Livro em Branco

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lidiana reis

livro em branco

ou uma mulher de 30 anos


textos Lidiana Reis ilustração David Esquivel design Gabriel Godinho revisão Luis Gustavo

Goiânia novembro/2019


Talvez esse livro seja sobre uma mulher comum e sua lenta caminhada de descobrir-se mulher, talvez não precise que esse livro exista. Penso que para substituí-lo basta meu feed do Instagram bem atualizado, ou talvez esse livro pudesse ser a reunião de pequenos trechos to Twitter, não fosse o meu blog secreto constantemente alimentado desde 2011. A verdade é que nós mulheres precisamos de tempo e espaço para ser, para errar, para descobrir. Tempo e espaço são as coisas que mais nos são tiradas diariamente. Virginia Woolf já percebia isso no século XVIII e sem a astúcia peculiar dela precisei de ler seus escritos para enxergar. Enxergar não é simples, às vezes dói, mas é necessário. Eu sempre enxerguei, mas acabei me rendendo à facilidade dos óculos escuros, tão social, eu me rendi e deixei de enxergar, deixei de me ver, fui ganhar a vida, mas a vida a gente não ganha, a gente vive. Parei. Tirei os óculos escuros e voltei a me ver. Quero enxergar com meus próprios olhos, viver é intransferível, amar também, ser feliz então...




UMA MULHER


Fiz 30 anos, as linhas de expressão ao redor da boca são os primeiros indícios de um amadurecimento que julgo precoce do meu corpo. Pesquiso sobre cremes antirrugas numa madrugada fria, nos EUA, estamos no final do outono, a primeira neve já caiu, a paisagem se transformou, entre a beleza sublime da neve e o pequeno caos no dia posterior. Eu pesquiso sobre cremes anti rugas, enquanto uma caravana de Hondurenhos caminha, ou poderia dizer marcha para esse país um pouco gelado, um pouco interessante, um pouco cruel. Antes de fazer 30 anos nunca havia estado aqui, mas os EUA já me saturaram, saber tanto sobre um lugar antes de conhecê-lo nos ajuda a criar pontes, ou destruí-las, talvez eu tenha ao longo desses 30 anos construido minha narrativa do desgosto sobre esse país. Talvez tenha percebido, antes mesmo de conhecê-los, que os americanos, vestidos invariavelmente com moletons largos não sejam tão nice assim. Talvez seja o peso por ser um grande país, o peso de ser o melhor país, o peso de ser o país dos sonhos. O peso de parecer bom, enquanto milhares de pessoas marcham para tentar a vida aqui, ao lado das milhares que marcharam e estão vivendo a aventura, nem tão eletrizante assim, da ilegalidade.


Uma luz alaranjada para terminar o dia bate no alto dos prédios. Às vezes a beleza cansa. Amanhã vem um novo dia. Talvez hoje eu me arrisque numa coca-cola.

Eu Eu Eu Eu Eu

fico amo desespero morro de rir sou presente, sou aqui, sou agora.



VIVER CANSA


Eu poderia ter gritado, xingado, chorado, mas eu simplesmente virei as costas. Minha pequena capacidade de demonstrar raiva me adoece. E penso, meu gosto estรก no que flui.





É NAS PESSOAS QUE O MUNDO SE SUSTENTA.


Ser feliz é um ato de resistência diante do mundo, o mais simples, o mais difícil.


Deve ser duro demais para quem acredita numa famĂ­lia formal, onde todo mundo ĂŠ sempre igual.





E em mim ver o outro


O ABISMO RACIAL QUE NOS UNE


Quando eu a conheci eu não sabia que existia racismo no Brasil. Talvez por isso eu nunca tinha me atentado para o fato de que ela era negra, nem tampouco para o fato de que meu pai, não era só o filho de um homem preto, o vó Chiquin, e sim era preto como ele. Eu não sabia nessa época que eu não era parda. Demorou muito para eu entender que ela era negra e que entre nós, eu querendo ou não, havia um abismo racial e que querendo ou não, eu, como uma mulher branca, era opressora, e ela, uma vítima de mulheres brancas, como eu. Eu não descobri isso sozinha, foi ouvindo mulheres negras no Youtube. Doeu. A internet e suas mil possibilidades de gerar fake news, mitos, mas também de gerar verdades doídas, reais, históricas. Seguimos caminhando lado a lado. Ela, se descobrindo uma mulher negra, e eu me descobrindo uma mulher branca.


80 TIROS


Não dá para ser feliz por mais de 5 minutos, a lembrança dos 80 tiros me invade. Uma família . Um exército . Uma mira injusta. 80 tiros. A justiça é cega. A justiça é branca.


Vigário Geral nunca vai embora. Compartilhamos o mesmo sol sangrento. Que país é esse que nunca aprende nada?


Sou daqui. NĂŁo adianta fugir O sangue derramado mancha todos nĂłs.



NESSE DIA-A-DIA SÓBRIO NOS FALTA, TALVEZ, POESIA.



ESTOU UM PASSO ATRÁS DA MINHA VIDA.



E O TEMPO FOI SE TORNANDO TÃO SECO, QUE SECOU-ME.


A VIDA PARECE SER UMA ALTERNÂNCIA ENTRE: CURAR FERIDAS ANTIGAS E CRIAR NOVAS






Ele que me faz navegar.



Por muito tempo eu aboli afirmações do meu vocabulário.



Estamos sempre tentando voltar para o vazio profundo que um dia vivemos no Ăştero. Somente ali a solidĂŁo nos acalma.Â



NENHUM TETO

É TODO MEU


OS FANTASMAS DA NOITE PASSADA ECOAM EM MIM, FOGEM PELO MEU VENTRE, SE ESPALHAM NA MINHA MEMÓRIA E ECOAM. EU FUJO DE MIM, MAS ELES NÃO VÃO EMBORA. FICAM.



Pouco a pouco eles vão deixando o país. Exílio, medo, frustração. Todo filho seu foge à luta?


Nem direita, nem esquerda. O Brasil precisa de reset.



Mudar a frequência. Escutar cada palavra Respirar Flutuar nos sonhos Não se abater pelas notícias. Eles passarão. 30 dias sendo nova de novo Nova vida, nova chance Sem culpa para ser.


AQUI É


Imagino

narrativas,

mães

sozinhas,

pais

desempregados,

crianças sem sonhos. Uma cozinha sem utensílios, uma cama sem edredom. Uma sujeira que não se limpa com sabão. O odor de coisas que se acumulam. A falta de comida. Não é longe. É no Brasil, é em Anápolis, é bem aqui do meu lado. Eu me surpreendi e talvez não me acostume. Aqui é o fim do mundo, como dizia Gil, aqui é o fim do mundo. Privilegio é viver no Brasil e se surpreender com a pobreza do outro. Tão distante, tão miserável, bem ali na periferia da minha cidade natal.



Eles derrubam com palmas e gritos a placa que diz: “Em defesa da educação.” Eles sou eu. Estamos sob o mesmo sol, mas não os reconheço.



Árvores secas invadem a pista. Caídas revelam o fim da jornada. Apesar de imensas por aqui ninguém se preocupa Na África os baobás centenários ruem. Estudiosos buscam explicações: idade? Mudança do clima? Seria mesmo o clima? Alguns pensam que tudo continua perfeitamente normal, sem aquecimento global. Acreditam que a humanidade será para sempre soberana. Em alerta as árvores caem. Não me iludo, não há soberania. E o clima segue cada vez mais quente, seco, árido.



DIANTE DO CÉU

No primeiro olhar eu nada vejo. Os olhos se reorganizam calmamente, continuo olhando. E de repente diante de mim um céu estrelado. Estrelas frágeis brilham para mim. Seriam insignificantes não fossem estrelas Eu seria cega não fosse a disposição de olhar.


AZUL CÉSIO


Num segundo de paz, olho pela janela e avisto um prédio que nunca vi. Teria ele sido construído essa manhã? A mesma vista, um prédio novo. Do apartamento uma luz azul me arremeteu, azul, forte, brilhante, esplêndido. Logo ela se transformou em vermelho, depois verde, talvez o azul fosse a luz alternada de um pisca-pisca, talvez um pedaço de césio, que há 30 anos reside nas ruas sujas de Goiânia. Nem tudo é possível apagar, nem toda tragédia se finda, e numa noite calma pode reaparecer na memória frágil de quem não viveu, quem não ouviu, quem não imaginou, quem não sentiu.


MULHERES À MESA

O MUNDO QUE SE FINDA


Eu estava estranhamente orgulhosa de mim, naquele setembro. Em sonho vieram me visitar as mulheres mais importantes da minha vida. Estavam todas orgulhosas, como eu, e sentadas à mesa levantaram-se quando me aproximei e entre abraços e beijos me acalmei.

Os ataques da semana me fazem pensar no fim do mundo, um fim trágico onde nos matamos a todos, um fim transmitido on-line, com uma rede já sem espectadores. Uns matam, outros morrem. Descobri que carrego uma bebê, enquanto isso homens matam e morrem, não importa. Eles matam, são homens. Eu vivo no Brasil e morrer é um risco diário. Eles viviam na Nova Zelândia Um homem mudou o curso das coisas. 45 pessoas mortos. Transmissão ao vivo para quem quisesse ver sua completa ignorância, sua mais cruel barbárie. Um pensamento me invade: Esse é o mundo que em breve minha filha irá nascer.



Isso já me ocorreu antes e eu não soube como agir, mas a vida flui, mesmo com a paralisia interna. A vida não te abandona, é um mar calmo, te leva. Eu esperava tudo diferente agora, mas veio igual, com o amargo do sofrimento vivido, com a alegria da experiência passada. Não sei se mereço tanto, talvez por isso o medo. O medo de não merecer. O medo de não ser para mim, o que é meu. O medo da impostora que eu sei que não sou. As listras duplas, não confiei, veio o novo teste, o escrito claro. Li e reli. Estava ali a confirmação de todo o desconforto. Vem a vida, esse mar calmo, me levando novamente. E eu vou, fraca e chorosa por dentro, forte e decidida por fora. Eu vou!


A SOLIDÃO DE UMA MÃE


Ainda me lembro de querer filmar os pássaros, pela porta estreita do quarto. Naqueles dias eu estava quase sempre só, não fosse a perene presença do recém-nascido. Que solidão. A gravidez é de uma matéria abstrata que não conseguimos compartilhar, ficamos sós. Isoladas no tempo espaço das expectativas do mundo, do amor que não se alcança. O cansaço, a solidão, a loucura. Eu não filmei os pássaros, mas eles voltaram a passar, agora sobrevoam a sacada, é o mesmo período do ano três anos antes. Eu tinha menos medo futuro. O trem do mundo parecia estar num trilho torto, desde então ele saiu, desgovernou-se. Dois filhos, um mundo desgovernado. Que solidão.



Você cresce, eu cresço Você aparece, eu me descubro dia a dia.

Comecei a sonhar que cuidava mais de mim.


Está tudo seco ali fora. Nenhum vento Um sol forte, amarelo, corajoso. Eu me sinto tão só. E aí você se mexe, relutante, forte, mostrando que a vida está aqui, bem dentro de mim.


Me sinto tão impotente diante do corpo de quase 50 cm que agora eu crio fora da barriga. Me sinto tão forte diante do corpo de quase 50 cm que agora eu crio fora da barriga.

Deixamos a casa que nos pariu e seguimos errando no caminho.



O MUNDO CHEIRA MORTE, MAS SIGO CARREGANDO VIDA.




novembro/2019


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