Versão dos Jornalistas 159

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Ocupações PUBLICAÇÃO DO SINDICATO DOS JORNALISTAS PROFISSIONAIS DO RS ANO 25 – Nº 159 – ABRIL DE 2017

Em resposta à falta de ação do poder público, famílias que vivem em condições precárias e grupos que objetivam dar apoio a pessoas em situação de vulnerabilidade ocupam prédios até então abandonados de Porto Alegre. A ação, no entanto, desencadeia guerras judiciais e um debate sobre o papel do Estado, até que ponto a população pode agir para garantir direitos básicos e a visibilidade na mídia.

Foto: Douglas Roehrs / SINDJORS

Página central

INTERIOR

PERFIL

LUTA DO TRABALHADOR

Confira os novos descontos para jornalistas sindicalizados de Pelotas

Da infância em Três de Maio às salas de aula da PUCRS. A trajetória de Ivone Maria Cassol

Milhares vão às ruas contra a reforma da Previdência e os ataques aos direitos trabalhistas

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Páginas 6 e 7

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EDITORIAL

INTERIOR

Sensibilidade jornalística “V

Convênios na delegacia regional de Pelotas

ocê não pode ser insensível numa questão de justiça social”, falou a professora de Jornalismo da PUCRS, Ivone Maria Cassol, durante entrevista para a edição de abril do Versão dos Jornalistas. Ela, que tem antiga ligação com a luta dos trabalhadores rurais sem terra, reforça o compromisso da profissão para com os direitos humanos. Ao ser escolhida como perfilada desta edição, levou-se em consideração os pontos de convergência entre sua história e a reportagem principal sobre as ocupações. Criou-se, assim, um conjunto voltado para um direito tão básico, mas negado a muitos: um lugar para chamar de seu. O aumento do desemprego e as perspectivas nada animadoras para o futuro próximo pioram um quadro que nunca foi bom. Acaba que parcela da população, historicamente desassistida, ainda precisa lidar com a hostilidade e o preconceito que rondam suas vidas. Em casos assim, o papel do jornalismo é dar voz a quem precisa urgentemente falar, ouvir as mazelas de uma população que povoa as ruas carregando suas pesadas dores. Infelizmente, nem sempre é o que acontece. O que vemos são redações reféns dos seus setores comerciais. Textos que passam por uma censura prévia e subliminar levando em conta os patrocinadores. Temos, em muitos casos, veículos de comunicação subservientes aos governos, aos grandes empresários, a todos que pagam para dizer o que deve ou não ser publicado. Há jornalista que, insatisfeito com o seu trabalho, diga que talvez tenha apenas duas escolhas: submeter-se ou ir para a fila do desemprego. O que faz sentido, pois grandes veículos não buscam pluralidade, uma autonomia do pensar. Eles escolhem funcionários que digam exatamente o que eles querem ouvir. E nesse processo nefasto, histórias tão necessárias quanto a de quem busca um teto para dormir acabam muitas vezes sendo deixadas de lado – histórias essas que devem se tornar mais frequentes com as aprovações de diversas medidas sinistras do governo ilegítimo de Michel Temer. Vivemos um momento muito delicado no mundo e, em especial, no Brasil, no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre. Precisa-se mais do que nunca de jornalistas empenhados em trazer uma visão sóbria, verdadeira e humana sobre nossa realidade.

A delegacia regional de Pelotas (Rua Marechal Deodoro, 558, sala 201, Centro – Pelotas), braço institucional do SINDJORS, tem novidades para os jornalistas da região sul. Foram fechados novos convênios com empresas locais que garantem descontos para sindicalizados. Top Way English School – Desconto de 20% nas mensalidades e 15% no material didático Psicopedagoga Simone Barrios – Desconto de 35% Dentista Vinícius Sinott – Desconto de 10% nas consultas Pediatra João Tibúrcio Coimbra – Desconto de 50% nas consultas Cirurgião geral e oncológico Marcelo Caballero – Desconto de 15% nas consultas Extreme Suplementos e Farmácia de Manipulação – Desconto de 10% Confira endereços e telefones no site do Sindicato (www.jornalistas-rs.org.br).

CHARGE

Versão dos Jornalistas é uma publicação do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul Rua dos Andradas, 1270, 13º andar, sala 133 Centro Histórico – Porto Alegre/RS – CEP 90020-008 Fones: (51) 3226-0664 | 3228.8146 | 3226.1735 www.jornalistasrs.org – web@jornalistasrs.org

FILIADO

Edição: André Simas Pereira e Márcia Peçanha Martins Edição executiva e reportagem: Douglas Roehrs Edição de fotografia: Robinson Luiz Estrásulas Projeto gráfico: Gilson Camargo Diagramação: Laura Santos Rocha Impressão: Gráfica Pioneiro Tiragem: 3 mil exemplares Diretoria Presidente – Milton Siles Simas Júnior 1ª Vice-presidenta – Laura Eliane Lagranha Santos Rocha 2º Vice-presidente – Elson Sempé Pedroso 1º Secretário – Jorge Luiz Correa da Silva 2ª Secretária – Márcia de Lima Carvalho 1º Tesoureiro – Robinson Luiz Estrásulas 2º Tesoureiro – Renato Bohusch 1º Suplente – Gabriel Gonçalves Ribeiro

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AUGUSTO BIER Conselho Fiscal Celso Augusto Schroder, Vera Daisy Barcellos Costa, Adroaldo Bauer Spíndola Corrêa, Clóvis Victória Junior, Dolcimar Luiz da Silva e Nilza do Carmo Scotti Diretoria Geral André Luiz Simas Pereira, Carla Rosane Pacheco Seabra, Eduardo Silveira, Gilson Verani Freitas de Camargo, Guilherme Fernandes de Oliveira, Márcia Fernanda Peçanha Martins, Marco Alexandre Bocardi, Maria Alcívia Gonçalves da Silveira, Mateus Campos de Azevedo, Paulo Gilberto Alves de Azevedo, Pedro Guilherme Dreher, Pedro Luiz da Silveira Osório, Roberto Carlos Dias, Silvia Fernandes e Thaís Vieira Bretanha Comissão de Ética Moisés dos Santos Mendes, Cristiane Finger Costa, Flavio Antonio Camargo Porcello, Antônio Carlos Hohlfeldt, José Maria Rodrigues Nunes, Jeanice Dias Ramos, Carlos Henrique Esquivel Bastos, Neusa Maria Bongiovanni Ribeiro, Marcos Emilio Santuário e Julieta Margarida Amaral

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SINDICATO

Trabalhadores contra a reforma Foto: Douglas Roehrs / SINDJORS

U

m grande ato na Esquina Democrática, seguido de uma caminhada até o Largo Zumbi dos Palmares, no centro de Porto Alegre, encerrou o Dia Nacional de Paralisação contra a reforma da Previdência, em 15 de março. Mais de 10 mil pessoas gritaram palavras de ordem como “aposentadoria fica, Temer sai”. O presidente da CUT-RS, Claudir Nespolo, ressaltou a grande mobilização que ocorreu no Rio Grande do Sul: “foi um duro dia de combate e a classe trabalhadora, de forma unitária, conseguiu tirar o tema da reforma da Previdência da clandestinidade. Tivemos greves em 12 categorias, nos setores público e privado, dezenas de paralisações em Porto Alegre e no interior, além das passeatas”. Milhares também foram às ruas de Caxias do Sul. O diretor do SINDJORS Roberto Carlos Dias participou da caminhada e salientou a quem interessa a reforma: “hoje, 48% do PIB (Produto Interno Bruto) vai para o pagamento da chamada dívida pública e apenas 13% vai para a Previdência. A dívida pública é nada mais, nada menos do que dar nosso dinheiro para os banqueiros, pois é uma dívida que já foi paga há muito tempo. Querem que o trabalhador pague essa conta para os ricos ficarem mais ricos. Essas reformas só interessam às elites

Esquina Democrática, no Centro Histórico de Porto Alegre, foi o ponto de partida do ato dos trabalhadores

do país e não à maioria da população, formada por trabalhadores e trabalhadoras”. Conforme a CUT, mais de 1 milhão de brasileiros protestaram no país. O presidente nacional da entidade, Vagner Freitas, reforçou a importância

dos atos. “Nós temos tido várias datas históricas na luta da resistência do povo trabalhador. Hoje foi um dia extraordinário, com muita adesão e deixa claro que o povo é contra a reforma da Previdência e Trabalhista”, comemorou Freitas.

Nova derrota de Sartori no caso das fundações O Tribunal Regional do Trabalho (TRT4) negou, no fim de fevereiro, mais um recurso do governo do Estado, que tenta evitar negociações coletivas na demissão de servidores da Fundação Piratini, Cientec, Fundação de Economia e Estatística (FEE), Metroplan e Fundação Zoobotânica (FZB). “Esta é mais uma vitória do movimento dos servidores da TVE e da FM Cultura e para todas as demais fundações envolvidas neste projeto. Além disso, evidencia o total despreparo do governo”, afirma o diretor do SINDJORS e funcionário da Fundação Piratini, Beto Azevedo. Conforme os magistrados que fundamentaram as decisões, o Executivo não trouxe nenhum elemento novo em seu pedido de revisão sobre as liminares concedidas em janeiro. Na ocasião, foi dado aos trabalhadores o direito de negociação coletiva por meio de suas entidades representantes, entre elas o SINDJORS, antes de qualquer ato rescisório sobre os contratos de trabalho. Isso ocorreu mediante o entendimento de que o governo poderia rompê-los unilateralmente, sem justa causa e descumprindo as garantias legais. Esta não é, no entanto, a primeira derrota. Em janeiro, o TRT4 já havia mantido as liminares após recursos do Estado. Com a negativa, o Executivo recorreu novamente na forma de agravos regimentais, que foram negados.

EXTINÇÃO É GRAVE ERRO A decisão de extinguir fundações nas áreas de cultura, ciência e tecnologia é gravemente errada e revela uma falta de visão de longo prazo e perspectiva histórica sobre as responsabilidades do Estado. A avaliação foi feita por João Carlos Brum Torres, coordenador do plano de governo de José Ivo Sartori na eleição de 2014 e ex-secretário do Planejamento nos governos de Antônio Britto e Germano Rigotto, durante o seminário O futuro do RS: fundamentos e fundações, realizado em março, no auditório Dante Barone, na Assembleia Legislativa. Brum Torres é um nome histórico do PMDB gaúcho. Ele abriu sua intervenção no encontro explicitando essa ligação: “tenho uma relação histórica com o PMDB e uma relação próxima com esse governo, mas estou convencido que essas decisões são gravemente erradas”. RISCO DE PERDER O SINAL DE TRANSMISSÃO O Sindicato dos Jornalistas reuniu-se com representantes da Assembleia Legislativa e da Câmara de Vereadores de Porto Alegre para alertar sobre os riscos da extinção da Fundação Piratini e o uso do sinal por parte das duas entidades. Nos encontros com o superintendente de Comunicação da AL, Marcelo Nepomuceno, e o coordenador de Comu-

nicação Social da Câmara, Felipe Chemale, o presidente Milton Simas repassou documentos com informações sobre os trâmites das negociações com o governo do Estado e o que pode ocorrer em caso de extinção. As duas casas legislativas possuem contratos/ convênios com o governo para uso do sinal de transmissão da programação da TVE. Com a possibilidade de extinção da Fundação e consequente demissão dos servidores, a manutenção do serviço está ameaçada. ANIVERSÁRIO DAS EMISSORAS A FM Cultura completou 28 anos de existência no dia 20 de março. Já a TVE comemorou 43 anos no dia 29. Para marcar ambas as datas, funcionários organizaram duas festas com muita música e luta contra a extinção da Fundação Piratini. Em leitura de manifesto do Movimento dos Servidores da TVE e FM Cultura, foi lembrado que, há três meses, 30 deputados aprovaram de forma precipitada o projeto do governador Sartori que extingue fundações do Rio Grande do Sul. “Trata-se de uma medida irresponsável, que vitima serviços essenciais à saúde, à pesquisa, à cultura e ao desenvolvimento econômico do Estado, e que dispensa os serviços qualificados de 1.200 servidores concursados”, ressalta o documento.

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Fotos: SINDJORS

ESPECIAL

Resistir e acolher Apenas em Porto Alegre, milhares de pessoas vivem sem condições mínimas habitacionais. Frente a problema tão grave, grupos se reúnem para transformar imóveis até então desocupados em suas residências. Este é o caso da Ocupação Lanceiros Negros (foto abaixo), criada em novembro de 2015 por aproximadamente 70 famílias e peça central de uma guerra judicial inclusive transformada em filme. Fotos: Douglas Roehrs / SINDJORS

Sem ter onde morar, Dione Moraes mudou-se para a Ocupação Lanceiros Negros em março

“E

u queria ser Deus pra ver ninguém sofrer e ninguém viver essa porcaria de vida que vivem na rua”, fala Dione Moraes, mulher negra de 50 anos, sentada num sofá vermelho velho no saguão da Ocupação Lanceiros Negros, no Centro Histórico de Porto Alegre. Sua fala segura e seu olhar decidido maquiam o recente baque que teve. Morava em área de invasão no bairro Rubem Berta, já há cerca de um ano, quando a ordem judicial chegou à porta dizendo que aquele pedaço de terra não lhe pertencia. A socorrista não teve outra escolha senão deixar o local. Mãe de seis filhos, tentou morar com um deles, mas o convívio não deu certo. “Eu me perdi. Ainda não aceitei. Eu sofro, eu choro, sinto que não merecia. Do nada, me vejo na rua”, desabafa. Desamparada, recebeu da irmã a notícia de que um grupo havia montado uma casa para mulheres vítimas de violência e em situação de vulnerabilidade. Foi assim que Dione conheceu a Ocupação Mulheres Mirabal, centro de referência criado pelo Movimento de Mulheres Olga Benário. O prédio abandonado onde funcionava o antigo Lar Dom Bosco, na Rua Duque de Caxias, na Capital, foi ocupado na madrugada de 25 de novembro, Dia Internacional da Eliminação da Violência Contra as Mulheres, no ano passado. Dione foi para o local com duas filhas, uma me-

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nor de idade, e passou a ajudar pessoas em situação ainda mais delicada: “eu sou uma pessoa que precisei também, ainda preciso, mas acho que elas mais do que eu”. Como o local não foi criado com o intuito de ser moradia, sua vontade de ajudar, colocar as coisas em ordem, acabou mirando um segundo lugar: a Ocupação Lanceiros Negros, para onde se mudou oficialmente no último dia 22 de março. DA CHUVA À NOITE FRIA DE RESISTÊNCIA

Outubro de 2015 foi um mês emblemático. Após intensa chuva, o Guaíba registrou nível recorde em mais de 70 anos. Segundo o balanço da Defesa Civil divulgado à época, mais de 140 mil pessoas foram afetadas em 100 cidades, cerca de 35 mil residências sofreram estragos, 1.792 famílias ficaram desabrigadas e outras 5.352 tiveram de se deslocar para casas de parentes ou amigos. Algumas dessas famílias, aliadas a outras em situação igualmente difícil, juntaram-se para ocupar um prédio público que estava abandonado, na esquina das ruas General Câmara e Andrade Neves. Nascia assim a Ocupação Lanceiros Negros. “As ocupações do centro, além de garantir moradia, têm como principal objetivo pressionar o poder público a cumprir o que está na Constituição. Tanto

as políticas habitacionais quanto as de infraestrutura não são cumpridas no país. Existe verba pra isso e ela se perde no caminho”, enfatiza a coordenadora nacional do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), Nana Sanches. Por volta de 70 famílias se mudaram para a edificação de quatro andares pertencente ao governo do Estado. “Lanceiros veio reivindicando essas políticas populacionais que estão paradas. Muitos conjuntos habitacionais não foram entregues”, argumenta Nana. A ação, entretanto, contou com uma reação do Executivo, que, na noite gelada do dia 23 de maio de 2016, deu início a ação de reintegração de posse. A Brigada Militar cercou a região e estava pronta para agir, mesmo que os ocupantes do lugar, entre eles mulheres e crianças, dissessem resistir até a morte. Na madrugada seguinte, no entanto, foi deferida uma liminar suspendendo a reintegração. Na decisão, o desembargador Jorge Luís Dall'Agnol informou que a ação cautelar era sustentada pelo “perigo de dano irreparável ou de difícil reparação evidenciado pela imediata execução” da reintegração e também pelo “risco considerável de conflitos sociais”. A notícia foi recebida com muita comemoração pelos moradores e pelos manifestantes que faziam vigília. O episódio virou um documentário disponível no Youtube: Lanceiros Negros Estão Vivos.

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“Sou a favor de ocupar o espaço público” Foto: Vanessa Vargas

Em passagem recente pelo Rio Grande do Sul, o secretário do Fórum das Autoridades Locais de Periferia (FALP), Djamel Sandid (foto), falou com o Versão. Abaixo, confira os principais trechos da entrevista, feita em parceria com o jornalista Walmaro Paz, do Jornal Já: Em Porto Alegre, movimentos ocupam prédios abandonados. É uma ação que deveria ser feita por mais pessoas desassistidas pelo Estado? Hoje vemos muitos prédios construídos para uma elite ou para pessoas de classe alta média. No Brasil, não existe programas de moradia social. Tem o Minha Casa Minha Vida, mas não é suficiente. Deveria ter uma política nacional coerente sobre construção de mais habitação para pessoas humildes. O abandono transforma o local em espaço público. Eu sou a favor de ocupar o espaço público, pois essas pessoas têm o direito fundamental de ter um lugar digno para morar. Como você enxerga a cobertura da mídia nestes casos? Companheiros me contaram que tem uma tendência a criminalizar os movimentos, chamarem de invasão. A escolha do vocabulário já é uma resposta. As mídias sempre estão culpando os mais pobres pelos males da sociedade atualmente. Qual o papel dos governantes para que iniciativas promovam inclusão e democracia participa-

AS REGRAS DA CASA

No prédio dos Lanceiros Negros, foi organizado um refeitório e uma biblioteca. Os andares, com enormes espaços abertos, foram fatiados para abrigar a todos. Tábuas compensadas dividem os muitos quartos. Se você apertar a campainha deles hoje, terá de esperar algum residente tirar o molho de chaves que fica pendurado num prego, ao lado da porta, para assim destrancar o cadeado. Para que não transitem desconhecidos, os moradores não têm a chave de casa. Também não é permitido que entrem bebidas alcoólicas ou drogas. Quem avisa é Altamiro Francisco Mira, 57, morador local desde fim de 2015. Natural de Santa Cruz do Sul, Mira desembarcou em Porto Alegre no fim da adolescência. Pai de nove filhos, em agosto fará sete anos que perdeu a esposa. O acontecimento encheu seu peito de amargura, e a resposta para tanta dor foi encontrada num bar.

tiva para a população? Tem que ter vontade política dos gestores para que a voz das pessoas seja ouvida. A questão da participação não pode ser um acessório, um brinquedo para o povo. Deve servir para colocar mais cidadãos na vida política. Qual o efeito da situação política e econômica do Brasil no bem-estar da população? Eu morei no Brasil de 2005 a 2008. Visito-o re-

processo de regularização fundiária pelo Estado. “Até se dessem um terreno pra gente fazer uns lotes, a gente arrumava umas tábuas e se ajeitava”, fala Altamiro. Segundo o MLB, 300 mil pessoas moram em áreas irregulares na cidade. O déficit habitacional atinge o número de 70 mil famílias. Dados do Censo

gularmente. Desta vez, vi um país muito tenso, a relação das pessoas está muito difícil. O Brasil está pagando por algumas escolhas que fez, pois pensou que o crescimento era eterno. Foi construída uma bomba com efeito retardado. Infelizmente, não vejo as coisas com otimismo, pois o governo de hoje está acabando com tudo e o Brasil está numa descida muito perigosa para as pessoas mais humildes. A descrença na política está grande e não é só no Brasil.

Demográfico/IBGE de 2000 indicam, à época, déficit habitacional de 26.340 unidades, acrescidos de 12.232 unidades que precisam de reassentamento, de acordo com levantamento do Demhab. Enquanto essa situação persiste, pessoas como Dione são acolhidas em ocupações. “É uma vida bem boa, a gente faz ser boa”, enfatiza.

REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

Conforme a assessoria de imprensa da Secretaria de Obras, Saneamento e Habitação de Porto Alegre, “a regularização fundiária é um processo complexo que inclui medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais, com a finalidade de integrar assentamentos irregulares ao contexto urbano e legal da cidade”. Atualmente, na Capital, há 15 ocupações em

Prédio da Ocupação Mulheres Mirabal, que atende mulheres vítimas de violência e em situação de vulnerabilidade

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PERFIL

Do campo à sala de aula Da infância na área rural de Três de Maio nasceu a ligação de Ivone Maria Cassol, 61 anos, com a luta pelo direito de ter seu pedaço de chão. Ao cobrir os fatos do acampamento Encruzilhada Natalino, na década de 1980, como repórter de Zero Hora, sabia que estava no lugar certo e na profissão certa. Hoje professora de Jornalismo na PUCRS, sente saudade de ir a campo com um bloco de anotações na mão. Em entrevista para o Versão dos Jornalistas, concedida na instituição onde dá aula há quase duas décadas, a profissional lembra sua trajetória e comenta as mudanças na comunicação.

Quando o major Sebastião Rodrigues Moura, mais conhecido como Curió, desembarcou no Rio Grande do Sul, foi como se uma ventania soprasse o passado de volta, trouxesse o período de maior repressão da ditadura militar para o ano de 1981. Notório pelas atuações em Serra Pelada e contra a Guerrilha do Araguaia, o major foi mandado para acabar, sem sucesso, com o acampamento Encruzilhada Natalino, o primeiro montado à margem de uma estrada por pessoas reivindicando uma terra para plantar, na região de Passo Fundo. “Curió era conhecido pela capacidade de argumentação. Era um militar muito bem articulado. Não sabia apenas se impor pela violência, mas usar a persuasão”, lembra Ivone Maria Cassol, que à época, como repórter do jornal Zero Hora, cobriu a luta das cerca de 600 famílias cercadas pela força de repressão federal. “Aparentemente, ele não nos restringia nada. No entanto, tentava nos manipular. Nós éramos sempre vigiados, sempre acompanhados. Ele sabia em que hotel a gente estava, escutava nossos telefonemas”, continua a professora da Faculdade de Comunicação Social (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). A terra vermelha, as lonas pretas que serviam

de casa e a presença imponente da cruz ainda estão bem presentes na memória de Ivone. Durante meses, ela acompanhou este que seria um marco no movimento dos trabalhadores rurais sem terra. “Pra mim, foi uma escola de jornalismo”, diz a professora, que também ressalta que tanto os profissionais quanto os veículos de comunicação não podem ser insensíveis numa questão de justiça social. A cidadania e os direitos humanos estão nos princípios da profissão. Além do mais, conforme ela enfatiza, eles não estavam fazendo nada de ilegal. IDENTIFICAÇÃO DESDE PEQUENA Ter nascido na área rural do município de Três de Maio, em 1955, explica sua afeição ao campo. Mesmo após o pequeno comércio de secos e molhados que o pai Ângelo cuidava ser fechado, e a família ir para a cidade, visitava a avó, nos limites do centro urbano, onde podia ordenhar vacas e cuidar das galinhas. “Carreguei comigo essa especialização”, brinca Ivone. Talvez seu amor pelos afazeres rurais só não fosse maior que pelo jornal. A mãe, Rosa, chegou a pedir para que o Correio do Povo não fosse mais levado para casa, pois a filha começava a ler e esquecia completamente das tarefas domésticas. Foto: Douglas Roehrs / SINDJORS

Ivone em frente ao prédio da Faculdade de Comunicação Social (Famecos) da PUCRS, local onde trabalha como professora há quase 20 anos

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Em 1979, na central do interior da Zero Hora, quando comecou a trabalhar como noticiarista Fotos: Arquivo pessoal

Em frente ao Congresso Nacional, junto com colegas da sucursal da RBS Brasília, na cobertura da Assembleia Nacional Constituinte, 1987

O pai sempre a incentivou a estudar. Após concluir o ensino médio na cidade, mudou-se para Porto Alegre, onde foi morar com Marli, irmã mais velha que cursava enfermagem, e outras colegas da terra natal. À época, conforme recorda, havia uma grande expectativa com a área de comunicação, e entrou para o curso de Jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 1974. O ensino, todavia, não era o mais adequado: “a ditadura militar tinha mexido nas grades de todas as universidades. Houve uma retirada de disciplinas humanísticas e impuseram um currículo mais tecnológico, mas a gente não tinha tecnologia. Era um absurdo”. DITADURA EM SUA VIDA Quando criança, a repressão militar era algo muito distante da cidadezinha do interior onde vivia. O único fato marcante das redondezas que recorda foi a Guerrilha de Três Passos, ação promovida por militares cassados e agricultores contra a ditadura, em março de 1965. “Todo meu contato com a ditadura foi em Porto Alegre”, fala Ivone, que se juntou a grupos para estudar o que era proibido na faculdade. Recebiam textos vindos às escondidas do exterior. Por mais que a universidade fosse um local de encontro, a formação política era feita fora dali: “havia muita discussão e muita militância política. A gente fazia passeata, aprendia como fugir da Brigada. Tínhamos arrepios quando ouvíamos falar da polícia federal”. Em 1976, ingressou no curso de Ciências Sociais, pelo qual se formou em 1980. Em 1977, prestes a concluir o Jornalismo, foi contratada para ZH como noticiarista na central do interior. Sua primeira grande cobertura como repórter foi a vinda do Papa João Paulo II para Porto Alegre, em 1980. Na redação do jornal que conheceu o repórter Jorge Waithers, 74 anos, seu marido. Eles estão juntos desde 1986. “Ela é uma pessoa especial. Quem

conhece, sabe disso. Desde quando começou, até agora na PUCRS, formando novas gerações de jornalistas, ela fez muito para a profissão”, pontua o companheiro. Ivone foi trabalhar na sucursal de Brasília em 1986. Em 1989, deixou o jornal para ser repórter no Estado de São Paulo. Nesse período no Distrito Federal, acompanhou fatos marcantes como a Assembleia Nacional Constituinte e a primeira eleição presidencial por voto direto da população na reabertura democrática, vencida por Fernando Collor de Mello. DE VOLTA A PORTO ALEGRE No início da década de 1990, voltou para a capital gaúcha. Trabalhou na assessoria do Palácio Piratini, na Plural Comunicação, na Gazeta Mercantil e na Secretaria de Ciência e Tecnologia. Concluiu seu mestrado em 1997 e, no ano seguinte, começou a dar aula na PUCRS, onde está até hoje. A primeira vez que entrou em uma sala, segundo conta, foi assustador. “Levei um tempo para me acostumar com o dia a dia”, diz a eterna apaixonada pela reportagem. Na década de 2000, trabalhou brevemente na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) e fez doutorado. Também viveu um dos momentos mais delicados de sua vida. Teve câncer de mama e de endométrio. Por mais que estivesse debilitada devido ao tratamento, e tivesse crises de mal-estar dentro do local de trabalho ou na rua, seguiu ensinando os futuros colegas de profissão. “Estar aqui era muito melhor que ficar em casa”, afirma Ivone, num banco ao lado do saguão da Famecos. O PRESENTE Hoje Ivone é professora de Teorias de Jornalismo, projeto e orientação de monografia, coordena os estágios externos e é uma das responsáveis pelo Editorial J – laboratório de jornalismo convergente

do curso. “Tive vários momentos emocionantes em banca de monografia, situações que compensaram o esforço. Ver o crescimento, as descobertas e a realização do aluno não tem preço”, ressalta. Quanto aos estágios, percebe mudanças que a preocupam. Cada vez mais estão contratando estudantes para desempenharem funções que deveriam ser de profissionais, principalmente na área pública. “Com essa demagogia de cortar gastos, contratam um estagiário para fazer o que deveria ser feito por um profissional”, lastima. Suas críticas também se estendem à reforma curricular, que, na visão dela, chega tarde: “ela está muito focada na essência do jornalismo, sendo que o mercado de trabalho é muito mais interdisciplinar. Este currículo deveria ter vindo no início dos anos 2000, não agora”. Apesar de ter mais familiaridade com o impresso, Ivone gosta de desafios, renovar e conhecer outras áreas. Por isso a convergência proposta pelo Editorial J a atrai muito. “Conseguimos uma concepção de estágio legal”, avalia. “Ela tem uma capacidade de aproximar as pessoas, tratar com delicadeza e carinho as questões, além de uma atenção especial para com alunos que têm mais dificuldade. Naturalmente, ela se aproxima e se torna um grande apoio deles para que consigam realizar as atividades como os demais”, enfatiza o colega e coordenador do Editorial J, Fábio Canatta. “Ela tem um interesse permanente, tanto que todos os anos a gente acaba fazendo ajustes na organização interna e ela sempre está disposta a assumir uma responsabilidade diferente”, emenda. O laboratório congrega alunos de diversos semestres do curso. À tarde, eles reúnem-se para produzir conteúdo de uma maneira diferenciada. Ter de volta este ambiente de redação, coleguismo e trabalho em conjunto é uma ligação entre o passado e o presente da professora Ivone.

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