muito simples. Antônio disse: “Amanhã vamos levar ela pro evangélico”. E como é que vai levar? Eu disse “Não, eu dou o dinheiro do táxi”. Aí dei o dinheiro, Antônio esperou a família lá. Eu fui, ela se internou, mas nem ficou, mandaram ela pro Hospital das Clínicas. Lá ela foi pra uma junta médica. E ficou mesmo assim, pra fazer o tratamento, o curativo, eles cortaram todo aquele coro das costas dela. Ela ficou emborcada. E a gente ficava fazendo acompanhamento. Aí, lá no hospital, descobriram que ela tava grávida. Quando disseram pra ela, ela ficou muito feliz, apesar de estar doente. Aí ficou boa, teve um menino que já deve tar um homão aí, já faz muito tempo. Eu tinha muita vontade de ver, só pra ver aquelas costas como foi que ficou. Foi uma coisa fora de série. Aí a gente ficou envolvida assim. Dona Dulce era muito doente, tinha aquelas feridas, varizes. Eu levava pra Restauração, da Restauração ia pro Hospital das Clínicas. Depois teve problema de tuberculose, ia pro Otávio de Freitas. Eu vinha dia de semana aqui. Num tinha trabalho em dia de semana, mas eu vinha só pra fazer os curativos. Aí depois que a gente conseguiu o projeto, que teve a primeira casa, essa do meio, aí a gente já começou trazendo as coisas, mungunzá. Depois a gente já começou fazendo nos terraços, na casa de Valda, na casa de Dona Nezinha, na casa de Paulina. Quando chegava lá, fazia num canto só e tirava as comidas, botava nuns baldes e saía levando.
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Nessas vindas, uma pessoa tava grávida e queria doar o filho. E eu disse, “Por que você vai doar?” – “Não, porque eu não tenho condições, já tenho duas filhas” (ela já tinha duas, pequenas). Eu disse: “Eu tenho uma pessoa que quer” (que era uma vizinha minha). Aí, me comprometi de levar o menino, mas ela teve o menino antes, de 7 pra 8 meses, tava com sífilis, tanto ele como ela. E o menino ficou em tratamento, teve que tomar sangue. Aí a pediatra daí do Bandeira Filho me aconselhou a não levar essa criança pra doar, por que ela talvez morresse, e a pessoa num fosse receber ia ficar traumatizada e tal, aí a gente se comprometeu de ajudar, com leite, com o que fosse necessário pra criança. Eu e a menina que ia adotar. Foi o primeiro enxoval que eu doei, foi pra essa criança. Eu não lembro quantos dias ele demorou quando saiu do hospital, da maternidade. A gente foi quem batizou o menino. O menino era pagão, ela chorando porque o menino ia morrer e tava pagão. Eu digo, “Vamo batizar”. A gente botou água na cabeça, eu ia dizendo umas palavras, botou sal na boca do menino, eu sei que a gente batizou o menino, a gente botou o nome André Luiz. Aí o menino morreu. Depois disso, foi quando eu comecei a fazer o trabalho. Eu disse “Eu acho que eu vou fazer o trabalho com as gestantes aqui”. Em Jesus no lar, tinha esse trabalho das gestantes. Eu já participava assim, só assistindo, observando as aulas, aí foi quando eu pensei de começar aqui. Comecei com um grupo de 20. Nesse grupo tinha Djane, mãe de Cleiton, tinha Cleonice, que é uma morena bem alta que vem aqui, as meninas dela já tão também nos cursos, e muitas outras. Daí começou. Acho que esse ano, em outubro, faz 23 anos. O Neimfa faz 25, e o curso faz 23. Quando eu comecei o trabalho com as gestantes, fiquei fazendo na casa de Maria de Naldinho, um pessoal que mora perto da casa de Paulina, eu levava as gestantes pra lá. Antes, eu ficava fazendo nas casas, mas ficava muito desconfortável pra elas andarem. Quando Maria faleceu, a gente já tava construindo essa casa, a primeira. Eu fiquei na delegacia, ali na rua que Di mora, na delegacia velha, de lá a gente veio pra aqui. Era no domingo, eu mudei para o sábado, domingo a gente já deixou mais solto.
“Foi o primeiro enxoval que eu doei, foi pra essa criança”
Foto: Chico Ludermir
Trabalho com gestantes
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Foto: Chico Ludermir
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“Uma vez, eu dei cinco reais a uma pessoa, ela ficou com medo, não quis receber, era muito dinheiro”
Desejo O que eu gostaria mesmo era que, após as gestantes terminarem o curso, que a gente tivesse condições de voltar à casa delas. E a gente fazer um acompanhamento com essas crianças, pelo menos uma vez por mês. E também elas voltarem pra cá, pra casa, pra participar já da Educação Infantil. Porque as crianças que voltaram, continuaram na casa, elas são diferentes. A gente tem umas dez ou mais que estão na casa. Elas são diferenciadas, têm uma conhecimento diferente, de relacionamento. A Júlia mesmo, ela, na escola, chama atenção, porque ela foi da Educação Infantil. Você vê João, João num tem 3 anos, mas ele já é diferente, ele sabe tudo o que se passa na casa. E, lá fora, eles ficam diferenciados. Tem Cleiton, que foi um dos primeiros também.
Voltando às origens de cozinhar Participando, lá do SESC Santo Amaro, da Terceira Idade, eu ouvi falar no banco de alimentos. Aí inscrevi a instituição, faz uns seis anos Eles nos convidaram pra ser voluntária, trabalhar no banco de alimentos, indo pras instituições, pra ajudar. Aí foi quando eu disse “Não, eu já participo de uma instituição, eu queria apenas receber”. Aí eu inscrevi o Neimfa. São contratos de dois em dois anos. Comecei também a fazer cursos, porque eles oferecem curso de tudo, receitas, como receber, como manipular, como armazenar, como congelar, como fazer o aproveitamento realmente integral dos alimentos. As vezes eu num faço, num ponho em prática aqui porque os meninos não aceitam. Eles não comem a verdura, eles vendo a verdura. A gente pega as verduras, cozinha, bate no liquidificador, pra poder colocar na comida. Mas, as verduras em si, eles não têm a cultura de comer verdura e fruta. As frutas, só se for numa salada, mas você pegar assim e botar, é difícil eles comerem. Só se for uma maçã, porque às vezes vem maçã, vem pêra, vem uva. Aí foi quando eu comecei voltando às origens de cozinhar. Porque eu fui criada cozinhando. Já tinha realizado meu sonho de enfermagem e eu não queria voltar pro hospital.
Saudade das visitas Uma coisa que era muito importante na época eram as visitas. Eu mesma gostava porque a gente realmente sabia o que tava acontecendo dentro da comunidade. A gente andava por dentro da comunidade. Aí ficou, estudo, os trabalhos, os lanches, as coisas, e a gente foi ficando mais aqui. O que eu sinto é a gente se fechar muito aqui dentro, achar que todo mundo tá bem aqui. Tá não. Tem gente aqui na frente passando fome, olhando pra cara da gente, e a gente não enxerga. Mas, se a gente saísse mais, olhasse mais pra fora, a gente ajudaria mais. Eu acho que o que faltava era voltar essas visitações. Num precisava nem ser mesmo a gente, os próprios alunos daqui, que participam, colocar em prática justamente o que eles aprendem aqui. Tinha uma senhora que vinha, trazia a filha de 9 anos que estava grávida. E nós fomos fazer uma visita. Quando eu cheguei na casa, eu observei que a casa só tinha um beliche. A menina, acho que dormia em cima e ela embaixo. Num tinha nada na casa sabe? Aqui tem casa que você entra, é uma beleza, tá bem melhor do que a minha. Mas tem casa que você entra de frente e sai de costas. No dia de uma confraternização que nós tivemos aqui, uma mulher pegou Alexandre pelo braço e foi mostrar a casa dela. A merda borbulhava dentro de casa, dentro desses becos, porque quando chove, reflui; às vezes num precisa nem chover, basta a água, muita água. E Alexandre ficou tão contrariado que ele não participou, ele chegou ali, eu fui oferecer uns doces a ele, ele disse “Não, eu nem quero agora”. Eu nem sabia por quê “Por que tu num quer? Tu és tão chato pra comer!”. Ele: “Não, mãe”. Porque ele tinha visto né? As pessoas vinham à gente, e quando vinha a eles, eles “Mãe, olhe, fulana tá precisando”. Quando as pessoas diziam “Quero falar com a senhora”. Eu dizia “Ai, meu Deus, o que será”. Era pra pedir 1 cruzeiro, né? (na época num era real), pra comprar uma bolsinha de leite. Uma vez, eu dei cinco reais a uma pessoa, ela ficou com medo, não quis receber, era muito dinheiro. Eu ajudo a muita gente aqui, que num precisa botar no jornal. Mas só ajudo quem gosta de estudar. Quem não gosta de estudar, eu num ajudo não. Eu dou, mas eu procuro saber o que é que tá fazendo. Eu sei aquelas que estão realmente precisando e sei também aquelas que vêm por vício mesmo de pedir. Às vezes eu digo “Mas que diabo eu tou fazendo aqui nesse Neimfa?” (risos) Mas, nada é por acaso, né? Nada é por acaso. A gente tem um carma. Ele diz assim: “Quem tá aqui, num tá fazendo favor a ninguém, tá se ajudando”. Texto e Edição: Maria Liberal Fotos: Chico Ludermir, Acervo pessoal de Dona Luiza, Colaboração: Katarina Scervino Ilustração: Anaíra Mahin
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Foto: Chico Ludermir
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Dona Valda
Todo o amor de Valda Ela não consegue falar sem mencionar as palavras amor e felicidade. Essa é Valda. Dificilmente se veem pessoas com o coração tão grande, com tanta compaixão. Ela emana carinho e amorosidade. Assim é o encontro com ela diariamente ali no Neimfa, e assim foi nosso encontro numa segunda-feira, depois que todas as crianças já tinham deixado a casa, e ela teve um tempinho pra parar e nos contar fatos de sua vida. Falou de sua família de sangue e da família de coração que construiu no Neimfa, lugar que ela descreve, principalmente, com a palavra ‘aprender’. Ali Valda foi aprendendo a ‘crescer dentro de si’ e a ajudar os outros a ‘viver sua vida, e não, deixar a vida lhe viver’. Cozinheira? Faxineira? Acima de tudo ela é uma educadora. Educa pelos atos, pelo afeto, pelo cuidado. É assim, extasiada de admiração por essa mulher, que deixo agora que ela fale por si.
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Ontem Minha mãe foi sempre de... ela chama Venda Grande, mas é Piedade. Ela nasceu e se criou ali, eu também nasci ali e vim com 1 ano pra cá. Meu pai é de Bonito, encontrou minha mãe, e quando ele saiu de lá, já tava com 3 filhos: eu e meus dois irmãos. Ele veio pro Coque. Conheceu o Coque, chegou aqui e jogou minha mãe de uma forma muito estranha, não disse nada. Minha mãe disse que ele tinha uma casa de “tauba” mesmo e jogou ela ali, sem cama, sem móvel, sem nada. E ela foi vivendo ali mesmo, foi quando ela começou a se acostumar dentro do Coque. Era muita maré que tinha na frente da nossa casa. Quando era pequena, eu brincava na maré, ela enchia bastante e era uma festa. Aí pronto, ele trouxe ela aqui pro Coque. Foi quando a vida da minha mãe se tornou muito mais difícil. Ela veio de lá, de Piedade, de Venda Grande, não conhecia ninguém, não sabia de nada e ele deixou a gente um tempo aqui, desapareceu e voltou de novo. Ele era carpinteiro, era aquela pessoa que pegava o serviço hoje, ganhava aquele dinheiro e passava uma semana sem trabalhar. Por isso a vida da gente se tornava muito mais difícil. Era bem assim a história, o que eu vi, né? Eu vivi muito pouco com ele, quando ele morreu, eu tava com 12 anos de idade. Mas minha mãe sempre dizia que ele sempre fazia isso. Um pai carinhoso, mas um pai ausente, não podia dar tudo.
Foto: Chico Ludermir
“Ela engomava com um carinho tão grande que aqueles ternos, aquelas colchas bordadas, quando saía da mesa, a colcha chega saía sorrindo – ela dizia isso”
Sei que a vida da gente foi vida da pobreza mesmo, pobre, pobre mesmo e a gente nunca chorou por ser pobre. Foi quando ela começou a lavar roupa. Ela tinha dez lavagens de roupa, e naquela época era linho, era tudo passado na goma; bem passada, a roupa, ela fazia “serão”, como ela dizia, “Vou fazer serão pra dar conta das roupas pra entregar” e era no ferro de carvão, aquele ferro que colocava as brasas dentro e passava a roupa. Tinha vezes que ela comprava o carvão e ele estralava muito. Eu era pequenininha, mas lembro que ela ficava com muito cuidado pra não queimar a roupa do povo. Ela engomava com um carinho tão grande que aqueles ternos, aquelas colchas bordadas, quando saía da mesa, a colcha chega saía sorrindo – ela dizia isso. E ela se orgulhava do que ela fazia, de ver aquela pessoa com aquela roupa bem engomada – as patroas dela – ela ficava feliz da vida. Ela pegava aquelas trouxas de roupa e trazia pra casa pra lavar – porque, naquela época, as patroas mandavam as trouxas de roupas pra lavar em casa. Ela lavava e tinha muito prazer em fazer isso. Eu mesma ajudava, carregava trouxa de roupa na cabeça, ia pro chafariz puxar as latas pra encher d’água pra poder minha mãe lavar a roupa. Aqui, antigamente, tinha chafariz, um lugar com várias torneiras d’água, ali a gente comprava por lata. Eu enchia minha lata, não lembro o total de dinheiro que era. Vamos dizer que uma lata era cinco centavos, a água, só a água. Então, a gente pagava e botava a água na fila, aí a lata ia correndo a fila, você puxava a lata, chegava na minha vez, eu levava a lata pra frente, isso aí até chegar na torneira, quando chegava na torneira, você enchia sua lata e saía. Minha mãe, quando lavava roupa, tinha 5 latas, a gente colocava todas as cinco. Eu vinha, enchia as 5, vinha aqui, colocava no barril e ela ficava lavando roupa. Aí eu voltava com as cinco latas vazias e botava de novo na fila. Isso eu fazia com uma alegria tão grande, eu botava a lata na cabeça e, cada vez que eu andava bem apressadinha, a água começava a cair pelo meu corpo e eu ali, feliz da vida, rindo, chegava lá, jogava e pronto. E minha mãe lá, lavando a roupa dela. No final da tarde, ela ia pra uma campina, um local que só tinha mato, era onde elas iam lavar roupa, pra poder ficar mais perto do chafariz, pra ficar menos trabalhoso – trazer a água pra cá que era mais distante. Levavam um banquinho, um barril, botavam aquelas roupas todinha, todas estiradas e, no final da tarde, tava tudo enxuto. Fazia aquela trouxinha e trazia pra casa, pra passar, ela passava em casa, era assim. Minha mãe tinha 10 lavagens de roupa, e, no final, da segunda até o sábado, nós ficávamos nessa luta. Eu sempre aquela menininha danadinha, espertinha, pra isso eu era, botava água, ajudava ela a estender a roupa, apanhar, só não fazia engomar, porque isso não era pra mim porque eu era tão pequena. Hoje em dia tá tudo mudado, você tem uma máquina de lavar, tem lá seu tanque. Tem horas que eu tô dentro de casa e eu penso: “Poxa, você já tem a máquina, o ferro elétrico e outras coisas”, e a vida não ofereceu isso pra minha mãe. Já a minha vida, eu tive oportunidade, e ela tá tendo também agora, porque tá viva e tá vivendo essa vida também.
“Isso eu fazia com uma alegria tão grande, eu botava a lata na cabeça e, cada vez que eu andava bem apressadinha, a água começava a cair pelo meu corpo e eu ali, feliz da vida, rindo”
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Senhoras do Coque
Foto: Chico Ludermir
Ela foi uma guerreira, educou dentro da educação dela. Ela não teve a possibilidade de indicar a gente pra um estudo, porque também ela era uma pessoa que não tinha conhecimento do que era estudar, o que era o saber, o que era dar o estudo ao filho. Pra ela, se o filho aprendesse a assinar o nome, tava maravilhoso, ela não exigia nada da gente. E assim nós fomos vivendo, ela com essa dificuldade todinha e vivendo. Ela era uma lavadeira, mas ela sempre, até hoje, diz que foi muito feliz na vida dela. Você não chega lá pra ela chorar, pra ela contar isso como uma tristeza, ela diz: “Eu fui uma mulher, brinquei muito, lavei roupa”. Eu vi minha mãe assim, conheci ela assim. Meu pai não, meu pai era um pai que não deu muita atenção à gente, eu não sei também o que rolava, eu via mais a desunião dos dois, eu não entendia o porquê, mas ele tinha duas mulheres e ficava dividido. Ele teve quatro filhos com a outra e teve quatro com minha mãe – na realidade, minha mãe teve nove, mas só escaparam quatro. Eu tenho quatro irmãos por aí que não conheço, não sei onde estão. Quando ele faleceu, eu conheci, porque ele faleceu na casa da esposa. Essa era a esposa, minha mãe era a mulher dele, a mulher do comecinho. Mas ele dividiu o amor pras duas e viveu até o quanto ele pôde. A situação de vida era muito difícil. Minha mãe tinha uma situação muito difícil, ela não tinha alimentação pra dar a gente correta. Eu me lembro que tinha uma parte que ela pegava a gente assim, com muita fome, muita fome mesmo e ela tinha uma baciinha de alumínio, bem limpinha, ela colocava aquele feijão e mandava pra o meu irmão que era Edinho. Ela chegava em casa, botava uma colher na boca de cada um dos meninos e eu me lembro – isso aí eu me lembro – que quando eu botava o feijão na boca, era como se fosse uma coisa tão gostosa que eu queria mais, mas não tinha, só dava mesmo uma colherzinha pra cada um. Eu olhava aquilo, mas também não sentia tristeza por ver aquilo, eu sentia só desejo de comer mais, mas não tinha tristeza porque tava naquela situação. Eu me lembro que minha mãe comprava naquela época – hoje nós temos esse pão francês, eles são pequenininhos, né? Naquela época eles eram ‘maiorzinhos’, então, minha mãe comprava um daquele e dividia pra cinco pessoas e ela ia lá nos matinhos, pegava capim santo e fazia o chá e oferecia a gente o pão e o chá e ela dizia: “Coma pra não ficar com fome”. Me lembro que ela dizia muito bem isso “Tem que comer”, às vezes eu nem queria, – “Ah, não quero não, mainha”, – “Pois você vai comer, se não vai ficar com fome”. Ela tinha muita preocupação em não deixar a gente com o estômago vazio. Naquela época, eu não tinha minha casa, não tinha aquele sonho, porque toda criança tem um sonho de ter sua casa bonita. Bonita, assim, com banheiro, bem organizada. E a gente não tinha.
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Tinha aquela casinha humilde, de tábua, de palha de coqueiro, que era coberta. E o móvel que a gente tinha, me lembro como hoje, tinha uma mesinha bem simples, de madeira ali, com os banquinhos. Isso e eu ainda era feliz, era uma menina feliz com tudo aquilo. Uma televisão, a gente não tinha, você queria assistir um filme, novela boa, “Irmãos Coragem”, eu tinha uma vizinha, pertinho da minha casa, dona Isabel, que foi a primeira pessoa que comprou uma televisão e eu, como criança: “Coisa linda”, eu só queria passar o dia todinho olhando pra aquilo ali, aí ela cobrava um tanto pra você entrar, você entrava e assistia o filme. A gente sempre chamava “esse lado”. O lado de lá, a gente chamava “a linha do trem” – era onde você atravessava e ia pro outro lado, Cabo Eutrópio. Tinha um senhor ali que também tinha televisão, aí eu ia logo cedo pra ficar na porta, eu ficava o tempo todinho lá, um bocado de menino me empurrando atrás, era uma filinha de criança tudo pra assistir o filme, as novelas e eu só saía depois que assistisse a novela. Era aquela alegria. Tinha hora que o dono da casa gritava: “Silêncio, minha gente, senão eu fecho a porta!” – a janela, né? Que ele não deixava nem a porta aberta, era uma janela, essa janela era até grande. Os meninos que eram menores ficavam na frente e os que eram maiorzinhos ficavam por detrás dos menorzinhos. Os que tinham dinheiro pagavam e entravam. Era como se fosse o cinema da gente, era bom, eu mesma gostava. Toda noite eu dizia: “mainha, a senhora deixa eu ir? – “Deixo... tal hora, volte”, – “Tá certo”. E iam as meninas, numa alegria danada, era muito bom mesmo. A minha adolescência, brinquei muito, não estudei, mas brincar, eu brinquei. Aqui, antigamente, tinha pastoril, tinha coco, eram as coisas que a gente brincava, nós adolescentes. A gente se divertia bastante. A gente saía, ia dançar, era os Caducos, o Anjo Veloz, o Esperança, o Mocidade, isso tudo eram as sedes de dança que a gente brincava. No domingo, no sábado, na sexta, a gente tava lá brincando e a gente era muito feliz. Antes eu pensava, “Ai, foi tudo sofrimento”, mas hoje, como eu boto em outro ângulo, eu vejo que não foi sofrimento, foi o que nós tínhamos de viver e que nós vivemos muito bem e todos eram felizes.
A família de sangue No começo do meu casamento, eu vivia trabalhando pelas cozinhas, em casa de família. Quando eu me tornei aquela menina de 13, 14 anos, já fui pra cozinha trabalhar, pra ajudar, pra comer também, porque eu não sabia o que era comida. Aí eu vou trabalhar pra comer e também pra vestir, porque eu já pensava em querer namorar, em aparecer bonita, em estar nas festas. Foi assim, fui trabalhando, trabalhando, trabalhando, quando chegou, com 17 anos, eu me casei. Pensava que o casamento ia me tirar daquele trabalho que eu estava: “Ah, agora eu me casei, minha vida vai mudar”. Eu pensei naquela época que ia ser a princesinha do casamento, ter um casamento que o marido pudesse me sustentar, que me desse o que eu queria. Aí foi o contrário também, veio aquela fase de aperreio. Com 17 anos, 18 eu tava tendo meu primeiro filho. Meu menino, o primeiro, nasceu doentinho, aí eu tinha que correr, ir pros médicos, e os médicos ainda era difícil nessa época.
Eu comecei cuidando de Junior, que foi meu primeiro filho, aí veio a dificuldade de novo, a falta de dinheiro pra comprar o remédio dele, a falta da comida, aí eu vi assim: “Poxa, o casamento não foi aquilo que eu esperava”. Em seguida, engravidei, tive um aborto de 6 meses, aí a vida começou a apertar, né? Aí vem a mesma repetição da vida da minha mãe, e eu vendo meus filhos, sempre dizia: “Eu vou batalhar de novo porque eu não vou deixar meus filhos viverem a mesma vida que eu vivi”. Voltei de novo a trabalhar em casa de família, meu serviço era esse mesmo, serviço geral, era coisa que eu sabia fazer, então segui de novo. Comecei organizando minha casa, meus filhos, foi quando eu comecei a crescer dentro de mim. Fui tentar outro filho porque eu era louca por uma menina, mesmo assim, com tanto sofrimento. Eu já tava bem organizada, a cabeça mais tranquila, sabendo mais como era, tava dentro de um casamento. Sabia a vida que minha mãe passou e eu não queria repetir, mesmo que eu soubesse que não ia melhorar tanto, porque eu não tinha uma informação boa, mas eu sabia que podia trabalhar e continuar, aí continuei. E hoje, é como eu digo: sou pobre, continuo pobre, tenho muito orgulho de ser pobre, porque foi a minha vida que eu escolhi. Hoje eu tenho minha casa, meus 3 filhos, tô aqui forte e firme.
O Neimfa começou lá na casa da gente
Foto: Chico Ludermir
Quem chegou primeiro aqui foi seu Xerxes, ele veio à procura de Luizinho, que tinha sido preso. Seu Xerxes encontrou com ele e ele pediu que ele trouxesse um recado pra mãe dele, Dona Deleaziu: que ele estaria preso. Deu o endereço tudinho, aí seu Xerxes chegou , foi quando a gente se conheceu. Quando ele viu a comunidade naquela situação, muito pobrezinha mesmo, mais pobre do que hoje, ele disse: “Vou voltar. No próximo domingo estou voltando”. Quando ele veio, trouxe uma cestinha básica, que era sorteada.
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“Por detrás de Dona Lenira, existia Valda, que era quem fazia o lanche”
Xerxes, que chegou por primeiro, viu, e os meninos, em seguida, viram a luta da gente aqui dentro da nossa comunidade. Os meninos, Alexandre, Aurino, Lúcia, Antônio chegaram a conhecer a nossa comunidade quando era de casinhas de “tauba”, viram a maré entrar e sair. A casa de dona Maria Redonda foi o lugar onde ele deu a primeira reunião. Primeiro ele foi na casa de dona Deleazil e depois voltou pra dar uma reunião na casa de dona Maria Redonda e ficou. Nessa época, eu não chegava muito na reunião porque era no domingo, tinha menino pequeno, trabalhava a semana toda, mas ia, olhava e voltava pra casa. Aí foi indo, indo e essa reunião e as feiras acontecendo até que depois eu fui pra ver se eu recebia também uma feira daquela. Aí depois Paulina encostou também e ficou. Paulina se entregou mais à reunião, ficou muito à frente, mas nós estávamos tudo junto, Paulina, minha mãe, que é Dona Lenira, Di. Paulina botou ele num quartinho que ela tinha e desse quartinho ele recebeu uma casa. Não cabia todos nós dentro, tinha que dividir, aí a reunião acontecia na casa da gente, cada pessoa ia cedendo o seu terraço ou sua casa mesmo. Na casa de mãe era Aurino e Lúcia que dava; na minha casa chegou a passar João – que já faleceu –, Cristiano, Hugo, Fábio, Alexandre. A primeira vez que ofereci meu terraço, ofereci à Emília, minha sobrinha chegou: “Tia, não dá pra senhora ceder o terraço pra Emília dar as aulas?” Eu disse: “Dá”. Mas eu sempre brinco com ela, digo: “Emília, você não gostou da minha casa”, aí ela me explicou, disse que era porque meu terraço era muito aberto e os meninos ficavam todos pendurados, porque era novidade. A gente sempre oferecia ou munguzá, ou arroz doce, ou sopa de osso. Tinha dia que Paulina não fazia, aí minha mãe se comprometeu a fazer o lanche, mas, por detrás de Dona Lenira, existia Valda, que era quem fazia o lanche. Tinha um depositozinho e nós íamos dividindo e todo mundo lanchava. E quando era festa de São João, Antônio trazia milho, esse milho era “cozinhado” na casa da minha mãe, eu cozinhava e no outro dia nós saíamos distribuindo na festa. Nós nunca deixamos de dar o lanche dos meninos. Depois que o Neimfa foi crescendo, ficou tudo aqui, aí ficou melhor, nós temos fogão, mais panelas. Naquela época a gente cozinhava em casa, com o fogão da gente, os milhos a gente fazia assim: um fogo de carvão e umas latas de gás, de óleo, latas novas, a gente abria, enchia de milho, cobria, e todo mundo comia o milho e a gente ficava feliz. Hoje em dia nós não temos mais dificuldades, como você agora tá presente e vê, nós temos almoço, é uma festa grande, aqui no Neimfa, cabem todos nós, mas antes era desse jeito.
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Quando Valda se torna cuidadora do Neimfa Eu trabalhava nas cozinhas dos outros, às vezes chegava tarde e não dava tempo pra eu ficar aqui dentro. Aí quando eu parei de trabalhar foi que eu vim pra aqui, dei graças a Deus porque era também uma época que eu já não tava suportando ficar na casa dos outros. Era muita correria e você sabe, quando você trabalha em casa de família – apesar de que minhas patroas não eram nem tão ruins –, mas eu me sentia como se tivesse presa, e também não aprendia nada. Saía de casa 6h da manhã, ficava trabalhando até oito horas, oito e meia da noite, aí quando eu chegava em casa é que eu ia cuidar das coisas. Deixava os meninos pequenos, deixava mãe olhando. Depois os meninos foram crescendo, foi acalmando mais, foi quando eu fiquei só com Rafa pequeno. Um dia Di chegou, eu tava no “Pão da Vida”, estudando, aí Di disse: “Valda, tu queres ir trabalhar no Neimfa?” Aqui trabalhava de domingo a domingo, porque tem o movimento. E eu era muito apegada aos meus domingos porque eu trabalhava a semana toda. Domingo, pra mim, mesmo com toda dificuldade, eu queria ir à praia, assistir um filme, junto com meu marido – nós saíamos pra passear, levávamos os meninos. Aí pensei: “Ah, meus domingos, não”. Mas depois, chegando aqui, eu vi que as coisas mudaram pra mim, tenho meus domingos de folga, trabalho de segunda a sábado, mas o trabalho do Neimfa não me cansa, às vezes eu tô em casa e dizem: “Valda, estamos precisando” e eu tô aqui. Quando você tá trabalhando na casa dos outros, você, além de ser empregada, você não aprende nada, você só aprende que você só serve pra cozinhar, limpar e nada mais. Quando eu cheguei no Neimfa, eu aprendi que não é só o trabalho, é o trabalho, a aproximação, a convivência, é uma
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família, você trabalha feliz. Tem hora que eu tô cansada, mas depois eu chego em casa, tomo um banho, relaxo um pouquinho e abençôo o Neimfa. Nas minhas orações, ele sempre tá presente, eu sempre tô orando que cada vez mais ele cresça e espero que ele nunca feche, que apareça alguém que continue os trabalhos do Neimfa porque o Neimfa tem muita história pela frente, tem muita coisa pra se mudar ainda dentro do Neimfa e tem muito trabalho porque nós temos aqui os nossos adolescentes que tão aí pequenininho. A comunidade precisa de um lugar desses, mesmo que a gente não tenha a oportunidade de ter muitos meninos fazendo curso, o pouco que nós temos eu vejo que é muito bom. É como se o Neimfa trouxesse os adolescentes pra cá e eles pensassem em viver mesmo, fazendo alguma coisa, levando o conhecimento pra frente. Nós temos Paulo, Andréa, Eduardo, Rafael mesmo, Patrícia, que já podem ter um encaminhamento na vida, já sabem dizer o que eles querem, correr para onde querem, na busca de ideal. Eu tenho o Neimfa como minha casa agora. Sempre digo que tenho duas casas: uma, a minha casa, e a segunda é o Neimfa. Eu tenho muita paixão pelo Neimfa, tenho uma história de vida mesmo que ele me ofereceu, uma mudança de vida, eu aprendi muito dentro do Neimfa e hoje, cada vez mais, eu tô aprendendo e me envolvendo mais. Então, pra mim, foi maravilhoso. Eu vou ficar velhinha aqui e aproveitando, aproveitando cada vez mais. Pra mim é ótimo e é isso a minha vida.
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“Tem hora que eu tô cansada, mas depois eu chego em casa, tomo um banho, relaxo um pouquinho e abençôo o Neimfa”
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A família de coração Di é minha ex-cunhada, eu digo a ela que ela não é ex, ela é sempre cunhada. Tem Paulina, que na vida da gente foi uma pessoa muito presente, digo que tenho Paulina como irmã, irmã de coração, tenho as filhas dela como minhas netas de coração. A convivência que tivemos foi muito linda, eu, Paulina, Di. Djane era menorzinha, era como se fosse nossa filha. Mas Di e Paulina já foram mais como irmãzonas. Estou com uma dor, chamo Paulina, Paulina vai lá me acolher, tou com uma dificuldade, Paulina vai lá ajeitar a dificuldade ou compartilhar comigo, se eu tiver chorando, Paulina me dá o ombro dela pra me consolar. Então nós somos uma família mesmo. Eu não tenho nem palavras pra dizer o que eu acho de Alexandre, são muitas coisas boas que eu vejo, dele estar sempre junto de Rafael, porque eu sempre pedi a ele: “Alexandre, não deixe Rafael” e ele sempre tava ali juntinho dele. Com altos e baixos que Rafa passa, Alexandre sempre tá sustentando pra mim. Eu considero Alexandre como se fosse, eu não tenho nem palavras, como se ele tivesse guardando o meu tesouro, que é meu filho, pra depois devolver ele pro mundo, como ele queira ser. Como tem o Aurino, qualquer coisa que Rafa faz eu to lá chamando Aurino, dizendo: “Aurino, Rafa tá desse jeito”. Com 4, 5 anos, Rafael já começou a estudar com Aurino. Rafael preguiçoso, se acordava na hora que a reunião tava começando, coçava o olho, eu forçando e ele ia. Eu olhava pros meninos e sonhava que meu filho fosse um pouco parecido com eles. “Ai, meu Deus do céu, meu filho tem que ser... – engraçado, a minha cabecinha... – assim feito os meninos”. Eu admirava Alexandre, Aurino, era uma coisa que eu achava diferente das pessoas da minha comunidade, eu achava eles diferentes e é por isso que eu dizia: “Quando meu filho crescer, eu quero que ele seja mais ou menos (risos) parecido com eles, pegue alguma coisa a ver”, mas ficou totalmente diferente. Eu forçava: “Você vai pro Neimfa” – aqui tinha o curso, ele tava estudando, mas era preguiçosinho. Todos eles são pessoas muito importantes na minha vida. Foram pessoas que vieram pra dentro da comunidade, que são importantes pra eu saber e abrir também o meu conhecimento, os meus olhos, pra eu enxergar o que eu enxergo hoje. Porque antes eu não enxergava a vida como ela deveria ser olhada, eu não tinha acesso às pessoas que tivessem um nível de conhecimento, eles deram essa oportunidade e eu sou muito feliz por estar junto deles. Cada vez mais eu vou aprendendo. Mesmo que eu fique aqui na cozinha preocupada com o lanche dos meninos, com a casa, eu sempre tô escutando tudo o que vocês tão dizendo e cada vez mais eu vou aprendendo mais. Hoje eu já me sinto como se fosse, não aquela Valda de antigamente, mas hoje eu sou uma Valda mais pra cima, com mais, muito amor à vida. Aprendi a viver muito mais e é por isso que eu sou tão feliz. Espero que o Neimfa cada vez mais cresça pra eu poder envelhecer aqui dentro, estar aí, tudo juntinho e vivendo. É isso o que eu tenho a dizer do Neimfa. Às vezes eu tô ali toda agoniadinha, mas o coração tá a mil por hora, e tá de amor mesmo, por esses meninos que perturbam. Às vezes eu abro minha boca, eu digo: “Menino!”, mas eu sei como é que eu tô dizendo aquele “menino” porque é muito carinho que eu tenho mesmo, pelos meninos da minha comunidade, e desejo que eles cresçam bem na vida, e que tenham sucesso na vida. Se eu não estiver mais por aqui, mas estarei lá por cima e estarei vendo de lá.
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Quando Valda descobre outras formas de cuidar das pessoas Quando dona Gigi tinha um centro espírita, eu, Paulina, Di, já frequentávamos, nós já tínhamos uma ligação dentro do espiritismo lá, mas nós não íamos pra mesa, não fazíamos nenhum trabalho. Nós éramos pequenas, novas, acho que tínhamos uns 14 a 16 anos. Mas teve uma época que eu me lembro como hoje, que eu fui assistir a uma reunião dela e ela tava fazendo uma reunião pra caboclo e a minha primeira incorporação foi nessa hora, eu não sabia nem o que era uma incorporação, sabia o que era manifestar “Fulana tá manifestada”. Aí ela me puxou e eu ainda falei pra Paulina, não sei se Paulina lembra ainda hoje: “Oxe, Paulina, eu não sei por que ela me puxa e eu me sinto estranha” – eu não entendia, né? Teve essa festa, eu participei, e depois teve o tempo que ela saiu daqui, foi pro Ibura e a reunião dela era sempre de mês em mês (no primeiro sábado do mês) e a gente sempre ia.
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“Mesmo que eu fique aqui na cozinha preocupada com o lanche dos meninos, com a casa, eu sempre tô escutando tudo o que vocês tão dizendo e cada vez mais eu vou aprendendo mais”
Dona Gigi, pra mim, é um símbolo mesmo, já que ela tá no outro lado, eu espero que ela seja um espírito muito bom, que esteja no Neimfa, que, se possível for, sempre esteja ao meu lado, eu não faço nenhuma questão dela ficar ao meu lado, porque eu tenho muito apego com ela, de saber que ela foi a primeira pessoa que desenvolveu minha mediunidade. Depois disso, aqui, com Aurino “bora pra essa reunião”, “faz isso”, “bora isso”. Sempre teve essa reunião que Alexandre faz, a reunião pública, nas quartas, e a gente sempre tava presente. Aí, ao longo do tempo, eu creio que veio uma necessidade de formar outro grupo. A gente já tinha essa reunião pública e a mediúnica, desde o começo, aí depois foi vindo o budismo, a roda de cura e depois veio a jurema e por aí adiante. Cada um que faça da forma que seja melhor pra casa, porque cada vez trabalhamos para que a pessoa se sinta bem, não importa qual religião você é, o importante é o que você vai viver ali dentro e se você gostar, você fica, se não, pode sair. Eu sou muito orgulhosa por ajudar as outras pessoas a procurar e a encontrar sua vida. Nós estamos aqui, fazendo esse trabalho com muita humildade e com muito respeito a cada um que aparece na nossa casa e que cada um saia muito tranquilo. A gente sempre ora e pede muito que cada um que vá pra aquela consulta, que ele saia muito tranquilo, muito feliz é o desejo dos trabalhadores todinhos da sala mediúnica, da consulta, é que todo mundo se encontre, encontre e viva a vida, não deixe a vida lhe viver. Nunca me senti vaidosa por ser médium, porque incorporar, eu sei que é um compromisso, é muito dificultoso. Eu sempre digo que não tem segredo, o segredo somos nós mesmos que abrimos nosso coração e deixamos que as coisas vão acontecendo. Cada um tá dando o que pode dar e eu fico muito feliz quando vejo isso. É o meu trabalho, eu tenho muito carinho por ele. Cada vez mais tô tendo mais compromisso e tô sabendo como ir resolvendo os trabalhos que vim fazer aqui na Terra, pra quando eu chegar do outro lado, que pelo menos tenha feito o que vim fazer aqui, já que não vim com a missão do estudo, de me formar, dessas coisas. Mas eu sou muito feliz porque tem essas outras coisas, tem meu trabalho, minhas mãos, tem minha vida, saúde. E tem onde eu possa trabalhar e ainda, por presente, a minha mediunidade que foi dada por Deus e eu tô aqui sempre pra desenvolver ela e trabalhar pra aqueles que tão precisando. Fazer um trabalho bom pra nossa casa e para o povo que vem procurar a gente. Todos nós trabalhamos nesse objetivo, não cobramos, não pedimos nada, você vem por sua vontade, vem na hora que você quiser, se não quiser, não vem. Quando você vem, é que você tá precisando. Eu procuro porque eu preciso também, porque os trabalhos que eu faço não são assim: “vou fazer esse trabalho só por fazer”. Eu vim pra fazer esse trabalho, se eu vim, eu tenho uma missão pra cumprir e se essa missão é ajudar alguém. Eu sempre vou tá junto desse trabalho pra ajudar e ver as outras pessoas felizes. É tudo isso que eu gosto de fazer.
“Que todo mundo se encontre, encontre e viva a vida, não deixe a vida lhe viver”
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Hoje Minha vida foi essa até chegar hoje. Hoje eu já conto diferente. Hoje em dia, aqui tá melhor, nós temos uma vida melhor do que a de antes. A de antes você tinha a maré e era muito mais dificultoso pra gente. E agora eu vejo que nós temos oportunidades. Os meninos daqui do Neimfa têm uma oportunidade que a gente, naquela época, não tinha. Era tudo difícil, escola era difícil, alguém chegar pra dar uma comida a você era difícil. É por isso que hoje eu digo aos meninos que aproveitem bastante, porque na época que eu era adolescente, eu não tive essa chance, não tinha essas coisas maravilhosas que hoje você vê, tem curso ali, tem o Neimfa que oferece também essas coisas pros meninos, dá um encaminhamento, aprendizagem, educação. Eu vejo que os jovens daqui, eles tão muito mais inteligentes mesmo, não são mais aqueles adolescentes que são tão bobinhos, eles sabem chegar, se expressar, e na minha época a gente não tinha isso, era só aquele básico mesmo, vendo a mãe correndo, lavando roupa, passando necessidade. Hoje, eu falo pra os meus filhos: “Hoje vocês têm uma vida melhor”, porque na hora que vocês querem comer uma comida, a gente já pode comer aquela comida que desejou. Quando eu era criança, eu não tinha esse prazer de poder comer um chocolate, de comer uma fruta, de comer carne, eu não tinha porque minha mãe não tinha condição. Essas coisas nós não tínhamos, mas assim mesmo eu agradeço porque hoje eu sou essa mulher que sou hoje, com 58 anos, mas batalhadora, criei meus filhos. É como eu digo a eles: se eles não aproveitaram os estudos é porque eles não quiseram. Eu sempre repito isso pra Rafa: “Rafa, não repita a situação que veio da sua avó e chegou até a sua mãe e hoje você pode melhorar”, porque hoje a aprendizagem tá muito melhor, ele tem a chance de estudar e ser alguém na vida, meu sonho é esse. Foi tanto que quando eu tive Rafa, foi o Rafa dos
“Eu sou muito feliz de ter essa família que eu tenho e ter os amigos que eu tenho e de ter os irmãos de coração que eu tenho. Essa é minha vida” meus sonhos, um menino que eu achava lindo, foi uma gravidez que eu planejei, “Vou ter esse filho, vou dar uma vida melhor pro meu filho”, mesmo eu trabalhando nas cozinhas dos outros, mas eu já pensava assim, portanto eu lutei por ele, né? Ele já chegou a fazer a faculdade, não terminou ainda, mas ele já tá com a vida bem encaminhada. O conhecimento dele foi totalmente diferente do meu e também ele teve a oportunidade de estar dentro do Neimfa, porque ele é um dos filhos do Neimfa que tão aqui, teve ajuda de Alexandre, Aurino, todas eles que passaram por ele dando aula. A aprendizagem, o conhecimento dele tá muito amplo. Eu já digo hoje: se ele não seguir um bom caminho, é porque ele não quer, porque conhecimento ele já tem. Conhece dentro da comunidade que ele vive, ele já sabe muito bem decifrar cada coisa que a comunidade vive e passa. Então eu digo a ele: “Meu filho, eu, você, aproveitava”. Porque agora ele tá fazendo, agora no dia 11 de abril, 28 anos e já tá correndo porque quando chega o 28 passa muito rápido. Júnior se casou com 18 anos, Welington com 16. Cedo. E hoje tão numa batalha, trabalhando pra caramba porque não aproveitaram a vida, o que tinham que fazer, não fizeram, que eram os estudos, pensaram logo no casamento. Mas tão aí tranquilos, muito bem com a família, Junior com seus dois lindos filhos: Deivison e Denis; Welington com suas duas lindas filhas: Gabi e Sandy, e tão vivendo, o importante é isso. Eu sou muito feliz de ter essa família que eu tenho e ter os amigos que eu tenho e de ter os irmãos de coração que eu tenho. Essa é minha vida. Texto e Edição: Maria Liberal
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Fotos: Chico Ludermir e Sandokan Xavier
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As duas lagoas vivas de Zezé A primeira vez que Dona Zezé nos fez chorar foi em maio de 2010, era uma noite de sexta-feira. Num palco improvisado nos jardins do Museu do Abolição, ela e as outras ‘mães do Neimfa’ cantavam juntas, à capela, uma música chamada “A barca”. Era a abertura da exposição “Relíquias do Buda”, no Recife. Pairava um silêncio geral, só se escutava em uníssono as vozes das senhoras ecoando, lembrando um clima de procissão “Lá na praaaaia, eu larguei o meu baaaarcoo”. Já contagiados de emoção com a cantoria, não pudemos sustentar as lágrimas quando Dona Zezé arrematou tomando a palavra no microfone: “A gente veio lá do Coque, um lugar de pessoas humildes, que aprenderam a lidar com o sofrimento”. Ela nos faria chorar ainda outras vezes. Meses depois na sua casa, lá no Coque, ao nos oferecer tão generosamente suas lembranças, histórias e ensinamentos. E agora, ao costurar suas falas. Sua simplicidade e sabedoria são de emocionar qualquer um que para para ouvi-la. Dona Zezé é uma senhora de 70 anos, bem branquinha, de cabelos lisos e olhos azuis. Ela fala com a gente olhando no fundo dos olhos e tocando nossas mãos. Chegamos em sua humilde casa, nos sentamos, e daí em diante ela nos contou, em algumas horas, os eventos mais marcantes de sua vida, de uma só vez, sem precisar que perguntássemos, em meio a lágrimas, nossas e dela, já que não havia como não ser contagiado pela emoção e verdade de suas palavras. Não havia mais nada a fazer a não ser prestar atenção nela que sabe tanto da vida, que tem tanto a nos ensinar. No fim da conversa, Zezé nos deu sua benção, nos desejou coisas boas, nos abraçamos e fomos embora com o coração tocado de tanta vida e beleza que vinha daquela mulher. Enquanto eu editava suas palavras nas páginas que seguem aqui, uma imagem não saía de minha mente: seu par de olhos azuis, que mais parecem duas lagoas vivas. Lindos. Um azul tão intenso e brilhante, que me silenciam num momento de paz. No entanto, à medida que mergulhamos na narrativa de suas memórias, vimos que, por detrás de tanta beleza e serenidade, há muita dor e sofrimento. “Reviver o passado é muito ruim, né?”, foi sua primeira frase já com os olhos cheios de lágrimas. Mas Dona Zezé é daquelas pessoas raras, preciosas. Sábias. É como se os olhos dela fossem lagoas cheias de lodo em sua profundidade, mas de onde brotam talos fortes de vitórias-régias, frondosas na superfície. Há flores e muita luz naquele azul que eu tive o privilégio de ver nos olhos desta senhora do Coque.
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Do início da história de Zezé A minha vida tem muita coisa pra contar. E, ao mesmo tempo, é uma vida como umas tantas que existem por aí. Eu fui criada sem mãe, mas Deus botou uma mulher na vida do homem que dizia que era meu pai. Foi muito boa pra mim e tenho certeza que, pelos anos do desencarne dela, já encarnou e deve ter vindo melhor do que ela era. Eu não tive infância. Eu estudei, porque essa criatura foi uma mãe pra mim. Brigou muito com o meu pai, pra mim estudar. Barulhos e mais barulhos. Meu pai bebia, não atendia ninguém e só atendia a mim. Eu ia buscar ele nos cantos que ele estava. Ele gostava de brigar, eu tinha medo que ele perdesse a vida numa dessas brigas. Comecei namorar muito cedo, com nove anos. Com 11, eu noivei. Com 12 anos, a minha mãe, que eu chamava ela de “Ninha”, partiu. E eu já era o eixo da casa e fiquei com mais responsabilidade. Meu noivo era sargento marítimo, vivia mais no mar que na terra. Com um ano e seis meses dela, ele morreu de um choque elétrico. Meu pai já tinha arranjado uma nova companheira. Diga-se assim, uma mulher que Deus botou no meu caminho pra ser um teste, tirar a minha paz e o meu sossego. Brigava muito, me esculhambava. E eu procurei meus avós. Meus avós não tinham condições de ficar comigo, porque eram muito pobres, muito carentes no sertão da Bahia. Aí, meu pai me botou de casa pra fora. Ai, Jesus... Aí, foi o terceiro baque que eu caí, mas tive uma mão amiga que era minha madrinha, que me deu toda força e apoio, me levou pra casa dela. Quando eu saía pra ir para o colégio, a nova esposa de meu pai dizia que eu ia era pra zona, não ia para o colégio.
Do ninho da madrinha à gaiola de ouro do marido: a felicidade de encontrar a mãe Até que um dia apareceu... Eu conhecia de vista, que na casa do meu pai era bar, mercearia, e ele entregava querosene lá na casa de meu pai. Aí, ele me viu quase sentada de frente à casa de meu pai. Aí, deixou lá o pessoal trabalhando e veio aonde eu estava. – Ô, minha boneca, o que é que você tá fazendo aí? Aí, eu disse: “Porque eu tou morando aqui”. – O que aconteceu? – Muitas coisas, que a gente não tem nem vontade de falar. Ele disse: “Tu não tem mãe, não?” Eu disse: “Tenho não. Eu hoje me considero no mundo sem família. A minha família é essa: minha madrinha, e também não tem condições pra tá comigo, que ela vive lavando roupa de ganho. Mas eu vou procurar um trabalho, vou trabalhar e vou sair dessa”.
Foto: Sandokan Xavier
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Aí, ele disse assim: “Na volta, eu passo aqui pra gente conversar”. – Tá bem. Quando ele voltou, voltou com uma proposta. Perguntou se eu queria namorar com ele, porque ele ia falar com meu pai e era pra logo, porque ele tinha ficado viúvo fazia dois anos. Aí, minha madrinha disse: “Tá no seu querer, no seu eu. Você escolhe. Não tou botando você de casa pra fora, não. Mas você disse que quer ter a sua vida. Talvez seja a sua felicidade batendo na sua porta”. Aí, noivei com ele. Com dois meses depois, eu me casei com este cidadão. Eu com 14 anos e dois meses e ele com 62 anos. O primeiro ano de casamento foi as mil maravilhas, tudo bom. Mas o segundo ano por diante... Eu saí do fogo e cai dentro de uma fogueira. Eu muito nova, com 16 anos e pouco, eu já tinha dois filhos. Eu não podia conversar com ninguém. Eu tinha uma vida estável. Continuei estudando, mas daquele tipo que vai levar e vai buscar como se vai buscar uma criança, pra não levar chifre, como dizem por aí. A minha vida era correr pra casa de amigos, porque ele queria me matar, com ciúme de mim. Mulher não podia falar comigo, porque vinha trazer recado de amantes. E o homem que passasse na minha porta e falasse comigo, era amante meu. E eu morava com três filhos dele casados dentro. A minha casa era muito grande, com todo conforto. Tinha empregada pra eu não fazer nada. Mas eu não tinha sossego, eu não tinha paz. Eu só tinha sossego enquanto ele tava pelo mundo viajando, passava até uma semana. No dia que eu completei 18 anos, um cidadão chegou lá na minha porta chamando ele. Ele trabalhava com ele. – Oia, tu dá licença eu entrar? Ele disse: “Não, fale daí mesmo”. – Não, mas o que eu tenho pra conversar com você pertence também à sua esposa, mais a ela do que a você. Aí ele disse: “Alguma vez na tua vida, alguém disse a você que sua mãe era morta?” Eu disse: “Eu procurei muito o túmulo de minha mãe nesses cemitérios daqui da cidade. Eu viajei pra Bahia, porque ela era baiana.” Eu nasci na Bahia. Com quatro dias de nascida, eu vim pra Pernambuco. Eu que passei a minha infância, a minha adolescência procurando uma mãe, por acaso do destino, eu encontrei minha mãe. Encontrei minha mãe doente em cima de uma cama. Levei ela pra minha casa, tratei dela e ela ficou comigo.
“Eu saí do fogo e cai dentro de uma fogueira”
De quando o fogo queimou os sonhos: a gota d’água para a separação Quando eu encontrei a minha mãe, eu pensei: eu agora vou melhorar, tenho mais uma criatura do meu lado. Já tinha três filhos. Mas a vida foi de pior a pior. E eu ainda continuei com ele até os 25 anos, quando eu não suportei mais. Ele botou fogo na casa comigo e as crianças, o povo tudo dentro de casa, pra matar todo mundo. E essa foi a gota d’água. Nós se separamos nove vezes. Ele botava a arma em cima, obrigava eu voltar e eu, com medo dele, voltava. E nesse dia que aconteceu isso, eu tava operada, tinha feito uma cesárea. Eu tinha passado mal, tinha feito a cesárea da criança ligada nas trompas. Eu passei um mês no hospital tomando sangue, fraca. Na companhia dele, eu pesava 42 kg. Pensava ele: “Eu lhe dou tudo, dou joia, dou roupa, casa bonita, empregada e você diz que não é feliz”. “Não sou feliz”.
Foto: Jonathan de Lima
Ele chegou da praia, num domingo. Eu tinha chegado do hospital. Foi até onde era o antigo Pedro II, que agora ergueu-se de novo, né? Ele queria que eu preparasse a lagosta pra mim comer. Eu disse que não ia comer. Eu não ia comer, porque eu tava de resguardo. Eu não poderia comer aquilo. “Então, você vai comer é agora”. Pegou a lagosta, meteu no meu rosto. Eu tenho uma baixa aqui (alisa a testa). Aí, uma senhora que me acompanhava, desde menina, que eu chamava ela de vó, ela disse: “Ô, minha filha, você tá sangrando”. Quando eu passei a mão e vi o sangue, eu disse a ele: “Você vai me pagar”.
Pensava ele: “Eu lhe dou tudo, dou joia, dou roupa, casa bonita, empregada e você diz que não é feliz”. “Não sou feliz”
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E eu disse: “Eu vou mostrar a todos vocês que eu vou dar a volta por cima”
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Antigamente nas casas das pessoas, tinha as cristaleiras, tudo de cristal. Na minha, tinha tudo isso. Eu fui na gaveta do buffet, arrestei a beretta dele e dei dois tiros. Pena, porque ele não morreu. Naquela hora, eu senti isso. Mas pegou na perna. Eu disse: “Quando você voltar, eu não estou mais aqui, não. Pode me entregar lá à polícia, que eu já tou farta de você mandar eu me sentar pra dar em mim de cinturão”. Eu passei por tudo isso com nove filhos. Três filhos que tive nasceram fora de tempo, de aborto, por causa dele mesmo. Um nasceu de uma pezada que ele me deu. Mas essa foi a minha separação. Não sei se foi para o meu bem, não sei se foi para o meu mal, que eu sofri muito.
Das revelações do passado às reviravoltas da vida: Zezé voa para São Paulo Peguei minha mãe, botei numa casinha que eu tinha na Cabanga, com as minhas coisas. Não procurei esse homem que dizia que era meu pai, porque eu procurei tanto minha mãe... Quando eu vim encontrar, eu tava com 18 anos. Depois que eu tava com 25 anos, aquele homem que dizia que era meu pai, não era meu pai.
Por causa dos maus-tratos que minha mãe passou com ele, dele arranjar amantes e levar pra dentro de casa, minha mãe também arranjou um amante. E desse amante, ela teve três filhos, mas separou-se dele. Eu fui a primeira dessa história. Então, eu não vivi uma vida. Eu não vivi a minha vida. Eu vivi uma vida assim... acho que foi premeditada ou foi o carma de outras encarnações. Eu hoje, eu penso assim, né? Mas eu não odiei ele, não. Continuei chamando ele de pai. Eu fui embora pra São Paulo com meus filhos, só com a roupa do couro e algumas roupinhas. Com um menino de dois meses nos braços. Eu tinha um trocado, aí, fui de avião. No aeroporto mesmo, uma criatura foi enviada por Deus. Perguntou se eu era nordestina, eu disse que era. O que eu tinha ido fazer ali com aquelas crianças. Eu disse: “Eu vim botar meus filhos num abrigo ou numa creche, pra trabalhar, que eu tenho diversas profissões”. Ele disse: “Eu tou aqui, que eu não quero empregar ninguém daqui. Eu quero empregar gente nordestina, que vive sofrendo. E parece que você calhou, enquadrou-se no meu recado. Você sabe costurar?” Eu disse: “Sei, formada em costura.” Ele disse: “Vamo simbora”. Me botou dentro do carro. Tinha uma senhora no carro. Botou os meninos tudinho dentro. E me levou pra casa dele. No outro dia, ele tinha outro apartamento quase em frente ao apartamento dele. Ele me mandou fazer faxina, limpar e eu passei pra dentro. Com quatro dias, eu tava dentro da cidade de São Paulo, trabalhando, pensando assim: como a minha vida foi um círculo que se transformou da noite para o dia. Escrevi pra minha mãe, dizendo que eu tava bem. Eu tenho outra irmã – como tenho – que ela não fala comigo, por causa da minha separação com o meu marido. Que todos eles pensavam que eu tinha deixado ele pra ser prostituta. E eu disse: “eu vou mostrar a todos vocês que eu vou dar a volta por cima”. Que o mais que eu queria na minha vida era encontrar a minha mãe. Eu tinha encontrado a minha mãe.
De quando o coração de filha fala mais alto: Zezé volta para o Recife Quando eu estava lá, já fazia oito anos que tava em São Paulo, chegou uma carta dessa criatura que me criou como filha, dizendo que eu era filha. Que antes de morrer queria me ver. Ele tava hospitalizado no Barão de Lucena. Aí, comprei uma passagem de avião e vim, deixei os meninos. A minha mãe disse: “Você errou em ter vindo”. Eu disse: “Não, eu vou ver a situação dele.” Aí, vim ver. Ele já tinha cortado uma perna. E pediu, pelo amor de Deus, que eu não deixasse ele morrer à míngua; que eu não era filha dele, mas ele me criou como uma filha. Aí só respondi a ele: “Eu vou voltar, vou fazer as minhas contas no trabalho e venho mimbora, com meus meninos, e vou ficar aqui”. Quando eu viajei de volta, minha mãe vai e adoece. Aí, a vizinha dela telefona pra o meu patrão. Quando ele chegou à noite, ele disse: “Olha, tua mãe tá doente”. Eu disse: “Pronto, agora que deu certinho. Ah, vou mimbora”. Aí, vim mimbora. Trouxe um trocado, fiquei na casa da minha mãe, mas a minha casa que eu tinha na Cabanga era pequena, não dava pra mim e os meninos. Aí, encontrei com uma comadre minha, ali na saída da Cabo Eutrópio [no Coque]. Ela disse: “Bendito seja! Tu voltou. Ô, que felicidade”. Aí, eu disse: “Eu tou procurando um canto pra alugar ou com-
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prar pra mim, os meus filhos e seja o que Deus quiser”. Ela disse: “Mas tem uma coisa: te prepara, que teu marido ainda vai te infernizar muito”. “Meu marido, não! Tenho mais marido, não. Não me considero casada mais”.
Coque: o lugar que Zezé escolheu para viver sua nova história Tinha um senhor pintando lá uma casa na beira da linha. Aí, ela chegou: “Seu Eurico, essa casa, como é aí? É pra vender, é pra alugar?” Ele disse: “A gente faz tudo. Ah, é tu, Zezé!” (com a outra Zezé) “Pra quem é?” Ela disse: “Pra uma comadre minha”. Aí, ele desceu da escada: – Você tem um sotaque de paulistana. Você é de São Paulo? – Não, eu passei um tempo lá e peguei um pouquinho do sotaque lá do povo, mas eu não sei nem o que é que eu sou. Eu nasci na Bahia, me registrei em Pernambuco. Aí, ele disse assim: “Como é que você quer?” – Por quanto o senhor vende essa casinha? (Era quatro vãos). – Por dois mil e quinhentos. – Eu quero. – Você quer mesmo? – Quero. – Pronto, eu já vou terminar de pintar. Se você quiser passar-se hoje mesmo praqui, você se passa. – Não, eu vou comprar umas coisas. Vou ver se minha máquina ainda existe, que eu tinha deixado na casa de uma amiga. – Você é costureira? – Sou. – Ah, aqui você vai se dar bem. Por aqui, não tem costureira, não. No dia que foi de carregar a mudança, a maré botou pra dentro de casa. Mas aquilo não me chocou, não, que eu já tinha passado por tantas boas. Só em ver os meninos mergulhando dentro da maré, pra mim, foi um alívio. “Mainha, a gente vai aterrar. Tem muito barro ali. Muita coisa a gente aterra e cimenta, né? Fica bom.” Aí, foi que a gente fez, os meninos, meu compadre ajudou
As casas eram de palafita, trepado nos dormentes que hoje não tem mais. Quando a maré enchia, nas palafitas não entrava água, porque ficava mais alto. Veio a cheia de 66, eu já estava aqui, não estava com um ano, a gente ficou em cima da linha do trem. Depois veio a de 67, depois em 70 teve outra. Em 75, teve uma cheia chata que enchia, secava e enchia e secava e passou a semana inteira assim. Na primeira cheia, eu perdi tudo, porque eu não sabia o que era uma cheia. Eu perdi tudo e tive que comprar tudo, mas com tudo que eu passei e por tudo que eu ainda vivo passando eu não vou dizer que eu sou infeliz, não. Na medida do possível, eu penso que eu sou feliz. Tinha delegacia, danças, associação, escola. Eu arrumei logo colégio para meus meninos. Todos os dias, eu ia ver o meu pai, corria para onde estava minha mãe. Trabalhava noite e dia numa máquina para criar oito filhos. Eu tinha um filho paraplégico e eu não chorei no desencarno dele, pois Deus viu que eu já tinha sofrido tanto, que levou ele. Uns tempos depois, uma menina que sofria do coração também partiu e aí ficaram seis para mim criar. A gente que nasceu para ser mulher, para ser mãe, a gente tem que ver os caminhos certo e errado dos meus filhos. Que eu botava meus filhos pro colégio e, quando dava certa horinha, eu saía aqui por cima da linha. Eles estudavam lá no Joaquim Nabuco, entravam na salinha deles, eu via eles lá e nem me viam. Muitas vezes, a diretora: “Tu tocáias mesmo teus filhos”. “Mas tá! Eu venho mesmo, menino, que eles são danado”. Meus meninos eram tão desesperados... Não tinha água encanada. Lá em casa, tinha vinte lata d’água. A gente botava de noite pra tirar de dia e quando os meninos chegavam do colégio, elas tavam tudo cheia, que o dono do chafariz enchia e deixava lá para eles apanhar. E eu pensava que eles estavam pegando e eles estavam era pulando na maré, tomando
Foto: Sandokan Xavier
muito, que ele morava perto de mim. Aí, foi a minha nova história, no Coque. Foi o lugar que eu escolhi pra viver.
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Você tem que criar seus filhos conforme suas possibilidades. Não é você dizer que não pode e eles se desesperar: “Calma, quando eu puder, eu dou a cada um. Não posso dar a todos de uma vez”. Graças a Deus, meus filhos não penderam paras as drogas, só para o álcool. Como mulher, eu me sinto realizada. Tenho seis filhos: duas mulheres e quatro homens; doze netos, doze bisnetos e Jesus vai me presentear com mais dois bisnetos. A minha família tá crescendo cada vez mais, não é? Meu sonho é só ir embora quando for tataravó. Essa é a quarta geração. Eu fiz dois anos de obstetrícia, porque meu sonho era trabalhar na maternidade para pegar menino quando nascesse. Meu sonho era esse. Não tive sonho, mas tive formatura de magistério, de filosofia. Estudei um pouco de inglês. De tudo, peguei um manejo de pouquinho. Onde dizia “tenho a chance”, eu tava lá. Tenho netos formados em patologia, economia, química. Tudo fui eu que andei para meus filhos e para eles, mas meus filhos só tem o magistério. A gente tem que se esforçar também para ter alguma coisa com o nosso esforço, com nossa boa vontade. Esperar que caía do céu é ruim, viu?
“Aí, foi a minha nova história, no Coque. Foi o lugar que eu escolhi pra viver”
Foto: Jonathan de Lima
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banho. Não era essa maré de hoje, não, podre, era aquela água branquinha. Eles faziam isso. Quer dizer que toda vida existiu menino peralta, né?
Da Zezé moradora do Coque O Coque é uma benção, o Coque é dentro da cidade. Se você quiser ir para Afogados a pé, você vai; se quiser ir para cidade a pé, você vai; se quiser ir de metrô, você vai; tem ônibus para todos os lugares. Mas as pessoas lá de fora tem medo de entrar no Coque. Tem pessoas que não tem, mas entra com receio. Uma vez, eu fui entregar um currículo na Santista, que eu trabalhei 30 anos na Santista e perguntaram: “Tu moras onde?”. “No Coque!”. “Onde?”. “No Coque, que chamam São José. Tu não sabes, não?”. “Deus me livre, que eu não quero ninguém do Coque aqui”. “E tu, moras onde?”. “Em Boa Viagem”. “No Entra a Pulso?!”. “Me dá teu documento, danada. Me dá, que eu já vi que tu sois de fé”. Foi um grande chefe meu. Trabalhei e quando eu saí, ele disse: “Vou ficar com saudade de ti”. Me aposentei, que eu já tava cansada. Eu já tinha todos os meus direitos de trinta anos de trabalho. Sou feliz dentro do Coque, gosto das pessoas que moram no Coque. Aqui morava meu compadre e morava minha amiga que eu construí, muito boa, e ela já partiu. Nunca eu quis construir inimizade com ninguém. Eu não tenho um intrigado. Eu sempre digo pra minha família e pras pessoas: “Não existe um bom que não tenha uma imperfeição e não existe um ruim que não tenha uma perfeição”. E as pessoas tinham tanto respeito por mim, que assim... Época de festa, São João, Páscoa, Carnaval... Tinham aqueles viveiros que criavam peixes pra pescar na semana santa, na quarta-feira. Nada disso faltava na minha casa, porque eles me agradavam muito, gostavam das minhas crianças. Não tenho casa boa, mas tenho a comunidade. Se muitos não gostam de mim, eu não sei, mas na minha presença fazem festa comigo. Inimigos, sempre tem; invejosos, sempre tem. Por quê, eu não sei. Vivo aqui, moro aqui. Gosto de todo mundo. Gosto de andar arrumada e enfeitada. Eu acho que muita gente censura. Gosto de coisa boa, embora não tenha condições, mas gosto das minhas saias rodadas, de ver a minha família em paz e todas as famílias do universo. A gente tem que se esforçar também para ter alguma coisa com o nosso esforço, com nossa boa vontade. Esperar que caía do céu é ruim, viu? Nós construímos o Coque. Eu mesmo fui representante do Coque II, para que nós tivesse uma casinha assim. Quer dizer, que essa aqui minha já caiu, tá pra terminar, que eu levantei novamente. Por mais que a gente olhe para dentro de casa, não tenha um pedaço de pão pra dar pros seus filhos, não tenha vergonha de pedir. Mas não se entregue ao vício de pegar no que é alheio. Eu amo o Coque, só vou sair daqui quando eu morrer.
Uma dor acalantada e palavras de sabedoria: a entrada de Zezé no NEIMFA O meu filho mais velho morreu num acidente de trabalho, de choque elétrico. Aí, foi quando eu fui ao fundo do poço. Eu já tinha perdido minha mãe, não tinha ainda me recuperado e com a morte de meu filho... Não era um filho, era um pai, era um irmão, era um amigo, era um marido que eu não dei pra trás com meus filhos. Naquele momento, eu nunca senti, com todo meu sofrimento que passei na minha vida, eu não senti uma dor tão grande, quanto eu senti com a perda de meu filho.
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Nessa época, eu já tinha filhos casados, foi em 87. Num domingo, tava com sete dias da morte dele, Paulina veio aqui me buscar. “Não, Zezé, vamos. Eu sei o que você está passando”. Aí, me levou. Quando eu cheguei lá, tinha muita gente sentada. Eu não tava em mim, eu não dormia, não comia, passava as noites todinha andando no meio do mundo. Eu agradeço à Paulina, ao professor Xerxes – que foi quem fundou o NEIMFA – que, naquele momento, eu senti que a minha vida ia mudar. E como mudou. Ele pede pra Paulina fazer uma prece junto com os meninos nessa época: Alexandre, Antônio, Aurino, Socorro, Evelin, Dona Luiza 1, Dona Luiza 2, Marcelo, Hugo. Fez aquela roda e cantaram a prece de Francisco de Assis. Essa prece era a prece que meu filho andava sempre com ela no bolso, na carteira. Aí, ele disse pra mim: “A senhora vai falar com seu filho e a senhora vai sair dessa. A senhora não tem fé em Deus, não?”. “E como eu tenho!”. “Olhe pra dentro da senhora mesmo e veja que tem muita gente que ainda precisa da senhora e tudo quanto eu fizer pela senhora ainda é pouco. Domingo, eu quero a senhora aqui novamente. A senhora vem?”. Eu disse: “Venho”. Essa foi minha história de entrar no NEIMFA. Daí por diante, eu já superei muitas coisas com paz, com tranquilidade, com encontros e desencontros da vida, mas eu sei trabalhar esse lado. Hoje, eu sei porque eu passei por tudo isso. Eu comecei a estudar filosofia e fui buscar respostas, não pela religião, que religião não salva ninguém. O que salva você e eu que estou aqui, o que salva são as nossas ações e as nossas reações. O que quer dizer nossas ações e nossas reações? Praticar o bem e não querer de volta aquele bem que você praticou, daquela pessoa, pois você vai encontrar o bem mais na frente, talvez de uma pessoa que você não conhece. Sempre aparece uma pedra no caminho da gente. A gente descarta. A gente não deve ter medo de nada, porque medo é um demônio. Não julgar, para não ser julgado. Não construir raiva, porque você pode ter um colapso, um derrame, uma trombose, um AVC. Não ter inveja, porque se fulano tem sua casa bonita e você não tem. Olhe, se eu tiver um pedaço de carne para almoçar com minha família, eu estou feliz; se tiver um ovo, eu tou feliz. Sabe por quê? Porque tem muitos que nem água tem para beber. Eu não reclamo. E quanto mais a gente reclamar da nossa vida, de nossa sorte, ter inveja, ter cobiça, mais a gente vai sofrer. Eu não tou aqui com 70 anos, porque eu sou boa, não. Se eu fosse boa, eu já tinha partido. Eu tou aqui cumprindo o meu resgate de outras encarnações, tudo quanto eu passei eu pedi ao mestre maior para passar por tudo isso. Mas existe o véu do esquecimento, bendito seja, que faz com que você esqueça tudo o que você pediu a ele e você foge de todas as promessas: de ser bonzinho, tranquilo, ter paz, não brigar, não matar, não roubar, não ferir. Porque a gente não fere as pessoas com a arma, não. A gente fere com a palavra, que muitas vezes faz a gente despertar para coisas piores. Então é essa minha missão aqui. E sobre o NEIMFA: é minha segunda casa. Foi que me deu o sustentáculo para eu me erguer como mulher, como mãe, como amiga. É como Alexandre mesmo diz: “Quem olha para ti hoje, Zezé, não diz que é aquela Zezé que entrou no NEIMFA chorando, carregada pelos braços do povo”. Isso para mim é um conforto. O NEIMFA não é meu, nem seu, nem de ninguém. Ele é um núcleo ecumênico de todas religiões. A pessoa faz a opção, aquela que mais caiba na sua mente ou no seu coração.
Foto: Sandokan Xavier
“E sobre o NEIMFA: é minha segunda casa. Foi que me deu o sustentáculo para eu me erguer como mulher, como mãe, como amiga”
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O grupo das mães de Dona Zezé Meu grupo de mães começou pequenininho: era duas, três mulheres. Nós começamos na Rua da Hortência, lá próximo à Rua da Zuada, onde Paulina morava. Tinha um quartinho, era lá. Depois, quando começou as casas de lá, eu já tava aqui, aí o grupo veio para casa de Paulina e da casa de Paulina, Marcelo fez um empenho para comprar uma casinha. Aí, comprou uma casinha, que é aquela primeira que tem os Budas. Aquela foi a primeira casa que foi comprada e levantou ali. Ainda não tinha tudo para se fazer reuniões ali. Nós ficamos fazendo reuniões nos domingos e foi crescendo o número de mães. Tinham nas quartas-feiras as reuniões de curas, como tem ainda. Os mediuns ficam lá em cima e eu fazia parte. Depois, eu pedi permissão, porque eu já estava cansada e há muitos anos que eu já vivia nessa parte. Na sexta-feira, tinha o evangelho novamente. Depois, compraram a outra casa. Compraram outra casa, que é aquela de cá, onde faz as reuniões. E depois, compraram mais outra. Desta vez, compraram duas de uma vez só, onde fez a reciclagem. E o NEIMFA também veio do nada. Xerxes, quando começou, ele trazia umas coisas para dar ao pessoal. Ele trazia no carro, fechava assim de meninos, de senhora para dar aquelas besteiras, que era besteira, mas que servia muito. E quem tomava conta desse carro, por incrível que pareça, era um homem que fumava uma maconha besta, mas ninguém chegava perto do carro dele para bulir. Ele sempre quando me encontra ele pergunta se ele ainda tá vivo. Tá, eu sinto saudade dele. Então se foi crescendo. Daqui, ele ainda acompanhou a gente aqui. Depois, o pessoal começou a querer reunião só com ele. Ele disse: “Eu vou dar um tempo”. “Você não vai dar um tempo, não, Xerxes! Você vai formar outro trabalho lá fora. É melhor falar logo a verdade”. “Fique calada, que você não sabe de nada!”. “Tá certo, eu não sei de nada”. Foi-se embora, Xerxes. Deu adeus e não voltou mais pros trabalhos do NEIMFA. Aí, ficou essa turma jovem. Eu agora só tenho mesmo compromisso com as mães. Meu trabalho é trabalhar com as mães, evangelizando, porque tinha mãe ali que não sabia nem rezar um Pai-Nosso. E pra mim, elas
Foto: Sandokan Xavier
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Foto: Sandokan Xavier
são a minha família, a minha família espiritual, que Deus botou elas no meu caminho. Adoro minhas mães. Eu conheço elas, sei do problema delas e digo: “Vocês pensam que eu não tenho sofrimento, nem dor, não? Tenho, minhas amigas, tenho perturbação, tenho quem atazane a minha paciência, mas tiro de letra, quando vejo que a coisa quer esquentar: abro o portão, mudo o pensamento, entro em prece e, quando chego em casa, a coisa tá mais clara. Aí, pego a Bíblia, o Evangelho ou um livro qualquer. E assim levo minha vida”. Essa é a nossa missão espírita do Evangelho segundo o espiritismo de Allan Kardec. É dum versículo de Mateus: “Se tu procurares, tu acharás o teu caminho e tua verdade. Está em ti e em teu coração”. Os meninos lá do centro sorriem comigo: “Zezé, se tu ficares aleijada, tu ainda vens praqui?”. “Venho. Eu venho, porque eu vou ficar atazanando a vida de vocês, pra vocês irem me buscar”. Eu, antes de entrar no NEIMFA, me chamava dona Zezé costureira. Passaram a me conhecer como dona Zezé do NEIMFA e meu nome não tem nada a ver com Zezé. Meu nome é Ione Maria José Silva, estou com 70 anos, não sei se vou chegar aos 71, só o Deus da sabedoria é quem vai dizer.
Da fé e da compaixão: uma ação no mundo O mundo está dentro de nosso coração. A gente é quem faz o nosso mundo e deixa os outros correrem à procura do mundo deles. Eu fiz campanha em Catende, Bezerros, Maraial, Águas Pretas e vi os transtornos daquelas pessoas pedindo alimentos, morrendo de fome e a água cobrindo. Eu passei por uma ponte para tirar um casal de velhos que tava na cumeeira de uma casa que, lá, nem socorro entrava e tinha um bocado de policial. “Bora, que eu vou mais vocês”. A minha menina foi comigo. Essa que tá estudando medicina também avoou-se dentro d’água e a gente foi. Levamos para um abrigo em Catende. A casa dele ficou somente a marca que era uma casa.
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No dia 2 de janeiro [de 2011], eu viajei para Bahia e a gente foi por Petrolina, que é mais perto. Está do mesmo jeito, porque eles não têm emprego e ainda estão querendo ajuda, e os nossos governantes nada fizeram por esse povo. Permita Deus que caia uma pedra na cabeça deles, que eles reconheçam e façam alguma coisa por aquela gente tão necessitada, porque só existe mesmo o lugar onde tinha as casas e aquelas barracas que o exército botou para aquelas pessoas ficarem ali, no maior desconforto. Semana passada, eu disse aqui: “Eu acho que Jesus não pisou em São Paulo, não. Que lugar triste, meu Deus, para dar tanta água, levar tudo das pessoas, deixar as pessoas sem nada, desabrigadas, que povo sem fé”. Minha menina disse: “Mainha, a senhora já tá falando errado”. “Mas já to pedindo perdão a Deus”. Eu acho que existe isso, mas aqui a gente sofreu isso.
Foto: Jonathan de Lima
Ontem mesmo, eu tava orando para aquelas pessoas do terremoto [ocorrido no Japão em março de 2011]. Essa menina que entrou é minha filha e perguntou: “Mamãe, a senhora tá orando por quem?”. “Por aquelas pessoas que perderam a vida”. “Mas a senhora nem conhecia”. “Mas, para orar, não precisa conhecer. São os espíritos enviados por Deus, eles trouxeram essa prova”.
Foto: Sandokan Xavier
Este ano é o ano do fogo e das águas. São dois seres que estão governando o planeta e cada um que queira ser mais forte. Vocês viram o terremoto, a água acabando com tudo e o fogo no mar. A natureza, ela permite que os homens façam tudo, mas no dia que ela quer o que é dela, ela vem buscar.
A dádiva nas palavras de Dona Zezé Eu queria dizer que Nossa Senhora da Conceição, que é Maria de Nazaré, que navega por todos os ares e montes sagrados, matas virgens e marés, por rios e cachoeiras, que ela deixe sempre o derramar de seu manto sobre todas as criaturas universais, da nossa comunidade, dos que fazem parte da nossa família material e espiritual, da família do NEIMFA; que se transforme neste momento em pétalas de rosa no coração de vocês, porque vocês têm muitas coisas bonitas ainda para dar. Que assim seja e assim será. Texto: Maria Liberal e Rafaela Vasconcellos Edição: Rafaela Vasconcellos Fotos: Sandokan Xavier, Acervo pessoal de Dona Zezé, Colaboração: Jonathan de Lima Ilustração: Anaíra Mahin
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Foto: Chico Ludermir
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Dona Geralda Do nosso encontro Naquela manhã ensolarada de sábado, chegamos ao NEIMFA e ela não estava. Esperamos e ela não chegava. Falamos com um, com outro, e todos garantiam que se ela tinha dito que viria, é porque ela viria. Mas como o tempo passava e ela não aparecia, resolvemos buscá-la. “A casa dela fica lá do outro lado, depois da Cabo Eutrópio”, nos disseram. Fomos, então, guiados por uma outra senhora até lá. Não fizemos o caminho clássico que conhecíamos, de seguir pela Avenida Central, acompanhar o muro do metrô, cruzar a Cabo Eutrópio e dobrar na Rua do Campo. Seguimos os passos habilidosos de Dona Paulina, que cortavam as ruas do Coque por dentro. Entre becos e ruelas cheios de crianças brincando, mulheres conversando na porta de casa e homens passando de bicicleta, caminhávamos juntos, na expectativa de encontrar aquela senhora. E a encontramos numa rua larga, aberta ao sol forte, numa casa charmosa abrigada pela sombra de uma mangueira. Ali, no oitão da casa, Dona Geralda lavava roupa no tanque, quando ouviu chamarem seu nome pelo portão. “Ai, minha filha, me desculpe, eu tinha esquecido que era hoje”. “Tudo bem, Dona Geralda. A gente quer ouvir a história da senhora. Pode ser hoje ou a senhora tá ocupada?” “Pode, sim. Mas eu prefiro que seja no NEIMFA. Vocês podem ir na frente, que eu vou daqui a pouco, quando terminar a roupa”. E foi assim que fizemos o mesmo caminho de volta com Dona Paulina. Quase uma hora depois, chegava Dona Geralda um tanto tímida, tomada banho, cheirosa, com os cabelos penteados, presos num coque. “Queria vim arrumada”, disse ela logo ao passar pela porta. Dona Geralda é uma mulher de semblante sério, que trabalha em silêncio. Gosta mais de ouvir, do que de falar. Tanto, que foi preciso fazer uma série de perguntas para cada assunto que ela trazia, como quem dobra e redobra a cana-de-açúcar moída para sentir mais e mais seu caldo doce. Mulher de falas curtas, mas diretas e precisas, naquele dia, ela era o centro das atenções. Nossos olhos e nossos ouvidos estavam voltados para o que ela quisesse nos oferecer. E, apesar de achar que não sabe contar história, Dona Geralda nos surpreendeu ao nos revelar um mundo de histórias de sua vida, que dão pistas da história da cidade, do Coque, da nossa sociedade. Éramos quatro estudantes universitários, que se viram meninos e meninas sentados em roda diante daquela mulher forte, cheia de segredos pra contar. Eis, aqui, fragmentos transcritos, editados e costurados da fala de Dona Geralda.
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As raízes da menina Geralda Meu nome é Geralda Maria da Silva. Eu sou de abril, dia 10 de abril de 1934. Nasci em Alagoas, no município de Viçosa. Vivia da roça com a minha mãe, trabalhando. Plantava as coisas pra comer e vender. A lembrança da minha infância é que eu não tive infância. Com nove anos, eu comecei a trabalhar na roça. Eu plantava milho, feijão, mandioca, macaxeira, e quando eu tava com 14 e 15 anos, já comecei a trabalhar na usina. Minha mãe foi morar numa usina em Catende, aí eu fui pra lá com ela. Fui morar lá, trabalhar em cana, plantando cana. Cortar cana, amarrar cana, tudo isso eu fazia. A lembrança que eu tenho é de trabalhar. Minha mãe não deixava eu fazer nada, não podia sair com os colegas. Com 14 anos, não saía pra canto nenhum, era só dentro de casa. Só saía pro trabalho. Meus pais são tudo alagoano. Minha mãe era Laurinda Maria da Conceição, e o nome do meu pai era Vicente Severino da Conceição. Eu não fui criada com meu pai. Meu pai se separou com minha mãe, eu era pequena. Eu me lembro que vi ele uma vez. Eu tava com oito anos. De lá pra cá, não, porque ele chegou lá pra vim me buscar, me tomar da minha mãe. Ela disse: “Eu criei até agora você e agora ele quer vir lhe buscar. Suma!” Aí, ela pegou um pedaço de pau, ia dar um pau nele e ele saiu correndo, e até hoje não voltou nunca e nem eu vi mais. Não tenho foto da minha mãe. Dizem a família que parece comigo. Só que ela era branca. Não era uma galega, mas era branca. Meu pai... só vi ele uma vez, mas me lembro, era moreno com cabelo claro. Eu não conheci meus avós, nem por parte de pai, nem por parte de mãe. Quando eu nasci, já tinha tudo morrido. Eu sou descendente de caboclo, de índio. Eu me lembro que minha mãe contava que a avó dela foi pega na mata pelos cachorros, minha avó. Meu avô ia pegar água na cacimba e nesse dia ele encontrou a índia na beira da cacimba pra tomar água. Aí, quando viu, ela correu. Eles fizeram um cerco com um bocado de homem e pegaram ela. Ou era avó ou era bisa, nem me lembro mais. Mas acho que era minha avó. Aí eles pegaram ela, levaram pra casa, vestiram nela. Ela passou um ano dentro de um quarto trancada pra poder se acostumar com o povo. Só quem entrava lá era ele. E ela foi se acostumando a comer, tomar banho. Ele levava ela pra tomar banho, mas ela vivia lá dentro. Quando ela se acostumou com o pessoal, aí casou. Foram viver, foram produzir filho, tudinho. Eu já sou descendente. Minha mãe contava que ela botava um vidro assim no chão e dizia pro marido dela: “Os caboclo vem me buscar. Eles tão vindo atrás de mim!”, que ela escutava eles vindo atrás dela. Mas eu não sei de nome, não sei o nome desse povo, não.
Foto: Chico Ludermir
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A vinda e a vida no Recife: o despertar de uma mulher Antes de completar 16 anos, eu vim mimbora praqui. E aqui fiquei até hoje. Vim sozinha, minha mãe ficou lá. Eu vim trabalhar em casa de familia, ser babá. Ficou ela lá e eu fiquei aqui, a gente se comunicava com a família. Eles iam lá e levavam o recado. Depois, eu já tava casada, já tinha filho, ela mandou me buscar pra viajar pra São Paulo. Eu disse: “Não posso viajar, que eu to casada, tenho filho.” Aí, ela viajou e foi embora. Eu tive sorte, todas as minhas famílias de patroas eram boas. Eu só deixei de trabalhar porque arrumei marido, arrumei filho. Tinha que ir pra minha casa, mas se não... Eu vim pra Recife pra aprender a fazer meu nome aqui. Mas eu não aprendi nada. Não aprendi porque não pude. O tempo que eu tinha era pra trabalhar. E trabalhar em casa de família, pra estudar à noite... Ainda eu estudei, aprendi a fazer o nome, uma besteira. Ainda fiz o segundo ano primário. Mas depois não podia, que não dava pra trabalhar. Os patrões ficavam atrás, chegavam pra jantar às sete horas. Nunca chegava na hora da aula, perdia os trabalhos, perdia os deveres. Eu disse: “Não, dá não”. A fase melhor da minha vida foi quando eu arrumei marido, que eu tinha ele, tinha meus filhos pra me divertir. Era minha família, porque quando eu vivia na casa de família não tinha divertimento. O divertimento era trabalhar, tomar conta da casa dos outros. Eu conheci ele trabalhando. Ele trabalhava em casa de família também, era servente, serviços gerais. O patrão dele era gerente da fábrica da Torre. A gente se encontrava, eu morava de um lado e ele do outro. Francisco Gomes da Silva, o nome dele. Ele era moreno, cabelo crespo, e quando tava bom de saúde, era num corpo médio. Era mais velho que eu uns cinco anos. A gente começou a namorar, mas eu não sei como era. Não sei o que que cativava. Eu gostava dele, achava ele bonito, fiquei com ele e pronto. Eu não me casei com ele, não. Sou casada não, sou solteira. Trinta e sete anos eu vivi com ele, deixei ele porque ele morreu. É que os namoros de antigamente não eram como hoje. Os namoros de hoje, quando a menina vai casar, já tem namorado, já tem feito muita coisa. Eu não... A gente saía, mas não saía só, não. Saía com a irmã dele! Na época de Carnaval, tinha os bailes. O que eu gostava de ver era o Carnaval. Nunca aprendi a dançar. Tou velha e não sei dançar. Meus filhos é que dançam, dançam até o repórter que tocar, mas eu não. Quando eu cheguei aqui no Recife, cheguei novinha, tudo era atrasado. Não era como as meninas de hoje. As meninas de hoje tão muito avançadas, Deus me livre! Quando eu fiz 17 anos, a minha primeira filha fez dois meses. Meu primeiro filho homem, eu tive sete meninas primeiro, aí eu disse que quando vier o primeiro homem eu vou colocar Francisco de Assis, que eu gosto muito do nome. Por isso que eu adoro São Francisco e eu digo: quando meu filho nascer, eu boto São Francisco. Aí, botei. Tem Francisco, tem Sílvio, George. Eu tenho sete filhos. Três homens e quatro mulheres, que eu criei, né? E que morreu, cinco. Nasceu tudo inteiro, mas morreu tudo novinho. Por incrível que pareça, eu nunca perdi um filho assim, em negócio de morte. Perdeu, depois que nasceu, com um mês, dois, um ano. Mora tudo pertinho de mim.
“A fase melhor da minha vida foi quando eu arrumei marido, que eu tinha ele, tinha meus filhos pra me divertir”
Eu morava na Torre, ali no Carrefour. Antigamente, aquilo ali era um sítio grande, com muitas casas dentro. Eu morava ali dentro. Aí, foi vendido, o Carrefour comprou tudo, fez tudo. Fizeram a ponte, que não tinha. Era bote, passava de bote pra ir pro outro lado, Casa Forte e o outro lado. Não teve indenização, porque eu morava em casa alugada. Saí de lá pra morar aqui no Coque. Eu não me aperreio com muita coisa. É muito difícil eu me aperrear. Me aperrear com o que, se eu não tinha casa pra morar lá? Arrumei 4 mil réis e comprei um mocambo aqui. Tou com ele até hoje. Veio eu, o marido e os filhos que tinha. Isso aqui era só mangue, casa de palafita. Algumas casas, o pessoal fazia aqueles quadrados de barro, com lama, fechava, enchia de lama, aí, quando secava, fazia as casinhas: madeirite, outros de tábua, outros de papelão. Mas contanto que fazia ter um canto pra morar debaixo. Eu não fiz. Quando eu vim da Torre praqui, já comprei um cambinho feito em cima de um bolo de barro, tapadinho de madeirite. Eu consegui uma choupana aqui dentro da maré, lá perto do metrô. Não era nem metrô, era trem. Lá mesmo onde eu moro, na mesma rua, só que mais à frente. De lá pra cá, as coisas foram melhorando. Meu marido não trabalhava, porque ele era beneficiado da fábrica. Não trabalhava, mas, quando tinha uma coisa, ele fazia bico na oficina. Depois ele aposentou e ficou recebendo o dinheirinho dele. Eu ia pra maré pra pescar, pra vender, o que desse. Eu também trabalhava de um lado e ele trabalhava do outro. E a gente foi subindo, subindo. Subindo mais do que o que é, porque ninguém subiu nada mesmo. E a vida foi essa, minha vida aqui no Coque foi assim. Eu vim à procura de um lugar pra morar e aqui fiquei até hoje. Então estamos vivendo isso aqui bonito como tá, que não era assim. Meus filhos cresceram, uns já têm mulher, já tenho bastante netos e bisnetos e a vida continua.
Foto: Chico Ludermir
Da casa alugada para o mocambo próprio: a vida no Coque
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Foto: Chico Ludermir
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A maré e o lixão como paisagens de trabalho No Coque, não tinha água. No Coque, não tinha energia. Pra tomar água, ia pedir água pelas casas lá do outro lado. Onde tinha posto de gasolina, a gente pedia água pra beber. E pra lavar roupa e tomar banho, a gente comprava de uns barcos que chegavam. Tinha umas casas que tinha uns barcos que carregavam água lá do outro lado, dos canos que tem – não sei onde era – e trazia água pra cá pra gente comprar. Tinha aqueles baldes bem grandes assim, cheio d’água. E a gente comprava de lá pra carregar do outro lado. Do outro lado de lá, pro lado de cá, carregando na cabeça, pra lavar roupa. Menos pra cozinhar, que a água não prestava pra cozinhar, não, que vinha naqueles barcos, ninguém sabe como, na maré, com os homens remando cheio de água. Pra gente cozinhar com água da maré, dava não. Nem bebia, só tomava banho e lavava roupa. Não tinha viaduto, não. Não tinha nada, foi tudo feito depois que eu tou aqui. Era tudo mangue e, atrás aqui, a gente ia pro Dom Pedro II, levava as crianças pro médico, era de bote. A gente ia pra todo canto de bote, ia lá pro outro lado de bote. Quando não era de bote, a gente ia de trem. Apanhava o trem aqui, me esqueci o nome do lugar que tinha a estação. A gente descia, saltava na Central pra seguir pro outro lado. Agora lá no outro lado, na cidade, tinha a Ponte Velha. Atravessava, pegava a Ponte Velha pra ir prali pro lado dos Coelhos, praquele meio do mundo, pra ir pro médico. Aí atravessava no bote, porque pra ir com as crianças pro médico de manhã cedo era muito longe, aí, demorava muito. E tinha bote a motor. Era o povo daqui. Claro, a gente pagava o bote. Agora, era baratinho, coisa barata, aquele dinheiro velho, não é o dinheiro de hoje. Isso aqui era uma tranquilidade! A gente pescava siri, caranguejo. No mangue, só tem siri e caranguejo. Pega, bota num balaio, numa lata, seja lá como for. A gente pegava, fazia assim, fazia feito uma luva, pra pegar o caranguejo no buraco. Aí pegava, botava na lata, levava pra casa e lavava, pra comer, pra vender. Era assim. Vim aprender na prática, aqui com as outras. Ia pra maré com as outras e pegava e trazia. Nessas alturas, eu já tinha filho, pegava pra vender. Eu pegava marisco lá no Pina, tratava bem tratado, cozinhava, tirava a casca, pegava aquelas bolsinhas e já ia pesando: um quilo, meio quilo. Guardava lá. Quando era na sexta-feira de manhã, eu saía pra fazer entrega na Torre, por ali pelas barracas, pro pessoal que queria. Caranguejo, eu nunca vendi, não. Agora siri, eu ia pegar. A gente pegava siri, dez ou doze siris, por cinquenta centavos. Não sei, era assim que a gente arrumava o dinheiro do pão. Quando tava com dinheiro, eu comprava milho, aí ia vender milho, cozinhava milho. Tudo a gente fazia pra arrumar dinheiro. Depois, quando não dava mais, eu fui lavar roupa e era um dinheiro mais seguro. Tudo pra ajudar o homem que não tinha emprego, era doente. Depois de muito tempo, que ele se aposentou, que, na época, demorava muito pra conseguir se aposentar. O lixo foi que aterrou a maré pra fazer essas vilas. O Coque aqui foi aterrado com o lixo da cidade. Os caminhões vinham, derramavam. A gente trabalhava no lixo. O lixo espalhava, a gente espalhava o lixo. O caminhão vinha com dois, três. Se juntava um monte de menino, mulher e homem, espalhava, uns pegavam osso, outros pegavam vidro, outros achavam dinheiro, outros achavam relógio, pra vender, pra ganhar dinheiro. Eu nunca achei nada, não. O que eu achei uma vez foi um corte que eu levei no pé e passei dois meses com o pé no estaleiro. É que chegou um caminhão de madeira da Mesbla, muita madeira, aquelas caixas de madeira, muita bacia de banheiro, muita coisa. Quebrado, mas tudo novo, da loja. Aí despejaram, aí eu fui pegar umas tábuas pra ajeitar
Foto: Chico Ludermir
as paredes da casa. Levei um corte aqui em cima e um no pé, que eu passei dois meses com o pé amarrado, pendurado. Foi o que eu ganhei de bom no lixo. A gente vendia as coisas que encontrava no depósito. Comprava um pão, comprava uma coisa e outra. Mas de achar coisa boa assim eu nunca achei nada, não, nunca tive sorte. Porque no lixo tem muita coisa ruim, mas também se acha muita coisa boa, que o pessoal perde, né? Hoje em dia, ninguém acha mais nada, não, porque os varredores de rua, eles catam tudo, eles guardam tudo que acham. Eles apanham o lixo e, de lado, eles têm um saquinho, ó. E o que ele vai achando de bom, ele vai botando ali dentro pra vender. E a gente, o pessoal que catava lixo antigamente, que vivia do lixo, família aqui que vivia do lixo? Catar e vender pra viver, agora não dá. Os carroceiros viviam muito. Hoje em dia, nem pros carroceiros tá dando. Eles viviam, que tinha família, casa, assim mesmo. E tudo tinha com o dinheiro do lixo. Depois que ajeitaram a vila, botaram carro de lixo, tudinho, que pega o lixo, ninguém encontra mais nada. Mas eu não vivia muito dentro do lixo, não, que eu arrumei outra coisa pra fazer: lavar roupa, botar água, carregar água pros outros. Eu não quis mais saber de lixo, que eu fiquei com medo.
“O lixo foi que aterrou a maré pra fazer essas vilas. O Coque aqui foi aterrado com o lixo da cidade”
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Pistas de um Coque que os olhos de Geralda viram Se tem uma coisa que eu não marquei na cabeça é a data do ano que eu cheguei aqui, viu? Mas já faz mais de cinquenta anos. Não tinha planta nenhuma, só mangue. As plantas que tem, foi o pessoal aqui que plantou, depois que aterrou. Eu plantei carambola, pé de manga. A vizinha vendia manga, e o pessoal chupava, aí nasceu aquele pezinho ali e eu deixei crescer. Depois que o lixo aterrou, todo mundo fez casa, mas antes era vila. Tinha assim empilhado: casa, casa, casa, pra tudo quanto é lado. Aí, veio o negócio pra fazer vila. Aí foi tirando o pessoal, levando pra Maranguape, levando praquele outro lugar que tem depois de Olinda, por ali, e levando o povo daqui pra fazer as vilas. Agora foi indenizando. Pra fazer o metrô, mexeu com umas casas ali, logo no começo, ali perto, assim, ali na Avenida [Central]. Mas com a gente pra cá, não mexeu, não. Mas, pra lá, mexeu com um bocado de gente. Teve umas colegas que saíram, foram pra outras casas, ganharam casa. Quem foi indenizado não voltava mais. Eu não fui indenizada, fiquei no mesmo lugar. Onde eu tou morando não precisou. Depois que foi tudo organizado, foi que começou a tristeza, ajuntar essas vilas. É bom, porque ficou bonito. Saiu de dentro do mangue, de dentro da lama. Com água, luz, tudo calçado, claro que ficou bonito, mas a tristeza chegou muito pior.
De quando a maré invadiu a casa da mãe Geralda Eu peguei todas as cheias que tiveram aqui. Na última cheia, meu caçula tava novinho, com 2 meses. Meu caçula tem 36 anos. Quando eu saí da minha casa, a água tava dando na cintura. Não foi muito mal, não, porque a gente foi pros abrigos. O que eu pude levar, levei. Não tinha muita coisa mesmo! Tive sorte. A casa da vizinha era mais alta. Negócio de comida, essas coisas, botei dentro de um baú, botei na casa da vizinha. A maré encheu, transbordou, cobriu o baú com roupa, com retrato, com tudo que tinha de bom, a roupa melhor que tinha, que eu deixei tudo dentro do baú grandão. Quando cheguei, encontrei feijão, milho, tudo nascido dentro da mala, dentro do baú, que a maré encheu tudo. Quando terminou a cheia, limpou a casa, que eu vim pegar o baú, não tinha nada, nada, nada, que prestasse. Ficamos primeiro em cima da linha do trem. Todo mundo em cima da linha do trem. Em cima da linha não, dos lados assim. A gente chama em cima da linha porque era na linha. Chovendo, cada um armava a lona, fazia barraco. Nem todo mundo tinha lona pra fazer barraco. Eu fiquei num vagão, num carro velho que tinha lá. Eu e muita gente, com os meninos. Na linha, não durou muito, não. A gente passou um dia e uma noite aqui. Saímos de lá e fomos pra sociedade [comunitária], do outro lado da linha, na Cabo Eutrópio, onde tem uma igreja grande agora, uma igreja de crente. A gente ficou ali. Dali, a água começou a subir, não tinha canto pra ficar mais lá. O menino novinho doente, ele adoeceu, quase que ele morre. Aí, fomos pra Imbiribeira, lá pra dentro de um colégio que tinha, colégio do Ipsep. Muita gente ficou lá abrigada. De lá, a água baixou, meu marido veio, ajeitou a casa. A casa não caiu nem nada. Ficou só com lama. Pronto, aí voltamos pra casa.
Mesmo assim, nós não se aperreia muito com as coisas, não. Não sou de esquentar a cabeça pra ficar morrendo, não. Botar o barco pra frente, porque a vida é comprida, não é? Tem muito chão pela frente pra gente viver. Se se aperrear, morre antes do tempo. Eu só fico aperreada quando o filho sai. Veja só: já tá quase tudo homem, tudo mulher, mas eu só durmo quando eles chegam. Se eles saírem e disserem: “eu vou voltar”, tudo bem, eu fico esperando que eles voltem. E se eles saírem e não chegarem, amanhecer, ou então eles dizerem: “mainha, eu vou, só venho amanhã”, aí eu fico despreocupada. Mas se eles disserem: “vou voltar”, e chega aquela hora e eles não chegam, e eu durmo? Eu me deito, me levanto, vou no portão, já pra ver se eles vêm, olho no relógio, até o dia amanhecer. Às vezes, eles chegam 1h, às vezes 3h. Aí quando eles chegam é que eu me aquieto.
Geralda e outras mães: o grupo do Neimfa Me ensinaram que aqui era bom. Eu conheci seu Xerxes. Depois, ele deixou o trabalho pra Alexandre e uma colega me chamou pra ficar aqui. Eu vim pela primeira vez, gostei e fiquei. Até hoje. Eu gosto e só saio daqui quando morrer um dia. Eu gosto muito daqui, gosto muito das meninas e de Alexandre, que é “meu rei”. Gosto dele. Me acostumei a chamar ele de “meu rei”, mas não é eu só não, viu? Metade das velhas chama ele de “meu rei”. É que ele é o rei mesmo, ele adora as idosas, ele trata a gente muito bem. Me sinto muito bem, me sinto muito bem, eu gosto daqui.
“É bom, porque ficou bonito. Saiu de dentro do mangue, de dentro da lama”
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Meus filhos nunca vieram nem vêm, que eles não gostam. Quando eu entrei aqui, já era tudo moça, homens e mulher, só tinha os netos. Eu não posso obrigar ninguém vir, né? Agora, eu sei que eu venho. Eu faço minha parte e quem quiser que faça o seu. Eu chamo o pessoal pra assistir a reunião, pra assistir qualquer coisa, e ninguém quer vir. Cada um, homens e mulher, cada um que segue seu caminho, seu destino.
Foto: Chico Ludermir
Só saio de casa pra vir pra cá, pras reuniões nas quartas-feiras e no domingo. Muita gente gosta muito, eu gosto. Gosto muito do Evangelho da Dona Zezé, de quando ela faz evangelho. A gente canta o que canta no NEIMFA mesmo, canta muito. Mas eu não gosto muito de diversão, não, nunca gostei. Fui criada assim, vivi sozinha esse tempo sozinha aqui sem mãe, sozinha em Recife, sozinha! Até quando arrumei marido, arrumei filho e pronto. Mas não gosto de amiga, não gosto de andar com muita amiga, só gosto de andar com minha amiga, é uma, quando dá. Quando não dá, eu deixo pra lá. Eu tinha uma colega, era amiga, parceira minha. A gente vinha pro NEIMFA, ia pro outro centro. Mas faz tempo que ela adoeceu, morreu também. Eu piorei da minha perna, de uma queda que eu levei, não saio mais de casa também. Pra ir pro médico, visitar uma pessoa que tá doente, se precisar, eu ainda vou arrastando as pernas, mas vou. Só.
Foto: Sandokan Xavier
Vida-morte-vida Eu sou católica apostólica romana, batizada no catolicismo. A morte é natural. Deus deixou a morte pra gente. A gente tem que nascer, viver e morrer. Da morte, ninguém escapa. Quem não morreu de criança, de velho, não escapa! Agora, de morrer, ninguém sabe de que morre, mas sabe que morre. Cai em cima da terra e pronto. Tenho medo de morrer, não. O pessoal pergunta, mas eu digo: eu nunca morri, como é que eu tenho medo? A gente se trata pra não morrer, né? Dá uma doença, a gente vai pro médico, se cuida, porque a gente quer viver mais, mas, se chegar a vez de morrer, morre. A gente nasceu pra morrer, ué. Minha alegria é normal. Se morrer, eu tou bem, se não morrer, eu tou bem também. Se morrer um filho, eu não vou morrer porque ele morreu. Quem morreu foi ele, não foi eu. A gente sente muito, porque a gente não quer que morre, quer que viva até quando Deus quiser. Mas se morreu, fazer o quê? Não vai fazer voltar. Vou ficar chorando, desmaiando, me acabando porque ele morreu? Ah, isso não... Vejo gente aí que, porque morreu um filho, vai pro cemitério, já começa a desmaiar, é socorrida. Nunca aconteceu isso comigo, não! Nem vai acontecer, porque eu tenho certeza que quem nasceu é pra morrer, então... Já perdi cinco. Mãe, pai, já morreu. É certo que eu não tava presente, mas morreu. Mas a gente tem que viver com a morte, conviver com ela. A morte é uma coisa que vive com a gente. Só sei que a minha mãe e meu padrasto morreram. Se tem irmão vivo, eu não sei. Eu não soube por boca de ninguém, eu soube pela boca dos mestres, que eu respeito, numa sessão que eu fui, uma sessão espírita de mesa branca. A gente melhora, claro, que eles dão o passe, passam remédio, essas coisas de comida. A gente melhora muito, porque só Deus cura. Com a ajuda de Deus, tudo é curado.
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Foto: Chico Ludermir
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“Eu sou simples, sou normal, como eu mesma, não sou igual a ninguém”
Uma senhora e o mar: a primeira vez de Geralda Eu nunca fui na praia, nunca! Cheguei aqui no Recife e nunca fui na praia. Às vezes, meu marido ia, levava os meninos pra dar banho, tudinho, mas eu não ia na praia, porque eu não gostava, não. Eu nem gosto! Pra ver, eu ia, pra ver de longe. Mas pra entrar na praia, eu nunca entrava. Quando foi o ano atrasado, me deu aquela vontade de ir pra praia. Aí eu digo: “eu vou pra praia!” Mas aí eu digo: “eu, velha desse jeito, vou vestir maiô? Vou nada”. Eu vesti um short, vesti uma blusinha, e fui tomar banho. Aí, eu tomei banho, viu? Tomei banho a valer! Eu saí da praia cinco horas da tarde! No Pina. Eu e minhas netas. Aí, eu gostei, gostei muito. Mas pode acreditar, não tem costume com essa água, essas ondas batendo. Ah, não prestou, não. Eu fiquei foi doente, passei foi um mês sem andar muito, andava pouquinho. Eu levei muita pancada da onda tomando banho. Quando a onda vinha, eu me abaixava, ela passava, e eu ficava ali. Quando vinha outra, eu me abaixava, ela passava. Foi a primeira vez que eu tomei banho de praia. Eu tomava banho de praia, sim, mas de onda, não. Ali na ponte do Pina, que a gente ia pegar sururu, pegar marisco, aí tomava banho da maré. É mesmo que uma praia, só não tem aquelas ondas fortes. A gente pescava, terminava de pescar, botava os mariscos pra escorrer e enquanto escorria pra gente vir pra casa, ia tomar banho. Aí quando a maré vinha enchendo, vinha onda, aquela onda fraca, aí tomava banho. Só que não era na praia, era do lado de cá do Pina. Nunca gostei de praia, não. Eu não vou, porque eu não quero ir. Eu vou fazer o que na praia se eu não vou tomar banho? Pra praia, a gente vai pra tomar banho, né? Quando a gente é jovem, é uma coisa. Depois que fica velha, é outra muito diferente. Quando chega na minha data, na minha idade, aí é que é ruim. A gente não pode fazer nada, não pode correr, não pode nada. Tudo que a gente faz o pessoal fica olhando, porque a gente é velho. Pensando: “Porque ela não procura o lugar dela?” É, é. Muitas velhas aí não ligam pra isso, não, mas eu sou diferente. Eu procuro o meu lugar de idosa. Eu sou simples, sou normal, como eu mesma, não sou igual a ninguém. Sou igual a mim mesma, só. Sou igual a mim, do meu jeito, do jeito que eu sou. Não me comparo com ninguém, não quero ser igual a ninguém. Gosto de todo mundo, falo com todo mundo, não tenho inimigo, não gosto de briga. Não me acho pior do que ninguém. Eu vejo gente que só quer ser o que não pode. Não, eu sou normal, do jeito que eu sou, que eu sempre fui e sou. Texto e Edição: Rafaela Vasconcellos Fotos: Chico Ludermir e Sandokan Xavier Ilustração: Anaíra Mahin
Autores
Chico Ludermir tem 22 anos, é formado em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Fotógrafo por vocação, faz parte da Rede Coque Vive desde 2007. chico_lf@hotmail.com
Maria Liberal tem 26 anos, é formada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPE. Faz parte da Rede Coque Vive desde 2006. reupiz@gmail.com
Rafaela Vasconcellos tem 25 anos e é formada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE. Faz parte da Rede Coque Vive desde 2006. rafa.mvasconcellos@gmail.com
Sandokan Xavier tem 21 anos, é estudante do curso de Rádio, TV e Internet da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), fotógrafo, morador do Coque. Foi aluno e monitor de fotografia dos cursos desenvolvidos pela Rede Coque Vive. Faz parte da Rede Coque Vive desde 2006. sandokanxavier@gmail.com
Zezé, Paulina, Luiza, Valda e Geralda. Todas têm sua história traçada num lugar no coração do Recife: a comunidade do Coque. Cinco senhoras que se encontram, desde 1986, todos os domingos, para discutir textos religiosos, rezar, cantar. São, em verdade, amigas, que dividem dores, alegrias e fé. Nossos encontros com essas senhoras foram momentos muito bonitos, de carinho, conselhos, ensinamentos. São mulheres que trazem em seus sorrisos uma felicidade fundada na simplicidade. Nas marcas do tempo em seus rostos, estão escritas histórias de sabedoria. São “pessoas simples que aprenderam a lidar com o sofrimento”, como disse Zezé. Ao ouvir essas mulheres, percebemos que não há ninguém melhor para contar nossa história do que nós mesmos. Aprendemos a estar atentos a ouvir justamente as histórias comuns, aquelas que não são fato de jornal, sobre as quais comumente não pousamos nosso olhar, nossos ouvidos, nossos sentidos. Queríamos dar rosto a essas histórias e, assim, ainda mais vida e beleza. Enquanto escutávamos, também olhamos bem pra elas tentando transformar fala em imagem. Acreditamos que valorizando a própria forma delas de contar, fomos os vetores que espalharam essas lindas histórias. Tais como os pássaros e abelhas que apenas ajudam as flores.
Realização
Promoção
Programa realizado com o apoio do PROEXT 2009 - MEC/SESu