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A psicologia do voluntariado

Formada em Psicologia, Michele Nunes D'Ávila, 32, dedica a sua vida a campanhas de voluntariado e projetos sociais. Mestra em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS em 2016, ela é a atual coordenadora do Projeto de Voluntariado Lassalista Sou Solidário em diferentes regiões do país. Michele conta que optou pela psicologia sem mesmo conhecer o significado da profissão. “Eu sigo não fazendo ideia do que é. É disso que eu gosto, desse ‘não saber’”. Ela afirma que nunca foi interessada pela atuação clínica, sendo uma mulher apaixonada pela história das pessoas e suas percepções de mundo. E foi assim que acabou trabalhando com jovens, idosos, mulheres presidiárias e comunidades em situação de risco. A escolha pela psicologia na área da assistência social se deu naturalmente. “Acho que foi um pouco de feeling e os caminhos foram meio que acontecendo”, reitera a entrevistada. Michele sempre pensou que o consultório poderia limitá-la, por isso tinha o desejo de vivenciar a profissão por um meio mais “corporal”, conhecendo espaços e pessoas.

É preciso sair da ilha para ver a ilha, como diria José Saramago

A história entre Michele e Moçambique, no sul da África, começou cedo, quando a então psicóloga ainda era criança e, ao ver uma reportagem do Fantástico sobre o país, teve seu interesse despertado. “Pensei ‘nossa, quero ir ver como é isso!’”. Ela diz que a experiência foi responsável por impulsionar a sua caminhada profissional. Tem essa missão como um divisor de águas de sua carreira, sendo um choque importante. “Gosto muito da frase do José Saramago (escritor português 1922-2010, vencedor do Nobel de Literatura em 1998) que diz: “é preciso sair da ilha para ver a ilha”, acho que foi um pouco disso que aconteceu”, relatou. Ao participar de sua primeira missão na região, aos 23 anos, Michele soube que era o que gostaria de exercer. “Quando eu fui para lá, eu olhei para a experiência e disse: ‘é isso que eu quero fazer, é nisso que eu quero trabalhar’”. Marcada pelos momentos que passou lá, é possível notar a dificuldade de ir embora e deixar esses laços construídos para trás. Ao final do seu mês de missão no país, a entrevistada relata situações emocionantes. “Foi horrível ir embora, porque as ‘crianças chegavam em mim e - eu fiquei lá um mês - e eles diziam assim: ‘tu mudou a minha vida’, e eu dizia ‘que mudou a tua vida, quem sou eu pra mudar a vida de alguém?’, sabe? E, na verdade, eu que tive a vida mudada por eles”.

Mulher, psicóloga e profissional na área de assistência social, Michele sente a desvalorização na pele

Para a assistente social, nunca houve uma ambição material, o sucesso de sua profissão está vinculado às experiências e ao desejo em realizar aquilo que gosta, por isso, se mostra centrada quanto a impossibilidade de um alto salário atuando na assistência social. “Tento levar isso com um pouco de bom humor, porque, senão, eu já não trabalharia mais onde eu trabalho”. A psicóloga diz refletir sobre o lugar de privilégio que ocupa na sociedade e como isso afeta sua percepção de mundo. “Eu reflito sobre o lugar que estou na sociedade, de poder trabalhar com o que eu gosto, ter um salário mediano e acesso a alguns bens que

muitas pessoas não têm, mas eu tenho lucidez do quão ridículo é a questão da remuneração. Por vezes, me sinto bastante desmotivada; tem dias e dias”. Além disso, Michele vê com clareza que lhe falta espaço devido ao seu gênero. “A gente tem esse alerta sempre ali, aceso. Eu tento sempre, na medida do possível, me posicionar com relação a isso e não me calar”, afirma a entrevistada ao relatar a disparidade visível entre homens e mulheres no mercado em que atua. Ela acredita que possuiria mais visibilidade no cenário e seria ouvida de outra maneira caso fosse do sexo masculino.

“As pessoas passam muita dificuldade. Isso é inegável, isso está posto”

Viver entre dois mundos tornou-se uma rotina costumeira. Devido a realidade de quem lida com círculos sociais tão antagônicos, isto é, o exercício da profissão com as pessoas de baixa renda nas periferias, mas também numa rede privada de educação onde a mensalidade ultrapassa dois salários mínimos em alguns lugares do país. O desconforto causado pela desigualdade é evidente na fala da entrevistada. “Eu digo que o buraco negro é aqui, sabe? Você entra de uma dimensão para outra, de uma galáxia para outra, aqui, numa questão de 100 quilômetros ou nem isso”, desabafa. Situações como a ausência de saneamento básico são comuns no cotidiano das comunidades. As linguagens entre o público de classe média-alta e os jovens de baixa renda são distintas e fazem parte de dois mundos que realmente não se conversam. Ao descrever essas diferenças, é possível notar quão dolorosa é a situação para ela: “Entramos em casas de famílias com muito dinheiro e aí você anda um pouco e vai para uma outra que as pessoas não tem o que comer, de abrir armário e dizer que não tem o que comer. Isso é comum nas periferias”.

No dialeto moçambicano, “pobreza” é mais do que a falta de dinheiro

Em nossa sociedade, o conceito de pobre está diretamente ligado à falta de bens e recursos financeiros, mas, para a entrevistada, o aprendizado foi outro. Ela diz ter sido ensinada que a pobreza não é só dinheiro e que, na verdade, vai muito além disso. Como exemplo, ela cita a solidão que percebe na classe alta e ainda faz referência ao significado de pobreza em um dialeto moçambicano. “Existe um dialeto moçambicano, que não há a palavra ‘pobre’ e sim a palavra ‘órfão’, que quer dizer a mesma coisa, que pobre é aquele que não tem laços, que não tem amigos, não tem família e eu tenho isso muito para mim quanto concepção de pobreza. Vejo essa pobreza muito mais em quem tem dinheiro do que em quem é da comunidade”, diz ela. Michele revela que aprendeu a revisitar esse conceito de pobreza e se questionar sobre “quais eram suas próprias pobrezas”.

Os desafios da Missão Ribeirinha

O projeto da Missão Ribeirinha foi realizado em Manaus (AM) em 2019, sendo o primeiro organizado por Michele na região e representou um marco importante. Segundo ela, houve muito aprendizado sobre a questão ambiental por sua parte, principalmente por notar as diferenças entre a realidade de onde vive hoje e a que encontrou. “Aprendi muito e me dei conta de que vivo em uma casa comum e sobre o quanto a gente não nota a questão

ambiental, e eu falo por mim. Aqui eu noto quão interessante é estar na região ribeirinha. Percebo que na minha casa tem água, tem chuveiro e do quão diferente isso é para as pessoas. Situações como tomar banho no rio durante o dia, pois à noite tem jacaré ou de mães que perderam filhos para um jacaré, coisa que não aconteceria no Sul”, relata. Michele afirma que gosta de falar sobre missões por serem projetos desafiadores. Durante sua ação na região ribeirinha, a psicóloga trabalhou por duas semanas com 18 pessoas e ninguém se conhecia. A entrevistada fala com orgulho pelo que realizou, dos aprendizados e das conquistas que trouxe consigo. “Me orgulho de ter conseguido conduzir e ter sido uma missão linda, de poder ouvir os voluntários falarem ‘essa missão mudou minha vida’ e de saber que eu fui importante nesse processo de possibilitar uma experiência marcante na vida dessas pessoas”, avalia.

“A gente está sempre em uma constante reinvenção da nossa prática de trabalho”, diz Michele sobre a pandemia

Quando falado sobre pandemia, Michele conta que tem sido um processo desafiador e limitante. Segundo ela, tem sido complicado manter as ações sem estar na presença das pessoas. Os projetos idealizados pela psicóloga envolviam presença física nos locais, mas diante do novo coronavírus isso mudou. Para ela, é importante que os voluntários estabeleçam uma relação com a comunidade, mesmo que, atualmente, não seja possível o contato direto. Contudo, os projetos vêm sendo executados baseados na questão emergencial, como alimentação. Ações de arrecadação de mantimentos e materiais permaneceram também. Foi desenvolvido um sistema próprio para a entrega desses mantimentos, onde os voluntários podem conversar, com todos os cuidados necessários, ver como estão essas famílias, como estão se organizando e quais são as suas perspectivas. Além disso, a ação nomeada ‘Ligações Solidárias’, realizada na cidade de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, foi planejada visando os idosos em situação de vulnerabilidade. Os voluntários realizam as ligações para conversar, criar um vínculo e, a partir disso, serem capazes de identificar algum caso mais grave. “Foi a maneira que a gente encontrou de poder conversar com as pessoas e se fazer presente, mesmo que à distância. Estamos falando de uma população que já vivenciava o isolamento social, que são os idosos. Às vezes passam semanas sem conversar com ninguém e agora eles têm o voluntário, que vai ligar, vai indicar uma receita de bolo, vão conversar sobre vários assuntos”.

Confira o depoimento dos repórteres –Making Of

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Crédito: arquivo pessoal

Conheça a seguir a história de Nelma Odete Wagner Gallo, aposentada que realiza trabalho voluntário para a Liga Feminina de Combate ao Câncer (Liga/RS) há 11 anos e que atua como presidente da entidade desde 2015. Durante toda a sua vida, Nelma enxergou o trabalho não como obrigação, mas como uma ferramenta valiosa para contribuir com a sociedade.

Reportagem de Júlia Brust e Marieta Noronha

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