EDIÇÃO 21 - 2020
REVISTA LABORATÓRIO DA DISCIPLINA GRANDE REPORTAGEM
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS
Sem receitas para seguir Por Amanda Smera
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Mulheres Bolsonaristas - Por Bruno Roque e Julia Alves
Quem lhe deu essa flor? - Por Brenda Sarmanho, Gabriel Nunes e Mariana Freitas
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De Concreto, Aço e Brilho – Por Kayam Mendes, Giulia Fantinato, Lucas Santiago e Pietra Regino
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Bruxas do século XXI – Por Camilla Jarouche, Larissa Mora e Maithe Martins
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE Reitor: Prof. Dr. Marco Tullio de Castro Vasconcelos Pró-reitor de Controle Acadêmico: Prof. Dr. Cleverson Pereira de Almeida Pró-reitor de Extensão e Cultura: Prof. Dr. Marcelo Martins Bueno Pró-reitora de Graduação: Profa. Dra. Janette Brunstein Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto Pró-reitor de Planejamento e Administração: Prof. Dr. Luiz Carlos Lemos Júnior
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS Diretor: Prof. Dr. Marcos Nepomuceno Duarte CURSO DE JORNALISMO Coordenador: Prof. Dr. André Santoro SUPERVISOR DE PUBLICAÇÕES Prof. Dr. José Alves Trigo EDITOR Profa. Ms. Patricia Paixão
Charlote Smera, avรณ da repรณrter Amanda Smera, que vive o drama do mal de Alzheimer.
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A experiência da repórter Amanda Smera, neta de uma paciente com mal de Alzheimer, ao cobrir um evento sobre a doença
Público do evento organizado pela Supera sobre mal de Alzheimer
Por Amanda Smera
E
ra uma manhã de sábado de setembro, nublada e chuvosa. Acordei com o pressentimento que não era o meu dia, mas segui as palavras encorajadoras de minha mãe e tentei não deixar o tempo ruim me abalar – o ser humano e sua mania de culpar as mudanças climáticas por tudo… Fiz o que sempre faço quando não estou me sentindo eu mesma: escolhi a roupa mais cor de rosa possível e encarei a realidade de que viveria momentos difíceis, ao menos estaria bem vestida e usando minha cor favorita. Subconscientemente, escolhi meus sapatos mais
desconfortáveis, talvez para amenizar o desconforto que sentira com meu infame compromisso matinal. Conversei com o motorista do Uber que reclamou do clima durante todos os longos e incontáveis minutos que fiquei no carro. Pensei em pedir para ele ligar o rádio, a fim de me poupar da conversa, mas a verdade é que, como podem ver com a escolha dos sapatos, sou masoquista. Fiquei surpresa ao chegar ao Teatro Gazeta, na Avenida Paulista, onde aconteceria o evento promovido pela Supera (empresa dedicada exclusivamente ao desenvolvimento das capacidades do cérebro e à saúde mental), com o apoio da Associação Brasileira de Alzheimer (Abraz) e da Associação Brasileira de Gerontologia. Não sabia muito bem ao certo o que eu esperava,
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mas o que pensei estava longe das mais de 700 pessoas confinadas em um espaço que cheirava a café e lanchinhos. O objetivo do encontro era conscientizar o público sobre o mal de Alzheimer, doença que atinge minha avó e mais de 35,6 milhões de pessoas no mundo (segundo dados de 2018, da Abraz). A fila para entrar no teatro era quilométrica e, quando encontrei meu lugar, respirei fundo. Aproveitei o fato de estar sozinha e usei essa oportunidade para bisbilhotar a conversa alheia, até porque não tinha nada melhor para fazer, levando em conta que o mediador estava atrasado e as pessoas que estavam ao meu lado, pela idade, não teriam a menor condição de se levantar sem a ajuda de alguém. Parecia que eu estava em uma convenção de avós. As senhoras
a minha volta me deixaram tão nostálgica que me bateu uma vontade imensa de chorar. Uma falava sobre o preço dos uniformes da escola do neto. A outra procurava em sua bolsa – que poderia pertencer a Mary Poppins, pois era infinita – balinhas de menta, e no processo achou lencinhos, um kit portátil de costura e até um par de meias. “Nessa idade, estar prevenida nunca é demais, Maria”, disse a uma amiga. A senhora ao meu lado parecia estar em uma verdadeira batalha medieval com seu smartphone. Ela estalava a língua com pura impaciência, tentava todas as combinações numéricas possíveis para sua senha e, quando conseguiu abrir a câmera, não sabia tirar o flash. As cuidadoras presentes, ou pelo menos as pessoas que eu assumia serem cuidadoras, pareciam estar em um reencontro do colegial, que não se viam desde a formatura. Compartilhavam das mesmas piadas internas, todas contando suas histórias com seus velhinhos, sempre com o tom divertido e leve, talvez tentando mudar a aura do ambiente. Era uma coisa que eu ainda precisava aprender, a tratar tudo isso como se fosse mais cômico do que trágico. Comentavam sobre ter que repetir seus nomes, sua função e uma até comentou que uma vez sua paciente achou que ela era uma ladra invadindo a casa. Percebi uma coisa curiosa: os poucos homens presentes tinham uma aparência conservada e muitos estavam acompanhados de mulheres
que me lembravam as feições de minha mãe desde o diagnóstico de minha avó. Uma exaustão inimaginável tomava conta de cada partícula viva delas, com olheiras profundas e raízes dos cabelos por fazer. As luzes se apagaram e o mediador subiu ao palco. Ele começou a chamar os palestrantes, destacando informações como formação acadêmica e experiências de cada um. Aplaudi a primeira palestrante, a segunda também. Na terceira já não tinha mais motivação. Uma médica, que devia estar se sentindo o Freddie Mercury no Live Aid ou coisa do tipo, subiu ao palco, fazendo a plateia terminar suas frases e separando palavras por sílabas. Ela começou a falar sobre o processo de envelhecimento e adivinhem? Não existe fórmula mágica, bula preciosa ou manual de instruções. Em outras palavras: a vida é dura e o que tiver que acontecer é inevitável. A médica ressaltou sobre como a ciência procura incessantemente a cura do Alzheimer e disse que aquela não era uma doença do indivíduo, mas da família. Uma enfermidade que exigia suor, sangue e lágrimas, e, claro, uma boa estabilidade financeira. Reforçou como muitas vezes é a mulher que decide largar tudo para se responsabilizar pelo idoso. Falou sobre expectativa de vida, sobre número de casos e até mesmo dólares investidos em pesquisa. Aí fez o ápice da coisa toda: mandou
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a plateia inteira piscar, lentamente, duas vezes, cronometrando três exatos segundos e disse: “Pronto, um novo caso de Alzheimer acaba de ser diagnosticado”. Passou o slide e uma tela mais obscura, acinzentada, apareceu. Eu já sabia o que estava por vir: não parou de falar a palavra ‘morte’ por 20 minutos. Era morte por isso, risco de morte daquilo e tudo o que eu queria era ter levado uma garrafa caprichada de Tequila e tomar um shot toda vez que ela falava a palavra ‘morte’, talvez assim aquilo ficaria mais suportável. A palestra passou a ser um incessante lembrete de uma realidade que era minha, mas que eu, desesperadamente, não queria que fosse. A médica devia saber que estava falando com leigos e meros mortais, então depois de usar todos os termos médicos que conhecia, começou a resumir a história toda: “A doença torna a pessoa esquecida, o doente não sabe que está doente, ela afeta mais quem cuida do que quem precisa de cuidado”. Talvez parecesse óbvio para mim, mas uma senhora na poltrona que estava a minha frente parecia ter tido a epifania de sua vida. Em pura empatia, a minha vontade era de sair do meu lugar e ir abraçá-la. Desde que isso tinha se tornado parte da minha vida eu sempre soube que a doença era egoísta para todo mundo menos para o doente que nem sequer tem noção da realidade. Mas para todo o resto é como se a pessoa não
existisse mais, fica ali só o esqueleto, a carcaça, as rugas e as cicatrizes de uma vida esquecida. A pessoa segue existindo inconscientemente e o resto? O resto fica como um martelo nos lembrando o tempo todo de quem a pessoa era, e agora, simplesmente, sugada pelo buraco negro das incuráveis, irremediáveis e injustas fatalidades da vida. Quando pronunciou a frase “A doença demanda paciência”, era como se eu estivesse rodeada daqueles bonequinhos cabeçudos que balançam a cabeça. Foi um mar de pessoas concordando com a afirmação. A outra médica subiu ao palco e começou a trazer informações científicas, complementando a primeira palestrante. Terminou sua fala abrindo o espaço para o público fazer perguntas. A minha vontade era de subir lá e perguntar qual era o ponto disso tudo, se no fim ninguém tinha nenhuma resposta exata e tudo o que elas falavam não me confortavam. O mediador voltou ao palco e informou que teríamos um breve intervalo, mas pediu, na verdade exigiu, que antes disso a gente abraçasse a pessoa ao nosso lado. “Coração com coração”, ele disse. Não sou muito dada a estranhos, mas abracei a senhora que não sabia usar o celular, ela cheirava a saquinhos de chá e bolo de cenoura. Meus olhos encheram de água. Mal tive tempo de respirar quando a segunda parte do evento começou. A representante da Abraz subiu ao palco e eu fiz questão de aplaudi-la. Usava sapatos bonitos, mas tremia ao ler seu papel, sem a mínima presença de palco. Por algum motivo isso me confortou, seu discurso sobre a importância dos cuidadores me pareceu sincero e não algo ensaiado e decorado. A cuidadora que estava perto de mim tomava nota de tudo dito, me fazendo sentir como uma prévestibulanda desleixada. A moça da Abraz fez uma colocação tão perfeita que eu quase chorei. Disse que quando a doença aparece na família o idoso é
muitas vezes jogado e esquecido em uma gaveta, como aquele primeiro sutiã da vida que a gente guarda por motivos sentimentais, mas nunca mais usa. A verdade é que no fim do dia todo mundo tem uma desculpa na ponta da língua para se esquivar de qualquer responsabilidade: “Tenho filhos pequenos, não tenho como”.“Eu trabalho, não tenho como”. “Meu peixe é asmático, não tenho como”. E por aí vai... Passou a falar sobre o cuidador profissional e sobre a demanda emocional de tal profissão. Fiquei pensando no quão difícil deve ser cuidar de alguém, quando não se tem nenhum laço emocional ou o peso na consciência. De repente, o inimaginável aconteceu: duas atrizes famosas vieram dar o ar da graça e seus palpites, Nicette Bruno e sua filha Beth Goulart. Não vou mentir que fiquei um pouco frustrada pela forma como todos na plateia levantaram para aplaudi-las e como, em minha mais humilde opinião, a moça da Abraz merecia o dobro daquilo. Com seu casaquinho de tweed brocado invejável, Nicete era uma verdadeira fashionista e, sendo uma também, simpatizei com ela. Contou sua experiência cuidando de sua mãe que também sofreu com a doença, e como é difícil amar alguém
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que tem a enfermidade. E como toda a pessoa branca, rica e privilegiada, falou com aquele tom sortudo de que não teve muitas dificuldades no processo todo. “Por sorte deu tudo certo”. Sua filha, a também atriz Beth Goulart, atropelou a fala devagar da mãe e começou a discursar como se estivesse narrando uma partida de futebol. Era tanta informação que eu não conseguia acompanhar. Minha única anotação foi que seus sapatos pareciam mais desconfortáveis do que os meus e ela parecia lidar com o desconforto melhor do que eu – não sei ao certo se me referia aos sapatos ou ao luto. Beth começou um verdadeiro monólogo sobre o significado da vida, sobre o que significa encarar a velhice. Ela me perdeu quando começou a comparar memórias com um baú que se guarda no coração, não estava com cabeça para metáforas. Por fim, fez mais uma metáfora, comparando a morte com uma estrada luminosa e fortalecida. Pessoas aplaudiram e senti como se tivesse presenciado algo completamente diferente do que todos a minha volta. Quando me dei conta, o evento tinha acabado. Eu precisava desesperadamente voltar pra casa e abraçar o inevitável: um caminho árduo, sem receita mágica.
Quem lhe deu essa
Por Brenda Sarmanho, Gabriel Nunes e Mariana Freitas
“E
ntrem e fiquem à vontade. P o d e m olhar, só não toquem nas flores. Sintam o aroma». Os cabelos brancos e a postura calma denunciam as mais de oito décadas que Martinho Alexandre já viveu. Com essas palavras, de simpatia e amizade, ele levanta da cadeira disposta no centro de sua histórica loja, no Mercado das Flores, no Largo do Arouche, e convida os passantes a conhecerem sua vida, sem maiores pretensões. A “Flores Dora” foi fundada em 1927 e carrega hoje o nome da irmã do senhor que mantém o negócio. Seu Martinho prefere conversar sentado de frente para a entrada, sem perder possíveis clientes. Tem as costas maltratadas pela idade e por um recente acidente de trabalho ocorrido, quando, teimosamente, resolveu fazer ele mesmo a entrega de um grande arranjo para uma fiel e antiga compradora.
Histórias de diferentes vendedores de flores de São Paulo: os aromas e espinhos da profissão
Seja para conquistar uma nova paixão, presentear alguém de quem se gosta, parabenizar um grande feito ou prestar uma última homenagem, as flores ganham diferentes significados, dependendo da ocasião. Podem representar o início de algo muito bom ou a despedida daquele que se foi. Por trás da menor das pétalas ou nos bilhetes pendurados nos ramos, existem as histórias daqueles que garantem o seu sustento vendendo esses simbólicos ornamentos: os floristas. A cidade de São Paulo conta com importantes pontos de venda de flores, dentre eles o Mercado de Flores no Largo do Arouche, onde seu Martinho conserva sua venda, e as bancas que contornam o Cemitério do Araçá, na Avenida Dr. Arnaldo. Para os que andam de metrô, chegar a esses lugares é fácil: enquanto o primeiro fica a 300 metros da estação República (linha 3-Vermelha e 4-Amarela), o segundo fica ao lado da estação Clínicas (linha 2-Verde). E você pode dar a sorte de sair das lojas com um ramalhete presenteado
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pelos floristas generosos, que, por um momento, são os protagonistas das histórias das flores e não intermediários. Negócio de família Entre uma pausa e outra, Martinho se esforça para relembrar sua história. É possível ver em seus olhos um tremendo carinho por seu passado. Abriu o negócio no ramo das flores com seu pai, Adelino Alexandre, e sua mãe, Maria Augusta Alexandre. Como toda boa história, essa também começa com amor. Ele era produtor de flores no distrito
de Pinhal, em Portugal, e ela era da Ilha da Madeira. “Terra do Cristiano Ronaldo”, lembra Martinho. Seus caminhos se cruzaram no Brasil, em uma fazenda de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, e o casamento aconteceu em 1934. Anos depois, alugaram um terreno onde começaram a plantar flores juntos, vendendo-as em frente ao local onde hoje fica o Theatro Municipal. Martinho conta que quando nem tudo era vendido, o casal distribuía flores para as pessoas, e assim foi durante muito tempo, com apenas um pequeno carrinho de feira. “Eu comecei a ajudá-los [seus pais] com as flores em 1944, tinha quase 10 anos quando meu pai alugou um sítio em Guarulhos [Grande São Paulo], e começamos a montar a chácara própria. Meu pai era ambulante, assim como esses que vendem refrigerante e água pelas ruas”. Seu Adelino e o filho mais velho pegavam a Maria Fumaça para chegar até o Mercado Municipal com as flores que plantavam, um carrinho de carregar papelão e a comida de casa - somente o essencial para passar o dia percorrendo os principais pontos turísticos do centro, mas cheios de boa vontade. Depois de tanto andar, a família conseguiu um lugar fixo no Largo do Arouche para firmar suas vendas. O ano de 1954 marcou a ida do negócio para o local que segue em atividade até hoje. Nessa época, Martinho já trabalhava efetivamente com o pai à frente da floricultura, que, anos depois, ganhou outras filiais por São Paulo. Uma delas era no Largo São Francisco, um lugar muito especial, já que há 50 anos uma jovem estudante de Direito cruzou a porta da floricultura e levou, além das flores, o coração do florista. Seguindo a história de seus pais, Martinho a conquistou por meio das rosas. Hoje, ele e Marlene, 67 anos, trabalham juntos diariamente. “Desde que a conheci já dei muitas flores para ela”. Passados quase 60 anos, quem
Brenda Sarmanho
Martinho Alexandre, 84 anos, florista há 66 anos na Flores Dora ainda mantém o funcionamento da floricultura é seu Martinho, sua esposa e Marcos, um dos três filhos do casal. “Foi o único que consegui segurar”, diz o pai risonho. Marcos é um dos responsáveis pelo fornecimento das flores que vêm direto da cidade de Holambra [no interior do estado]. Pega a estrada todas as terças-feiras para buscar um punhado de natureza. Além de trazer para a própria loja, também ajuda os boxes do lado, sem clima de competitividade - uma das vantagens de trabalhar no Arouche, segundo os floristas. Os espinhos da profissão “No trabalho de florista não há só flores. Tem espinhos também. Não
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é mole não”, desabafa Modestino Moreira dos Santos, 58 anos, florista há 30 anos em uma das bancas da Avenida Dr. Arnaldo. Diferente da loja de Martinho, a venda de flores em frente ao Cemitério do Araçá acontece a todo momento, 24 horas por dia. Os funcionários alternam três turnos de horários para manter os boxes funcionando em tempo integral, o que atrai diferentes públicos e rende todo tipo de história. Modestino tem clientes antigos, que compram há 20 anos e que confiam no seu trabalho e simpatia, mas também clientes eventuais, que vêm em datas especiais mais rentáveis para a venda de flores, como Dia das Mães, Dia dos Namorados e Finados.
A clientela da Dr. Arnaldo segue o mesmo ritmo da avenida: rápida e intensa. Marialdo Santos Froes, 50 anos, florista há 36, já passou por várias situações durante sua jornada na profissão, inclusive a queda no movimento durante os anos. “Como florista você trabalha vendendo, fazendo arranjos e buquês para os vivos e para os mortos”. Ele conta que tem clientes assíduos, como uma senhora que pedia para levarem flores para enfeitar sua casa todos os dias. Enquanto isso, outro freguês comprava quando era mais novo para a namorada, saiu do país, e mais de 10 anos depois, voltou a comprar no box 6. Essas histórias marcam os funcionários, que se sentem parte da construção de grandes romances. Os espinhos da profissão envolvem questões mais complexas do que um arranjo que não saiu como o esperado. Marialdo já presenciou um sequestro nas bancas, quando fizeram um dos vendedores de refém, além de alguns tiroteios que causaram ocorrências e até mortes na avenida. Outro grande problema, que é uma realidade para muitos dos floristas da região, é a regulamentação do trabalho. No caso dele, que cuida do box há mais de 22 anos, só foi registrado por quatro. «Sem o registro eu não aposento, e eles não pagam o INSS. Tem muita gente nessa situação aqui. Eles falam que é muito caro, que tem que pagar um contador. Eu não entendo muito como funciona não», confessou Marialdo, que nunca trabalhou em outro lugar. Ainda que não se conheçam, as histórias da família do Martinho e de Marialdo se encontram. O desejo pela valorização da profissão é o mesmo, mas enquanto Martinho conta sua trajetória de forma saudosa pelo que construiu e colhe ainda os frutos - ou flores - de suas escolhas, Marialdo já não acredita nesse mar de rosas. Ele pretende ir embora, deixar São Paulo e a Av. Dr. Arnaldo para tentar a vida em outro lugar, longe das flores que
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Modestino Moreira dos Santos, 58 anos, florista há 30 anos lhe ensinaram a amar. As associações das flores Com o grande sonho de regularizar a profissão, por iniciativa do irmão mais novo de Martinho, Edison Alexandre, nasce a Associação do Comércio Varejista de Flores do Estado de São Paulo – Acofesp em 1986. Dois anos depois, ela se torna o Sindiflores, Sindicato do Comércio Varejista de Flores e Plantas Ornamentais do estado de São Paulo. Além disso, considerando ainda a persistente falta de representação desses profissionais e as circunstâncias do trabalho, a Associação Brasileira de Artistas Florais (Abaf) promove o crescimento técnico e profissional dos floristas e artistas florais, favorecendo o setor de flores no Brasil. Tornar-se membro Abaf possibilita uma alternativa para crescer nesse departamento e explorar a criatividade, o que pode trazer ainda mais benefícios para o negócio. A academia também oferece cursos e provas que geram certificado para os participantes, além de encontros para debates e evolução da arte floral. Segundo Paulo Andriola, 56 anos, professor e presidente da Abaf, um dos
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maiores desafios atualmente é ser um bom profissional, com técnica e criatividade para acompanhar o momento econômico do país e as mudanças frequentes. Iniciativas desse tipo tentam contornar situações como a dos floristas da Av. Dr. Arnaldo, que, em meio à dinâmica que reflete bem a capital paulista, se queixam do descaso dos “patrões”, como se referem aos donos dos boxes, da falta de direitos que gera um descontentamento e perda do interesse de seguir na profissão. Vejo flores em você “Flor tem cheiro, tem cor, pega todos os nossos sentidos. Não tem quem não goste”. É como Juliana Silva, 43 anos, artista visual, descreve a importância das flores. Ela estava organizando o casamento da irmã, uma cerimônia simples, mas com grande valor para a família. Com a voz trêmula, algumas lágrimas surgem em seus olhos. O motivo é a emoção ao lembrar do recente falecimento da sua mãe, um outro momento em que a escolha das flores esteve presente, mas não da maneira que desejava. O contexto agora é de festa. Para isso, ela contou com a ajuda de tutoriais na internet para fazer os arranjos, e da simpática xará,
Brenda Sarmanho
a Ju, florista do box 1 da Dr. Arnaldo. A florista a auxiliou durante o processo da escolha das flores e a presenteou com um buquê, algo que estava fora do seu planejamento. Os olhos marejados surgem novamente, dessa vez, pela alegria de conseguir realizar o sonho da sua irmã de ter flores em sua cerimônia. Mesmo há pouco tempo nesse universo, Teresinha Francelli, 49 anos, florista na Loja São Judas, no Largo do Arouche, ao lado da Flores Dora, também já presenciou momentos marcantes no dia a dia do trabalho. “Quando você acha que já viu tudo, aparece uma coisa nova.
Já aconteceu daquele tipo de coisa bem emocionante, como alguém que chega, compra um buquê, coloca a aliança dentro, e dá quase que na frente da gente”. Teresinha não trabalhava com flores e não se imaginava fazendo algo similar, mas acabou entrando na área por conta do marido, florista há 25 anos. “Foi através dele que eu vim para a floricultura”, explica. Muito tempo passou na rotina pesada do escritório, até que ela se descobriu como florista e se renova a cada dia. “As cores, o cheiro, o ambiente, que parece sempre alegre. Você trabalha com prazer e não por obrigação”, comenta com brilho
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nos olhos. Quem anda pelas ruas de São Paulo se encontra pelo menos uma vez com uma singela banca de flores. Apesar de despercebidas, as pessoas por trás desses balcões carregam os prazeres e as angústias de lidarem diariamente com algo tão frágil quanto as flores, e as incertezas do futuro de suas atividades. Ainda assim, mesmo com as dificuldades trabalhistas, esses profissionais seguem transmitindo amor e delicadeza. Seja num ramalhete ou num grande arranjo, eles enxergam as flores em cada cliente.
Economicamente ativa, mas sem emprego formal: os sonhos e aflições de Jesuíta Kayam Mendes
Por Kayam Mendes, com colaboração de Giulia Fantinato, Lucas Santiago e Pietra Regino
A
pia está suja e cheia de louças. Há café derramado. O feijão da janta mancha o granito. Grãos de arroz, que caíram na noite anterior, e cascas de ovos também se destacam. Pequenos mosquitos voam em círculos, como se estivessem em transe. O sol entra na cozinha, em feixes de luz, e o ramo da babosa invade a casa com timidez, pela fresta da janela aberta. Jesuíta Aparecida Gomes, nossa personagem nessa história, me dá boas-vindas pelo cheiro de café recém-passado. Torcido e manchado pelo tempo de uso, o coador de pano é pendurado limpo no varal. O copo americano se preenche de um café
Jesuíta Aparecida Gomes sonha em ter um emprego formal
preto, forte e doce. Sentei à mesa de duas cadeiras simples, ao lado do armário e próximo ao micro-ondas que exala um cheiro forte de pipoca. Do lado do aparelho, o saco de pipoca meio vazio. “A Nayara [filha mais nova de Jesuíta] comeu pipoca de café da manhã. Ainda bem que ainda tinha, porque o pão que tem está aí faz dias. Está duro, duro”. As olheiras e o bocejo reprimido me recebem. O elástico sobe e prende o cabelo longo, preto e cacheado. O gás da boca do fogão logo toma cor: um azul que termina laranja. “Está pra acabar”, explica Jesuíta. Pergunto quanto tempo o gás costuma durar.“Dois, três meses. Depende muito. Se eu pego bico e faço salgados, dura menos”. Desajeitada, a mulher levanta e vai fechando as portas do armário. Pega
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um pote transparente com bolachas água e sal e me oferece, colocando o vidro sobre a mesa. Pega também o pote de margarina na geladeira. Raspa a tigela com a faca sem ponta e lambuza o biscoito que sobe à boca. “Até pra comer pipoca essa menina faz zona. Você me desculpa pela bagunça, eu acordei ela [para que a menina não perdesse a aula] e voltei a dormir. Com o sono, me esqueci que tinha compromisso contigo». Tomado o café da manhã, Jesuíta me apresenta a casa em que a família vive. A apertada cozinha americana divide o espaço da alimentação com o da sala, que não possui sofás, apenas as desarrumadas camas das filhas. As paredes têm tantas manchas de mofo como riscos coloridos, talvez de giz de cera, talvez de canetinhas. Um corredor pequeno separa a sala do quarto de Jesuíta e, no meio dele,
há uma entrada. A antiga porta estava em mal estado e foi trocada por uma cortina de plástico que dá o mínimo de privacidade para quem usa o banheiro. No fim do corredor, o quarto de Jesuíta se diferencia do restante da casa. É bem iluminado por uma janela de corrediça metálica que está aberta. O guarda-roupas está sem uma das portas e exibe várias pilhas de roupas dobradas dentro do móvel. A TV pequena está ligada e a imagem do canal aberto é assistível, mas tem interferências. O quarto apertado cria um ambiente claustrofóbico e os vários sapatos largados no chão são uma dificuldade para entrar dentro do cômodo. Jesuíta começa a arrumar e dobrar as roupas que estão empilhadas de qualquer jeito sob uma cômoda de madeira; a guardar parte dos sapatos jogados no chão e, ao mesmo tempo, empurra outros para debaixo da cama. “Ai que vergonha. Você não vai gravar isso não, né? O que as pessoas vão achar? Isso não está sempre assim. A gente é pobre, mas é limpinho. É que ontem cheguei cansada da Dona Vera. Foi dia de faxina por lá e cheguei sem coragem pra arrumar a minha própria casa. Às vezes eu penso muito nisso, sabe? Eu arrumo
a casa dos outros, mas deixo a minha desarrumada”, diz com o sorriso envergonhado, enquanto dobra os cobertores às pressas. Pergunto como ela se sente quando pensa nisso. “Ah, eu me sinto mal, né? É como se fosse falta de cuidado comigo mesma e com as meninas (tem duas filhas). Elas até me ajudam às vezes, mas nunca fica limpo como eu deixo. Aí nos dias livres eu dou uma caprichada, entendeu?”. Os “dias livres” de Jesuíta são os outros cinco dias da semana que ela não é chamada para trabalhar na casa de Dona Vera. Às segundas e sextas ela trabalha como diarista na casa da professora aposentada, que contrata Jesuíta há quase 19 anos. “Eu queria um emprego fixo, mas é difícil. A gente não tem estudo e aí o que sobra é faxina. Enquanto não consigo nada registrado, continuo indo para a Dona Vera. Ela gosta do meu serviço, mas paga pouco. É o que tem…”. Enquanto guarda as cobertas dobradas em cima do guarda roupas, complementa: “Eu ainda tenho sorte que a Dona Vera gosta do meu serviço. Ela me disse uma vez que tentou contratar outras duas meninas, mas elas eram preguiçosas
e nunca deixavam a casa limpa”. Com o assunto, me sinto mal e, na tentativa de deixar o clima menos tenso, pergunto o que ela faz quando não vai para Dona Vera.“Ah… eu faço comida… Se eu estiver disposta, levo a Naty [filha caçula] na escola… Fico em casa mesmo, sabe?”. Assim como Jesuíta, essa provavelmente é a rotina de mais de de sete milhões de pessoas no Brasil. Isso é o que aponta o último levantamento realizado em agosto de 2019 pelo Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia (IBGE): 11,8% da população brasileira está desempregada. Mas, no meio dessa população toda, um grupo precisa ser destacado, a População em Idade Ativa (PIA). Ela representa a parcela populacional considerada em idade hábil para exercer alguma atividade remunerada. A PIA é repartida em dois agrupamentos: a População Não Economicamente Ativa (PNEA) e a População Economicamente Ativa (PEA). A PNEA é formada por diversos elementos: indivíduos que não podem realizar esse tipo de atividade por impossibilidade, como uma deficiência – que pode ser mental ou física – também por pessoas que estão desanimadas pela falta de sucesso em empregos
Jesuína tentando cuidar de sua casa, no dia em que não se dedica à residência da patroa
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anteriores ou até mesmo em sua busca e pelos que apenas não desejam trabalhar e isso pode se transformar em uma série de outros fatores. Dentro da PNEA se encaixam também os subutilizados, pessoas que podem estar desempregadas, que trabalham menos de 40 horas semanais e gostariam de trabalhar mais. Eles não estão desempregados, mas não podem aceitar uma vaga no mercado ou desistiram de achar um emprego no mercado formal (são chamados de desalentados). A descrença no mercado formal de trabalho, a não-aceitação das condições de trabalho, a falta de capacitação profissional e a necessidade de renda fazem com que uma boa parte da mão de obra brasileira tenha sido destinada para a informalidade. Atualmente, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), 38 milhões dos brasileiros economicamente ativos realizam atividades no mercado informal de trabalho, o que corresponde a 41,3% desta mesma população. Para Jesuíta, o mercado formal de trabalho permanece um sonho. Mas, assim como boa parte da população economicamente ativa, uma das grandes dificuldades em ser inserida no mercado é a falta de capacitação profissional. Por isso, resolveu começar a cursar o Ensino Superior. “Eu sempre quis voltar a estudar, sabe? E foi engraçado que - olha só como eu fui burra - eu achava que a gente entrava na faculdade e voltava a ver as coisas da escola! Eu pensei que ia ter aula de matemática, de ciências, geografia… Aí eu soube que a gente tinha que escolher o curso e eu escolhi Serviço Social, que tem tudo a ver comigo.”, conta com um brilho nos olhos que contrasta de forma injusta com as manchas de mofo e as rachaduras da parede branca que foi amarelada pelo tempo. Assim como entrar na faculdade, outro sonho da matriarca é ter a própria casa. Morando de favor em uma das casas
de sua mãe, ter o próprio espaço para as filhas é uma das lutas de Jesuíta. “Eu fazia parte de uma ocupação, em que a gente ocupava e cuidava de um terreno com dois prédios de cinco andares que estavam desocupados ali no Embu (das Artes). A gente se organizou, abrimos abaixo-assinado com a prefeitura do Embu, levamos até a Câmara Municipal. Mas, no final, o governo fez a reintegração de posse e perdemos força. Sabia que às vezes, enquanto eu estou na aula, eu lembro bem daquela época? É que na faculdade a gente vê tudo que a gente tem direito e como isso fica só no papel”, conta enquanto me mostra o caderno cheio de anotações da faculdade. Sinto-me amargurado por estar tão cansado de estar na faculdade. O espaço apertado do quarto e a humildade daquele olhar apertam meu pescoço e fazem com que eu me sinta mal comigo mesmo. Um tapa na cara, daqueles bem doídos. Sinto as extremidades do meu corpo se esquentarem e uma confusão de pensamentos me envolve. Para disfarçar essa sensação, retomo a entrevista: “O que você ganha na Dona Vera é suficiente para você pagar a faculdade? Você tem bolsa? Como está dando conta?”, pergunto desconfortável e perdido, tentando manter a postura de jornalista. “Não estou dando c o n t a ”, admite com um sorriso cimentado, daqueles de gerente de banco. “Estou devendo sete meses de mensalidade. Conversei com a coordenação e expliquei que não tenho condições. Eles consultaram um sistema lá e viram que eu não tenho renda e mesmo assim me deram a oportunidade de estudar. Depois, vou ter que pagar tudo… Eu não sei
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como, mas vou. Estou aprendendo muito lá, mas eu não tenho muita paciência não. Tipo, eu com 44 anos sou a segunda mais velha da turma, né? E aí eu vejo as menininhas de 19, 20 anos com desleixo, tratando a gente como se a gente fosse retardada. Não é porque a gente está velha que a gente não pode aprender, sabe? Esses dias mesmo, briguei com uma lá…”, conta dando risada. Me vejo na figura das meninas que estudam com nossa personagem. Não por diminuir o esforço dela em estudar, porque acho isso lindo, digno e que me ensina muito sobre mim, mas por não aproveitar e ver tanta riqueza no ambiente universitário. Volto a me
sentir desconfortável. Encerro nossa entrevista pensativo. Lembro da minha mãe que só conseguiu terminar o Ensino Médio pelo EJA (programa Educação de Jovens e Adultos – do governo federal) e lembro de como pra ela foi importante ter terminado o “2º grau”. No ônibus da volta, fico em pé e reparo em todas as pessoas que estão no coletivo. Fico tentando imaginar suas histórias, suas barreiras e como elas lidam com todos os “nãos” impostos pelo mundo que nos cerca. O aperto no peito ainda se manifesta e, para espantá-lo, decido colocar os fones de ouvido e deixar a playlist rolando no Spotify. Antes da entrevista, “Nada como um dia após o outro dia”, meu álbum predileto dos Racionais Mc’s, era o que havia me dado inspiração para nossa conversa. Ouvindo os sons só me lembrava de Jesuíta.
“Daria um filme, Uma negra, E uma criança nos braços, Solitária na floresta, De concreto e aço, Então veja, Olha outra vez, O rosto na multidão, A multidão é um monstro, Sem rosto e coração, Hey, São Paulo, Terra de arranha-céu, A garoa rasga a carne, É a torre de babel, Família brasileira, Dois contra o mundo, Mãe solteira, De um promissor, Vagabundo…”.
Negro Drama, canção do grupo Racionais Mc's
Chego em casa e minha mãe preparou a janta. Arroz, feijão, couve refogada e bisteca. O cheiro da carne preenche o ar da casa. Pergunto se ela ainda tem vontade de voltar a trabalhar em hospital e ela me responde que sim, mas que não sabe de quê. Quando eu era pequeno, minha mãe era ascensorista e socorrista do Hospital do Campo Limpo. Acho que foi o trabalho que ela mais amou em toda a vida. “E se você fizesse enfermagem? Eu soube que o Beneficência
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Portuguesa estava com um curso gratuito. O que acha?”, pergunto inspirado pelo que ouvi de Jesuíta. “Parece legal. Vamos ver? Já pensou eu voltando a estudar e trabalhando em hospital? Acho que ia ser bacana porque…” Me perdi enquanto ela falava. Lembrava de Jesuíta e via o mesmo brilho nos olhos. O brilho de quem ainda vive. O brilho de quem sabe que a vida tem mais a oferecer. O brilho de sonhos que foram impedidos de acontecerem, mas que ainda brilham.
O que pensam as mulheres que votaram e ainda apoiam o presidente Jair Messias Bolsonaro
Mulheres garantiram a Bolsonaro vantagem nas eleições em diversas regiões do país Por Bruno Roque e Julia Alves
E
m 2018 o presidente Jair Messias Bolsonaro foi eleito com 57,8 milhões de votos, muitos deles vindos de mulheres. As frases misóginas e a postura machista, marcas do presidente desde há muito tempo, parecem não ter incomodado uma fatia considerável do eleitorado feminino, que garantiu a Bolsonaro uma vitória folgada em diversas
regiões do país. Nas regiões Sul, Centro-Oeste e Sudeste ele obteve uma vantagem de 14, 28 e 20 pontos (respectivamente) sobre o candidato petista Fernando Haddad, de acordo com um levantamento feito pelo Ibope, divulgado pelo jornal O Estado de S.Paulo, em reportagem de 6 de novembro de 2018, de Daniel Bramatti. Célia Moraes, 53 anos, é uma das eleitoras do presidente na região Sudeste. Empresária, permanece em total apoio ao “capitão”. Nos recebeu
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em sua casa, um sobrado geminado com paredes em tons pastéis e vidros esverdeados por todos os lados. Não muito grande, porém bastante confortável. O imóvel está situado em Pirituba, distrito da zona noroeste da cidade de São Paulo. Antes de tudo, é claro, solicitou que pudesse gravar a entrevista para ter sua cópia das falas e a garantia de que suas ideias seriam colocadas na íntegra. Com voz de quem fuma a algum tempo, repetiu a máxima de Bolsonaro quando questionado (durante a
crise referente às queimadas na Amazônia, iniciada no segundo semestre de 2019) sobre sua postura de atacar líderes de outros países que o criticavam: “A Amazônia é nossa. Cadê o sentimento de patriotismo?”. A sensação de mudança frente a um sistema que ela acredita ter destruído o Brasil nos últimos anos (o governo petista), “diminuindo o acesso à educação, aos sistemas de saúde e tornando o país mais inseguro”, foi o principal motivo para que votasse em Bolsonaro. Essa sensação é compartilhada por outras apoiadoras. Georgia Branco, 22 anos, estudante de direito na FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado), diz não ter votado no PT pois é “muito a favor de empreendedorismo e no Haddad não via esse quesito nas propostas. Não via como o Brasil poderia avançar, já que teve 13 anos desse governo e nada não mudou.” Após várias tentativas de marcar uma conversa com Geórgia, que queria nos encontrar em uma cafeteria na região de Higienópolis, bairro nobre da região central da cidade, conseguimos nos encontrar em uma terça-feira à tarde na casa de uma amiga em comum, onde
ela se sentia muito à vontade para falar de sua infância em Rio Claro, interior de São Paulo, do tempo que fez intercâmbio na Europa e contar situações do seu dia a dia, como a vez em que quis bater em uma menina que estava falando alto e importunando os colegas na faculdade. Uma característica comum nas mulheres que apoiam Bolsonaro é a prática de realizar muitas pesquisas e buscar estar por dentro do que está acontecendo no país. A fonte dessas informações? As redes sociais. Quando questionadas, elas insistem que mídias como o YouTube são fontes seguras de informação. “Até porque, hoje só fica ignorante quem quer, né?”, afirma Célia, ao explicar como conheceu as “propostas do capitão”. “Procurei entender do que se tratava o Kit Gay, e tive uma ideia completamente diferente daquilo que estavam falando sobre ele. Na verdade, ele não estava brigando com os gays, estava sim contra uma cartilha que estava sendo colocada nas escolas para combater a homofobia. Pegaram isso como gancho pra falar que ele era homofóbico”, explica. Célia nos afirmou que a direita não está apoiando o Bolsonaro por
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ser quem é e sim por todos estarem lutando contra a corrupção. Se ele for pego em atos ilegais, ela garante que o derrubarão. Embora digam que não se importam com a opção sexual/cor/raça de uma pessoa, “porque todos são brasileiros independente de qualquer coisa”, em alguns momentos de nossa conversa a militância de alguns grupos que costumam sofrer preconceito em nossa sociedade é questionada. Geórgia conta que chegou a frequentar, junto de seu namorado, André, a Avenida Paulista para tentar ter um diálogo com pessoas contrárias às suas visões: “Acho meio chato esse negócio, eles podem parar a Paulista para fazer a parada gay e a gente não pode ir lá de domingo ficar no nosso cantinho para defender a reforma da Previdência, sabe? Por quê? Você quer vir conversar comigo? Tudo bem. Diálogo aberto. Passava gente olhando e debochando, sabe? Já fizeram ameaças no Facebook, prometendo dar uma voadora na mesinha, tanto que o André fez até um boletim de ocorrência.” Outros tipos de desavenças aconteceram no ambiente da internet. Muitos amigos a excluíram de sua rede de contatos ou iniciaram
discussões quando assumiu suas opções. “Eu não brigo com ninguém por causa disso. Algumas pessoas no começo vieram me agredir no Facebook quando eu coloquei o filtro “PT NÃO”. Nem era um filtro de apoio ao Bolsonaro. Não perco meu tempo com embates inúteis, por que tem muito blá blá blá. Temos que ser mais objetivos”, explica Célia sobre a maneira que utiliza as redes sociais para expor suas visões. Ela completa: “Tem muita gente que é massa de manobra e não raciocina por si. Então, discutir com essas pessoas é “jogar milho aos porcos” (SIC).
Na internet há um apoio expressivo ao presidente e o segmento feminino não fica de fora. Só no Facebook existem diversos grupos que objetivam reunir mulheres apoiadoras de Bolsonaro. Um deles o “Mulheres Com Bolsonaro (OFICIAL)” conta com 1 milhão e meio de membros. Outro chama-se “MULHERES COM BOLSONARO #17 [OFICIAL]” e conta com 44.783 membros. Esse último é alimentado
diariamente com postagens acerca dos feitos do presidente e repercussões de pautas da esquerda, geralmente em tom irônico. Um ponto interessante do grupo é que muitos de seus administradores são homens, o que levanta várias das discussões presentes. A melhor opção Para muitas, o então candidato não era a principal escolha ou a mais explícita. Célia, por exemplo, o apoiava de maneira cuidadosa, até o dia em que houve a situação da facada. “Alí eu comecei a perceber que a gente estava lutando por algo muito maior. Não queriam tirar simplesmente um suposto homofóbico, misógino, fascista, entendeu? Pela quantidade massiva de pessoas tentando denegrir ele, me levantou muita suspeita”, ressalta. Também considera que as opções
eram escassas, definindo Haddad como “poste do Lula” e Alckmin como “uma antiga opção, que já não adianta mais”. Definiu nossa democracia como “mascarada”, já que “não existem opções no Brasil”. Depois de analisar todos os candidatos, concordou com a plataforma proposta por Bolsonaro: “Ele realmente estava combatendo coisas que eu, como mulher e como mãe, e acima de tudo como brasileira, também concordava.”
Geórgia decidiu apenas no segundo turno, mas confessa que acredita na postura de Bolsonaro. “Todo mundo sabe, né? No Exército, para as pessoas permanecerem, elas precisam ter disciplina e postura. Eu pensei, vou dar uma chance. Na verdade, minha primeira opção nunca foi ele, era o João Amoedo, mas como ficou entre Haddad e Bolsonaro, optei por ele.” Além disso, culpam a mídia por deturpar a imagem do presidente. Uma das mulheres contatadas para a realização da reportagem fez uma observação dizendo que não gostaria de se desgastar tendo que argumentar com a gente, caso discordássemos dela. Célia reclama sobre o que considera uma perseguição a Bolsonaro. “Na minha vida, nunca vi um presidente ser tão massacrado, desde o início até agora, pela imprensa.” E diz em tom de indignação: “As coisas boas que nós que o acompanhamos sempre - por twitter ou nas lives - vemos, você não vê na mídia.” Elas têm poucas críticas ao governo, embora a todo momento nos lembram que sua defesa é pelo Brasil, prometendo fazer pressão sobre, caso haja discordâncias com o mandato do “capitão”. As críticas que existem giram em torno do discurso do presidente. Georgia o classifica como “o tiozão do WhatsApp”. “Ele comete uns erros absurdos na questão da fala, na forma como ele
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se expressa. Não escuta muito os assessores e isso está causando um problema no governo dele.” Para Célia, essa maneira mais simplista de se expressar é sinônimo de humildade. Percebeu isso em uma manifestação onde encontrou com ele. “Pedi para tirar foto. Consegui conversar um pouco e percebi que ele era uma pessoa muito simples, muito aberta ao diálogo, meio bronco mesmo, que é o jeitão tempestuoso dele, mas que é uma pessoa muito humilde. Dá pra sentir que ele é uma pessoa com boas intenções.” Embora admita que Bolsonaro tem um discurso falho, o compara com antigos presidentes. “Se levar em consideração que tínhamos a Dilma no controle”, diz sorrindo, em tom de deboche. E completa: “Quando aquela mulher abria a boca era uma desgraça. O Lula, pelo amor de Deus! A coisa mais abominável do mundo. O cara tomava uma cachaça e quando abria a boca dava medo”. Elas rebatem as críticas de que Bolsonaro é machista. “O que ele fez em relação à esposa dele durante a posse, que foi dividir o palco com ela, eu achei muito bonito. Não pude ver na TV, porque estava viajando, mas vi na internet depois e achei sensacional. Você ter o palco só pra você brilhar é muito fácil”. Célia questiona as formas de militância, incluindo o movimento feminista. “Por que existe a militância? Para dividir as classes?”, indaga. Ela até considera que foi feminista no passado, por ter tido um pai muito machista, mas acha “ridículo o modo como esses movimentos atuam hoje”. “Pra mim, ser feminista não é isso. Jogaram o feminismo na privada e deram descarga! Porque o movimento feminista é a mulher ter direitos iguais, ser respeitada, ter as mesmas condições de trabalhar. É pela liberdade ou libertinagem que este pessoal está lutando?”, finaliza a entrevista em tom provocador.
Bruxas do século XXI A Wicca, suas seguidoras e os bastidores de um ritual neopagão
Por Camilla Jarouche, Larissa Mora e Maithe Martins Camila Jarouche
Altar presente no santuário da Grande Mãe A mãe de Marília de Abreu era vidente. Sentia quando algo ruim estava prestes a acontecer, se deviam ou não sair de casa, por exemplo. O mundo místico sempre esteve presente, rodeando-a desde sua infância. A Wicca chegou em sua vida de modo solitário e intenso. Aos poucos, formou seu Coven, grupo de wicannos que realizam práticas
religiosas em conjunto. Hoje é fundadora da Wicca Cia. das bruxas. Dá cursos, prepara novos integrantes e realiza rituais. A Wicca é uma religião neopagã com raízes muito antigas. Embora tenha sido fundada na década de 50 pelo antropólogo inglês Gerald Gardner, é inspirada em crenças précristãs e práticas da Europa Ocidental.
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Alguns ramos do cristianismo costumam associá-la a práticas “pecaminosas” e ao envolvimento com criaturas demoníacas. Ser pagão, nessa visão, significava ser infiel, imoral e nefasto. Segundo o Censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Gegografia e Estatística), há mais de 40 grupos religiosos distribuídos pelo país, com 86,6% das pessoas
tendo o cristianismo como base. Em face desse cenário, religiões neopagãs, ateus e agnósticos acabam sendo alvo de muitos preconceitos. Desde o início da Wicca há 2 mil anos, eras se passaram manchadas por guerras e discussões, alimentadas por estereótipos que colaboraram com um ciclo de violência e intolerância. Se estabelecer um diálogo entre suas vertentes já parece um cenário distante, criar uma relação pacífica entre o cristianismo e o paganismo, inimigos quase hereditários, está mais para um sonho. A religião Wicca enfatizou o renascer de um antigo culto précristão, do que chamou “A Velha Religião da Inglaterra”, e contempla o culto à natureza e à Grande-mãe, Deusa que possui diversas “faces”. A religião exalta o feminino. “Esse é um dos principais motivos dela ser vista como tabu”, destaca Marília. Como os homens comandavam as religiões cristãs dominantes, desgostavam de como as mulheres se comportavam dentro da Wicca, e criaram estigmas que ligavam a religião às artes das trevas, simbolizando a bruxaria como algo maligno, um sacrilégio. Uma religião que antes era temida e marginalizada por muitos hoje é pouco conhecida. O mundo de Marília Assim que chegamos ao local combinado, avistamos uma mulher de cabelos curtos e pretos, com reflexos grisalhos, olhos meigos, blusa rosa com estampa branca e calça preta. Era Marília. Sorridente, ela nos recebeu no estacionamento do prédio. Chegando à porta de seu apartamento, avisou-nos sobre a energia contagiante de seus dois cachorros. Ao abrir a porta, notamos primeiramente as pinturas em sua ampla sala, preenchendo todas as paredes com cores vivas e imagens alegres. Tudo produzido por ela. Era impossível desviar o olhar. As obras estavam por toda a parte, refletindo a personalidade vívida da nossa anfitriã. Os raios de sol banhavam
Imagem da deusa Wicca no Santuário da Grande Mãe divinamente os móveis e clareavam as paredes tomadas por arte. A decoração também marcou presença, escolhida a dedo pela moradora. Marília sentou em sua cadeira, enquanto os dois cachorros estavam extasiados com a presença de pessoas novas na casa. Sentamos cada uma em um sofá de couro preto, encostado nas paredes, formando um “L”, de frente para Marília. Com muita disposição, ela nos explicou a origem da Wicca. Essa religião se encaixa nas denominadas xamânicas que, segundo Marília, proporcionam contato com a própria espiritualidade. Os xamãs fazem a ponte entre mundo espiritual e o material. Entre balas de própolis e carinhos nos companheiros peludos, a wiccana nos mostrou sua biblioteca e sala de estudos. Parecia ganhar confiança nas jornalistas que a questionavam e abriu um sorriso ao nos apresentar à sua imensa coleção de livros, que ocupa uma parede inteira recheada de objetos singulares e algumas de suas pinturas menores. Em frente, uma mesa escura e duas cadeiras de madeira transformam o cômodo discreto, na sala de aula de Marília, ornamentada por cristais e um pequeno caldeirão usado em rituais. Oposto à janela iluminada,
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um pequeno móbile capta os olhos dos visitantes. Um dragão pendente gira em torno de si conforme o vento comanda, protegendo a casa. Ao ir embora aquela tarde, as coisas estavam mais claras, e diversas ideias erradas colocadas pelo senso comum caíram por terra. Participando de um ritual O Santuário da Grande Mãe fica a alguns passos da saída do metrô Ana Rosa, linha verde, em um andar acima de uma bomboniere comum. A entrada do estabelecimento é singela, estreita e quase escondida pelos carros estacionados na frente. Quem não estiver procurando por ele, possivelmente passará batido. Após subirmos as escadas e sermos cumprimentadas por todos, dissemos que procurávamos por Ênio. O rapaz de cabelos e olhos castanhos que estava na loja, prontamente disse quem era e perguntou como podia nos ajudar. Ao explicar o motivo da nossa visita, ofereceu-se para nos apresentar o local e pediu que tirássemos os sapatos ao entrar. Ênio Seiji, frequentador do santuário, explicou brevemente sobre a finalidade do local: acolher as pessoas que depositam sua fé em crenças pagãs - um lugar onde possam cultuar o que desejarem, comprar imagens e diversos materiais
Marilia de Abreu, da Wicca Cia das Bruxas dificilmente encontrados em outros lugares, por serem mais específicos. Pessoas de fé cristã que têm vontade de conhecer mais a respeito de tais religiões também são bem-vindas. O ambiente de descanso e do altar passam uma sensação muito singular. A luz fraca, a música, o cheiro de incensos e a decoração branca e lilás tornam o ambiente acolhedor e pacífico. Ao mesmo tempo que a
curiosidade para conhecer o local aumentava nós nos sentíamos mais calmas. Ênio nos apresentou a Ivan Silva, wiccano e frequentador do santuário, e que, naquele momento, estava dando o blesser. God Blesser é uma benção através da energia do sagrado feminino, que busca realinhar os chackras. Para receber a benção, sentamo-nos em uma poltrona ao lado do altar
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e Ivan perguntou se conhecíamos alguma Deusa. Então pediu que fechássemos os olhos, inspirássemos e expirássemos profundamente. Orientou-nos a visualizar uma esfera de luz à nossa frente. Explicou que conforme expirássemos, a energia que estava parada em nós sairia, dando vez a uma energia nova. Imaginamos ainda que a energia que chegava até nós, através de suas mãos impostas
sobre nossas cabeças, banhava todo nosso corpo, fluindo desde o mais alto fio de cabelos até a ponta dos pés. Ele anunciou nossa presença à Deusa, para que ela pudesse conhecer as filhas que buscavam suas bençãos. Enquanto ouvíamos ele cantar, tentávamos absorver todos os estímulos que aquele ambiente trazia para nossos sentidos. A iluminação mais fraca e colorida, o incenso, a música que tocava e a voz calma de Ivan. Agradecemos. Todas nós nos sentíamos muito bem. E de certa forma, cuidadas. Após tirar algumas dúvidas com ele, visitamos a loja, enquanto aguardávamos pelo horário da meditação. Embora o espaço fosse pequeno, a quantidade de objetos dispostos e a movimentação das pessoas dava a sensação de que o local era maior. Nas prateleiras, imagens, quadros, livros, extratos e sais de banho eram expostos. Mas o que havia no balcão chamou minha atenção. Adagas, sem corte, de diferentes estilos reluziam com a luz branca da sala. Na prateleira logo acima, recipientes transparentes abrigavam líquidos amarelos, laranjas, verdes, vermelhos, azuis e roxos. Tudo aquilo dava um toque mágico aos olhos dos visitantes. Depois de observarmos o local, chegou a hora da meditação. A voz da sacerdotisa Jô conduzia os presentes durante a meditação e se sobressaltava ao barulho do trânsito do lado de fora e à respiração das outras pessoas, sentadas em círculo. O tapete sob todos, as almofadas ao redor e as imagens da Deusa
constroem a ambientação mística. Ela narrou uma viagem que fazíamos dentro de nossa própria mente e, durante os minutos que se seguiram, a tranquilidade reinou na sala. Ao retornarmos, as pessoas discutiram sobre como foi. A sacerdotisa nos deu água aromatizada com camomila e disse para visualizarmos que aquela bebida nos purificaria por dentro, como se estivesse a fazer uma limpeza. Depois levantamos e começamos a cantar músicas andando em círculo - o que nos remeteu aos estereótipos de rituais em volta de uma fogueira, como vemos em filmes e aos coros de igrejas. A energia trocada e sentida em ambas cantorias causavam efeito semelhante. Conhecendo Jô Quando acabou, decidimos conversar com a sacerdotisa e entender um pouco mais sobre sua história e em como se identificou com a Wicca. Tímida e um tanto receosa conosco, ela pediu para não usarmos sua imagem. Ela vestia uma roupa cerimonial preta, longa e fechada, com mangas até o cotovelo. Usava um acessório na cabeça com três fases da lua (crescente, cheia e minguante) e os cabelos pratas. O visual ajudava a lhe dar um aspecto de sábia. Jô contou um pouco sobre o caminho que a levou a encontrar uma religião com a qual se identificasse. Tendo crescido em uma família que seguia o Kardecismo, ela não se sentia atendida quanto àquilo que buscava. Mesmo afastando-se dessa opção, nunca deixou de querer alcançar a espiritualidade em sua vida.
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Ao ler sobre a Wicca pela primeira vez, em uma revista, sentiu uma inexplicável sensação de pertencimento. A partir de então, buscou livros a respeito e sentia que sua própria alma reagia àquelas informações. Inicialmente não conhecia outras bruxas para confraternizar. Mas em sua primeira conferência, presenciou mais de 200 pessoas que celebravam a Deusa, e passou a frequentar sabás públicos que ocorriam no centro da cidade. Quando sentiu que queria a religião intensamente em sua vida, pediu a dedicação para que pudesse ser iniciada. Finalmente tinha encontrado seu lugar, havia atendido ao chamado. Enquanto guardava seus pertences e voltava para sua versão cotidiana, sem os acessórios e roupa cerimonial, ela respondeu nossas perguntas com paciência e didática. Explicou que dentro da religião existem diversos graus de conhecimento, sendo o mais alto, o elder. Além disso, comentou que a Wicca é uma religião baseada em tradições. Esclareceu que diversas práticas dependem da tradição na qual se foi iniciado, em algumas tanto homens quanto mulheres podem exercer o sacerdócio, enquanto em outras somente as mulheres. Vale ressaltar que mesmo na tradição Gardineriana, por exemplo, que trabalha com o par – masculino e feminino -, o feminino se sobressai. Foi então que Ênio nos avisou que precisava fechar o santuário, fizemos as últimas perguntas que precisávamos. Todos nós descemos as escadas em direção à saída, nos despedimos, agradecemos pela conversa e experiência que tivemos. No caminho para casa a seguinte reflexão nos fez companhia: o preconceito que impede as pessoas de se abrirem para conhecer aquilo que não vivenciam é um dos grandes fatores para situações de perseguição e ataques que vemos nas notícias. A sensação que fica no ar é que a caça às bruxas do século XVI perdura até os dias de hoje.
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