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Agricultura familiar no espaço urbano envolvendo agroecologia através de materiais reutilizáveis
odo de maio a dezembro de 2019, foram realizadas oficinas com 16 recuperandos, sempre na perspectiva de levar os participantes a transformarem sua relação com a leitura e a escrita, utilizando-as como meio para acessar a liberdade.
Durante a preparação da equipe executora do projeto, uma das preocupações foi entender o papel da escrita e da leitura num ambiente complexo como a prisão, já que as imagens idealizadas sobre leitura correntes na sociedade não se encaixavam naquele contexto. Algumas perguntas surgiram dessa discussão: como inserir o livro no limitado espaço prisional, como torná-lo relevante para aqueles homens?
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Com essas inquietações, a equipe executora se imbuiu do desafio de mediar a leitura, de modo a transformar os livros em uma espécie de janela para o mundo interior. Entretanto, para que essa ideia se tornasse uma realidade, seria preciso que as oficinas apresentassem o livro como um aliado e não como símbolo das limitações dos recuperandos, o que demandou um processo de triagem de títulos adequados ao ambiente prisional (pois a instituição veta alguns temas, tramas e alguns autores) e ao nível de proficiência deles. Com o cuidado, nesse último caso, que as obras escolhidas não trouxessem enredos infantilizados ou demasiadamente adaptados.
Na avaliação da equipe executora, por mais que a participação fosse influenciada pela diminuição de pena (quatro dias descontados a cada resenha aprovada), havia o temor de que os recuperandos não se interessassem, ou que desistissem diante dos primeiros obstáculos. Por esse motivo, as oficinas deveriam promover o encontro entre o livro e o leitor e precisariam partir do básico: a histórias da vida de cada um levariam às narrativas ficcionais, essas conduziriam à reflexão sobre atitudes e valores das personagens e a reflexão motivaria a escrita. Ao fim desse processo ideal, ocorreria a remição.
O caminho a ser trilhado era complexo, como indicou o levantamento feito pela equipe pedagógica da instituição, segundo o qual cerca de 80% dos recuperandos inscritos no projeto tinham livros à disposição nas celas (especialmente a Bíblia); porém, apenas 40% deles gostavam de lê-los. Esse dado se concretizou nas primeiras oficinas: era comum ouvir relatos dos participantes sobre medo de não chegar ao final do livro, de não entender a história, de não conseguir escrever as resenhas, de não compreender o sentido das palavras, vergonha pelas letras ruins. Contudo, o maior receio deles era que a comissão que avalia os trabalhos não aceitasse os textos produzidos. Em suma, medo de mais uma reprovação, uma nova “condenação”.
Após essa fase inicial, as oficinas passaram a contemplar o relato oral das experiências de leitura, sempre associadas às experiências de vida e à realidade da prisão. A partir do momento em que os recuperandos
Correção das resenhas produzidas pelos recuperandos da APAC – Januária participantes do projeto Remição pela leitura.
Oficina de leitura do projeto Remição pela leitura.
Equipe do projeto com o juiz e o promotor da Comarca de Januária, durante evento na APAC.
se sentiram seguros quanto à capacidade de compreender os livros que escolhiam, as oficinas passaram a abordar os detalhes do gênero textual a ser produzido – a resenha crítica. O novo enfoque das oficinas trouxe também receios, dessa vez quanto às questões formais do texto, como ortografia e concordância, o que dizer na introdução, como escrever com impessoalidade, etc. Por esse motivo, antes de submeter os textos à banca, os recuperandos foram convidados a trazer os rascunhos da primeira resenha para que a
2º Encontro de capacitação da equipe do projeto de Extensão “Remição pela leitura”.
Pedro Pimenta
Apac Januária
equipe executora pudesse analisar e orientar a reescrita. Mesmo com dificuldades, as leituras foram feitas e as resenhas, apresentadas.
Ao analisar as resenhas produzidas, percebeu-se ter ocorrido um aprimoramento do vocabulário, dos recursos argumentativos e, em alguns casos, da escrita ortográfica. Contribuíram para esse último aspecto as oficinas em que a equipe leu os textos produzidos junto com os autores, sugerindo adequações. Isso colaborou não apenas para a consciência sobre a necessidade de uma escrita ortográfica, mas também para a melhoria do vocabulário (com a inclusão, nos textos, de marcadores linguísticos próprios do gênero resenha) e para a permanência dos recuperandos ligados ao projeto, pois havia, inicialmente, descrédito da parte deles, quanto à capacidade de escreverem tais textos.
É importante destacar aqui a relevância desses pequenos resultados, considerando que a escrita das resenhas não ocorreu em contextos comunicativos próximos aos reais e que a maioria dos recuperandos não conhecia tal gênero. Mesmo assim, foram escritas 26 resenhas, correspondendo a 104 dias de pena remidos.
Assim, confrontando as resenhas produzidas com os objetivos propostos, e considerando os relatos orais, pode-se dizer que a leitura de textos literários se tornou mais significativa e menos distante do recuperando. Para verificar esse aspecto, a equipe sempre pedia que os recuperandos contassem suas experiências de leitura, o que era feito com notável interesse, sempre apresentando lições que a obra proporcionava, ou mesmo a emoção que os lances do enredo provocava neles. Houve também relatos de leituras realizadas fora da perspectiva da remição.
Para além da redução de pena, o resultado mais óbvio para um projeto desse tipo, a leitura e a escrita fizeram os recuperandos desbravarem caminhos improváveis. A análise dos textos e relatos orais produzidos sugere que os recuperandos se apropriaram do gênero resenha para registrar não apenas a avaliação crítica de uma obra, mas também para expressar sua mundividência, contextualizando a obra lida com a condição de prisioneiro, realizando o exercício catártico proporcionado pela leitura e escrita, que, dentro da metodologia de reintegração desenvolvida pela APAC, é conhecido como “viagem ao mundo interior do prisioneiro”.