Revista Narrativa 15

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REVISTA LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE - ANO 2019 - N. 15

Moreira de Acopiara e a nordestinidade em São Paulo

Os bastidores, atrativos e desafios das barbearias gourmets

Grupo Esperança e Amor recebe lições de vida na entrega de refeições

PRECISAMOS FALAR (AINDA MAIS) SOBRE DEPRESSÃO


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SUMÁRIO 04

PROJETO SOCIAL QUE ESTÁ LONGE DE SER UMA BOLA FORA

POR ADRIANO DE SOUSA & VINÍCIUS MARTINEZ

09

O SABOR DA FOME

POR ALEKSANDER SANTOS E LUCAS SOARES

14

POR TRÁS DOS MICROFONES

POR BEATRIZ ARAUJO & NATHALIA BELLINTANI

19 AS ATLETAS GRÁVIDAS E A FALTA DE APOIO FINANCEIRO NO ESPORTE POR FERNANDA MARTINELLI, GIOVANNA PRANDO & JULIA REIS

22

PROBLEMA OU SOLUÇÃO?

POR FERNANDO DE AMICIS & ISABELLE GANDOLPHI

28

PRECISAMOS FALAR (AINDA MAIS) SOBRE DEPRESSÃO

POR ISABELLE MANTOVANELLI & LARA KAROLINE

34

O AMOR NAS HORAS VAGAS

POR AMANDA VERNIANO & RAPHAELA BELLINATI

38

MOREIRA DE ACOPIARA E A NODESTINIDADE DE SÃO PAULO

POR WILLIAM LIMA

44

O PESO DA DOR

POR ALICE ARNOLDI & JULIANA GARCIA

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A VIDA DE QUEM VIVE A MORTE

POR MARIA CLARA PEREIRA & MARIANA FADEL CAMARGO

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FAMÍLIAS QUE SE ESCOLHEM

POR DOMINIQUE SANTANA, LETÍCIA GARCIA & MARIA CLARA GALEANO

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QUEM NADA TEM MUITO ENSINA

POR ALINE YUMI & NATÁLIA VITÓRIA


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A TRADIÇÃO GANHA FÔLEGO

POR ANDRÉ DE GODOY, FELIPE LANZA & FRANCESCO GRECO

70

DO DESESPERO “ATÉ BREVE”

POR BEATRIZ DE AQUINO & REBECA DIAS

77

ELAS PELO MUNDO

POR BRUNA LIU & CAROLINA HUERTAS

81

ANJOS OCULTOS

POR FELIPE MADRID & LAÍS COQUEMALA

85

SERVOS DE THANATOS

POR GIOVANNA DELAZARI & MANUELA MARTINS

EXPEDIENTE Universidade Presbiteriana Mackenzie Reitor: Prof. Dr. Benedito Guimarães Aguiar Neto Vice-reitor: Prof. Dr. Marco Tullio de Castro Vasconcelos Pró-reitora de graduação e assuntos acadêmicos: Profa. Dra. Marili Moreira da Silva Vieira Pró-reitor de extensão e educação continuada: Prof. Dr. Jorge Alexandre Onoda Pessanha Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Paulo Batista Lopes Secretaria de Conselhos Superiores e de Controle Acadêmico: Prof. Dr. Cleverson Pereira de Almeida Centro de Comunicação e Letras Diretor: Prof. Dr. Marcos Nepomuceno Duarte Curso de Jornalismo Coordenador: Prof. Dr. Rafael Fonseca Santos Revista Narrativa Professores responsáveis: Fernando Pereira e Patrícia Paixão Supervisor de Publicações: José Alves Trigo


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A busca pela perfeição e um lar inconstante desencadearam a doença.

O peso da dor Alice Arnoldi & Juliana Garcia Menos um, dois, três… A lembrança de menos 24 quilos faz com que o olhar de Sabrina Bueno, estudante de Direito, hoje com a mesma idade do peso que perdeu, se expresse de forma miúda e cansada. Uma memória de realidades doloridas, que tiveram o pontapé inicial aos 17 anos, é reavivada. Difícil imaginar que no auge da puberdade e com uma vida que poucos jovens brasileiros possuem uma garota de classe média alta vivia o inferno. Era setembro de 2011, em um condomínio residencial na região de Pirituba (distrito situado na zona oeste do município de São Paulo), onde Sabrina mora até hoje, quando a primeira sensação de querer se machucar veio à tona. Brigas de manhã, à tarde e à noite. Foram elas que resumiram a infância da menina. Sabrina se sentava para escutar em um quarto as discussões entre a mãe e o pai, o arquiteto Paulo Roberto de Oliveira. As inúmeras desculpas que ele oferecia à esposa Luciana Bueno sobre a ausência dele no lar (Luciana passava boa parte do tempo deitada sobre a cama, por sofrer de uma depressão profunda) feriam a jovem. 64 | Narrativa

Aos 6 anos, em vez de brincar como toda criança, Sabrina era atropelada pelo turbilhão de problemas e ganhou, mesmo sem pedir ou gostar da ideia, uma lista de responsabilidades de adulto. Se estava na escola ou com os colegas, pensava em voltar logo para casa, pra cuidar da matriarca. “Às vezes minha mãe estava dormindo e eu acordava de madrugada para ver se ela estava respirando”, lembra a jovem, aspirando o ar que parece faltar com aquela memória. Após 11 anos dessa rotina, começou a se sabotar. Exausta de ver quem mais amava sofrer, mergulhou em um subconsciente que exigia a autodegradação. Não se preocupava em comer nem mesmo o mínimo. “Eu não podia gritar. A única forma que encontrei para descontar em mim o que estava acontecendo era parar de comer”, desabafa sobre o que havia sido silêncio e vergonha por anos em sua vida. Com um quadro de anorexia, “Sa”, como é carinhosamente chamada pela mãe e pela irmã Sofia, passou a viver um tremendo isolamento social. Só retomou o contato frequente com outras pessoas além da família, quando ingressou na faculdade. E não foi na


Se eu como integral minha mãe me ‘mata’, porque estou com anemia e faço uma dieta para ganhar peso, então preciso de alimentos com mais sustância”. A preocupação com a qualidade dos alimentos não é a única barreira que Sabrina precisa enfrentar até hoje na hora das refeições. Pegar o prato, a colher, olhar para as opções nas panelas e decidir o que vai comer também são ações que fazem parte da confusão em sua mente. Enquanto que para muitos isso é apenas mais uma etapa do dia, é nesse momento que a jovem precisa encarar um conflito interno desgastante e habitual. “É difícil fazer o prato. Passam várias coisas na minha cabeça...”, diz em

um tom pensativo. “Posso chorar?”, nos pergunta. Em seguida continua: “Quando estou em crise é um martírio para comer, porque é como se eu fosse engordar, e aí vem aquele temor de não gostar de mim e depois acabar descontando em mim mesma. Mas tem dias que não, tem vezes que eu só estou com fome. Depende do meu estado emocional, se estou em época de prova ou não.”

Apoio dentro de casa

A inconstância nas refeições fez com que sua mãe percebesse que a pressa de dizer “eu comi sim!” era maior do que a vontade de dizer a verdade. Era a tentativa de a anorexia passar despercebida. Foto: Alice Arnoldi

primeira graduação que entrou que o problema começou a se resolver. “Eu fiz faculdade de Arquitetura, por pressão do meu pai, e tranquei, por causa da doença. Mas eu nunca gostei do curso”, diz aliviada, após tomar um gole de café. Foi na faculdade de Direito (entrou um ano após deixar o curso de Arquitetura) que conquistou uma rotina nova, com rostos diferentes. Mesmo assim ainda não consegue sair muito com os amigos. A desculpa recai sobre o fato de a graduação ser muito puxada. “A nota pode até ser boa, mas pra mim não vai estar”. Além dos problemas familiares, a cobrança pela perfeição sempre a perseguiu, ainda que ela tentasse se desvencilhar do caos causado por ela. A cintura capaz de ser medida com a palma da mão fechada, os ossos da clavícula à mostra, a falha no começo do cabelo comprido e preto e os grandes olhos que ainda sentem dificuldade em ficar fixos no rosto do outro mostram como foi ser engolida pela anorexia. Quando Sabrina nos encontrou pela primeira vez, havia acabado de almoçar. O relógio marcava quase cinco horas da tarde. Sentou-se à mesa do Starbucks e, assim que depositou o seu leve peso na cadeira, disse com sinceridade, sem sequer, antes da entrevista começar: “Nossa, comi muuuito hoje!”. Foi impossível não questioná-la sobre o que o “muuuito” significava para ela, já que era nítido que a sua barriga sequer dobrava um pouco enquanto descansava. Com uma risada desconcertada primeiro e um semblante sério em seguida, por perceber que realmente não entendíamos a linha tênue entre o pouco e o muito nesse caso, ela explicou. “Menos do que vocês comem. Eu não comia pão, carboidrato, arroz e hoje isso é muito para mim.

Em 2015, durante o segundo ano de recuperação da anorexia, Sabrina fez uma sessão de fotos, mas momentos antes passou por “uma crise feia” de ansiedade.

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Via a filha emagrecendo um pouco nos braços, um pouco na barriga, enquanto ela insistia em afirmar que o almoço e a janta nunca passavam em branco. Mas quando Luciana pediu para que Sabrina a acompanhasse até o banco a pé, em um dia ensolarado, as afirmações da jovem soaram contraditórias. Luciana questionou o porquê de a primogênita ter andado apenas 20 minutos e estar passado mal, sendo que isso não fazia sentido para uma vida com histórico de exercícios físicos, feitos geralmente em academia. Sabrina tentou justificar a palidez e a sensação de desmaio com a alta temperatura, mas a mãe não ficou convencida. Depois desse episódio, a jovem começou a ser acompanhada pela médica da família e admitiu, com o choro engasgado, que não estava comendo como era esperado. Mesmo com o diagnóstico da anorexia em mãos, no início, a empresária não conseguiu dividir o peso do distúrbio com a filha, pois acreditava que era apenas por meio do confronto que Sabrina conseguiria desvencilhar-se da dor. “No começo foi difícil. Sabe aquele negócio de mãe? Não sabe se abraça ou se dá uns tapas? Foi assim. A primeira reação foi brigar. ‘Olha o que você está fazendo! Não vou te ajudar. Você vai na médica sozinha!’. Teve algumas consultas que ela foi sozinha. Eu achava que fazendo isso eu ia por medo nela e ela ia parar de fazer o que estava fazendo. Mas meu coração ficava apertado, porque eu sabia que isso podia gerar consequências muito graves”. Com o passar dos meses, o quadro de Sabrina se agravou. Luciana notou que a magreza da filha mais velha, irmã da pequena Sofia, hoje com 12 anos, não era natural, mas sim “uma magreza que assustava”. Sosô, como Sabrina gosta de chamá-la, era a única que tinha a 48 | Narrativa

aprovação para entrar no banheiro, enquanto a irmã tomava banho. A razão para tanta cautela, era o medo dos outros verem seus ossos saltados e seus músculos inexistentes. Luciana chegava a bater na porta, passava um tempo e desistia. Minutos depois percebia que já estava tentando girar a maçaneta de novo, mas nada do aval da filha para deixá-la entrar. Até que um dia Luciana chegou a ver, sem querer, Sabrina de toalha: “Me assustei, porque você vê que o corpo não é o mesmo”. Nesse momento da conversa, a jovem interrompe e com dor em suas palavras diz: “Por que eu ia deixar outra pessoa me tocar, me ver, se nem eu conseguia?”.

“POR QUE EU IA DEIXAR OUTRA PESSOA ME TOCAR, SE NEM EU CONSEGUIA?” A mãe presenciou também muitas crises de choro. Em uma delas, entendeu que precisava escolher outro caminho para chegar até a filha. Então, o que era para ser um passeio normal no shopping, tornou-se um marco negativo na vida de Sabrina que pediu especialmente para a mãe, durante a entrevista para essa reportagem, que contasse sobre o ‘episódio do provador’. “Eu forcei para ela entrar no provador e me arrependi muito. Achei que estava fazendo uma coisa boa, mas ela saiu mal, chorando. Foi aí que eu pensei: ‘Minha filha não vai conseguir sair disso’”, lembra Luciana.

Quanto mais a anorexia ganhava peso em sua vida, menos Sabrina gostava de frequentar lugares públicos, como os shoppings, e menos eles faziam sentido. Sem pensar duas vezes, foi ao extremo. O guarda-roupa da estudante de Direito tornou-se doação para quem quisesse. Para vestir, sem sequer passar em frente ao espelho, sobraram apenas quatro peças, que eram revezadas durante os sete dias da semana. “Eu me desfiz de todas as minhas roupas. Sentia muita raiva, não cabia em nenhuma roupa e me arrumar era muito difícil. Tomar banho era muito difícil. A vaidade, pra mim, era muito difícil”, recorda, com a voz arrastada. Com as portas do closet fechadas, ‘sair para comprar’ não era mais uma frase com sentido alegre para Sabrina, mas um pesadelo. Os olhares alheios, que não conseguiam decifrar o que estava acontecendo, mas não a deixavam passar despercebido como gostaria, só faziam com que suas inseguranças ficassem ainda mais expostas. “Eu já não comprava mais nada e não fazia sentido estar no shopping. Era apenas um palco para as pessoas me verem e notarem que alguma coisa estava errada comigo. Então o ambiente não me fazia bem. Eu até ia, por conta da minha irmãzinha, mas sempre agarrada na minha mãe, escondida. Eu sentia o olhar das pessoas. Ninguém sabia o que estava acontecendo, mas dava para ver fisicamente que tinha algo de errado pela minha cor”. Para reverter essa situação, depois de anos tentando, Luciana tomou as rédeas da situação e tornou-se o espelho de Sabrina. Em vez da falsa imagem criada pela mente da filha e refletida no pedaço de vidro espelhado, ela e a filha criaram um elo para lidar com roupas novas e, na verdade, com a autoestima fragilizada. Com jeiti-


Foto: Alice Arnoldi Os ossos sobressaltados nos ombros de Sabrina mostram que ela ainda está em recuperação.

nho, a jovem experimentava a peça, a mãe pedia para que ela fechasse os olhos e virasse para ela. Era missão de Luciana dizer para a filha se ela havia ficado bonita ou não. Assim, elas foram abrindo novamente o guarda-roupa da estudante e, mais do que isso, a esperança de melhorar. “Eu lembro que a gente saía e eu achava uma roupa bonita - isso é recente, faz um ano. Minha mãe dizia: ‘Compra que um dia você vai usar’. Até hoje eu tenho roupas com etiqueta, não sei quando eu vou usar, mas eu tenho a esperança de que um dia irei”. Além de tornar menos difícil a relação da jovem com o espelho, o acalanto de Luciana fez com que a filha conhecesse um significado diferente de liberdade. “Eu pude falar, chorar ao lado dela e gritar dentro do meu quarto pra dizer que doía. Então quando eu quis dar todas as minhas roupas, ela não me criticou. Eu ficava três dias sem tomar banho e com a mesma roupa, sem ela criticar. Para ela era normal, quem olhasse de fora iria pensar ‘aquela menina está com a mesma roupa, toda amassada, cabelo oleoso’, como meu pai pensou, mas ela não. Ela andava comigo como se eu estivesse bem vestida ou se tivesse acabado de sair do salão. Isso me deu segurança, porque ela e a Sosô iriam me aceitar”.

Psicóloga não!

Logo que descobriu a anorexia de Sabrina, sua mãe sugeriu procurar por assistência médica. A ideia

de ficar sentada frente a frente a um homem ou a uma mulher de jaleco, principalmente um psicólogo, deixava Sabrina inquieta, e até hoje é possível ver a angústia em ter ido às consultas. Nota-se isso pela sua movimentação na cadeira do sereno café em que conversávamos. “Pra mim é muito difícil falar. Eu lembro que eu ia para a psicóloga toda sexta-feira e eu me arrumava muito, porque toda semana ela tinha que ver uma melhora, mas eu estava fingindo que estava melhorando. A Dr. dizia: ‘Nossa hoje você passou um batom, está bem vestida’”. Isso, para Sabrina, não significava que ela estava melhor, mas que estava apenas maquiando o real problema, aquele que não tinha coragem de assumir na época e que, mesmo com as piores situações no passado, ainda sente dificuldade em falar com tom de superação: “Eu sou ex-anorexa e depressiva”. A importância dos médicos no tratamento mental foi de fazer com que a garota tivesse ciência de que estava doente. Hoje, sua resposta para a situação é diferente. Sabrina aprendeu a notar seus momentos ruins. Se não vai para a aula, se deixa de comer ou fica deitada mais do que de costume, se sacode e tenta se reerguer. “Se eu caio, eu consigo me levantar mais rápido”. Ela afirma com ênfase que não quer voltar ao mesmo desespero que viveu: “Hoje eu não quero morrer. Eu quero viver!”. Narrativa | 49


A vida de quem vive a morte Maria Clara Pereira & Mariana Fadel Camargo Mariane Oliveira, 34 anos, trabalha com cuidados paliativos desde 2013. Intensivista e paliativista no Hospital Villa Lobos, ela afirma ter sido escolhida pela área, e não o contrário. Quando menos esperava, teve que cuidar de um garoto de 18 anos com morte encefálica. Foi preciso aprender correndo sobre o assunto, para lidar com a família do rapaz. “Foi aí que começou o encantamento de cuidar de um morto, para ele dar a vida a outros que estavam na fila de transplante”, conta a médica, emocionada, sentada no escritório da sua casa em Interlagos, na zona sul de São Paulo, demonstrando todo o seu encantamento pelos cuidados paliativos. 48 | Narrativa

Lidar com a família do paciente sempre foi uma dificuldade para Mariane. Até que percebeu a necessidade de se aprofundar e melhorar nesse quesito. “Você tem que olhar a família. Ela faz parte do cuidar”, salienta. Segundo a intensivista, que se formou em 2005, cuidados paliativos nunca foram abordados durante a faculdade. Ela só foi se aprofundar no assunto durante sua pós-graduação em 2017. No hospital em que trabalha não existe uma equipe especializada em cuidados paliativos, o que é fundamental para quem trabalha com UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Isso acaba fazendo com que ela e outros médicos que entendem do assunto preparem a equi-


Foto: Maria Clara Pereira Daniela Masi, 37 anos, psicóloga.

pe durante o próprio trabalho. “É muito mirim o que a gente tem, porque é desconhecido, e as pessoas acham muito que cuidados paliativos é terminalidade. Você tem que acolher todo mundo. Não pode desistir, tem que ir ensinando, conversando”. Um profissional paliativista deve se preocupar em atender as necessidades do paciente e de sua família, abrangendo as dimensões físicas, emocionais, sociais, espirituais e familiares. “O cuidado paliativo não é uma abordagem de doença, ele é uma abordagem muito maior. O diferencial é esse olhar holístico, de ir além da doença e englobar família, religiosidade, e o que mais for importante para o paciente”, afirma Mariane. O cuidado paliativo surgiu em 1947, na Inglaterra, mas só foi definido conceitualmente pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1990. Consiste na assistência promovida por uma

equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento da dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais. No Brasil, de acordo com levantamento recente realizado pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), existem em torno de 150 equipes especializadas em cuidados paliativos para mais de 5.000 hospitais espalhados pelo país. Por se tratar de um cuidado integral, é necessária uma equipe de profissionais da saúde capacitada para proporcionar esse tipo de tratamento aos pacientes, desde médicos até fonoaudiólogos, visando atender cada desconforto que possa surgir. “O cuidado paliativo envolve uma equipe multiprofissional. Quando a equipe não conhece, o trabalho se torna

“CUIDADO PALIATIVO É PERMITIR À PESSOA ESCREVER A SUA BIOGRAFIA.” muito difícil, porque os profissionais não sabem manejar, não sabem cuidar do sofrimento. Eu vejo muitos pacientes sofrendo e acabo sofrendo também, porque não consigo fazer meu trabalho sozinha”, conta Victoria Garcia, psicóloga hospitalar e paliativista no Hospital Maternidade Metropolitano, na unidade Lapa. Narrativa | 411


esse tipo de tratamento como última opção, como algo terminal, quando já não se tem mais o que fazer, o que acaba dando sobrevida e não qualidade de vida ao doente. “As pessoas não entendem que é uma qualidade de vida no período que o paciente tiver. É fundamental prezar pela qualidade de vida de qualquer paciente, em qualquer condição”, afirma Daniela Masi, psicóloga no Hospital Nossa Senhora de Fátima, em Osasco, município da Grande São Paulo. Daniela nos recebeu em sua sala, no Hospital Nossa Senhora de Fátima, local considerado por ela insuficiente para atender os pacientes como gostaria, de maneira mais pessoal e intimista. A franja loira por cima da maquiagem impecável escondia, às nove da manhã, a correria pela qual já havia passado tão cedo. A psicó-

loga de 37 anos também atende pacientes com ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica) em home care e enfatiza a necessidade de fornecer qualidade de vida ao paciente, atender aos seus desejos, mesmo que sejam pequenos, como aproveitar o sol no terraço com seus gatos. Esse tipo de tratamento se faz cada vez mais necessário em países onde as principais causas de morte são doenças crônicas, como câncer, diabetes, distúrbios respiratórios e doenças cardiovasculares, pois se tratam de doenças que progridem ao decorrer da vida, e também devido ao crescente envelhecimento da população. Segundo levantamento realizado pela Economist Intelligence Unit (sobre a qualidade de morte ao redor do mundo), em 2015, dos 80 países citados, o Brasil é o 42º melhor país para se morrer.

Foto: Maria Clara Pereira

Victoria tem apenas quatro anos de formada em Psicologia e já se especializou em cuidados paliativos ao enxergar a necessidade desse tipo de abordagem dentro do hospital. A psicóloga conta que a morte nunca foi um tabu para ela, e que sua família chega a ficar assustada com a naturalidade com que ela trata o assunto. Durante a entrevista no terraço de um café no centro de São Paulo, foi perceptível a tranquilidade com que Victoria conduziu a conversa, realmente deixando o assunto considerado denso fluir de maneira muito leve. A morte nos países latinos ainda é um tabu muito grande, as pessoas a temem e querem fazer de tudo para que seu ente querido não chegue até ela, por isso o cuidado paliativo ainda é incipiente na região. Muitas pessoas, até mesmo da área da saúde, veem

Victoria Garcia, 26 anos, psicóloga.

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Levando em conta a quantidade de pessoas que morreram que poderiam ter sido paliadas dados os recursos do país, o Brasil tem 0,3% de capacidade de proporcionar esse tipo de cuidado a um paciente, diferente de países como Reino Unido, Estados Unidos e Austrália, que são referências nesse assunto. “É muito trabalho de formiguinha, porque tem muito a ver com ética e cultura. A população latina é muito apegada com vida, com coração batendo, mas

“NOSSA, VOCÊ É LOUCA! COMO TEM PRAZER EM FALAR DA MORTE?”

esse pensamento precisa mudar. É vida de que jeito? Até que ponto?”, questiona Mariane. Diferente do que muitos pensam, o cuidado paliativo não é só para pacientes terminais, mas sim para qualquer paciente que tenha uma doença grave. Uma pessoa que nasce com uma doença complicada, por exemplo, deveria ser paliada desde a infância, tratando pequenas infecções e podendo escolher até onde ir com o tratamento, garantindo a sua qualidade de vida. O cuidado paliativo é sobre o paciente poder dizer até onde o tratamento curativo pode ir, poder programar toda sua terapia, dizer o que quer e o que não quer, e ter um suporte para tudo isso, inclusive para dar apoio à sua família.

“O cuidado paliativo é você permitir à pessoa escrever a sua biografia, com o que ela está disposta a passar, o que aceita até o último suspiro da vida dela. É pensar o que é importante, o que toleraria, que tipo de sofrimento”, destaca Mariane.

Como se distanciar?

Daniela confessa que por muitos anos fez terapia para aprender a lidar e separar os problemas de seus pacientes dos próprios que, muitas vezes, vão ao encontro uns aos outros por se assimilarem, e outras, envolvem histórias muito pesadas que acabavam a consumindo. A psicóloga conta que o trajeto do hospital até sua casa ainda é um momento de certa tensão. O caminho é longo, o trânsito na capital é intenso e as histórias dos pacientes ainda estão frescas na memória. Esses itens, quando juntos, criam nela um sentimento inevitável de agitação. Hoje, a psicóloga percebeu que a melhor forma para se desligar do trabalho é deitar no sofá com seus cachorros e assistir a um filme. “Às vezes tem alguns casos que eu fico pensando, mas não é um pensar que me desgasta, é um pensar porque eu sou humana e fico preocupada, mas não me consome mais, quando eu consigo me desligar”. Já Mariane acredita que por trabalhar em UTI, o ritmo intenso não lhe dá tempo para lidar com o processo de luto, por isso ela se diz já acostumada com a morte. “Um paciente aqui morreu, mas o do lado está ali e precisa de atenção. É um processo natural, a rotina te ensina”. Victória tem em sua rotina muito em comum com Daniela. Ela também cita que fazer terapia, passear com o cachorro e

assistir a filmes e séries são uma boa solução para aliviar a mente das situações delicadas e temas abordados no dia a dia de uma paliativista.

Planejando o fim

Trabalhar na área de cuidados paliativos torna natural a autorreflexão a respeito da morte. Ao se deparar tantas vezes com a divergência de interesses entre pacientes e suas famílias, Daniela e Victória têm suas vontades a respeito do futuro muito bem estabelecidas, e no caso de Daniela, até documentadas. “As pessoas falavam: ‘Nossa, você é louca, né? Como é que você tem prazer em falar da morte?’ Eu tenho. Costumo dizer que eu gosto de preparar a pessoa para a morte. Mas quem sou eu para preparar, né? Eu não tenho medo de morrer. Gostaria antes de ter filho, de fazer algumas coisas que ainda não fiz, mas assim, não tenho medo de morrer. Tenho um testamento vital, que é o que eu quero que façam, se eu adoecer. Quero entrar em paliativo. Isso eu já deixei registrado em cartório, minha família tem que respeitar”, ressalta Daniela. “Quando eu falo lá em casa: “Ah, mas se acontecer alguma coisa comigo?” Meus pais já falam: Ah! Deus nos livre! Não fala isso! Mas gente, e se acontecer? Tenho que pensar nisso. Eu não confio na minha família para decidir esse tipo de coisa. É colocar uma responsabilidade muito grande nas mãos deles. Todo mundo que me conhece sabe o que eu quero e o que eu não quero. Inclusive meus pais, meu noivo, todo mundo. Sou filha única. Se acontecer um negócio desses com o meus pais, eu não faço a menor ideia do que eles querem”, conclui Victória.

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Malu e as filhas adotivas Rafaela, Gabriela e Emily.

Famílias que se escolhem Dominique Santana, Letícia Garcia & Maria Clara Galeano Química. É com essa palavra que Malu Abib, uma jornalista de 45 anos, define o processo de adoção. “É isso, sabe? Tem que bater dos dois lados”, completa. Ela e seu marido, Joachim Kern, um alemão de 42 anos, entraram na fila da adoção depois de diversas tentativas de engravidar naturalmente e por meio de inseminação artificial. Hoje com três filhas adotivas que são irmãs de sangue (Rafaela, Gabriela e Emily), Malu conta que nunca foi acostumada com casa cheia. Filha única, ela não tinha a possibilidade de ser tia, então decidiu que havia chegado a hora de ser mãe. Esse processo de paixão que a família está passando por aproximadamente um ano e meio é a situação de lares que abra52 | Narrativa

çaram a responsabilidade desafiadora, mas gratificante, de adotar uma criança ou mais de uma. A realidade da adoção no Brasil é muitas vezes marcada por grupos de crianças órfãs. São irmãos que têm uma convivência muito grande e praticamente impossível de ser quebrada. Esse é um dos principais fatores que levam os que desejam adotar a desistir do ato. Quando os casais recebem a notícia de que o perfil de filho que combinou com o deles não está sozinho, assustam-se e não se sentem preparados para o tamanho do comprometimento. Em 25 de setembro de 2018, o número de pretendentes à adoção registrados no Conselho Nacional de Justiça era de 44.575 pessoas, e os disponíveis


Arquivo pessoal de Malu Abib

a adotar, de fato, somavam pouco mais de 41 mil. O número de crianças disponíveis para serem adotadas, ou seja, prontas para saírem do abrigo e estabelecerem-se em seus potenciais lares, no mesmo período, era 4.495. Dentro do sistema, estão registradas 9 mil crianças. Sessenta e três por cento das crianças disponíveis possuem irmãos, porém apenas 35% dos pretendentes aceitam adotar mais de uma criança de uma única vez. A idade também é um tópico relevante. Segundo o CNJ, apenas 15% dos pretendentes aceitam crianças de até 5 anos. Porém, apenas 5% dos infantes disponíveis têm esse perfil. Em São Paulo, 90% das crianças cadastradas para adoção têm idade superior a 8 anos. O caso de Malu, para alegria dos irmãos adotados, foge do comum. Ela queria adotar uma criança mais velha. “A questão da adoção tardia era muito clara na minha cabeça. Eu queria uma criança maiorzinha, para que eu pudesse ver quem está ali”, completa. Ela conta que, quando recebeu a ligação da assistente social, viu uma oportunidade que precisava ser agarrada. “Após seis anos, a gente achou que tinha que ceder em alguma coisa e, quando nos ligaram com o grupo de crianças, eu pensei: Opa!”. A jornalista diz brincando que qualquer pessoa normal sairia correndo de uma situação como essa, mas ela decidiu arriscar e tentar a química. Camila Cunha, de 21 anos, fala sobre o outro lado da moeda. Aos 5 anos foi adotada oficialmente pela servidora pública Silvana Carneiro da Cunha. Mãe solteira, Silvana levou Camila aos 4 anos para sua casa, depois de conhecê-la através de uma amiga que se disponibilizava a sair nos fins de semana com algumas crianças do orfanato. A paixão entre mãe e filha virou refém de um processo burocrático, que, além de lento, coloca em

Joachim Kern e as filhas Rafaela, Gabriela e Emily.

desconfiança alguns perfis de pretendentes, uma vez que Silvana seria uma mãe solteira. Com isso, Camila só se tornou oficialmente filha de Silvana, e recebeu seu sobrenome, um ano e meio depois de ter ido para sua casa. As memórias e o desenvolvimento de uma pessoa que é adotada tardiamente merecem ser estudados, pois diferem dos de uma

“É UMA QUÍMICA. TEM QUE BATER DOS DOIS LADOS.” pessoa que desde sempre conheceu os pais. “Eu acredito que o único momento que me marcou mesmo foi na minha primeira festa de aniversário, pois eu nunca tinha tido algo assim. Foi aí que descobri como era ter uma família”, relembra, com emoção, a hoje estudante de Relações Internacionais.

Ela também não associava inicialmente Silvana como sua mãe, e destinava esse chamamento a qualquer um que demonstrasse cuidado e carinho por ela. “Foi quando eu realizei que eu tinha uma mãe, e pensei o que era ter aquilo, sabe? Porque antes, pra mim, qualquer pessoa que cuidava de mim era mãe”. Apesar da história conter algumas turbulências em seu início, Camila relata a formação de sua família com um sorriso no rosto. Parece não guardar mágoa do processo traumático a que crianças no sistema de adoção são submetidas. A psicóloga Alessandra Prattes esclarece como se dá o processo psicológico de uma criança adotada tardiamente. Apesar de ser doloroso para quem sempre esteve em um abrigo lidar com anos de rejeição, a adaptação pode ser relativamente fácil. “A criança ou adolescente tem a necessidade de constituir uma família, de receber carinho e proteção. Ela já está cansada da realidade do abrigo, portanto, apesar de ainda necessitar de um acompanhamento psicológico de perto, é um processo menos difícil”, relata a profissional. Daniel do Valle e seu marido Narrativa | 53


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uma vez que quando a criança cresce em um abrigo, normalmente já existe um sentimento de rejeição e abandono pela situação em que se encontra. A ponta de normalidade da vida daquele pequeno ser humano é o irmão, que representa a parte da família que ainda está ao seu lado. Os danos que podem surgir de uma separação precisam ser acompanhados por uma equipe multifuncional, não necessitando apenas de um psicólogo, mas de educadores, além da própria família que adotou a criança. O Tribunal de Justiça de São Paulo lançou no Dia das Crianças de 2017 a campanha “Adote um boa noite”, que foi veiculada nos transportes públicos, incentivando a adoção de crianças, adolescentes, grupos de irmãos e crianças com deficiência. Desde seu lançamento, as varas que participam da ação tiveram uma alta na procura de pessoas interessadas em adotar. Na Vara da Infância de Santo Amaro, do período de janeiro a outubro de 2017, apenas duas adoções tinham sido iniciadas, e cinco pretendentes deram entrada no estágio de convivência. Do lançamento do “Adote um boa noite” (em

outubro de 2017) até janeiro de 2018, ou seja, apenas quatro meses, a mesma vara recebeu mais 15 processos, entre avaliação de pretendentes e início de estágio de convivência, segundo o site do Conselho Nacional de Justiça. Obviamente, o trajeto não é fácil para as crianças, mas também não é nada simples para os futuros papais. As complicações estão lá desde o início, como conseguir informações sobre adoção. Os dados online são poucos e, muitas vezes, falhos. Também há muita falta de comunicação dentro do sistema de adoção no Brasil. Durante a produção dessa reportagem, os números de telefone de Varas da Infância e da Juventude estavam fora do ar ou incorretos. Quando a ligação era completada e alguém atendia, éramos repassadas para outro setor, ao menos duas vezes até cairmos no correto. O Conselho tutelar, o Serviço Social e o Conselho Nacional de Justiça precisam de mais integração com relação aos dados e quanto ao processo de adoção, pois isso só torna o sistema mais falho, lento e confuso, tanto para quem está checando os dados, como para os futuros adotantes.

Arquivo pessoal de Malu Abib

(por questão de segurança o esposo de Daniel prefere omitir seu nome e os dos filhos) adotaram dois irmãos, de 6 e 9 anos, e estão com eles há seis meses. Formam uma família que luta contra o preconceito e as adversidades diariamente, mas que diz enfrentar todos os obstáculos com paciência e respeito.O casal sempre pensou em ter filhos, e adotar sempre foi a primeira opção deles. Quando tomaram a decisão de entrar na fila, resolveram esperar por irmãos. Queriam crianças mais velhas, que já tivessem uma história, e a reação foi de pura felicidade quando receberam a notícia de que seriam pais de dois irmãos. O relacionamento já existente entre os meninos nunca foi um empecilho para Daniel e o companheiro, que disseram lidar com o assunto de forma tranquila. “Eles não falam muito sobre o passado, mas, quando falam, é para lembrar das coisas boas que viveram. Ouvimos sempre com muita atenção e respeito, pois falam sobre a história deles. Prestamos muita atenção, pois, se um dia eles se esquecerem destas histórias, gostaríamos de contar para eles”, declara Daniel, emocionado. A adaptação dos meninos para um núcleo familiar fora dos padrões da sociedade foi baseada na curiosidade. “Na instituição onde os meninos estavam já havia ocorrido outra adoção com um casal homossexual e durante o estágio de convivência todas as crianças e adolescentes da entidade conviveram um pouco com eles e sabiam dessa possibilidade”, conta. O apoio da psicóloga da instituição foi bastante relevante para esse processo. Ela já conversava com os meninos e outras crianças do abrigo sobre outros tipos de formações de família, ensinando primordialmente o respeito. Alessandra Prattes ressalva o que a separação de irmãos pode acarretar para o desenvolvimento psicológico e emocional do jovem,


Quem nada tem muito ensina Aline Yumi & Natália Vitória No último sábado do mês de setembro de 2018, encontramos a sede do Grupo Esperança e Amor (GEA), na rua Chacuru, em São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo. A instituição trabalha voluntariamente em prol de moradores de ruas e pessoas que os procuram com problemas financeiros ou de saúde. Todos os fins de semana, voluntários da casa dedicam-se à preparação de marmitas e doações para serem entregues aos seus assistidos na Praça da Paz, em São Miguel. Já no portão, identificamos o símbolo da associação que, mais tarde, veríamos com frequência em panfletos, paredes e no peito daqueles que optam por doar um pouco de seu tempo a essa causa: uma âncora, envolta por um grande coração vermelho. Antes mesmo de entrarmos, conseguimos ouvir a voz de seu Milton, ecoando através das paredes.

Alto, robusto, com fios grisalhos e olhar determinado, o ex-presidente do GEA nos recebe calorosamente com um abraço e sorriso simpático. Com a mesma voz que antes ouvimos organizar a entrega de cestas básicas, ele nos apresenta aos voluntários do grupo e pede para que contribuam com o nosso trabalho. Em questão de segundos, perdemos o medo da rejeição e deixamos o título de meras estudantes para nos tornarmos porta-vozes de todas as histórias que ali coexistem. Mal imaginávamos que, debaixo daquela profusão de vozes, sorrisos e gargalhadas, encontraríamos memórias não tão fáceis de serem ouvidas.

Milton

É impossível tentar entender a história do GEA sem conversar com Milton Luiz, o nosso anfitrião, que é um dos fundadores do grupo. Sempre carismático, a primeira coisa que nos disse quando chegamos ao loNarrativa | 55


da costela e da feijoada. Todo o dinheiro arrecadado nas festas é investido no GEA. Falar sobre Milton é falar sobre o Grupo Esperança e Amor, pois são quase 20 anos dedicados ao projeto. Ao longo do tempo ele já fez de tudo, desde ser voluntário até presidente da associação. Atualmente é responsável por fazer com que todos tenham os elementos necessários para que possam fazer suas atividades. “Cada um aqui sabe o que é para fazer. É um conjunto que depois se torna o todo”, explica. No meio da conversa, escutamos ao fundo o motor de um veículo. Milton olha na direção de uma Kombi branca. Mais tarde descobrimos que o automóvel tem nome - Esperança, e carrega em suas laterais o símbolo do GEA. O veículo transporta os voluntários e todos os alimentos que são levados à praça. Quando questionado sobre a parte de seu trabalho que mais o deixa feliz, ele franze um pouco a testa pensativo e responde: “É sentir a gratidão que os moradores em situação de rua têm. Quando eles recebem a marmitex, muitos se emocionam e falam que passam a semana toda sem uma refeição Foto: Aline Yumi

cal foi que ele estaria à disposição, caso precisássemos. Tão verdadeiras foram as palavras, que, quando pedimos para que ele conversasse com a gente, mesmo no meio da correria daquele domingo, Milton nos levou para um lugar mais calmo, sentou-se no banco encostado na parede de grafiato verde e disse: “Podem me perguntar o que quiserem, agora é com vocês”. É desse modo que o homem que ao primeiro contato pareceu intimidante pelo timbre e altura de sua voz começa a explicar a origem do GEA. O Grupo Esperança e Amor foi fundado em 1º de abril de 1999. No total eram sete casais que decidiram ajudar os mais necessitados. Ao longo dos anos, aperfeiçoaram suas atividades, firmaram parcerias e conseguiram, por meio de doações, um terreno e alguns dos materiais necessários para a construção da sua sede. “Aqui no grupo temos católicos, evangélicos, umbandistas”. Todos se respeitam e focam no objetivo principal de ajudar o próximo. Para manter tudo isso é comum a realização de eventos abertos para o público, que já são famosos na região como a festa

Milton Luiz, fundador do GEA.

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decente”. Todo sábado eles podem ter a certeza de que serão bem tratados e alimentados.

“QUANDO ELES RECEBEM A MARMITEX, MUITOS SE EMOCIONAM E FALAM QUE PASSAM A SEMANA TODA SEM UMA REFEIÇÃO DECENTE.” Nanny

Para conhecer mais do que a história do GEA, decidimos fazer um tour pela sede do grupo, e, em nossa primeira parada, o bazar da associação, encontramos Nanny. Mãe de dois meninos, a mulher trabalha há menos de um ano no espaço, mas anda pelos corredores com a destreza de quem o conhece melhor que sua própria casa. Ali, nos deparamos com diversas doações que são divididas entre peças a serem vendidas ou entregues a moradores de rua. As araras são preenchidas desde simples moletons a roupas de grandes marcas, mas tudo é vendido com um preço fixo e amigável, já que o propósito não é o lucro, e sim o máximo de arrecadações possíveis em prol do próximo.


Foto: Aline Yumi Tel, dona de um brechó, uma das principais “clientes” do bazar do GEA.

Numa primeira oportunidade, questionamos Nanny sobre a razão que a levou a fazer parte da família GEA. “Eu sempre quis fazer algum tipo de ajuda, aí a minha mãe faleceu”, desabafa. Com muita energia, como quem desconhece a palavra “descanso”, a mulher de estatura média e cabelos lisos e negros, não tão grandes para lhes escorrer pelas costas, mas nem tão curtos para pender perto de sua nuca, fala sobre todo o trajeto que a levou a fazer parte do GEA. Filha de uma mulher missionária, ela conta que sua mãe nunca se recusava a ajudar pessoas. “Se ela tivesse um saco de feijão, ela dividia”.

Nanny relata que sempre desejou ajudar pessoas necessitadas. Inicialmente, seu plano era auxiliar idosos. Um dia antes do falecimento de sua mãe, decidiu ir a um asilo com ela para conversar com os residentes e levar um bolo para todos dividirem. Nanny lembra de ir dormir, porque teria que acordar cedo no dia seguinte. Só não imaginava que seria com a notícia de que sua mãe teve um infarto. Desde então, ficou na busca de poder fazer trabalho voluntário. Dessa vontade, o seu marido a ajudou a encontrar o GEA. “Eu liguei para o grupo e o Milton foi lá

em casa. Eu tinha um brechó e doei tudo. Agora todos os sábados estou aqui.” A voluntária destaca o quanto é beneficiada por se dedicar a outras pessoas: “Eu sou mais ajudada do que ajudo. A gente aprende muito. Eu aprendi lá embaixo a fazer o corte dos legumes, essas coisas”. Nany admite que já foi muito perfeccionista e confessa que nos primeiros dias, quando via os voluntários ao redor da mesa, todos cortando os alimentos de um jeito diferente, tinha que respirar fundo para manter a calma, mas, conforme o tempo passou, ela entendeu que cada um deles tem a sua maneira de realizar as atividades e que isso precisa ser respeitado. Para Nanny, o que importa, na verdade, é o resultado, o carinho e o amor que aquelas pessoas colocam no que estão fazendo. “Estamos aqui de peito aberto, independente da raça, da cor e do credo. Aqui somos uma causa só, ajudar a pessoa que está lá fora e não tem o que comer, não tem o que vestir”, ressalta. Seu trabalho no bazar se concentra em receber as doações, fazer a triagem e cuidar da contabilidade. Ela esclarece que não aceita peças em má qualidade. “Roupa suja, a gente joga fora. Rasgada, joga fora. A gente não manda para a praça roupa que não usaríamos. Sapato rasgado e furado também não vai! Porque senão eles só vão usar uma vez, então é melhor que a gente dê para eles coisas que vão durar mais”, explica. Nossa conversa é interrompida por uma voluntária. Ela explica que Milton solicita nossa presença no andar de baixo. Nany, com a resposta na língua e com a segurança de quem sabe que pode fazer aquilo, diz: “Fala para o Milton esperar”. Em seguida, continua sua explicação em detalhes sobre o bazar. Narrativa | 57


Ao descer os degraus da saída daquele espaço, as ondas sonoras que vêm da caixa de som encontram nossos ouvidos. É um tanto curioso perceber a diferença sonora entre um andar e outro. No bazar, o som ambiente é preenchido pelos passos apressados de Nanny e Rose, sua amiga, também ajudante do brechó. Já no térreo, ouvimos as gargalhadas vindas da cozinha de ajudantes que estão cortando legumes. Seguimos nossa guia, Nanny, que nos leva ao cômodo onde são guardadas grandes doações como camas, colchões, bengalas, muletas e andadores. Em seguida, ela nos mostra a cozinha e a mesa onde são embaladas as marmitas. Quando estava prestes a nos deixar livres para observação, ouvimos Milton questioná-la: “Você já mostrou a sala de produção das fraldas?”. Nanny. então, nos mostrou o maquinário responsável pela produção de fraldas geriátricas.

Tel

Foto: Aline Yumi

Depois de alguns minutos observando tudo e tirando fotos para registro, ouvimos uma agitação no bazar e voltamos ao início do nosso passeio. Lá encontramos Tel, uma das melhores clientes do GEA, junto com algumas voluntárias. A chegada da senhora de fios ondulados, curtos e coloridos em tons castanhos com pontas claras, causa agitação. Não é difícil perceber que a mulher de 65 anos diante de nós gosta de se arrumar. Uma calça jeans, uma blusa azul decorada por flores, lábios pintados de verme-

lho, unhas feitas, brincos, colares, pulseiras e anéis completam o conjunto que compõe a personagem da próxima história. Nos aproximamos daquela figura que deixou Nanny e os voluntários animados. Com um sorriso que alcançava até os cantos de sua boca, ela nos recebe calorosamente e aceita que a acompanhemos em sua caça por peças no brechó. Questionamos a origem de seu apelido “Meu nome é Etelvina, mas o meu apelido é Tel. Todo mundo me conhece por Tel.” explica. “É a nossa melhor compradora”, Nanny complementa. Com os olhos treinados de alguém que faz parte do ramo de brechós há quase 20 anos, ela começa a garimpar as peças que lhe interessam, roupas e calçados masculinos, e que mais tarde farão parte de sua loja no Itaim Paulista, rua Itajuibe, número 1534. No decorrer de nossa caminhada pelo cômodo, Tel nos conta mais sobre sua trajetória, a cada cabide e a cada arara de roupa vista, uma revelação. O ramo de vender roupas que um dia já pertencerem a alguém foi uma solução para sobreviver. Quase em tom de confidência, Tel explica: “Eu me separei. Fui casada com meu marido por 37 anos. Ele era alcoólatra e fazia muita coisa ruim dentro de casa”. Depois que os filhos se formaram e os mais velhos começaram suas próprias famílias, sobrou apenas ela, o até então marido e a sua caçula. “Aí eu tinha que sobreviver, chegou um momento em que eu não tinha

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Foto: Aline Yumi A voluntária Rose: “Tenho a sensação de que estava presa e agora me libertei”.

nada para comer em casa. Eu e minha filha tiramos os brincos e vendemos. Na época deu R$ 65,00”, conta. Em seguida foram comprar algo para comer e foi naquele dia que sua filha pediu: “Mãe, não tem condições mais de morar com o pai, a gente vai morrer na mão dele.” Dali em diante, a mulher deixou suas tristezas para trás e resolveu abrir seu negócio próprio que, mais tarde, lhe proporcionaria um carro e um lugar para morar. Ao final do seu relato, como se quisesse deixar uma mensagem, ela diz: “Durante toda a nossa vida, os dias são feitos de superação e, a cada um que passa, precisamos achar um jeito de viver. O que não me matou apenas ajudou a me fortalecer”. Depois de muito procurar pelo brechó Tel dá a sua visita por encerrada. O resultado é um saco cheio de roupas. “É assim, ninguém compra como eu. Se tiver mercadoria, eu quero!”. Um pouco antes de ir embora, ela pergunta a Nanny quanto custa uma poltrona pequena, o último produto de seu interesse. Com ternura em sua voz ela explica: “Quero levar para a minha neta”. Ali em pé, quase perto da saída que nos direcionava para as escadas, Tel ainda falava sobre os resultados do dia, até que escuta alguém chamá-la para uma foto. A dona da voz é Rose.

Rose

Com o celular na mão direita ela usa a outra para fazer um sinal para que também participemos da foto. Como se pudessem sentir que iria começar uma sessão de fotografia, as voluntárias que também se encontravam no andar de cima entraram na brincadeira. Em pouco tempo, todas estavam sorrindo e fazendo poses. Quem comandava a agitação era a dona do celular, uma mulher de estatura média, cabelos escuros e de fios lisos que se estendiam até um pouco abaixo de seus ombros. A maquiagem combinava com o tom bronzeado da sua pele. Depois de toda a brincadeira, Rose ajeita seus óculos, de aros grossos, e volta ao seu posto no caixa. Sem abandoná-lo, ela puxa assunto e, antes mesmo de percebermos, estamos discutindo sobre os caminhos que a vida pode tomar. A mulher que parece transpirar felicidade, explica que sempre gostou de conviver com pessoas e desde muito jovem tinha o desejo de fazer algo pelos moradores de rua. Pelo gosto de interagir e conversar, ela fez disso a sua profissão. Ao se formar na área de Recursos Humanos, foi responsável por contratar e demitir funcionários durante anos. Por conta de sua vida, sempre muito atarefada, o sonho de menina foi substituído pelo o de uma mãe de 17 anos que criou seu filho sozinha. Narrativa | 59


com 12 anos, tive 9 abortos.”. A série de números que machucaria até o leitor mais insensível nos choca por alguns segundos, até que criamos coragem para levá-la ao andar debaixo. Longe da correria do brechó, buscamos os detalhes de sua vida e sua trajetória até virar uma assistida do grupo. Enquanto segura sua nova boneca, que chama de filha, ela mostra o quão forte foi desde criança. “Deus é comigo, eu sofri muito, apanhei muito, minha família sofreu na mão do meu marido. Até

presa eu fui, e era inocente. Ele era traficante, a polícia chegou, ele fugiu e eles me levaram. Puxei oito anos, tava de dieta, 15 dias meu filho nasceu”, conta. Ao falar do filho, um pequeno sorriso acende no rosto de Maria Cecília. O homem de 41 anos é seu orgulho: “Meu filho é caseiro, sossegado, não fuma, não bebe. Ele apanhou junto comigo, coitado. Não casou até agora, porque não queria me deixar na mão do pai dele. Meu filho apanhava na cara, com 30 e poucos anos. Nunca levantou a Foto: Aline Yumi

Depois da aposentadoria, conseguiu finalmente olhar ao seu redor e encontrar a beleza nos detalhes. “Eu tenho a sensação de que estava presa e agora me libertei. Estou realizada”, reflete. Foi através de uma postagem da internet que conseguiu realizar a vontade pelo trabalho voluntário. Ela conta que se encantou com o grupo e nunca mais deixou de frequentá-lo. Ao relembrar sua trajetória, se emociona e diz: “Olha aqui o meu braço”, enquanto demonstra estar arrepiada. Engole o nó na garganta e continua. “Cada pessoa tem o seu jeito, cada ser humano é diferente e a gente tem que entender isso e procurar se colocar no lugar daquela pessoa. É muito fácil julgar”. Divagamos um pouco mais sobre o futuro e seus desejos, ela diz que sua vida a partir de agora será feita apenas de alegrias e que seu próximo objetivo e ir para França: “Podem ter certeza, eu sei que vou”.

Maria Cecília

Enquanto conversávamos com Rose, e conhecíamos um pouco mais sobre o bazar do GEA, vemos Nanny entrar apressada à procura de uma boneca. Ela nos diz que tem alguém que poderia ter uma história interessante a ser compartilhada, mas que antes procuraria o que a pessoa estava pedindo. Antes mesmo do pensamento de uma criança se formar em nossas mentes, Maria Cecília passa pela porta, à espera do presente. A senhora de 61 anos possui um corpo magro, vestimentas simples, pele e cabelo negros. O semblante feliz não esconde o cansaço de quem sofreu por anos em um relacionamento abusivo. Em uma de nossas primeiras perguntas, ela logo resume a tragédia que viveu nos últimos anos: “Eu tive câncer, operei faz 20 anos. Perdi sangue 60 | Narrativa

Maria Cecília, uma das assistidas pelo grupo.


Foto: Aline Yumi Trabalho de distribuição de refeições e vestimentas na Praça da Paz, em São Miguel Paulista.

mão pra mim ou pra ele. Podia reagir, mas ele dizia ‘em pai e mãe não se bate’”. Numa retrospectiva de sua história, ela conta que conheceu seu esposo, quando tinha apenas 11 anos. Apanhou por 40 anos, até o dia em que ele morreu, por overdose de crack. Constrangida e pedindo perdão, ela diz: “Graças a Deus. Era ele ou eu.” Quando pergunto de sua relação com o GEA, um sorriso semelhante ao que vimos quando ela avistou sua boneca, reacende. “Ah, eu venho aqui pegar umas coisinhas, porque o povo aqui é uma benção, sabe? Uns amores, eu amo eles. Faz mais de 20 anos... eu ainda venho aqui e pego alguma coisinha pra comer”, diz a senhora, que trabalha com faxinas, mas ganha muito menos do que o esforço aplicado deveria render. No final de nossa conversa, ela escuta alguém mencionar que está sem leite em pó em casa. As palavras parecem despertar um alerta Narrativa | 61


nela, que logo grita: “Seu Milton, cadê o meu leite? Não é pra mim não, é pro meu sobrinho”. Ao avistar o homem robusto, o semblante preocupado abre espaço para um sorriso sapeca. Ela brinca: “Acabei de ganhar criança, preciso de leite”, enquanto segura a boneca na posição de um bebê recém-nascido. Nesse momento, ela se despede da gente e vai atrás do produto que falta em sua cesta básica.

Almoço e praça

Seria impossível falar do trabalho do GEA sem acompanhar todo o processo do principal serviço oferecido pelos voluntários, que é a distribuição de marmitas aos moradores de rua. No andar de baixo da construção, a movimentação é grande, passamos pela mesa, descrita por um dos voluntários como “uma grande linha de produção”. Seguimos as vozes que vêm da cozinha. É lá que tudo acontece. São cerca de cinco pessoas em um ritmo frenético, cozinhando em enormes panelas. O menu do dia é arroz, salada de beterraba, frango cozido e macarrão alho e óleo. Não demora muito e tarefas começam a ser realizadas ali onde todos trabalham contra o relógio. A ajuda sempre é bem-vinda. “Joelma, vê o que essas duas menininhas lindas podem fazer”, escutamos um senhor esbelto falar gesticulando em nossa direção. Logo estamos participando da cena. O som das risadas, das discussões sobre o tempero, da chama do fogo, da louça sendo lavada e do alho na frigideira desempenham o papel de trilha sonora. Já são duas da tarde e o cheiro de comida pronta invade a cozinha e todo o local. O almoço está pronto. Todos os voluntários estão reunidos ao redor da grande mesa retangular. Agora ela está coberta por toalhas de plásticos e no centro o banquete é servido. 62 | Narrativa

Ao observarmos a cena, fica difícil não associarmos aquilo a um almoço de uma família grande e feliz. As risadas e animação que antecedem a ida à praça tomam conta do local. Depois de satisfeitos, os voluntários começam a decidir a forma como cada um vai chegar ao local. A diversão fica por conta de quem irá no carro de quem. Às 15h o grupo chega na tão falada

“CADA SER HUMANO É DIFERENTE E A GENTE TEM QUE ENTENDER ISSO E PROCURAR SE COLOCAR NO LUGAR DAQUELA PESSOA.” Praça da Paz. Quem por ela passa apressado talvez não perceba suas grandes árvores, seus troncos largos, a grama que cresce em volta de alguns bancos de madeira, há muito expostos ao sol e a chuva. No centro, fica uma espécie de círculo envolto pelas enormes árvores, agora já cheias de musgo. É ali naquela praça extremamente comum a alguns, que algo realmente interessante acontece. Aos poucos os assistidos começam a se agru-

par perto de onde estamos. Em sem que ninguém fale nada, uma espécie de fila dos dois lados da praça é formada. Ela é constituída por homens, mulheres, crianças e idosos. Todos à procura de alguma energia para aguentar a incerteza da fome. Com as mãos esticadas, brancas, pretas, sujas, limpas, grandes, pequenas, enrugadas ou não, eles esperam a sua vez. Um grupo de quatro voluntários é formado. Dois seguram uma caixa com a marmitex, enquanto outras duas entregam. Somos selecionadas para o segundo posto. A cada refeição entregue, escutamos um obrigado ou recebemos um olhar de carinho. Logo atrás, mais voluntários distribuem os acompanhamentos: salada, pimenta e afins. Depois são entregues as frutas, os lanches e até mesmo uma sobremesa - bolo gelado. Os voluntários dão atenção especial às crianças. Enquanto algumas pessoas ajudam nesta distribuição, outras colocam-se a conversar com os assistidos. Rose e Nanny fazem a distribuição de roupas e Milton organiza tudo isso com a sua característica voz. É só no fim da tarde que começamos a nos despedir da praça. Arrumamos as caixas e vamos em direção a nossa carona. Os voluntários que saíram de suas casas naquela manhã não eram as mesmas pessoas. Por experiência própria, podemos dizer que mais do que algum sentimento de tristeza por alguma história, ou fascínio pelas cenas presenciadas, algo naquele tipo de atitude muda o caráter e a alma. Mesmo não tendo participando de todas as distribuições, sentimos, como destacam os voluntários, que nenhum dia é como o outro. Nenhuma pessoa é a mesma na manhã seguinte. E essa mudança é para a melhor.


A tradição ganha fôlego André de Godoy, Felipe Lanza & Francesco Greco O som da máquina de cortar cabelo e das tesouras, tão familiares a quem vai retocar o visual, domina o ambiente. Ao fundo, porém, não se ouve o som de conversas ou da televisão que costuma dar o tom nos salões de cabeleireiro. Em vez disso, o cliente é surpreendido com uma variada seleção musical, que vai do blues ao rock clássico de ícones como Elvis, Chuck Berry e B.B. King. No que antes era uma casa térrea próxima ao paço municipal de Santo André, Celso Krauss, que trabalha no ramo desde os 18 anos, deu à luz ao ambiente descrito. Ele, que tem os cabelos ralos já grisalhos, e ostenta a barba também esbranquiçada, inaugurou a Barbearia Krauss & PinUps em 2013, depois de descobrir um ramo que crescia com força no exterior: o das barbearias gourmet, estabelecimentos que,

além do corte, oferecem entretenimento e temáticas específicas. Dentro dos vários cômodos da barbearia, quadros decoram as paredes (ao todo, são mais de 200). No teto, grandes pinturas de garotas pin-ups, aquelas de pôsteres antigos, dão cor ao ambiente, e embelezam a vista de quem está tendo o cabelo lavado ou a barba aparada. Mas não é só uma questão de melhorar a aparência do estabelecimento. Ao longo destes cinco anos, Krauss investiu centenas de milhares de reais na expansão de seu negócio. Seu objetivo é transformar a Barbearia Krauss & Pin-Ups num verdadeiro gentleman’s club, um espaço para os clientes poderem aproveitar um dia longe da rotina. Para isso, montou um bar, um salão de jogos e toda a infraestrutura necessária para realizar o Dia do Noivo de clientes interessados. Pouco a pouco, o gentleman’s Narrativa | 63


club de Celso Krauss vai tomando forma. A próxima etapa é reformar a área externa da casa para criar um espaço onde possam ser feitos churrascos, eventos maiores ou só para assistir a uma partida de futebol nos fins de semana. Barbearias como essa estão tomando o mercado de assalto nos últimos anos. Atualmente, o Brasil é o 4° maior consumidor de produtos de beleza masculinos, atrás somente dos EUA, China e Japão, de acordo com o levantamento da Euromonitor International. Mas o estudo prevê que os tupiniquins assumam a primeira colocação em 2019. Para se ter uma noção do tamanho do mercado brasileiro, só em 2016, o segmento de beleza para os homens faturou R$ 19,6 bilhões. O crescimento é exponencial. Entre 2009 e 2014, por exemplo, o consumo de produtos masculinos para banho cresceu estonteantes 175%, seguido pelos artigos para cabelo (137%) e para barbear (120%).

Lar doce lar

Foto: André de Godoy & Francesco Greco

Engana-se quem pensa que a Krauss & Pin-Ups recebe apenas

homens, como outras barbearias. Graças à sua experiência como cabeleireiro, Krauss continua a contar com algumas clientes mais antigas, e outras mais novas que gostam da ambientação descontraída e aconchegante. Divide seus clientes homens com seu único funcionário, Thiago. Enquanto Krauss fazia o tour pela casa conosco (comigo André e com Francesco, dois dos três repórteres dessa matéria), a campainha tocou e Thiago apareceu no corredor dizendo: “Krauss, a Marta está aí”. Foi a primeira cliente que chegou desde que estávamos na barbearia. “Beleza, fala que eu já vou!”, disse o cabeleireiro. Marta não estava ali por acaso. Ela é uma das clientes dos tempos antigos, de quando Krauss ainda trabalhava num salão de cabeleireiro tradicional. Depois de cumprimentá-la na área do bar, o barbeiro nos apresentou. “Eles são meus clientes. Estão fazendo uma reportagem”, disse, enquanto passava por entre as mesas em direção à parte unissex da casa. “Vão acompanhar a gente, o processo aqui”, complementou.

O tradicional e pomposo acento da Krauss & PinUps.

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“Vocês fazem faculdade?”, indagou Marta, acompanhando Krauss. Respondemos que sim. Nossa conversa foi breve, embora produtiva, e perpassou a situação das empresas de comunicação na região do ABC. Logo, a professora de Artes, uma mulher por volta de seus 40 anos, de estatura mediana e cabelos castanho escuros pelos ombros, voltou sua atenção para Krauss, enquanto se sentava numa tradicional cadeira de cabeleireiros Ferrante. “Pode dar uma desfiadinha aí nas pontas, né?”, foi a pergunta de Krauss sobre o corte da vez, respondida com um aceno de cabeça e um discreto “pode” Em meio ao barulho das tesouras, o assunto foi direcionado para a recente visita de Marta à Bienal do Livro. “Ah, sei lá. Eu achei meio pobre”, comentou a cliente. “Meio o quê?”, retrucou Krauss. “Meio pobre”. “Ah é? Por quê?, perguntou de novo Krauss. “É uma coisa ou outra legal. Tem muita coisa que você fala “nossa…”, disse a cliente. “É viajadeira dos artistas?”, questionou o barbeiro. “Sei lá, umas coisas meio sem pé nem cabeça… mas eu gosto de ir em exposição para abrir minha cabeça pra criar coisas novas”, continuou a professora O papo se estendeu por todos os cerca de 40 minutos do atendimento, indo parar nas eleições (de 2018), sem nunca perder o ritmo, revelando a estreita relação entre freguês e cabeleireiro. Papo de confrade A fidelidade dos clientes a essas barbearias é importante. O que mantém a ligação deles com o local passa pela relação com quem trabalha lá. Dessa forma, um assunto ‘delicado’, como a beleza in-


o hábito de Gustavo e de outros clientes, que gostam de degustar um caro whisky, ou uma cerveja gelada enquanto cortam o cabelo ou fazem a barba. Eles, então, se dirigiram às cadeiras que ficam no cômodo seguinte à área unissex, antes de chegar ao salão de jogos que abriga uma mesa de sinuca, um alvo de dardos e um aparelho de som. Gustavo sentou-se na poltrona mais próxima da parede e apoiou sua cerveja em cima do balcão, enquanto Thiago arrumou seus instrumentos. Sentamo-nos em dois assentos mais ao fundo, atrás de uma câmera Nikon antiga posta sobre um tripé. À nossa direita, estava uma vitrine que expõe os produtos de perfumaria que Krauss vende para os clientes interessados. Ao lado dela, outro mostruário com as bebidas mais exclusivas da casa: Jack Daniel’s Gentleman Jack, Dalmore 15 Year Old, Jack Daniel’s Honey e Fire etc. Aqui, as coisas já começaram a ganhar a cara do almejado Gentleman’s club do barbeiro. A playlist eclética ao fundo se uniu à conversa. Foto: André de Godoy & Francesco Greco

dividual, vira praxe. Este é o caso de Gustavo, estudante de Direito de 19 anos, estatura mediana e cabelos escuros, curtos nas laterais e médios no topo da cabeça. “Tudo bom, Gustavo? Boa tarde”, disse Krauss, abrindo a porta da barbearia “Beleza”, respondeu o jovem. E aos poucos ele entrou na parte de recepção da barbearia, onde pode desfrutar de passatempos e quebra cabeças. “Chegaram umas brejas novas aí, que deixam mais alegres”, informou Krauss. “Tem uma belga?”, perguntou Gustavo. “Tem essa aqui [e mostrou a garrafa, com uns detalhes diferentes das cervejas que estamos acostumados a ver nos mercados]. “É a Poker Face, deve ter coisa a mais do que trigo”, disse Gustavo. “Pode pegar pra você?”, perguntou Thiago, o outro cabeleireiro do local. “Pode!” “Vai fugir do whisky hoje?”, finalizou Thiago, brincando com

Thiago é o único barbeiro que divide espaço com Krauss. Gustavo (sendo atendido na foto)

“EU SEMPRE GOSTEI DE FICAR SÓ EM UM LUGAR.” “Essa cachaça é ouro ou é branca?”, indagou Gustavo. “Acho que é ouro, cara. Parece que é ouro”, respondeu o barbeiro De repente, o foco mudou, e Gustavo contou sobre um acidente com seu carro. Ele revelou que, quando estava virando uma rua, o veículo “destracionou” as quatro rodas, que perderam a tração, algo particularmente comum em dias chuvosos como aquele. “Ainda bem que eu consegui controlar pra não bater, senão ia dar uma perda total”, complementou. Em seguida, refletiu: “Eu não sei se eu entrei rápido demais…” O corte começou pelas laterais. Antes, porém, o barbeiro perguntou ao cliente qual seria o corte da vez, ao que Gustavo respondeu que iria tentar continuar com o mesmo estilo. “Pode jogar pro lado e deixar. Só arruma aqui na frente e é isso. Coisa pouca”. Inesperadamente, Thiago perguntou: “Tá tudo bem?”. Gustavo fez que sim com a cabeça, e o cabeleireiro continuou brincando: “É que você tá com uma cara de assustado... tá até com a bochecha vermelha. Pensei: ‘nossa, ou ele tá chapado ou aconteceu alguma coisa’”. O serviço se estendeu por cerca de 45 minutos, com poucos intervalos nos quais a música ou o som da máquina de cabelo imperavam - lá, a conversa entre barbeiro e freguês é a regra, não a exceção. Quase na metade do serviço, Thiago se voltou para nós. “Isso daí é pra trabalho de faculdade, ou algo assim?” Narrativa | 65


Foto: André de Godoy & Francesco Greco Respondemos que sim, mas que seria publicado numa revista da própria universidade, e ele retrucou, sorrindo: “Ah! pensei que ia ficar famoso!”. Depois, explicamos com mais detalhes qual era nosso objetivo para estar ali, e perguntamos a Gustavo porque ele frequentava a Krauss & PinUps. A resposta voltou a bater na tecla da fidelidade. “Olha, eu sempre gostei de ficar só em um lugar. Eu não gosto de ficar indo em vários lugares só pra ver o barbeiro como que é”, confidenciou. Gustavo explicou que escolheu a barbearia por ter gostado do corte feito lá na primeira vez em que foi, há quase dois anos. Depois desta breve interrupção, a conversa continuou com a mesma fluidez e intimidade por pouco tempo, até que Thiago começasse o corte com tesoura. A concentração do barbeiro em sua tarefa trouxe um silêncio para a sala que só era quebrado pela música de fundo e pelos tics das tesouras a cada 2 ou 3 segundos - em breve, o serviço estaria terminado, e bastariam os acabamentos à navalha e com a máquina. Pouco a pouco, porém, o burburinho que antes enchia a sala voltou. Dessa vez, o tópico era o Hopi Hari, o parque de diversões que luta para retornar às 66 | Narrativa

glórias passadas. Barbeiro e cliente conversaram sobre como o lugar perdeu movimento. Thiago aproveitou o gancho de sua ida ao parque no domingo anterior para começar o assunto. A conversa foi frutífera, se estendendo a outros parques como o Beto Carrero World e o extinto Playcenter. Mesmo assim, nada tirava a concentração de Thiago do corte solicitado por seu cliente e interlocutor. A precisão de cada tesourada e de cada ajuste fazia parecer como se nada estivesse acontecendo à sua volta. Antes de partirmos, ficamos na sala de espera da barbearia para finalizarmos a conversa com Krauss e Thiago. O ambiente aconchegante favorece o relacionamento positivo entre cliente e estabelecimento. Na parede da entrada à esquerda, com tijolos à mostra, ficam dispostos uma guitarra, um teclado e um violão. Eles não ficam lá só por decoração: quem quiser fazer uma jam session pode se sentir à vontade para pegá-los e ecoar um som para as mesas do bar. Nelas estão outras distrações: quebra-cabeças e cubos mágicos. Mas não são aqueles quebra-cabeças típicos. Estes são peças de metal retorcido entrelaçadas. O objetivo de quem se submeter ao


desafio é desenroscar as gêmeas metálicas. Não se trata mais apenas de cortar o cabelo. A experiência vai muito além disso.

Sentindo na pele

Foto: André de Godoy & Francesco Greco

Não são apenas estabelecimentos recém-chegados ao mercado que adotam essa ambientação mais gourmet. Salões mais tradicionais vêm se adaptando, como é o caso do salão York, estabelecimento com mais de 30 anos no ramo que se firmou no mercado tradicional, porém os donos viram-se obrigados a seguir novas tendências que eram necessárias para o crescimento e visibilidade do negócio. Maria Andrade iniciou no ramo cortando o cabelo de suas filhas em casa. Dona de casa e mãe de quatro filhas, buscava caminhos para economizar seu tão suado ganha pão e acabou descobrindo o seu maior talento, que seria seu trabalho para o resto da vida. Aos 23 anos começou a trabalhar em um salão de cabeleireiro, onde conseguiu aprender e desenvolver novas técnicas com a tesoura que seriam essenciais para os próximos anos de sua vida. Com anos de trabalho, Maria juntou suas economias e conseguiu abrir seu próprio salão de cabeleireiro no bairro da Vila Leopoldina, na zona oeste da capital paulista. Por lá ficou durante 15 anos, tempo mais do que suficiente para que transmitisse sua pai-

xão pelo negócio para suas filhas e netos, que posteriormente ajudariam Maria em seu salão. Por volta de 10 anos atrás, o bairro da Vila Leopoldina abrigava indústrias e galpões em seus quarteirões movimentados por grandes caminhões que transportavam alimentos ao Ceasa (Centro Estadual de Abastecimento). Muito por conta de sua ótima localização na cidade, grandes construtoras de condomínios resolveram migrar para a área, transformando-a em uma região cada vez mais residencial, trazendo consigo o empreendedorismo da época. A partir desse momento, o salão York ganhou muita visibilidade e credibilidade no cenário de barbeiros, uma vez que era um dos pioneiros no negócio, e por ter diversos serviços - masculinos e femininos - que não o da tesoura. Maria oferecia também manicure, pedicure, lavagem e o tão desejado cafezinho. Por conta de seu alto lucro e visibilidade, barbeiros no mercado se atentaram ao salão York, que vinha rendendo elogios na região. Até que chegou o dia de Maria conseguir resolver sua vida. Surgiu uma proposta irrecusável de um concorrente que queria comprar os direitos do salão York e reformá-lo para transformá-lo em uma barbearia gourmet. Pelo altíssimo valor oferecido - que Maria fica com um nó na garganta ao mencioná-lo - o salão York foi vendido. Era

Krauss também recebe clientes mulheres que já eram atendidas por ele em outros salões.

Narrativa | 67


Foto: André de Godoy & Francesco Greco As bebidas são fundamentais para a essência da Krauss & PinUps .

o fim de uma era construída em família pela paixão pela tesoura. Com dinheiro no bolso, comida no prato e suas filhas e netos formados para a vida, Maria decidiu viajar até a Nova Zelândia, onde faria um curso de cabeleireiro com um dos mais renomados barbeiros do país. Por um ano trabalhou em um dos melhores e mais visados cabeleireiros da Nova Zelândia, onde conheceu novos caminhos, novos valores e novos pontos de vista. Ao voltar para o Brasil, recebeu a notícia de que o seu concorrente, que havia comprado o espaço de seu salão para modernizá-lo, estava mal das pernas. Por falta de lucro, boa parte por culpa de seu retrocesso no que diz respeito à modernização, o novo salão teve de fechar as portas. Portas estas que se abriram novamente para Maria. Sem pensar duas vezes, Maria negociou o preço do espaço e o comprou de volta, revivendo o salão York, que trouxe de volta os antigos e fiéis clientes. Diferente de seu concorrente que não soube gerir o estabeleci68 | Narrativa

mento, Maria investiu novamente, e adaptou seu salão para as novas tendências. Porém, percebeu que deveria dar mais atenção a alguns setores que estavam crescendo no mercado e tomando forma na cabeça dos clientes. A ideia de ir a um barbeiro que não seja restrito a barbas e cortes, mas que ofereça produtos e vaidades masculinas não fugiu das mãos de Maria, e foi colocada em prática por ela, suas filhas e netos. Há apenas dois anos, uma nova unidade do salão York seria inaugurada dentro do Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo). Essa, por sua vez, é específica para tendências de cortes masculinos, massagens faciais, produtos para barba e cabelo, além de um variado menu de cervejas artesanais feitas pela própria família. O cafezinho foi substituído por bebidas fermentadas, bastante apreciadas por homens que cultivam uma comprida e crédula barba. “Fala meu chegado! Como vai ser hoje?”, perguntou Kaio, neto de Maria, ao repórter Felipe Lanza (que assina comigo e com Fran-

cesco essa matéria). Felipe costuma frequentar o local e resolveu cortar o cabelo lá, desta vez com olhar de jornalista. “Daquele jeito Kaião, sem novidade!”, respondeu Felipe. Após um cumprimento que mais parece de velhos amigos, Felipe se sentou em uma cadeira vintage de barbeiros e Kaio o preparou para o corte. “E sua vó Maria, como vai? Faz tempo que não a vejo”, perguntou o repórter. “Bem, graças a Deus! Hoje em dia quase não aparece nos salões, só vem supervisionar os netos trabalharem!”, explicou Kaio, aos risos. Em meio papo que devia ser colocado em dia, o real objetivo que levou Felipe até lá se confundiu quando ele abriu uma cerveja, tradicionalmente preparada pela família, e conversou com Kaio sobre o campeonato brasileiro de futebol. Para Kaio, cortar o cabelo de Felipe não é mais um desafio. Ele já sabe o estilo de corte que o agrada, por isso a tesoura e a máquina não são mais o foco do encontro.


Foto: André de Godoy & Francesco Greco

“E o Guilherme? Não tá mais trabalhando aqui?, questionou Felipe sobre um funcionário antigo da casa que conversava por horas com ele durante os cortes. “Não mais! Não se adaptou ao novo estilo do salão e voltou pro antigo barbeiro em que ele trabalhava! E cá entre nós, lá não anda muito bem das pernas não!”, disse Kaio. O cabeleireiro explicou que a modernização, além de ajudar no crescimento da marca, exigiu mais preparo e adaptação dos funcionários para lidar com os diferentes tipos de tarefas, e algumas vezes até mais horas de trabalho. Guilherme não conseguiu se encaixar com as novas demandas do salão e optou por voltar ao salão no qual trabalhava, que, segundo Kaio “parou no tempo”. “É preciso pensar fora da caixinha às vezes”, completou. Depois de um longo e cuidadoso corte, regado a conversas sem fronteiras que passaram por religião, política e futebol, Kaio mostrou ao repórter, com um segundo espelho, a parte de trás de meu cabelo. “E aí, curtiu?”, perguntou a Felipe. “Ótimo como sempre!”, disse o repórter. Com o cabelo cortado e barba devidamente aparada, Felipe levantou-se da cadeira e seguiu ao caixa para acertar a conta. Ao fundo, ouviu Kaio: “Mãe, o dele é $25, tá?” Seja com as experiências da Krauss & PinUps ou com aquelas do York, o que fica certo é que o ramo das barbearias e salões masculinos definitivamente mudou. Aqueles que querem se manter na competição podem, como Celso Krauss, começar do zero. Ou, como Maria, embelezar não só o cabelo dos clientes, mas o próprio salão. A experiência é importante, mas exige inovação.

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Do desespero ao “até breve” Beatriz de Aquino & Rebeca Dias O som do tiro ecoou pelas ruas do bairro da Vila Prudente, zona leste de São Paulo. Em frente à própria casa, Juraci viu o bandido correr até seu filho mais velho, envolvê-lo pela cintura e disparar a arma responsável por uma imensa reviravolta em sua vida. Era 2 de outubro de 2014. Thiago voltava com a mãe para casa, quando três criminosos o abordaram na garagem e o arrancaram para fora do carro. Juraci, naquele momento, estava agachada para pegar a garrafa d’água que o garoto havia derrubado. “Ê... Thiago”, exclamou para o filho. Só depois foi entender que não era uma brincadeira. Juraci pegou a mão de um dos bandidos e gritou pela ida deles. Assustado, o moleque caminhou 70 | Narrativa

até o jovem e atirou. Thiago caiu no chão, sem verter sangue, e ainda consciente. “Mãe, chama o 190, chama”, pediu sem fôlego. Nesse instante, o desespero se apossou do coração de Juraci. “Eu pensava: Meu Deus, como é que podem fazer isso, como é que podem!”. Às 2h20, a vida de Thiago foi interrompida. “A médica me chamou e disse: seu filho não aguentou. Você perde o chão, sabe? Você perde o chão...”. As palavras dificilmente pronunciadas na espaçosa sala de estar pouco iluminada irrompem em meio ao choro sentido da mãe ao contar a cena que se repete todos os dias em sua cabeça. As olheiras incansáveis, os cabelos claros vagamente alinhados


Beatriz de Aquino & Rebeca Dias

e o corpo dolorido, cheio de pinos devido ao grave acidente de carro sofrido junto ao filho caçula, denunciam no físico a dor que já ultrapassa os quatro anos. Juraci de Osti tinha uma vida confortável, preenchida pelos três filhos homens fortemente apegados. Hoje as fotos que ordenam sua estante são lembranças de uma vida que ficou para trás. “Eu perdi minha mãe, perdi meu pai, achei que não fosse aguentar. Perdi meu irmão, achei que não fosse aguentar. Mas passa, você segue. A hora que você perde um filho, você não consegue mais seguir, por mais que você queira”. Thiago tinha 28 anos quando veio ao óbito. Naquela noite, retornava de uma degustação em um buffet que visitara com a mãe e a noiva Isabela. Ainda que não consiga mexer nas coisas do filho desde sua partida, Juraci mantém a camisa listrada que o garoto vestia no dia como uma lembrança do ocorrido. A camisa está puída pelo tempo e rasgada pela bala de revólver. Ela manuseia o tecido com familiaridade, quase que o afagando. “O Thiago gostava tanto de me ver arrumada”, conta em meio a um leve sorriso. “No meu aniversário e no dos meninos ele gostava de sair, era festa a semana inteira. E antes eu tinha vontade de me arrumar... Eu tinha. Sou sincera. Você perde a vontade, sabe? Eu falo que Deus deveria colocar uma lei que um filho nunca deve ir antes que uma mãe, porque você tem que seguir. Eu tenho mais dois filhos, tenho que seguir”. “Não tem uma receita para superar o luto”, explica a psicóloga Luciana Mazorra. “Mas é importante a mãe saber que ela tem direito a continuar vivendo, e essa é uma questão difícil, porque elas pensam ‘eu tinha que morrer antes do meu filho pela lei natural’. Muitas encontram recursos na fa-

Camisa usada por Thiago no dia do assassinato.

“EU FALO QUE DEUS DEVERIA COLOCAR UMA LEI QUE UM FILHO NUNCA DEVE IR ANTES QUE UMA MÃE, PORQUE VOCÊ TEM QUE SEGUIR. EU TENHO MAIS DOIS FILHOS, TENHO QUE SEGUIR.”

mília, nas causas sociais, e existem grupos de apoio que também costumam ser interessantes”. Foi dessa forma que Alice Quadrado buscou forças para enfrentar a partida de sua Laninha, como carinhosamente chama a filha de 25 anos. Assim como Thiago, Eliana teve uma morte repentina, ocorrida em um acidente de carro, mas a mãe sentia que a terapia e a escrita, que deu origem ao livro O Perfume de Eliana, não eram suficientes para apaziguar seu coração. “Há 18 anos, quando perdi minha filha, não havia uma instituição que pudesse apoiar uma mãe enlutada. E eu me sentia um ET, eu ficava gente, só eu que perdi? Como dá para partilhar isso com alguém? É uma dor tão diferente, tão dilacerante”. Quem vê Alice, com seus traços delicados e maduros pela idade, não imagina a força que se esconde por trás de sua voz calma, ponderada e decidida. Assim é também seu espírito. Quando colocou na cabeça a ideia de criar uma associação de apoio ao luto, ninguém conseguiu dissuadi-la. “Muitos diziam que eu poderia criar uma situação difícil para Narrativa | 71


mim, porque teria sempre pessoas que estavam sofrendo e que isso talvez fizesse mal, mas não é assim na prática”, revela. “O projeto me confortou muito. Toda vez que falo com alguém que perdeu um ente querido, sempre aprendo com essas pessoas e agradeço muito a possibilidade de ter um grupo que possa partilhar essas dores”. Assim, no dia 20 de setembro de 2001, data na qual Eliana faria aniversário, nasceu a Casulo. Tal foi a importância do projeto que o grupo se espalhou por diversas cidades brasileiras, levando a incontáveis enlutados seminários, congressos, visitas e o mais importante: as reuniões de autoajuda. “As mães que participam encontram propostas de como elaborar esse luto, ouvem sobre como resolver a questão das datas comemorativas, se é importante se desfazer das coisas do ente, enfim, toda a problemática que acompanha a vida dessa mulher”, explica.

Órfãs bebês

Beatriz de Aquino & Rebeca Dias

As conversas ao redor das mesas carinhosamente montadas com lanchinhos e biscoitos da Casulo já acalentaram o coração de muitas mães afogadas na dor do luto, como foi o caso de Camila Goytacaz. Em uma mesa próxima à janela escura pela noite, na praça de alimentação da Fundação Getúlio Vargas,

centro de São Paulo, a jornalista analisa o cardápio despretensiosamente, preparando-se para mais uma vez contar a breve história de seu pequeno José. Aos poucos, naquele ambiente cercado por ruídos de conversas alheias, máquinas de café e tilintar de pratos, ela revela a história mais íntima de sua vida, iniciada em 4 de março de 2011, dia do nascimento de seu segundo bebê, cuja vida resistiu apenas 11 dias. “Às seis da tarde, ele partiu. Foi acompanhado por mim e pelo pai. Batizado ali mesmo, morreu no meu colo, com minha mão sob seu peito, eu sentindo cada batida do seu coração, o pai segurando sua mãozinha. Foi com muito respeito, dignidade e amor. Fui conversando com ele, falando coisas boas”, conta em seu livro “Até Breve, José”. Encontrar uma forma de elaborar o luto foi um processo minucioso para Camila, em especial por conta da constante lembrança da perda trazida por seu corpo no pós-parto. “É uma adaptação muito difícil, porque você não é mais a gestante, mas não é a mãe que está com um bebê pequeno. Então, quem é você? Você é um limbo entre a mulher que está saudável e fértil e menstruando, e a mulher que está recém-parida. Essa perda de identidade faz parte”. O jeito delicado e sério de Camila não impede as lágrimas de avançarem sobre os olhos castanhos.

Lançado em 2015, o livro de Camila (sobre o filho) é cheio de cores e imagens.

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Beatriz de Aquino & Rebeca Dias

Ainda assim, ela permanece com a fala tranquila, poética, para explicar uma realidade que percebeu ser um grande tabu. “Nós somos uma sociedade que joga tudo para debaixo do tapete. É sempre assim. As pessoas dizem: ‘toma aí um remedinho, um antidepressivo, resolve essa tristeza, e bola para frente, vamos lá’. Não se conversa a respeito”. Essa questão foi tão presente para a jornalista que a partir daí ela decidiu dar cursos de comunicação não violenta. Hoje, sete anos depois da partida de José, continua ministrando palestras e já foi convidada, inclusive, para falar no TEDx. “Eu percebi dois tipos de pessoas no primeiro impacto do luto. Tem as que querem ajudar, mas como não sabem, acabam sendo inconvenientes ou incomodando. Falando coisas como ‘e aí, vamos desmanchar o quarto do bebê?’ ou ‘ah, já, já você pode ter outro filho’. Não é algo que ajuda, porque um filho não substitui o outro. O outro grupo de pessoas é do outro extremo, dos que não sabem o que fazer, então não fazem nada, afastam-se completamente. Por isso me senti muito só, e aí que descobri a comunicação não violenta”. Ainda que Camila, Juraci e Alice dividam o mesmo sentimento de luto materno, o sofrimento, para Camila, é diferente em cada caso. “A nossa dor é pelo

No Facebook, “Movimento Thiago Vivo” tem mais de 7,6 mil curtidas

que nós não vivemos”, enfatiza, ao curvar o corpo para frente da mesa, com os olhos expressivos. “É a história que não aconteceu, então isso de falar: ai, mas era tão pequenininho, então não se apegou muito, nem deu tempo de amar, é justamente o contrário, porque você sofre pelo que você não teve oportunidade de viver com esse filho”. Assim Clea ngela encara o luto. Foram 88 dias de sofrimento com a filha recém-nascida na UTI. A cearense foi vítima, no ano passado, do crime que acomete uma em cada quatro mães durante o parto: violência obstétrica. “Minha filha nunca chorou, nem abriu os olhos. Não chegou a vir para casa, a não ser o corpinho pra gente fazer o velório”. Ela relembra a sala do Hospital da Mulher em Fortaleza, no qual deu entrada às 5 horas. No pensamento de Clea, dar à luz não seria uma tarefa difícil, afinal, tinha outros cinco irmãos e sua mãe a pariu em menos de seis minutos. Mas só depois de decorridas quatro horas de dores que a bolsa veio a romper. Ainda assim, o bebê não conseguia sair do útero. “Doutora, é preciso fazer uma intervenção cirúrgica”, suplicava vezes seguidas o enfermeiro, ao notar que Clea não tinha mais condição de permanecer naquela agonia. “Não, ela vai ter o parto normal. Ela não sabe usar a força certa! Não sabe parir”, repetia a médica responsável. A pressão psicológica se estendeu por horas e acarretou na evitável asfixia neonatal de Rita Francisca. Apesar de tudo, a voz de Clea não carrega mágoa ou revolta. Dona de um sorriso fácil, ela se define como uma mulher alegre, de autoestima elevada e detentora de uma coragem que descobriu fazer parte dela há pouco tempo. Assim como Camila, ela se permite sentir o luto e se preserva quando não tem vontade de falar sobre o ocorrido. “Todo dia eu boto na minha cabeça que é como um alcóolatra, só por hoje. Só por hoje eu não vou chorar, mas é impossível. Eu costumo dizer que não é nem um dia de cada vez, é um minuto de cada vez, porque todo dia eu tenho vontade de voltar e apagar o passado”. Hoje, Clea tem um motivo a mais para lutar. No dia 12 de outubro, seu segundo filho veio ao mundo, em uma recepção regada a lágrimas que misturaram medo, comemoração e esperança de que a vida sempre se renova. “O parto foi divino, fiz uma cesária dessa vez, porque o trauma anterior, no parto normal, foi muito grande. Estou muito feliz, foi muito choro, porque a equipe sabia do ocorrido”. O pequeno Enzo, forte e saudável, mal teve tempo de abrir os olhinhos e já conhecia a história de sua família. “Eu gostava muito de ficar falanNarrativa | 73


do com ele na barriga, dizendo que a mamãe tem um anjinho no céu. Que a mamãe teve um filhinho, mas Deus precisava muito dele, então o levou. E como a mamãe ficou muito triste, Deus mandou mais um amor para a mamãe”, ri, emocionada, com o sotaque cearense embalado em suavidade. “Eu não encaro como uma perda, mas como um ganho. Eu ganhei um anjo no céu, não é pra todo mundo”.

“A VIDA É TÃO FORTE QUANTO A MORTE, E ELA SE IMPÕE. VOCÊ TEM QUE CONTINUAR VIVENDO, MESMO QUE VOCÊ QUEIRA MORRER.”

Enzo é considerado uma criança arco-íris. Esse é o nome dado a todos os bebês que nascem após uma grande perda. Foi uma terapia para Clea poder carregá-lo consigo. Camila, que já era mãe de Pedro - hoje com dez anos de idade - também teve sua filha colorida. Joana deu os primeiros sinais de vida no ventre da mãe três meses após a partida do irmãozinho do meio, instaurando um período de extrema sensibilidade, mas chegando como a redenção de uma época sofrida. 74 | Narrativa

“Explicar para os meus filhos tudo o que aconteceu sempre foi muito natural. Então se a gente está triste, a gente pode ficar triste. Se eles querem chorar, porque descobriram que têm um irmãozinho que morreu e têm saudade desse irmãozinho que nem conheceram, está tudo bem, podemos falar sobre isso. As crianças lá em casa falam muito abertamente sobre o José, com muita transparência, muita verdade”, relata.

Prosseguir, mesmo com dor

“Olha, eu não sei o que aconteceu quando meu filho se foi, mas me veio uma força, uma vontade de fazer justiça, quando tudo que eu queria era ficar deitada”, relata Juraci. Em menos de duas semanas depois da morte de Thiago, ela já estava nas ruas pregando o retrato falado do assassino nos postes. “Eu saía de casa às dez da manhã e voltava às sete da noite. Colei mais de 1.200 cartazes, e isso deu muita mídia”. Foram mais de 52 rostos vistos por Juraci no processo de reconhecimento dos bandidos, mas sua luta não se deu apenas aí. Ela conseguiu fazer com que a prefeitura aumentasse a iluminação da rua. Foi de casa em casa pedindo aos vizinhos que instalassem câmeras, viajou inúmeras vezes para Brasília e pôde até mesmo falar com o juiz Sergio Moro sobre a necessidade de mudar o código penal. Tal foi seu esforço que, neste ano, ela foi convidada pelo Major Olímpio a se candidatar como deputada estadual pelo PSL. “Eu aceitei, mas olha como faço campanha”, ri, conformada. “Enquanto tem gente na rua, eu tô aqui. Eu só queria entrar para ter mais força pra lutar, pra fazer um trabalho bem legal mesmo, mas não tenho força. Eu queria o meu Thiago aqui, e nenhum dinheiro vai me

dar ele de volta”. Ainda assim, Juraci conseguiu 1.407 votos. Mesmo que o resultado seja inexpressivo quando comparado ao dos deputados eleitos, ela segue na luta iniciada em 2014 com o “Movimento Thiago Vivo”, criado, segundo Juraci, com a missão de impedir que outras mães sofram o que ela passou, além de apoiar a segurança pública como prioridade número um do Estado e defender a redução da maioridade penal. Nas camisetas e panfletos do projeto, o rapaz corpulento aparece sentado em um muro, com o semblante sorridente – como sempre estava, segundo a mãe – e com cabelos escuros arrumados. “Ele me chamava de Dona Juju, Dona Jureba. Quando o Thiago chegava em casa, sempre dava beijos nas crianças. Nas crianças”, ri ao se referir aos seus outros dois meninos, hoje com 23 e 19 anos. Assim como Juraci, que a cada dia busca transformar a dor em luta, Sonia Regina, que perdeu seu filho Regis em 2005, também deposita suas forças em um projeto. Nessa atividade voluntária, a missão é auxiliar mães no sertão nordestino. “Faço crochê para as mãezinhas que vão ganhar bebê”, conta, com o olhar enternecedor voltado para a pequena colcha azul recém-acabada que ela ergue com orgulho. “Eu não faço naquela loucura de ter que produzir. Faço numa boa e consigo ajudar muita gente”. Sonia mora na zona oeste, em um apartamento de frente para uma avenida movimentada da cidade. Entretanto, a sensação que se tem ao adentrar o ambiente arejado e espaçoso é de paz. As paredes brancas do corredor e da sala são enfeitadas por dezenas de fotografias agrupadas em vários pontos, e a luz da ampla janela entra sem nem pedir licença. O olhar


Beatriz de Aquino & Rebeca Dias O trabalho voluntário ajudou Sonia a enfrentar o luto.

segue quase que automático pelos porta-retratos, pelas decorações simples e pelas flores coloridas que perfumam o local. Mãe orgulhosa de sua prole, a primeira coisa que ela faz é sentar-se na cadeira da mesa de jantar para mostrar as diversas fotos do filho, segurando cada uma com um imenso afeto. “Olha ele aqui, pequenininho. Era um aniversário dele. Nessa aqui ele já estava um pouquinho maior, olha. Ele gostava muito dos Paralamas do Sucesso, Ramones...”. Enquanto conta as histórias do filho, suas mãos se agitam no ar, espalhafatosas. A voz animada, um tanto rouca pela idade, e o sorriso presente durante toda a conversa não revelam a vida sacrificada desde que engravidou aos 18 anos, solteira. Os preconceitos sofridos dentro de casa fizeram com que Sonia tivesse de enfrentar o mundo cedo, com o

bebê a tiracolo, mas sempre com a enorme alegria que sentia por ter se tornado mãe. “Quando era criança e projetava meu futuro, ficava pensando no quanto eu queria ser mãe. E aí eu pensava que talvez eu tivesse uma moto, e colocaria eles na garupa. E aí eu compraria uma barraca, e iria passear com eles, a gente iria para shows, se divertir bastante, porque seria o meu filho”, sonha. Mais tarde, ganhou Rebeca e Tamara, frutos de dois casamentos que vieram ao fim, e teve de se virar para sustentar as crianças, pagar as contas, cuidar da mãe doente e de Regis, que nasceu com linfedema, inchaço causado por obstrução do sistema linfático. “Ele teve vários episódios de varizes que estouravam e não cicatrizavam direito. Eu corri com ele atrás de médico a vida toda”,

suspira. “Cada vez mais eu sentia necessidade de proteger o Regis, porque ele era uma pessoa muito boa. Batiam nele na escola e ele não revidava, ‘como eu vou bater no meu amigo, eu tenho muita força, eu vou machucar’, falava”. Durante os 30 anos que viveu, Regis enfrentou uma sequência de complicações nas pernas, rins, pulmões e intestino. Foi necessário fazer colostomia, hemodiálise e quimioterapia – após os médicos encontrarem tumores malignos – mas o corpo não aceitou o tratamento. Sonia já não aguentava mais ver o filho sofrer. “Eu rogava pra Jesus ‘eu quero um milagre, eu quero um milagre’. Aí em uma noite que ele fez uma cirurgia. De madrugada eles ligaram pra gente ir lá no hospital”. Quando a mãe chegou, recebeu a notícia de que Regis passara bem na operação, mas dentro do elevador o coração dele não Narrativa | 75


aguentou. “Então eu olhei e falei ‘meu Deus, então o milagre que o Senhor me deu é dar o sossego que ele merece’”. Ainda que o assunto fosse sensível, as palavras fluíam de Sonia com naturalidade. Ela apenas jogou os longos cabelos platinados para trás e arrumou o colar colorido no pescoço. As marcas da idade pareceram se acentuar por um instante, mas jamais negando a beleza da juventude confirmada nas fotos penduradas. “Ai, mas como foi horrível ver o Regis no caixão. Ele estava com um semblante tão bonito, tão tranquilo, mas foi o pior dia da minha vida”, pontuou expressivamente. “Sabe aqueles tubos de água na rua? Quando eu era criança a gente entrava pra brincar e fazia eco. Naquela hora era como se eu estivesse naquele tubo, dentro dali o tempo não passava. E foi assim por muito tempo”.

Carta de esperança

“Minha querida mãe, que saudade e que alegria podermos nos abraçar nesta casa abençoada. Aqui eu estou para confirmar o que você já sabe, o quanto eu estou bem e refeito de tudo. [...] Receba o meu beijo e o meu amor e minha saudade, nas orações a Jesus que lhe deposito em suas mãos. Seu filho Regis”. Sonia terminou de ler a psicografia com um sorriso de ponta a ponta. A cada trecho, fazia uma pausa para explicar as belas palavras do filho, entregue pelos médiuns da casa espírita que frequenta. “O Regis era meu grande companheiro, a presença principal em minha vida. Eu imaginava que minhas filhas casariam, mas o Regis ficaria. Depois disso, vi que não adianta programar a vida. A gente tem os filhos, mas não são propriedade nossa. E sempre que eu falo do Regis, não falo daquela forma chorosa, não! Ele está bem. Hoje ele é meu anjo da guarda e eu preciso ficar bem para que ele também fique”. Por mais que Camila não seja espírita como Sonia, a vontade de se comunicar com seu pequeno José ultrapassa o que qualquer religião pode tentar explicar. “Isso atende minha necessidade de me sentir perto, porque eu acho que o maior medo que nós temos, como mães de filhos que partiram, é esquecer. A gente não quer esquecer, a gente quer lembrar o pouco que temos. No meu caso, 11 dias. Tem mulheres que ficaram meses, ou anos, tem mulheres que ficaram horas, e outras que nem viram o bebê depois que nasceu, mas não importa! Todas querem lembrar, porque a relação de mãe e filho transcende tempo e espaço”.

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A ferida que representa a perda, para todas essas mães, não segue um padrão. Não tem tempo definido, nem hora para doer. Ela simplesmente acontece, e permanece como um lembrete de que a vida precisa continuar. “A vida é tão forte quanto a morte, e ela se impõe. Você tem que continuar vivendo, mesmo que você queira morrer”, murmura suavemente Alice. “Se você perguntar pra qualquer mulher, de qualquer classe social, ‘quantos filhos você teve?’, ela sempre vai falar quantos filhos ela teve, incluindo os filhos que morreram na barriga ou em vida. Ela sabe exatamente quantos foram e quantos anos teriam seus filhos, que dia eles fazem aniversário. Nenhuma mãe se esquece disso”, emociona-se Camila. Hoje, cada mãe segue na sua luta de todos os dias. Juraci, em busca de justiça. Clea com seu segundo filho que veio para iluminar os caminhos tortuosos de uma violência. Alice com o grupo Casulo, Camila com a família e os cursos, e Sonia com o amor pelas crianças sertanejas, cujas famílias humildes enfrentam severas dificuldades. Histórias tão distintas, mas que se conversam e se unem pelo fio da vida e da morte, pelas lágrimas derrubadas de tristeza ou saudade, e por cada dia vencido como órfãs de filhos. Essa força inexplicável, capaz de arrebatar e curar ao mesmo tempo, só poderia vir das profundezas de nosso primeiro lar: o ventre de uma mulher.

“SOMOS UMA SOCIEDADE QUE JOGA TUDO PARA DEBAIXO DO TAPETE. AS PESSOAS DIZEM: ‘TOMA UM REMEDINHO, UM ANTIDEPRESSIVO, BOLA PARA FRENTE! NÃO SE CONVERSA A RESPEITO”


Amanda Areias no voo de balão em Myanmar.

Elas pelo mundo Bruna Liu & Carolina Huertas Amanda Areias tem um sobrenome que lhe faz jus. As areias são formadas por minerais e rochas que, por sua vez, compõem parte de uma praia. Cenário este que instiga o imaginário de muita gente, quando o pensamento é liberdade. Liberdade é a vibração que Areias - não o mineral - propaga. Ela sabia que a vida era curta e o mundo grande. Queria fazer algumas memórias. Foram tantas que foi impossível guardá-las apenas para si. Também não teria graça nenhuma. Se a felicidade só é real quando compartilhada, Amanda resolveu dividi-la com jovens mulheres ao criar um espaço para relatar as várias experiên-

cias que presenciou desde que passou a se aventurar pelo mundo. “Aquilo que dá frio na barriga é o que ainda vale a pena viver”. A frase é a primeira coisa que se lê quando entramos no “Livre blog”, sua página na internet. Reflete todo o conceito trazido aos seus leitores. Sua paixão por compartilhar com as pessoas sobre o que ela vê no mundo é o que mais chama a atenção desde o começo. Nem ela esperava que fosse chegar ao ponto que chegou. Hoje o “Livre blog” alcança quase 26 mil seguidores no Facebook. “Comecei quando eu estava em uma fase bem ruim da minha vida, com diversas questões comigo mesma”, conta. Narrativa | 77


O tempo ruim passou. Hoje Amanda é uma jovem com um alto astral contagioso e uma vontade enorme de motivar outras pessoas. Acumula histórias fascinantes. Aos 25 anos, tem cinco dos seis continentes carimbados em seu passaporte. Nunca teve ajuda dos pais em suas viagens e, diferentemente do que pensam alguns de seus seguidores, não é de família rica. A primeira viagem O ano era 2001. Recém-saída do ensino médio, não sabia o que queria fazer da vida. Decidiu então tirar um ano para si e viajar, mas, como não tinha dinheiro, teve que se preparar. “Nos primeiros seis meses eu trabalhei em um café pra juntar dinheiro e, nos outros três meses, eu viajei. Fui sozinha, tinha 17 anos e fiz 18 lá na Europa”. Desde então não parou. Voltou para São Paulo, mas por pouco tempo. Decidiu embarcar para a Califórnia (EUA), um dos destinos mais “comuns” por onde passou, já que a sua notoriedade na internet é por visitar lugares exóticos e quase sempre sozinha. Etiópia, Tanzânia, Myanmar e Jordânia são alguns dos locais não convencionais da sua rota de viagens. Seu sucesso veio talvez mais pelo fato de como ela transmite o que está sentindo sobre o lugar visitado, ou o modo como conta a história do local, do que pela história em si. “Mesmo quando vou para lugares turísticos, eu tento fazer algo diferente”, explica. Myanmar é um dos lugares mais legais que já foi. O país asiático fica entre a Tailândia e a Índia. Abriu as portas para o turismo há menos de uma década. É por isso que ainda é desconhecido para alguns. E também é a razão do fascínio de Amanda. Uma região intocada, escondida, distante do Ocidente. Considerado o berço do budismo para muitos, é em Myanmar que fica 78 | Narrativa

Bagan, uma das cidades mais incríveis que os pés de Amanda já a levaram. Bagan é a cidade dos três mil templos. É chamada assim, pois realmente há milhares de templos espalhados por lá. Muita coisa para conhecer e sem pressa. Um pôr do sol de tirar o fôlego. Um nascer do sol mais lindo ainda. Passeios de moto sem destino pelos arredores. Conversas - ou tentativas delas - com monges, e uma Amanda que se anima toda vez que volta a lembrar dos seus momentos naquele local. “Passava o dia inteiro assim. Poucos lugares no mundo me deram toda essa sensação de estar exatamente onde eu deveria estar como Bagan. E não é à toa. Qualquer um se sente assim naquela cidade”, destaca. Serengeti, por sua vez, é um dos melhores lugares para se fazer safári. A região se localiza na África Oriental, no norte da Tanzânia e sudoeste do Quênia. Era dezembro de 2017 quando Amanda foi,

“POUCOS LUGARES NO MUNDO ME DERAM A SENSAÇÃO DE ESTAR EXATAMENTE ONDE EU DEVERIA ESTAR COMO BAGAN.”

junto com seu namorado, se aventurar no acampamento dentro de um parque de safári. “Na primeira noite acampamos com várias zebras ao lado. O Dario foi ao banheiro uma hora e, ao sair, deu de cara com um búfalo, olhando pra ele. Saiu correndo com medo e viu vários olhinhos de outros búfalos na mata. Foi engraçado”. Na segunda noite, eles dormiram em outro camping. Chegaram cedo e montaram a barraca na primeira fileira. Jantaram, tomaram banho e foram dormir. De repente, Amanda acordou a 1h15 da manhã, com um rugido ao seu lado. Estava meio sonolenta, então não sabia se era sonho ou realidade. Decidiu esperar mais alguns minutos para entender o que estava acontecendo. Cerca de 10 minutos depois ouviu de novo o rugido, mais alto e mais perto. “Dario!!! Tem um leão aqui do nosso lado”. Foi tudo que conseguiu dizer. Os dois não pregaram os olhos até as 5h30. O tempo todo o animal ficou por lá, procurando alguma coisa para comer, e a primeira barraca do lado dele era a do casal. “Foi de longe a vez que eu mais senti medo na minha vida. Eu tinha certeza de que ia morrer”. Mas sobreviveu, e o caso virou história para contar. Em sua experiência como mulher, os países de origem asiática com influência budista foram os citados como mais tranquilos para se andar sozinha, e a Europa também. Mas ela não gosta de reforçar estereótipos. Acrescenta que uma das coisas mais desagradáveis que já passou foi um assédio dentro de um ônibus na Dinamarca. Certo dia, voltando de madrugada sozinha no ônibus, Amanda foi sentada ao lado da janela. Um menino dinamarquês com todos os clichês nórdicos possíveis (loiro, branco, olho claro) colocou a mão em sua perna diversas vezes,


Arquivo pessoal de Amanda Areias Amanda Areias em suas andanças pelo mundo. mesmo Amanda mandando ele parar. Só parou quando gritou que ele não tinha esse direito e o ônibus inteiro olhou pra ele. Ainda assim, quem saiu do ônibus antes do ponto, morrendo de vergonha, foi ela. A sua vontade não é de desencorajar ninguém. Muito pelo contrário. Mas ela destaca que é importante contar esse outro lado, para que ninguém ache que é só comprar a passagem, pegar a mochila e ir, sem nenhuma preocupação e cuidado. É preciso ficar alerta o tempo todo. O seu objetivo é mostrar a mais mulheres – e pessoas em geral - que é possível sair pelo mundo afora sem precisar de ninguém ao lado, e que é importante se desligar de ideias pré-concebidas

que se tem somente consumindo a mídia tradicional. É preciso ver como as coisas funcionam com os próprios olhos. “Meu foco são as mulheres, mas pode ser para qualquer pessoa que esteja aberta a uma experiência assim”.

Delícias e dores

Assim como Amanda, Luísa Santos tem o sonho de conhecer o máximo possível de culturas. É uma noite de sexta-feira quando ela aparece, no Starbucks em que combinamos, com adesivos e cartazes contra certo candidato que costuma proferir frases machistas. Acabara de sair de uma manifestação, que ainda marchava pela avenida Paulista, e aparentava estar cansada. “Acho que andei umas duas horas, não foi fácil”, diz entre

risos. Logo iniciamos o assunto principal daquele encontro. Luisa é um dos 97 mil membros do grupo no Facebook “Mulheres que viajam sozinhas!”. Lá elas contam as aventuras que vivenciaram, dão dicas de lugares que já foram sem companhia e encorajam as meninas que estão iniciando essa jornada solo. “Eu sempre quis ir para a África do Sul, estudava demais a história de lá e sou meio aficionada pelo Mandela [ex-presidente da África do Sul, líder na luta contra o apartheid]. Na verdade, bastante”, responde, sorrindo, quando perguntamos a razão da última viagem que fez sozinha, em julho de 2018. Luisa começou desde cedo a desbravar o mundo. Aos 16 foi para Europa totalmente desacompanhaNarrativa | 79


Arquivo pessoal de Luisa Santos Para Luisa, viajar sozinha é se conhecer melhor. da. “Quando viajamos sozinhas, nos conhecemos muito melhor”. Sentada à margem esquerda do Rio Sena, bem no cerne da capital francesa, Luísa desfrutava um crepe que comprara recentemente em uma tarde de verão, logo após sair do Museu d’Orsay. O rio banhava Paris e caia no Oceano Atlântico. As suas margens fazem parte do patrimônio mundial da Unesco desde 1991. Englobam uma paisagem tão bela que Monet e Matisse - expostos também no mesmo museu na qual ela havia acabado de adentrar - são apenas alguns dos pintores renomados que outrora se inspiraram nesse cenário. Agora Luísa também fazia parte desse grupo de pessoas. Mesmo não sendo artista, é humana. Já é o necessário para se comover ao 80 | Narrativa

estar presente em um espaço tão importante para a história da humanidade. “Naquele momento eu comecei a chorar, porque não fazia sentido eu estar ali daquele jeito, sabe? Foi surreal”. Ela diz que essas são as melhores experiências em uma viagem. Quando se vive momentos simples e indescritíveis. A garota de longos cabelos castanhos cacheados também diz ter vivido experiências amargas em suas andanças pelo mundo. Ela conta que citar sua nacionalidade é automaticamente um carimbo para receber olhares e comentários maldosos. O estereótipo que existe acerca da mulher brasileira lá fora causa indignação, mas principalmente tristeza à Luísa. Seu semblante muda quando relembra que infelizmente isso

ainda é real. No entanto, nada fica acima da sensação libertadora de se fazer viagens sozinha a lugares desconhecidos. “Além de conhecer novas culturas, você está disposta a conhecer novas pessoas de um jeito diferente”, finaliza.

“QUANDO VIAJAMOS SOZINHAS, NOS CONHECEMOS MUITO MELHOR”.


Anjos ocultos Felipe Madrid & Laís Coquemala Itararé é um pequeno município de 50 mil habitantes, localizado no estado de São Paulo, na divisa com o Paraná. O local preserva cenas e características de uma clássica cidade do interior: homens jogando truco na praça central, ruas de paralelepípedo, um ambiente onde as pessoas se reconhecem e acenam umas para as outras a todo momento. Ao andar pelas ruas, nota-se a quantidade enorme de cachorros e gatos. Os animais vagam em busca de comida em bares e praças da cidade. Viviane de Fátima Lima é uma das habitantes do município. Ela anda pela sua casa de forma simples, de calça jeans e chinelos. Quando está trabalhando, solta seus longos cabelos marrons frisados, mas sempre os prende com um coque, quando está em casa. Tem aproximadamente um 1m55, é consideravelmente magra, sua fala é lenta e busca o humor ao conversar com os outros. Vive em uma casa simples, com sua

mãe, Marli, que tem 64 anos. Marli era empregada doméstica, hoje é aposentada. Viviane tem 44 anos, trabalhou dos 13 aos 24 como babá e, mais tarde, fixou-se como assistente em uma clínica de um médico da cidade. Seu salário é pouco mais que o mínimo, e sua mãe recebe aposentadoria do INSS, graças à aprovação em 2013 da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) das domésticas. “Não sei o que seria de mim sem essa aposentadoria”, comenta Marli, com ar de satisfação, por finalmente poder descansar, depois de longos anos de trabalho árduo. ‘’Hoje posso ir mais na Igreja e posso até ajudar a Viviane com os bichos’’, complementa. Ao olhar para Marli, as rugas retratam alguém que trabalhou muito na vida. Mesmo com a idade avançada é muito forte fisicamente. Tão forte quanto suas opiniões. Já passou por muita dificuldade na vida: teve seus filhos cedo (por volta dos 15 anos). Narrativa | 81


adotados”, explica Viviane. Desde pequena ela pega bichos da rua e leva para casa. Não viaja há muito tempo para garantir o bem-estar diário de seus 14 cachorros e 12 gatos. Não acha que Marli pode dar conta de cuidar de todos os animais enquanto está fora. Com 8 anos de idade, enquanto a mãe trabalhava em três casas, Viviane dedicava atenção aos bichos que acolhia. Seu primeiro animal foi um dos filhotes da gata angorá da vizinha. Certo dia presenciou a vizinha se desfazendo dos gatinhos, varrendo eles para fora. Pegou os dois filhotes, um preto e um cinza. O cinza não sobreviveu por muito tempo. O preto ela achou numa lixeira. “Eu não ia deixar o gato morrer daquele jeito, na minha presença. Peguei ele quando o lixeiro estava indo tirar o lixo. Eu não ti-

nha dinheiro para tratar deles, mas dava um jeito”, conta Viviane. Marli nunca foi 100% a favor do costume da filha de adotar bichos. Quando Viviane pegara o segundo gato, já deixou claro que não apoiava, mas, conforme o tempo foi passando, não conseguiu controlar a filha. Aos 30 anos, Viviane já idealizava a reforma de sua casa, pensando em todos os animais que pegou da rua. Hoje, há mais espaço para os animais do que para elas. Nunca teve filhos, mas sempre viu seus animais como seres que foi destinada a cuidar, como uma mãe. A casa foi reformada há cerca de cinco anos, o quintal lembra um lar de adoção. Os cachorros ficam divididos em espaços ao redor do quintal e, geralmente, são soltos em grupos, para evitar brigas Foto: Laís Coquemala

Era casada com um homem que a agredia fisicamente. Quando Viviane era um bebê, se separou do marido que tinha problemas com o alcoolismo. Marli não teve o que dar para os filhos comerem por um longo tempo. A única opção era fubá. Quando arranjou emprego, tudo melhorou. Além de Viviane, que é a filha mais nova, tem mais dois filhos, todos empregados e bem hoje em dia. A casa de Marli e Viviane é localizada perto de um famoso lago da cidade, chamado de pelos moradores de “laguinho”. A residência se localiza em uma das muitas áreas da cidade, cujas ruas ainda são de terra. Em suas proximidades ouvem-se latidos e se observa o movimento dos gatos pretos pelo telhado. “Sempre pego os pretos, pois são os mais difíceis de serem

Viviane de Fátima Lima com seus cachorros de grande porte. 82 | Narrativa


Foto: Laís Coquemala Agenda em que Viviane registra a morte de cada animal. e Viviane ter um controle maior. “Quando se têm muitos animais, há a necessidade de ordem. Isso é importante até para a higiene deles”, justifica. Os gatos ficam soltos, andam pelos telhados e se espalham para dormir em cima do carro e dos muros. Quando morrem, ela anota em sua agenda o nome do animal que faleceu e a data, para sempre recordar dele. Para Viviane, cada bichinho é único e está aqui por uma razão. Há alguns anos, Viviane e a mãe aboliram carne de qualquer tipo dentro de casa. O vegetarianismo é mais comum nas classes médias e altas, visto que produtos feitos para esse público são caros. Mesmo vivendo de um salário mínimo em média cada, elas optam por não comer animais. A empatia com o mundo dos bichos é vivenciada pelas duas. Viviane acorda todos os dias às seis, sai da cama, toma um copo de água e começa seu dia dando comida para todos os bichos. Quando sobra um tempo antes de ir para a clínica, faz as tarefas básicas para manter a ordem em seu quintal. Limpa o ambiente dos cachorros e solta alguns deles para brincar no espaço maior

do quintal. A relação entre ela e os animais é maternal. Todos têm um nome e um apelido, além de uma história e um tipo de relação com a dona. “Esses bichos são uns bobos, só querem o nosso amor e fazer graça”. Quando se refere aos

ACHAM QUE SOMOS LOUCAS

filhos caninos e felinos, sempre ressalta a característica principal de cada um. “Aquela gatinha é vesguinha. Sempre que vai pular de um lugar para o outro escorrega, cai. É uma tontinha, mas é muito amorosa. Quando chego em casa é a primeira a me receber”, refere-se à gatinha, cujo nome é Vesgutha. Os cachorros são dos mais diversos portes. No fundo da casa, estão os grandes. “Esses são meus bebezões. Esses dois ainda são crianças e aquela é a mãe. Eles dão a patinha quando eu peço, e sempre fazem uma festa quando entro no canto deles’’, explica sorrindo,

apontando para os animais. Os outros que ficam na parte da frente do quintal são de porte pequeno a médio, todos vira-lata e bem cuidados. “Esse é o Tico. Achei ele com piolho de galinha perto da igreja do convento faz dois anos. Só agora ele está se recuperando dos piolhos e das sequelas”. Tico é um dos gatos pretos de Viviane. Enquanto contava de sua história e olhava para ele, o bichano se jogava de um lado para o outro com a barriga pra cima a fim de se engraçar para a dona.

Amizade

Não muito longe da casa de Viviane e Marli, vive Dona Sônia. Elas se conhecem desde que Sônia mudou para o bairro. Não demorou muito para a amizade das duas florescer, devido a algo em comum: o amor pelos animais. Quando ainda era pequena e vivia no Uruguai, Sônia fugia de casa para dormir com os cachorros que encontrava na rua. Tal como Marli, a mãe de Sônia não apreciava a ideia de ter bichos em casa, mas, assim como a mãe de Viviane, não tinha como controlar o amor da filha pelos bichos. Com 106 gatos, 40 cachorros e 4 jabutis em casa, hoje ela tenta vencer a burocracia e transformar sua residência oficialmente em uma ONG. Uma vez por mês, Dona Sônia faz um bazar na garagem de sua casa para arcar com as contas. Todos animais foram encontrados na rua. Muitos são achados em situação grave e há necessidade de cuidados veterinários. Os problemas são os mais diversos: doença do carrapato, animais machucados vítimas de atropelamento, de violência humana, magreza excessiva, tumores, fêmeas prenhas... “As pessoas podem doar o que quiserem para o nosso bazar. Vendemos roupas e objetos usados e sempre precisamos de mais coisas para fazer o próximo e poder pagar a veterinária para cuiNarrativa | 83


Foto: Laís Coquemala Dona Sônia com um de seus 40 cachorros. dar de todos os bichos direitinho”. Na semana anterior fizera uma rifa para pagar as contas acumuladas na veterinária da cidade. Diz com contentamento que conseguiu vender todos os números. “Acham que somos loucas”, afirma Viviane sobre os olhares de julgamento que ela e Sônia recebem por acolher um número grande de animais. Como são praticamente vizinhas, procuram sempre deixar claro uma para a outra que não importa o que as pessoas falem, desde que continuem cumprindo sua missão. Sônia tem 64 anos, pesa aproximadamente 100 quilos e esbanja sorrisos a todo momento em que conversa. No fundo de sua casa, planta as mais variadas ervas para tratar os animais feridos e doentes. Muitas vezes não precisou comprar remédios, porque suas plantas deram conta do recado. A alquimia de Sônia também ajuda Viviane que, há dez anos, estava saindo 84 | Narrativa

de casa com seu carro e atropelou a pata de um de seus gatos sem querer. Nessa época, Viviane tinha atingido o limite máximo de animais na sua casa, eram aproximadamente 20 gatos e 20 cachorros. Como não tinha dinheiro para tratar do gato, recorreu à Dona Sônia, desesperada, sem saber o que fazer com a pata do animal. O simples conselho “passa salmora onde ficou machucado, logo ele se recupera” serviu como uma luva. A combinação entre sal e vinagre salvou a perna do gato de Viviane que, dez dias depois, começara a recuperar os movimentos e cicatrizar o machucado. Em um mês estava recuperado e andando. A Organização Mundial de Saúde (OMS) fez uma pesquisa que mostra que há 30 milhões de animais abandonados no Brasil. A situação de animais de rua é precária em nosso país e reflete diretamente a desigualdade humana. O fato de “uma vida valer mais

que outras” e as diferenças sociais regem os dois mundos: o humano e o animal. De um lado vemos pessoas que vivem com pouco dinheiro e pegam vira-latas da rua para lhes dar segurança. De outro, pessoas que ganham mais que a grande maioria da população e financiam o mercado de luxo de animais, alimentando ainda mais essas diferenças. Mesmo com empecilhos financeiros, Sônia e Viviane saem de casa com comida no carro todos os dias para alimentar os animais ao redor da cidade, que não podem acolher em casa por falta de espaço e dinheiro. “A cidade tem melhorado. Antigamente apenas eu e Sônia alimentávamos os cachorros nas praças. Hoje vejo várias pessoas ajudando, e cada vez mais conseguimos pelo menos matar a fome dos cachorros e gatos que não podem ser acolhidos”, conta Viviane, com um ar de satisfação.


Cadáver que passou pelo procedimento de tanatopraxia.

Servos de Thanatos Giovanna Delazari & Manuela Martins Do ponto mais alto do Monte Olimpo é possível escutar o descontentamento de milhares de mortais sobre a finitude de sua existência. As vozes reclamonas ecoam pelo espaço e pelo tempo. São recebidas por Thanatus, deus da morte na mitologia grega. Em face de um acontecimento certo e tão temido por muitos, algumas pessoas decidiram criar uma série de pequenos rituais para tornar o ato de morrer “agradável”, se é que podemos usar esse termo. E é disso que trata a tanatopraxia: um conjunto de práticas aplicadas a um corpo sem vida, que tem como objetivo retardar o processo de decomposição e disfarçar os odores do cadáver.

Quando decidimos nos aprofundar neste cenário, concluímos que o primeiro passo era estudar, afinal de contas, qual é a melhor forma de saber tudo sobre um assunto? Pesquisando, encontramos muitos sites que abordavam a temática, com perspectivas tão distintas que nem parecia que estavam falando da mesma coisa. No meio dos links descobrimos uma escola chamada Thanatology. Entramos em contato por intermédio do WhatsApp e quem nos respondeu foi Ellen, de forma empolgada. Em apenas alguns minutos a suposta moça (nunca chegamos a ver sua aparência) nos Narrativa | 85


direcionou para sua responsável. “Vou te passar o número da Nina. Pode chamar, amor. Se precisar de algo, estou aqui”. Talvez seja de se estranhar essa animação vinda de alguém que lida com o luto todos os dias, porém, foi assim que fomos recebidas. Logo mandamos mensagem para o telefone que tínhamos. Descobrimos que o empreendimento diferentão nasceu com o propósito de ensinar a tanatopraxia e a maquiagem em defuntos. A dona Carolina Maluf, ou Nina, como todos a chamam, exerce a mesma função há cerca de dez anos. Com seus cabelos pretos e sobrancelhas arqueadas, Nina parece extremamente confortável para lidar com o tema. Sua tatuagem diferente no peito chama a atenção. Como Nina não conseguiria nos conceder a entrevista pessoalmente, elas nos apresentou a Victor Augusto Aderno, um de seus funcionários e professor na Thanatology, para que pudéssemos conhecer o ambiente de trabalho. A ideia era que ele mesmo nos apresentasse todas as partes do processo e esclarecesse quaisquer dúvidas que tivéssemos. Mais uma vez, um novo contato salvo na agenda do celular. O rapaz de 25 anos de prontidão nos respondeu, e disse que conseguiria encontrar uma clínica (entre as muitas nas quais leciona) que estivesse disposta a conversar conosco. Dias depois, o encontramos pessoalmente numa travessa próxima ao Shopping Internacional de Guarulhos.

Carro de passeio ou rabecão?

A primeira vez que vimos Victor foi impactante. Não sabemos dizer se foi por causa dos inúmeros piercings, pela barba recortada, pelo cabelo longo, pela tatuagem demoníaca que rasgava seu peito ou por causa dos livros de satanismo que ele portava. O jovem, 86 | Narrativa

que era a combinação perfeita entre timidez e ousadia, nos levou ao estacionamento do shopping, onde iríamos esperar o dono do negócio. Alguns minutos depois, o proprietário da clínica chegou, e Vcitor nos fez a seguinte pergunta, enquanto abria a porta do veículo: “Vocês gostam de adrenalina?”. Respondemos rapidamente que sim, e, com um sorriso no rosto, ele disse: “Que bom, porque quem vai dirigir é um agente funerário, estejam preparadas”. Ele estava certo. Mal afivelamos o cinto e o motor já estava contando giros, o que fez com que chegássemos ao nosso destino em metade do tempo normal para se percorrer o mesmo trajeto. Quando saímos do veículo, pudemos conhecer seu motorista, Averilton Gonçalves dos Santos. O homem negro, que aparenta ter menos anos do que realmente tem, é extremamente alto e comanda a Tanato 3A, clínica em que estávamos. Seus trejeitos demonstravam suspeitas sobre o nosso trabalho, e sempre vamos lembrar da velocidade com que ele conduzia o carro. Era impressionante! Estávamos na frente de um prédio inteiro branco. Do lado direito havia um largo corredor que guiava até uma porta nos fundos. Do lado esquerdo havia uma escadaria, que subia para a parte administrativa. Seguimos pelo lado esquerdo, um pouco apreensivas, mas firmes e fortes. Victor havia nos explicado anteriormente que só poderia demonstrar como faz as coisas, se alguém morresse no período em que ficaríamos ali, pois o corpo chegaria “fresco”. É terrível dizer isso, mas desejamos a morte com muita força.

O time

Adentramos um espaço igualmente branco, e, logo em seguida, fomos direcionadas para a equipe. Todos os presentes estavam senta-

“QUEM É MAIS FRIO? EU QUE LIDO COM UM CORPO SEM VIDA, OU O MÉDICO PEDIATRA QUE VÊ UMA MÃE EM PÂNICO, PORQUE O FILHO QUEBROU O BRAÇO, E SÓ MANDA PARA A CIRURGIA?” dos em cadeiras de couro, conversando casualmente. Fomos apresentadas à Maria Aparecida da Silva, que trabalha como assistente administrativa na Tanato há três anos. A moça, muito simpática e tranquila, contou que cuida de suas três filhas e geralmente chega cedo no trabalho, por volta das seis horas da manhã. Suas mãos se agarravam uma na outra, enquanto ela explicava sua função: planilhas, documentação e contabilidade. Maria, que anteriormente trabalhou por cerca de 12 anos como vendedora de tecidos, disse que não tem quase nenhum contato


Divulgação/Escola Thanatology Cadáver que passou pelo procedimento de tanatopraxia.

com os cadáveres. “Não mexo com os corpos, fico longe deles, desço raramente para a sala técnica. Mas se precisam de ajuda eu vou e faço. Meu negócio é com contas e papeladas”, destacou. A assistente ainda disse que no começo tinha mais medo, por causa das “brincadeiras bestas’ que as pessoas faziam. Ela confessou que até hoje não consegue ficar sozinha com um corpo. Quando questionada sobre o impacto da profissão na vida pessoal, respondeu: “Minhas filhas nem ligam mais, só ficam curiosas. Uma delas, inclusive, quer ser técnica. Não é medrosa como eu”. Em seguida começamos a conversar com outro Victor (Victor Hugo de Freitas), que exerce a função de agente funerário. Ele se balançava constantemente, encostado na cadeira giratória. Parecia nervoso. Seus óculos pendiam no nariz. O rapaz revelou, aos risos, que já foi até agredido. Segundo o agente funerário, que trabalha na Tanato há dois anos, seu papel é “dar todo o apoio necessário para a família desde o primeiro contato”. Quando perguntado sobre casos que marcaram sua mente, lembra de um colombiano que foi assassinado. Segundo ele, atearam fogo no corpo, porém só metade dele queimou. Sobre situações engraçadas, recorda de um caso de um cara que foi para a praia com a amante e no primeiro mergulho morreu afogado. “A gente fica frio, e consegue até rir disso”, comentou.

A terceira pessoa da equipe é Andreia Milagres de Souza, 40 anos, que trabalha como técnica. A mulher, que antes era agente de combate à dengue, hoje é uma das funcionárias que põe a mão na massa. “Quando o corpo chega, tem que ver se é corpo aberto ou fechado, e a dosagem certa de formol para fazer a preparação. Realizamos uma incisão nas coxas para achar artéria no corpo fechado. No caso do corpo aberto, as vísceras são retiradas e colocadas em um balde para ficar de molho”, afirma, com naturalidade. Andreia diz que os casos que mais mexeram com ela foram de crianças, mais especificamente duas meninas. A primeira, de 5 anos, tinha uma doença de pele grave e “parecia o ET, do filme mesmo”. A segunda, com 8 anos, tinha uma grande semelhança com a filha da funcionária. Apesar dos pesares, ela conclui sua fala dizendo que é prazeroso fazer o que faz. “Você ver o resultado do seu trabalho depois é gratificante. Às vezes chegam corpos que dão muito trabalho. A família jurava que ia ser caixão lacrado. Então, eles te agradecem. A gente ganha o dia quando ouve: ‘Parece que está dormindo’”. Por fim, conversamos com Averilton, o nosso motorista, técnico e dono da Tanato. O homem diz que saiu do ramo de contabilidade após sua curiosidade pelo curso de tanatopraxia. Conta que só fica na profissão quem realmente gosta, porque, para Narrativa | 87


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