Foto: Douglas Roehrs/SINDJORS
Telia Negrão, a jornalista das militâncias sociais. Páginas 6e7
PUBLICAÇÃO DO SINDICATO DOS JORNALISTAS PROFISSIONAIS DO RS ANO 24 – Nº 157 – NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2016
Pacote de Sartori aniquila a comunicação pública Anunciado no dia 21 de novembro, o chamado Plano de Modernização do Estado poderá extinguir a Fundação Piratini, responsável pela TVE e a FM Cultura, além de outros órgãos. A iniciativa, que prevê o desemprego de mais de mil funcionários, foi recebida com comoção e revolta por servidores e movimentos sociais. Página 3 Foto: Elson Sempé/SINDJORS
Empregados das fundações e empresas ameaçadas manifestaram-se em frente à Assembleia Legislativa, que deve votar a proposta do Executivo até o fim do ano
O olhar de Kadão em livro Página 8
Campanha “Não somos culpadas” Página 2
Foto: Caco Argemi/Especial
Violência policial A partir do Relatório de Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, o Versão dos Jornalistas buscou entender a dimensão das agressões da polícia brasileira e possíveis soluções para melhorar este quadro. Em reportagem especial, confira o resultado de políticas equivocadas e da constante impunidade.
Página central
EDITORIAL
Jornalismo e direitos humanos caminham juntos
I
mparcialidade não pode ser desculpa para omissão. Para além de noticiar os fatos, o jornalismo tem um papel social. Nele reside a força para denunciar duras realidades que persistem em vitimar a tantos. Resguardar os direitos e as liberdades básicas de todos nós deve ser, sempre, um dos objetivos de quem está nas redações, principalmente em uma época na qual o preconceito ganha força ao redor do mundo. Com isso em mente, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RS (SINDJORS) desenvolveu dois trabalhos para esta edição do Versão dos Jornalistas: o perfil de Télia Negrão, ativista que luta, desde os tempos da ditadura, pelos direitos da mulher; e uma reportagem sobre a violência da polícia, que matou mais de três mil pessoas em 2015, principalmente negros e pobres. Trazer dados tão alarmantes não é ser contra a força policial. Pelo contrário,
é querer que sua atuação seja a melhor possível para a nossa sociedade. É inadmissível termos um Estado conivente com a letalidade direcionada a grupos específicos e uma política de encarceramento que não serve para ressocializar ninguém, transformando-se em uma espécie de escravidão moderna. No Rio Grande do Sul, em especial, a questão da segurança pública é extremamente preocupante. Enquanto vidas são perdidas, a falta de sensibilidade do governo de José Ivo Sartori com a questão pode ser representada pela indicação de Cezar Schirmer para o cargo de secretário da Segurança Pública, mesmo que ele não tenha preparo para isso. Conforme enfatiza o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, somos uma sociedade muito violenta e nossas políticas públicas são extremamente ineficientes e obsoletas. Cabe ao jornalista mostrar o horror para além dos números.
Funcionários da Record RS paralisam por melhores condições de trabalho Trabalhadores da Record RS paralisaram as atividades na manhã de 17 de outubro. Entre as demandas na pauta de reivindicações do grupo estavam condições de trabalho, redução das punições e exigências para a concessão da cesta básica, mudança de registro de cinegrafista para repórter cinematográfico, marcação com
CHARGE
antecedência de uma escala de férias, fim do uso de materiais pessoais para trabalho, como celular e GPS, fim dos casos de assédio e não obrigatoriedade de fazer horas extras. No dia 21 do mesmo mês, a diretoria do Grupo Record se reuniu com os funcionários e entidades de classe para dar retorno aos pedidos.
Entidades lançam campanha pelo fim da violência contra as mulheres Com o objetivo de ressaltar a necessidade de enfrentamento à violência contra as mulheres e à desigualdade de gênero, o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (COMDIM/Porto Alegre) e o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (SINDJORS) se uniram para promover, de 20 de novembro a 10 de dezembro, a campanha Não somos culpadas. A iniciativa integra a campanha 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres, uma mobilização anual, em cerca de 160 países, praticada por membros da
Versão dos Jornalistas é uma publicação do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul Rua dos Andradas, 1270, 13º andar, sala 133 Centro Histórico – Porto Alegre/RS – CEP 90020-008 Fones: (51) 3226-0664 | 3228.8146 | 3226.1735 www.jornalistasrs.org – web@jornalistasrs.org
FILIADO
Edição: Jorge Correa Edição executiva e reportagem: Douglas Roehrs Edição de fotografia: Robinson Luiz Estrásulas Projeto gráfico: Gilson Camargo Diagramação: Laura Santos Rocha Impressão: Gráfica Pioneiro Tiragem: 3 mil exemplares Diretoria Presidente – Milton Siles Simas Júnior 1ª Vice-presidenta – Laura Eliane Lagranha Santos Rocha 2º Vice-presidente – Elson Sempé Pedroso 1º Secretário – Jorge Luiz Correa da Silva 2ª Secretária – Márcia de Lima Carvalho 1º Tesoureiro – Robinson Luiz Estrásulas 2º Tesoureiro – Renato Bohusch 1º Suplente – Gabriel Gonçalves Ribeiro
2
,
,
sociedade civil e do poder público. Mundialmente, a atividade iniciou em 25 de novembro, Dia Internacional da Não Violência contra a Mulher, e vai até 10 de dezembro, o Dia Internacional dos Direitos Humanos. No Brasil, começou em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, para destacar a luta das mulheres negras contra o racismo e o sexismo. É fundamental reafirmar os direitos das mulheres e zelar pelo que já foi conquistado. A vítima não é culpada. Nunca. #nãosomosculpadas
Conselho Fiscal Celso Augusto Schroder, Vera Daisy Barcellos Costa, Adroaldo Bauer Spíndola Corrêa, Clóvis Victória Junior, Dolcimar Luiz da Silva e Nilza do Carmo Scotti Diretoria Geral André Luiz Simas Pereira, Carla Rosane Pacheco Seabra, Eduardo Silveira, Gilson Verani Freitas de Camargo, Guilherme Fernandes de Oliveira, Marcia Fernanda Peçanha Martins, Marco Alexandre Bocardi, Maria Alcívia Gonçalves da Silveira, Mateus Campos de Azevedo, Paulo Gilberto Alves de Azevedo, Pedro Guilherme Dreher, Pedro Luiz da Silveira Osório, Roberto Carlos Dias, Silvia Fernandes e Thaís Vieira Bretanha Comissão de Ética Moisés dos Santos Mendes, Cristiane Finger Costa, Flavio Antonio Camargo Porcello, Antônio Carlos Hohlfeldt, José Maria Rodrigues Nunes, Jeanice Dias Ramos, Carlos Henrique Esquivel Bastos, Neusa Maria Bongiovanni Ribeiro, Marcos Emilio Santuário e Julieta Margarida Amaral
Versão dos Jornalistas I Rio Grande do Sul I Novembro/Dezembro de 2016
COMUNICAÇÃO PÚBLICA
Servidores lutam contra extinção da TVE e da FM Cultura
Foto: Jorge Correa/SINDJORS
O
que começou como boato durante a campanha eleitoral, e se transformou em ameaça nos primeiros meses do governo Sartori, está em vias de se tornar dura realidade. Caso o “pacote de austeridade” anunciado pelo governador no dia 21 de novembro seja aprovado em regime de urgência pela Assembleia Legislativa, serão extintas, ainda no primeiro semestre de 2017, a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura) e outras oito fundações. A iniciativa pode causar a demissão de aproximadamente 1.200 servidores. O anúncio impactou os servidores que estavam em vigília na Praça da Matriz, a escassos passos do Palácio Piratini. Receberam a notícia com longos abraços e lágrimas nos olhos, apesar de estarem no local por saberem do perigo que ronda a comunicação pública do Rio Grande do Sul. Além de empregarem mais de 250 pessoas, as emissoras são patrimônios do Estado. O sinal da TVE, que foi criada em 1968, chega a mais de 7 milhões de telespectadores, por meio das suas 40 antenas repetidoras e sua geradora, localizada em Porto Alegre. A FM Cultura, inaugurada em 1989 e dedicada à música erudita, popular brasileira e internacional, atinge atualmente mais de 3 milhões de ouvintes. A PREOCUPAÇÃO DOS AMEAÇADOS “Vou ter que correr atrás, pois falta um ano e meio para me aposentar de maneira integral”, lamenta o técnico de som Carlos Ayres, 53 anos, sendo 30 anos de TVE. Ele e cerca de 30 profissionais atuais entraram como celetistas antes da realização do primeiro concurso. Casca – como é conhecido – tem um filho autista de 18 anos, em quem investe boa parte de seus proventos. “Não sei fazer outra coisa. Vou ter que vender pastel”, diz o radialista. Se o pacote passar pela Assembleia e a TVE for extinta, a jornalista Angélica Coronel sairá da emissora pela segunda vez. Formada pela UFRGS em 2000, a repórter entrou em julho de 2014 por meio de concurso e não sabe o que fará. “O atual mercado não oferece muita chance”, pondera Angélica. Com 61 anos e aposentada há dois, a jornalista Vera Cardozo poderá perder a sua maior renda. Produtora executiva da TVE, onde está desde 2002 – entrou por concurso –, é mãe de Gabi Barenho, 35 anos, que também trabalha na emissora. Tem ainda duas filhas e duas netas, de quem é responsável. “Será uma batalha grande se a televisão fechar. Vou ter que complementar renda”, frisa. A ameaça sempre foi tratada com grande preocupação pelos funcionários. Tanto que eles criaram em maio, nas redes sociais, o Movimento dos Servidores da TVE e FM Cultura, com a intenção de defender a instituição, rechaçando qualquer proposta de extinção ou privatização.
Servidores que estavam em frente ao Palácio Piratini receberam a notícia com abraços e muita comoção
Desde o início, os sindicatos dos Jornalistas Profissionais do RS e dos Radialistas se colocaram ao lado dos funcionários das emissoras. No dia 5 de novembro, os servidores da fundação, as duas entidades – com apoio da CUT – promoveram o “Salve Salve a TVE e a FM Cultura”, evento que reuniu centenas de pessoas no Parque da Redenção, em Porto Alegre, para apresentação de artistas consagrados. CRESCEM OS APELOS NAS REDES A mobilização é grande. No dia 23 de novembro, o Conselho Deliberativo, que auxilia na construção das diretrizes de programação da TVE e FM Cultura, recebeu um ofício do governo e deverá se reunir extraordinariamente antes da votação na Assembleia Legislativa. Representantes dos servidores estiveram na reunião e pediram o apoio do Conselho. A justificativa é de que o argumento econômico para o pacote de extinção das fundações é frágil. Na articulação junto à sociedade, estão sendo buscados apoios de importantes figuras públicas. Muitos já estão nas redes sociais, como o da atriz gaúcha Júlia Lemmertz, que diz: “Uma vergonha que um Estado como o Rio Grande do Sul esteja prestes a fechar uma televisão educativa e uma rádio como a FM Cultura, que transmite música diferenciada para o Rio Grande do Sul e o Brasil”. O músico Renato Borghetti é direto: “A gente não pode dar um passo atrás. Não podemos perder a nossa história”. O jornalista e cineasta Carlos Gerbase publicou artigo no jornal Zero Hora onde destaca, entre outros posicionamentos, que “decide-se o futuro de seres humanos e de suas criações mais sublimes a partir de números frios e impiedosos”. Na sua avaliação, com o possível fim da TVE, “anuncia-se a
derrocada das conversas de aldeia”. Na mesma linha de pensamento, o diretor de cinema Jorge Furtado afirma que “os argumentos econômicos para o fechamento dos dois veículos são de uma mediocridade nauseante”. E questiona: “Quanto custa a TVE e a FM Cultura para o Estado? Quanto o governo gasta em publicidade nos veículos privados?”
SINDJORS e FENAJ repudiam a decisão O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RS (SINDJORS) e a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) manifestam seu repúdio ao pacote do governo Sartori que promove um desmonte do serviço público do Rio Grande do Sul. Enquanto mais de mil servidores podem ser demitidos, as despesas com diárias e passagens do Executivo seguem crescendo. Trata-se de uma política de austeridade que atinge somente os trabalhadores. As entidades lamentam a possibilidade de extinção de importantes fundações e empresas para o desenvolvimento do Estado, em especial a Fundação Piratini e a Companhia Rio Grandense de Artes Gráficas (Corag). A comunicação pública é uma forma democrática de levar informação e cultura para a sociedade. TVE e FM Cultura não são veículos estatais a serviço do governo. São meios de comunicação públicos do povo gaúcho, feitos para nós.
Versão dos Jornalistas I Rio Grande do Sul I Novembro/Dezembro de 2016
3
ESPECIAL
Polícia que mata
O Relatório de Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), mostra que as agressões contra os profissionais, em 2015, tiveram como principais autores os policiais militares. A partir desse dado, o Versão dos Jornalistas buscou entender a dimensão da violência da polícia brasileira e possíveis soluções para melhorar este quadro. Confira o resultado de políticas equivocadas e da constante impunidade. Foto: Caco Argemi/Especial
Cavalaria da Brigada Militar avança durante manifestação realizada pelos movimentos sociais na área central de Porto Alegre, em 13 de maio de 2016 Douglas Roehrs
O
12 de outubro deste ano, Dia das Crianças, marcará para sempre a vida do pescador Alexandre Benedito Inácio, 36, morador de Navegantes, Santa Catarina. Nessa data, Alifer dos Santos Inácio, filho de 13 anos, foi morto a tiros pela polícia, ao lado de outras três pessoas. Segundo a versão oficial, um suspeito, após ser feita a abordagem, correu para dentro de casa e houve troca de tiros. Moradores do bairro Meia Praia relatam que a polícia teria chegado, em um carro descaracterizado, já atirando. Após o cordão de isolamento ser rompido por outro pai de um dos mortos, a polícia partiu para cima da população com porradas de cassetete, balas de borracha, spray de pimenta e granadas de luz e som. Entre os atingidos estava Sandro Silva, jornalista do Diarinho, veículo de comunicação catarinense, que levou um tiro de bala de borracha no joelho. Mesmo que Silva tenha se identificado como profissional da imprensa, usando inclusive crachá, um dos policiais mirou na sua perna e atirou. “Ainda não consigo entender por que a polícia fez aquilo. Foi uma
4
coisa de tempos de ditadura”, questiona-se o jornalista. Apesar de grave, seu caso não é isolado. O Relatório de Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, da FENAJ, mostra que as agressões contra jornalistas, em 2015, tiveram como principais autores os policiais militares, especialmente nos casos registrados em manifestações de rua. A categoria foi responsável por 28 das 137 agressões. “As polícias militares têm dado demonstrações de que não estão preparadas para atuar na garantia da segurança da população. A violência policial é, de fato, uma ameaça à sociedade e à categoria dos jornalistas”, enfatiza a presidenta da Federação, Maria José Braga. NINGUÉM TEM O DIREITO DE MATAR A chama, rubra como sangue, transforma-se num negro que se agiganta e tinge o céu de Porto Alegre denunciando novo conflito. Dois ônibus e um lotação são incendiados em resposta à morte de Ronaldo Lima, 18, que, naquela manhã do dia 3 de setembro de 2015, levou um tiro nas costas disparado por um policial. Na versão da Brigada Militar, ele estaria armado e teria reagido. Moradores da co-
munidade conhecida por Buraco Quente, no Morro Santa Tereza, afirmam que ele havia se rendido. “Eles chegaram atirando, o Ronaldo se rendeu e mandaram ele correr. Quando ele foi correr, dispararam nas costas”, relata Marina Lima, 22, irmã de Sembinha, como carinhosamente o chamava. No dia, em meio à confusão, ao encontrar Ronaldo jogado no chão, já sem vida, repetia “mano, volta mano”, em estado de choque. Conforme conta, os policiais não deixaram que sua irmã chamasse atendimento médico, além de debocharem da família. Tais ações foram combustível para que a população se revoltasse, pois, além dos insultos e da violência desmedida, que foi repetida depois pela tropa de choque, viram Ronaldo crescer. “Ele era um menino bom. Não importa o que ele fazia, ninguém tem direito de matar ninguém”, indigna-se Marina. Foi realizado um Inquérito Policial Militar, que resultou no indiciamento de três profissionais. Passado mais de um ano, o inquérito, que corre em sigilo, está no Judiciário. À reportagem, o 1º Batalhão de Polícia Militar não respondeu às acusações da comunidade. Enquanto isso, os policiais atuam
Versão dos Jornalistas I Rio Grande do Sul I Novembro/Dezembro de 2016
normalmente, pois só serão afastados caso haja uma condenação, conforme contou o ex-comandante do 1º BPM, tenente-coronel Kleber Goulart, durante entrevista à época do indiciamento. Para o professor de psicologia da UFRJ e oficial da reserva da polícia militar do Estado do Rio de Janeiro, Pedro Paulo Bicalho, esse caso pode ser um exemplo do quanto é preciso trabalhar modelos de uso progressivo da força na formação policial. “Fazer segurança pública não significa matar”, ressalta. Os números da letalidade da polícia evidenciam a carência de treinamento adequado constatada por Bicalho. O 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública indica que 3.345 pessoas foram mortas pela polícia em 2015, um aumento significativo ao já alarmante número de 2014, que foi de 3.146 mortos. “A polícia brasileira mata em cinco anos o que a norte-americana mata em 30”, afirma o professor de Direito da PUCRS Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. Muitos disparos, conforme conta, são dados quando já há rendição, e os casos não são resolvidos. Há situações de abuso de autoridade na relação com cidadãos e a tendência é que esses casos se repitam sem mecanismos de controle efetivos. Em seu relatório anual O Estado dos Direitos Humanos no Mundo, a Anistia Internacional destaca que policiais responsáveis por execuções extrajudiciais desfrutam de quase total impunidade. Por exemplo, na cidade do Rio de Janeiro, das 220 investigações sobre homicídios cometidos por policiais abertas em 2011, houve, até o ano passado, somente um caso em que um policial foi indiciado. Em abril de 2015, 183 dessas investigações continuavam abertas.
dor, porém não oferece aos quase 700 mil policiais nada além de uma insígnia de herói quando de suas mortes em “combate”, que atingiram, em 2015, o número de 393, inferior aos 409 de 2014. Qual seria o papel do Estado frente a este quadro estarrecedor? Letícia afirma que o Estado é responsável, seja através da atuação violenta da polícia, seja pela insuficiência das políticas sociais, seja por sua não presença nas comunidades provendo bens e serviços públicos. No entanto, para Azevedo, atualmente há uma tendência de governos estaduais não interferirem diretamente. “Muitas vezes há acomodação, governos não tomam iniciativa para que melhore”, diz o professor de Direito, que também destaca a resistência corporativa encontrada por alguns governos. Bicalho considera a violência exacerbada uma política de Estado. O grande problema está na lógica de guerra às drogas, que produz muitos corpos: “precisamos mudar nossa racionalidade. Enquanto operarmos a partir de uma lógica de guerra, continuarão morrendo policiais e não policiais”. O papel da sociedade também pesa ao falarmos da letalidade da polícia. Em pesquisa recente do Datafolha-FBSP, 57% dos brasileiros concordam com a frase “bandido bom é bandido morto”. “Numa sociedade que legitima práticas violentas contra determinados indivíduos, a polícia se sente legitimada a atuar de determinada maneira”, avalia Azevedo.
RACISMO INSTITUCIONAL Conforme análise da Anistia Internacional, 79,1% das vítimas de homicídios decorrentes de intervenção policial no Rio de Janeiro, entre 2010 e 2013, são negras e pardas. Na visão do professor da Escola Vereador Antônio Giúdice, Manoel José Ávila da Silva, há dois componentes a considerar ao analisar o racismo da polícia: o histórico, desde o Brasil colônia, que criou a polícia para perseguir os negros; e a função de controle social, destinada à população mais pobre. “A atuação policial é seletiva, criminaliza e pune com mais intensidade certos grupos sociais: jovens, negros e pardos, pobres e moradores das periferias urbanas”, avalia Letícia. COMO COMBATER ESSE QUADRO A socióloga Letícia destaca entre ações efetivas uma maior integração entre as polícias e demais instituições do sistema de justiça criminal; a polícia comunitária como princípio de atuação; e a busca de uma resolução racional dos problemas através de planejamento das ações e do uso da inteligência. Luciane lamenta a política de encarceramento adotada pelo Brasil. Uma boa iniciativa seria a utilização de casas de detenção menores. Grandes presídios, como o Central, são taxados por ela como depósitos de corpos. Além disso, ressalta que só fica preso quem é pobre e desprovido de assistência. “A lei no Brasil não é para todos”, enfatiza. Foto: Douglas Roehrs/SINDJORS
ANIQUILAMENTO DO EU O treinamento militar para policiais que atendem à população é criticado pela psicóloga Luciane Engel. Ela, que tem mestrado na área e atua no sistema prisional gaúcho, ressalta os efeitos negativos ao submeterem policiais a uma situação extrema de estresse e de humilhação durante o treinamento para se tornarem policiais. “Não se quer que o sujeito pense”, lamenta. Viver sob as regras do local e passar o tempo todo com as mesmas pessoas acaba gerando uma mortificação de quem o sujeito realmente é, “quase como um aniquilamento do eu”. A doutora em Sociologia, professora da UFRGS e integrante do grupo de pesquisa Violência e Cidadania, Letícia Schabbach, diz que não há estímulo implícito e explícito à promoção de direitos humanos nos cursos de formação e na atuação policial. Existe uma matriz curricular que inclui direitos humanos, entre outras disciplinas. “O fato é que, apesar da lei, a disciplina foi ensinada de uma maneira descontextualiza da própria prática policial”, argumenta Bicalho. Luciane reforça que, quando se pede pela desmilitarização, pede-se por uma oxigenação na instituição, onde as pessoas possam se expressar, questionar ordens. O PAPEL DO ESTADO Conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, estamos diante de um “mata-mata” extremamente cruel, que incentiva a ideia de policial vinga-
Em 2015, 3.345 pessoas foram mortas pela polícia, um aumento ao já alarmante número do ano anterior
Versão dos Jornalistas I Rio Grande do Sul I Novembro/Dezembro de 2016
5
PERFIL/TELIA NEGRÃO
Pelo direito à voz
Foto: Douglas Roehrs/SINDJORS
O A trajetória da jornalista e cientista política Telia Negrão acena, desde tempos ditatoriais, para a valorização da mulher na sociedade. Confira parte da sua história, contada em mesa redonda, na sede do Sindicato, com a participação dos jornalistas Douglas Roehrs, Jorge Correa, Laura Santos Rocha, Márcia Martins e Vera Daisy Barcellos.
6
ra homem, ora mulher. Orlando, personagem de Virginia Woolf, é dotado de uma fluidez que encanta Telia Negrão, amante da liberdade e que vê as pessoas para além do gênero – humanos que amam humanos. O desejo de não ser apenas uma pessoa transpassa sua história, na qual a jornalista se mistura com a ativista, que dá impulso para a atividade política, sem deixar de lado a maternidade. Nascida em Ponta Porã, Mato Grosso do Sul, em 29 de setembro de 1954, Telia foi criada em Jacarezinho, no norte do Paraná, onde permaneceu até a maioridade. Na adolescência, a menina que gostava de cantar, compor, pintar e representar já mostrava afinidade com a comunicação. A convite de padres que tinham uma emissora de rádio na cidade, apresentou, ao lado de colegas, um programa aos sábados à tarde. Saiu-se tão bem que foi convidada a escrever crônicas para o jornal local. Com a chegada dos 18 anos, queria muito ser a primeira das cinco irmãs a sair de casa. Como não havia estudado para o vestibular e tinha perdido o prazo para tentar Belas Artes, pediu para
a prima inscrevê-la no curso de Ciências Humanas com menos candidatos por vaga. Assim, em 1973, ingressou em Biblioteconomia, na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba. A partir de então, sua tarefa era conseguir ser transferida para o curso de Jornalismo. Ia frequentemente na secretaria para saber se havia alguma desistência. Passado mais de um ano, finalmente veio a boa nova – recebida por uma secretária que saiu correndo atrás dela pelos corredores da faculdade. CARREIRA NO JORNALISMO Durante bom tempo, seguiu nas duas graduações. Todavia, como começou a trabalhar profissionalmente no Diário do Paraná, onde entrou em 1975, acabou abandonando a Biblioteconomia pela dificuldade de conciliar tantos afazeres. Quando concluiu as disciplinas de Comunicação, em 1978, não quis colar grau. Acabou tendo de voltar dez anos depois para receber o seu diploma. Nesse meio tempo, Telia já havia se casado duas vezes, concorrido em eleições para deputada estadual e se tornado mãe de Ian e Adri Simon.
Versão dos Jornalistas I Rio Grande do Sul I Novembro/Dezembro de 2016
“Guerreira, lutadora, brava. Desde as minhas mais remotas memórias, minha mãe trabalha por uma sociedade mais justa e igualitária, incansavelmente”, enfatiza Ian, que enxerga nela uma grande amiga. Telia mudou-se para Porto Alegre para acompanhar o terceiro marido, no início da década de 1990. Na Capital gaúcha, trabalhou brevemente em rádio e fundou uma assessoria de comunicação, que durou cerca de sete anos. Fez o primeiro concurso para jornalista do Estado e passou – indo trabalhar, boa parte do tempo, na Biblioteca Pública. Nos anos 2000, fez especialização na UERGS e, posteriormente, mestrado em Ciência Política na UFRGS. Hoje, apesar de já ter se aposentado, trabalha tanto quanto outrora. Seus passeios em bares, teatros e cinemas disputam espaço com a militância feminista. Telia fundou várias organizações desde o final dos anos de 1970, entre as quais a União Brasileira de Mulheres. Ela foi a primeira coordenadora do Fórum Municipal da Mulher de Porto Alegre e a primeira presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher. Foi relatora junto às Nações Unidas para a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação e no Parlamento Europeu sobre Mortalidade Materna. Atualmente, Telia está à frente do Coletivo Feminino Plural. “Uma mulher admirável, uma pessoa que se preocupa em não magoar os outros”, destaca Ronald Simon, com o qual já foi casada e atualmente namora. A retomada do relacionamento deu-se há três anos. Desde então, procuram visitar-se, no mínimo, cinco vezes ao ano – ele permaneceu em Curitiba.
O veículo feminista tratava de assuntos considerados tabus ainda hoje, como sexualidade, prostituição e aborto. “De um modo geral, a mulher tem voz. Mas não o suficiente para fazer transformações sociais. Elas estão fora dos espaços que decidem em função das construções culturais, que apontam que sujeito político de âmbito público é homem”, avalia Telia, que se define como defensora dos direitos humanos, na busca da eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher.
O título de cidadã porto-alegrense foi proposto por Adeli Sell, presidente do PT municipal à época. Em sua justificativa, o vereador destacou que “com suas formulações teóricas e sua prática cotidiana, Telia tem contribuído para que o movimento de mulheres elabore e implemente políticas públicas que contemplam abordagens de gênero, o respeito aos direitos humanos individuais e coletivos”. Para Telia, o que constitui a mulher é sua experiência. E isso ela tem de sobra. Redação do jornal Correio de Notícias, em Curitiba, onde Telia foi secretária de redação, repórter e editora (1980)
BARREIRA MACHISTA Quando Telia chegou em Porto Alegre, marcou uma entrevista no grupo RBS. Lá, permaneceu por algum tempo trabalhando em rádio. Após isso, apresentou um projeto na rádio Bandeirantes. Caso fosse aprovado, seria a primeira voz feminina da estação. Embora o parecer da sede, em São Paulo, tenha sido favorável, a direção local reprovou, pois acreditava que a rádio não tinha perfil para uma voz feminina. “A paridade de gênero que defendemos na política também devemos defender nos meios de comunicação”, ressalta Telia. Em 2010, na semana em que Porto Alegre comemorou seus 238 anos, ela foi reverenciada com dupla homenagem: o título honorífico de Cidadã de Porto Alegre e a Medalha Cidade de Porto Alegre.
LUTA PELOS DIREITOS FEMININOS Telia trabalhou em diversos veículos, como Folha de Londrina, Jornal do Brasil, Correio de Notícias, TV Curitiba, Bandeirantes e rádio CBN. Entretanto, uma das passagens mais marcantes para a sua trajetória seria no jornal Brasil Mulher, que teve início em 1975.
l
a ivo pesso
u Fotos: Arq
Telia questiona seguranças da Refinaria de Petróleo de Araucária, Paraná, que passou a exigir, à epoca, folha corrida para a entrada de jornalistas em coberturas nacionais (1978)
A jornalista acompanha o então ministro Shigeaki Ueki na inauguração de refinaria de petróleo em São Mateus do Sul, no Paraná (1977)
Versão dos Jornalistas I Rio Grande do Sul I Novembro/Dezembro de 2016
7
FOTOJORNALISMO
Fotos: Kadão Chaves/Divulgação
A lente de Kadão D
e momentos políticos marcantes a cenas do cotidiano. Diferentes episódios foram retratados pelo repórter fotográfico Ricardo Chaves, que os reuniu no livro-documento A força do tempo – Histórias de um repórter fotográfico brasileiro, lançado em outubro, pela Editora Libretos.
“O fotojornalismo é uma forma generosa de compartilhar experiências com as outras pessoas, contando com imagens como as coisas ocorrem” Kadão Chaves
CONVÊNIOS caxiense.com.br caxiense@caxiense.com.br twitter.com/expcaxiense facebook.com/expcaxiense