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“Isso é uma das tristezas que mais dói na minha alma”
O rejeito de minério liberado após o rompimento da barragem de Fundão, em 2015, percorreu cerca de 550 km, passou por grande parte do estado de Minas Gerais e, no Espírito Santo, encontrou o Oceano Atlântico. Engana-se, entretanto, quem pensa que os impactos diminuem ao longo do caminho. Em cada cidade, distrito e povoado atingido pelo crime-desastre, é possível ouvir histórias de pessoas que convivem há mais de sete anos com os danos causados pela negligência das mineradoras que, além de provocarem o impensável, também ocasionam dor e sofrimento ao negarem às pessoas os seus direitos.
Em Ilha Brava, povoado de Governador Valadares, localizado a 328 km de Mariana, cerca de 20 famílias resistem, com imensa dificuldade, às adversidades geradas pelo crime da Samarco, Vale e BHP.
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O território margeia o Rio Doce e é composto por pequenas ilhas, usadas pela população para o plantio de frutas, legumes e hortaliças que, além da pesca, foram fontes de renda durante gerações. Desde o rompimento da barragem, o cenário mudou drasticamente: a produção diminuiu e a confiança de quem produz e de quem consome também. Anualmente, nos períodos de chuvas, ocorrem enchentes que, além de desabrigarem moradores e moradoras, destroem as plantações. Segundo relatos, o nível da água sempre subiu, mas não na intensidade, frequência e potência devastadoras de hoje. Quando o nível da água desce, o que sobra é apenas uma densa lama que mata as plantações, adoece os animais e até condena casas.
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“Eu nasci às margens do Rio Doce, tirando areia, virando cascalho. Sempre tivemos a ilha pra plantar. Tínhamos o peixe e o rio para nadar, mas, desde 2015, eu nunca mais dei um mergulho no meu rio. Isso é uma das tristezas que mais dói na minha alma. Eu nasci dando braçadas nesse rio, sendo moleca. Eu tenho 47 anos, mas todo mundo tem uma molecagem por dentro e essa era a molecagem que eu gostava de fazer. É lembrar de banho no rio e sentir vontade de chorar. Se quiser arrancar meu choro é fazer eu lembrar que eu mergulhava nessas águas. Eu, meus filhos, meus netos, era nossa diversão, mas aí eles vêm e modificam nosso jeito de viver e ainda nos tratam como criminosos. Uma inversão de valores!
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Todo ano é isso aqui, minha propriedade é invadida pela lama, perdi minha couve, milho, tem lugar aqui que não dá nem pra chegar por causa da lama. Tá vendo aqueles tijolinhos ali? Minha casa era lá, mas, ano passado, eu a perdi. O rejeito entrou dentro da minha casa e acabou destruindo, e eles querem pagar uma mixaria. As contas só vão aumentando, eu resisti até quando pude. Até o ano passado, eu só tinha recebido o cartão emergencial, mesmo assim, eles cortaram.
Irrigação minha se perdeu, esse rejeito maldito entra dentro dos canos. Antes era areia e, quando secava, saía, era só virar. Agora esse rejeito, depois que entra, nada tira.
Cada cano desse aí, comprado em novembro do ano passado, saiu em média 80 reais. Maquinário de irrigação, por exemplo, manutenção que era feita uma vez por ano, agora tem que fazer a cada três ou quatro meses, porque o barro entra lá dentro e corrói as peças do motor tudo.
É muito difícil, até onde deu pra aguentar, eu aguentei. Tô tentando colocar minha casa de pé de novo e é um trabalho de formiguinha pra chegar até aqui. Tudo trazido dentro do saco, aos poucos. O caminhão bate o material lá no porto, a gente ensaca e traz uns cinco ou seis sacos em cada embarcação, pra não ficar muito pesado. Mão de obra tá difícil de achar e eu tô nessa luta desde o ano passado, apesar de não ser uma casa grande, são só três cômodos.
Mesmo assim, eles querem oferecer pra gente migalhas, mas, se a gente não pega essas migalhas, o tempo só vai passando, o dinheiro perde o valor e, infelizmente, eu vou ter que aceitar o que eles oferecem. Minha vontade é não aceitar, porque eu perdi muita coisa. Mas é o que eu tenho que fazer, meu jeito de tirar o sustento da minha família é daqui. Minha família não sabe fazer outra coisa e é o que a gente gosta de fazer. É um direito nosso, como eleitores nesse país, trabalhar de forma lícita e honrosa, plantar, colher, viver da forma que a gente gosta de viver.”
Tem uns dois anos que eu parei de plantar e de pescar, porque ninguém compra, ninguém confia. Hoje, trabalhando pra fora, eu não tiro nem metade do que eu tirava. Eu pescava e vendia, plantava hortaliças, muitas coisas. Hoje, quando consigo pegar um peixe, ninguém compra.
Eu morava ali na beira do rio, era caseiro, meu patrão deixava eu plantar uma chácara pra mim e eu vendia feijão, milho, couve, de tudo. O salário era pouco e as vendas completavam. Hoje eu mudei de casa, preciso comprar tudo, diminuiu bastante o lucro e aumentou o gasto. Lá eu não pagava luz e nem água, agora eu pago tudo isso.
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E essa água daqui não tá boa pra consumo, tem que comprar. Se você beber essa água aqui por dois meses, o seu rim pesa uns 50 kg a mais só de minério. O cara que fala que essa água tá boa não sabe o que tá falando, não mora aqui.”
“Sou agricultor, pescador de barranco e sempre vi enchente aqui, mas nunca foi como é agora. Parece que o rio aterrou, qualquer chuva que dá, a água vem cá em cima. Antigamente, não subia tanto. Hoje atrapalha pra plantar as coisas, mata as plantas tudo, nem adianta plantar. Planta e toma prejuízo. Eu parei, não adianta plantar. Agora eu vivo fazendo bico.
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