EDIÇÃO 20 - 2019
REVISTA LABORATÓRIO DA DISCIPLINA GRANDE REPORTAGEM
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS
Andares da vida - Por Fernanda Varela, Helena Garcia, Isabella Baliana, Juliana Caveiro
Acorda. Gabriela Catan
Renovar-se - Beatriz Gonçalves
A Sinfonia da Dor - Beatriz Mazur Barbosa
O Palco Invisível - Gustavo Beckenkamp
Transformação e mudança: guias para um jovem universitário cristão - Isabela Bumerad
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE Reitor: Prof. Dr. Marco Tullio de Castro Vasconcelos Pró-reitor de Controle Acadêmico: Prof. Dr. Cleverson Pereira de Almeida Pró-reitor de Extensão e Cultura: Prof. Dr. Marcelo Martins Bueno Pró-reitora de Graduação: Profa. Dra. Janette Brunstein Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto Pró-reitor de Planejamento e Administração: Prof. Dr. Luiz Carlos Lemos Júnior
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS Diretor: Prof. Dr. Marcos Nepomuceno Duarte CURSO DE JORNALISMO Coordenador: Prof. Dr. André Santoro SUPERVISOR DE PUBLICAÇÕES Prof. Dr. José Alves Trigo EDITOR Prof. Dr. Carlos Sandano
Em cada andar encontra-se uma história inspiradora sobre a trajetória dos imigrantes africanos até a capital de São Paulo
Fernanda Varela, Helena Garcia, Isabella Baliana, Juliana Caveiro
D
ossô, Teresa, Angélica, Aminata, Ke n n e dy, P e t e r , B aj gou r… a lista é longa e repleta de nomes. Muitas Teresas, Angélicas, muitos Dossôs e Kennedys, todos juntos e misturados, perambulando pelas
ruas da metrópole que, a cada dia mais, torna-se berço de inúmeras culturas. Segundo dados da Secretaria Nacional de Justiça, 2017 foi o ano com mais pedidos de refúgio, 33.866 no total. Desses, 4.785 foram realizados por africanos. Quase cinco mil nomes cruzaram fronteiras, um oceano inteiro, barreira de língua, de vida e de crença, além, é claro, de burocracias. Hoje escrevem um novo capítulo de suas histórias, agora, em terras onde “canta o sabiá”... ou melhor, na terra da garoa, onde o
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ruído das buzinas, motores e passos apressados se convergem, formando a canção que embala os dias e as noites paulistanas. O cenário já tinha sido traçado, na mente e no papel. República, zona central de São Paulo. Era manhãzinha de uma Sexta-feira nublada e chuvosa - São Paulo tinha que fazer jus ao seu famoso apelido - e lá estavam: quatro aspirantes a jornalistas, defendendo o brasão de repórteres universitárias, impelidas
por um espírito de aventura, em busca de boas histórias sobre africanos que decidiram tentar a vida na capital da “oportunidade”. Era um universo novo à espera, que apesar de tão perto geograficamente, permanecia tão distante da realidade das quatro meninas, que ao se encontrarem na estação da República, por volta das oito e meia da manhã, combinaram de traçar o destino, a Rua 24 de Maio, mas não o roteiro do que poderia acontecer até lá. Aventura! Jornalista rumo à reportagem é assim, não é mesmo? Não demora nada para a animação tomar conta ao nos depararmos com os primeiros imigrantes que arrumavam seus quiosques e tendas na rua. Tiravam panos, tecidos coloridos, acessórios, máscaras, e começavam, aos poucos, a ajeitar suas mercadorias para mais um dia de labuta. Sem perceberem, fizeram com que as expectativas dessas jovens universitárias aumentassem a cada produto colocado à venda. Pouquíssimos minutos depois de andar da estação de metrô mais próxima, encontramos o pequeno, embora muito significativo reduto da cultura africana na região central da capital paulista: o Centro Comercial Presidente, vulgo Galeria do Reggae.
Chegando ainda acanhadas nessa pequena África brasileira, vimos que a estrutura era antiga, e em alguns pontos, até enferrujada. O local estava mal iluminado, contando somente com a luz nublada que entrava pela parte da frente do prédio. A escada rolante fechada, e para a nossa surpresa e decepção, as lojas também. Andando de um lado pro outro, sem rumo certo, olhando uma loja aqui e outra ali, vendo tudo apagado e desabitado, decidimos investir em uma solução inesperada. É aqui que Sirlene, a recepcionista do lugar, entra na história. Essa prestativa senhora, de olhar sutil, e voz fininha, carregada de um sotaque gostoso de ouvir, não devia ter mais de 55 anos. Com licença... Você sabe se tem imigrantes africanos que possuem lojas aqui? Moça, aqui é tudo de africanos praticamente. Só tem eles. Até chamam aqui de Galeria África. Eles ainda não abriram o comércio, chegam um pouco mais tarde. Só restava esperar. Sirlene se revelou uma verdadeira conhecedora da realidade de muitos dos imigrantes que trabalhavam ali. Com alguns minutos de conversa, e com as devidas apresentações feitas - nome,
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objetivo da visita, o roteiro de praxe - ela nos deu um relatório completo do local e dos comerciantes que “habitavam” a Galeria. A funcionária contou que muitos africanos conheciam o local, e também desejavam uma oportunidade de mostrar seu trabalho e ganhar seu próprio dinheiro ali. Eram de variadas profissões, “têm cabeleireiros, costureiros, cozinheiros, lojistas e por aí vai”. A realidade dos fatos vai ao encontro desse cenário, de acordo com a Polícia Federal, 292.288 estrangeiros, entre os anos de 2001 e 2017, decidiram tornar o Brasil sua casa. Entretanto, mesmo o volume sendo alto, não há registros de uma quantidade exata de pessoas que se mudaram para a metrópole desde essa época, principalmente, porque muitas entraram de forma ilegal no país. Pois bem, Sirlene, nos deu orientações riquíssimas enquanto aguardávamos a chegada dos estrangeiros. Entre um e outro que se aproximava, ela dizia: “esse aí é de lá, trabalha em tal andar”, ou “olha lá, essa também é lá da África, Congo, se não me engano... minha amiga!”. Nosso receio e timidez ainda eram grandes. “Como fazer com a barreira
da língua? E se não entenderem o português direito? E se não quiserem abrir suas vidas conosco?” E se… E se… Olha! - alerta Sirlene - Tá vendo esse moço chegando? Ele é costureiro, tem uma loja, pode falar com vocês! - e sem nem percebermos, a “quinta” integrante do grupo, toda engajada, já chamava a atenção do homem que caminhava tranquilamente em nossa direção. TÉRREO O senhor Dossô aparentou estar tão tímido quanto nós todas juntas. Pego de gaiato quando chegava para abrir o ateliê que mantém no terceiro andar da galeria, o costa-marfinense, de 58 anos, apesar de não falar bem assim o português, aceitou o desafio de conversar conosco sobre sua trajetória como imigrante. Sirlene tratou de fazer as honras em nome do grupo. “Elas são estudantes e querem saber mais sobre a sua vida, o que você faz, seu trabalho…”. A secretária, e agora “guia” na matéria, também ajudou “traduzindo” algumas coisas para o senhor que, meio sem jeito, afirmou, antes de tudo, não falar bem a nossa língua. Ah, se alguma de nós arranhasse o francês... Dossô tem família. Uma esposa e cinco filhos, todos estão na Costa do Marfim. Há cerca de dois anos ele vive longe de todos eles. “Todo domingo eu falo com minha família inteira”. Esticando os lábios num tímido sorriso, ao mencionar os familiares, Dossô nos revela um dente de ouro escondido. O marfinense manda uma parte dos recursos que ganha, com o trabalho no ateliê, para ajudar a família com as despesas da casa. Em sua terra natal, não tinha dinheiro suficiente para sustentar todo mundo. “Eu vim pra cá pra ser costureiro, como eu era na Costa do Marfim”. Mas nem
sempre foi assim. Antes de aterrissar em terras brasileiras, Dossô viveu cinco anos na Venezuela. Lá, não trabalhava com costura, mas fazia sapatos em uma grande fábrica. Não podia mandar o dinheiro para sua esposa pra ajudar a pagar a escola, “por causa de problemas...” “viver lá não é bom, tem muito custo”. Foi preciso mudar novamente. Dessa vez, veio para o Brasil e se estabeleceu em São Paulo. Começou a trabalhar em casa com uma máquina de costura comprada, mas percebeu que não estava funcionando. Ninguém via, tocava, experimentava, ou sequer conhecia suas confecções, e com isso, não conseguia clientes para se manter. Quando ficou sabendo da existência da Galeria do Reggae, pediu ajuda para conseguir um espaço no local. Deu certo! Hoje, em cima de um salão de produtos para cabelos afro, fica a pequena, porém digna, oficina de costura de Dossô, que nos convidou para conhecê-la de perto. Subimos cinco íngremes degraus até a parte superior da loja 19, e encontramos de primeira uma
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arara onde estão penduradas as saias, vestidos, bermudas e camisas coloridas confeccionadas por Dossô. Os tecidos, com os quais produz as roupas, são comprados por ele próprio, e vêm de todo lugar. “Angola, Costa do Marfim...” É possível então, neste momento, ver não só um, mas três dentes de ouro, escancarados num sorriso bem mais aberto, sorriso de quem sente orgulho do que faz, e faz bem feito! Este simpático costureiro ainda não possui o visto permanente, e por isso, não pode voltar para rever a família. Mesmo assim, afirma sem hesitar que ficar aqui é melhor, pois consegue sustentar sua esposa e filhos. “Agora eles podem ter roupa, comida, tudo, lá na Costa do Marfim, eu não poderia ajudar assim. Por isso, agora está melhor que antes”. Quando perguntado sobre a saudade, Dossô não esconde seu maior sonho: “Quando tiver documento, minha esposa vai vir pra cá, primeiro. Depois, meus filhos. Porque eu quero ficar aqui, gosto muito daqui, é tranquilo. Só falta eles”.
3° ANDAR Ao longo do percurso de sobe e desce pela Galeria, vimos que era possível se deparar com dois tipos de pessoas, os imigrantes solícitos, abertos a uma boa conversa e “curiosos” em saber o que quatro meninas faziam tão cedo naquele lugar, zanzando meio sem jeito, e aqueles que, muito desconfiados, mal respondiam o seu nome. Pegando a “manha” aos poucos, contamos com o apoio da Sirlene para saber com quem poderíamos conversar… Ela indicou Angélica, cabeleireira, dona do salão Jalekatu, que fica no terceiro andar da galeria. Subimos. Chegando perto do salão, lá estava Angélica, já na ativa, trançando os cabelos de uma cliente. “Angélica?” - saudamos - Você que é a Angélica? Ela logo afirma com um olhar altivo. Seria Angélica uma personagem do primeiro grupo, solícita, ou do segundo grupo, totalmente fechada a um pequeno papo sobre sua vida no Brasil? Somos estudantes de Jornalismo e estamos fazendo uma matéria… aquele bordão de sempre. Eu não posso contar minha história respondeu ela, abruptamente, assim, sem mais nem menos. Quase acreditando que a entrevista tinha terminado por ali, entra em cena uma menina esguia, com ar e segurança de uma modelo de passarela. Ela é Aminata, 18 anos, filha de Angélica. Mas podemos fazer um resumo afirmou Aminata, que se prontificou a nos contar, até então de maneira “resumida”, a história de sua mãe, e a dela também.
As duas preferiram narrar a dura jornada que tiveram até aqui em inglês, a língua oficial falada em seu país, Serra Leoa. Angélica ainda não completou 40 anos de idade, mas já tem uma história que pode ser transformada em livro, filme, ou uma peça de teatro. Pertencentes à religião muçulmana em seu país de origem, a serra-leonense “passou por muita coisa desde quando era pequena”, nos contou Aminata sobre o passado da mãe. Quando fez o uso do termo “muita coisa”, Aminata não estava, nem de longe, exagerando. Sua mãe, uma jovem pertencente, até então, aos 46% da população muçulmana de Serra Leoa (maior religião do país), casou-se muito nova, deu à luz muito nova, e também sofreu muito nova. As lágrimas começam a rolar no rosto da jovem, e as vozes de ambas, mãe e filha, embargam. Compreendemos e deixamos que Aminata, em meio a suspiros espessos que tentam sustentar o peso de suas palavras, recupe o fôlego. Primeiro - continuou a menina - ela (Angélica) viajou para Cabo Verde, só depois que saiu da África. Ela viveu em Cabo Verde por muitos anos, antes dela vir para cá. Ela mudou por causa de violência. Todas nós sabemos que muitas mulheres passam por isso em todo o mundo. Mulheres sofrem violências. E a mulher africana, e muçulmana, também. Aminata conta que sua mãe passou por uma tradição no seu país, a mutilação genital. O rito parece ser algo distante do mundo real, em pleno 2019, quando pensamos que se trata de um procedimento onde parte do clitóris e do sistema genital feminino é arrancado da mulher em uma cirurgia dolorosa, e definitivamente não autorizada, muito menos
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desejada pela “paciente”. Uma ação desumana, que acontece em vários países, como Uganda, Quênia e Egito. Angélica está aqui para provar! As dificuldades que acompanhavam Angélica desde a sua juventude, continuaram a seguindo de perto em seu novo tempo em terras brasileiras. Ela mesma tomou a liberdade de narrar a experiência que teve como recém-chegada ao Brasil. Eu sofri, fiquei só com uma calça e um sapato, com frio. A janela aberta entrava muita água quando chovia. Eu chorei demais, menina. Eu chorava muito. Eu tinha só um copo para tomar água. Eu só comia um pão a cada dia. Se comia um hoje, tinha que esperar para comer outro só amanhã. Bem, graças a Deus, Deus me ajuda. A serra leoenense chegou ao Brasil de mãos vazias. Primeiro destino: Fortaleza. No entanto, Angélica percebeu que quase nenhum imigrante africano se estabelecia na capital cearense. Segundo (e definitivo) destino: São Paulo. “Não tinha nada quando cheguei aqui, mas graças a Deus que a Cáritas me ajuda muito”, diz Angélica, emocionada, mexendo os punhos em sinal da força com que veio, e com que continua a lutar aqui no Brasil. A Cáritas Brasileira é uma organização social que visa defender os direitos humanos e a construção de uma sociedade justa e solidária. A entidade trata, dentre muitas outras iniciativas, de acolher e prestar o suporte necessário aos migrantes e estrangeiros recém-chegados à pátria do “brado retumbante”. Eu cheguei lá (na Cáritas) - e pedi trabalho pra eles. Eu disse: ‘por favor, você tem um trabalho pra me ajudar?’... Eu não quero chorar mais. Bem, graças a Deus agora eu tenho meu lugar.
O desejo da Angélica era não sofrer mais, não chorar mais. Havia deixado marido e quatro filhos em Serra Leoa. Fez de tudo o que pôde para trazer sua única filha menina, Aminata, para junto dela, antes que ela completasse a idade necessária para se casar. Angélica sabia que a probabilidade do destino de sua filha ser igual ao dela era imensa. A serra leoenense armou um verdadeiro plano para “raptar” Aminata em Serra Leoa e trazê-la ao Brasil, com a ajuda do Cáritas. “Eu pedi ajuda pra uma menina chamada Gabriela pra trazer ela (Aminata) pra cá. Eu não queria que ela ficasse lá, porque senão ela teria que passar pelas nossas tradições. Porque se ela ficasse lá, teria que passar por uma circuncisão, ela teria que se casar forçadamente com um homem que ela não conhece, que ela não gosta”. Pelas tradições muçulmanas na África, homens mais velhos podem escolher suas noivas quando elas ainda são meninas pequenas, às vezes até bebês. Há interesse econômico (o dote) envolvido nos laços matrimoniais, e o noivo tem permissão para escolher até quatro esposas ao longo da vida. Jovens são prometidas em casamentos às vezes sem nunca ter visto o pretendente, às vezes sem saber que ele pode ter o dobro da idade delas… A mutilação genital feminina é um rito que, segundo a cultura, traz e assegura a pureza da noiva e futura esposa. A mulher perde o prazer sexual, não recebe os estímulos naturais que o corpo dela foi feito para produzir… E assim o casamento é firmado, com a possibilidade de traição, por parte da mulher, eliminada. Angélica viveu tudo isso de perto, e lutou para proteger a única filha que tinha, de um destino debaixo desta dor. Obviamente foi um plano repleto de riscos… “Foram dois homens para lá, e eles e minha irmã roubaram essa menina. Eles tiveram
que se esconder embaixo do carro. Se esse carro dá partida naquele dia, eu perco ela”. As lágrimas continuavam a cair no rosto das duas - e nos nossos rostos também. Hoje, Angélica tem seu próprio salão e faz penteados, cortes, e tranças para conseguir seu dinheiro e sustento. Marcada na pele por atrocidades, Angélica almeja um futuro melhor... para ela, sua filha e todas as mulheres. Não foi à toa que enxergamos na jovem Aminata o poderio de uma supermodelo no início de nossa entrevista. Ela desfilou, no dia 25 de Agosto deste ano, representando Serra Leoa, seu país de origem, no Miss Simpatia África, desfile que ocorre em São Paulo e reúne diversos músicos e artistas vindos de países africanos. Nele, diversas modelos do continente concorrem pelos prêmios, entre eles estão: Miss África Brasil, Primeira Dama, Segunda Dama e Miss Simpatia, sendo este último conquistado pela jovem. Apesar de ter ganho o título, o sonho de Aminata vai muito além do que ganhar uma faixa brilhante e uma coroa. “Eu quero mostrar para outras meninas que elas também podem, do que são capazes de fazer. Então, eu fiz isso por causa de todas nós, de todas as garotas. Eu estou tendo a chance de fazer isso, mas tem algumas que não têm a chance por causa dos pais que não permitem que façam isso. Então eu fiz isso para dá-las a coragem e a força, e também para motivar os pais a deixá-las se tornarem o que elas querem”. 2° ANDAR Apenas um andar separa Angélica e Aminata de sua conterrânea, a cabeleireira Bajgour, de 53 anos. Mesmo com pouca distância física, em matéria de vivências e, principalmente, visão em relação à sua terra natal, Serra Leoa, a distância
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é tremenda, mostrando claramente a complexidade existente dentro dos países do continente africano. Bajgour nos chamou para conversar. Foi assim, bem espontâneo. Ainda sem clientes no pequeno salão de beleza em que trabalha, no segundo andar do Centro Comercial Presidente, a cabeleireira, dona de um olhar e uma fala desconfiada, aceitou com toda a pompa ser entrevistada sobre sua trajetória até a capital paulista. As primeiras respostas são aquelas “curtas e grossas”. Sustentamos constantemente, durante o início da conversa, a impressão de que Bajgour desconfiava do porquê estávamos ali fazendo aquela série de questionamentos sobre sua vida. Impressionante como o método da entrevista como um diálogo, discutido tão constantemente em sala de aula (salve Cremilda Medina), é extremamente importante e vital para alcançarmos informações mais profundas sobre a história de nossos entrevistados. Tudo depende deste laço, criado em algum momento da entrevista. Temíamos não criá-lo conversando com Bajgour naquela manhã… Faz treze anos que a serra leonense vive no Brasil. E não há drama sobre a saudade de seu país, marido, e filhos. “Vim pra cá, gostei, e fiquei. Eu saio e volto, saio e volto”. Toda a família dela ainda está em Serra Leoa. Só dois de seus filhos, o mais velho de 34 anos, e o pequeno, de 12, já não vivem mais no país africano. O primeiro vive nos Estados Unidos, casado, com filha, trabalhando na terra do Tio Sam. O mais novo vive e estuda aqui no Brasil. “Só a minha bebê está lá em Serra Leoa”. Ao afirmar isso, contando um pouco sobre os motivos que fazem a cabeleireira retornar tanto ao seu país, trocamos olhares confusos com
tal informação. Teria Bajgour deixado uma neném em Serra Leoa para vir para o Brasil tentar uma nova vida? Logo a confusão é esclarecida. A “bebê” a qual Bajgour se refere é sua filha do meio, a única menina, que tem 25 anos de idade, e ainda está em Serra Leoa. Eis então o ponto crucial desta entrevista que, além de criar o “laço” do diálogo mais desenvolto entre todas nós, também nos deixou completamente curiosas. Sua filha quer vir para o Brasil também? Ela quer vir pra cá, mas eu falo pra ela ficar lá. Eu tenho medo. Porque ela é novinha igual a vocês. Aqui mulher sofre muito. Por conta deste medo que sente em ser mulher aqui no Brasil, Bajgour defende a estadia da filha em Serra
Leoa até ela terminar os estudos. “Ela vai sair de lá, estuda lá e depois ela vai pro Canadá pra continuar”. O custo elevado para pagar os estudos aqui no Brasil, também faz com que a cabeleireira prefira manter sua “bebê” longe do país onde vive há mais de uma década. Esse relato nos faz refletir em como uma nação é repleta de multifacetas e características. Um só lugar, Serra Leoa! Duas mulheres e perspectivas tão opostas. Angélica raptou sua única menina para ter no Brasil a chance de uma vida livre que, provavelmente, não desfrutaria na África. Bajgour, por outro lado, defende a permanência de sua única filha no mesmo país da África Ocidental, onde acredita ser mais seguro e estável para seu crescimento e educação. Definitivamente, é preciso conhecer histórias como estas
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para ver o quanto as generalizações não cabem dentro de um continente tão vasto, diverso e complexo como a África. SUBSOLO A loja do tanzaniano Peter fica tão escondida no subsolo da Galeria quanto ele mesmo atrás do balcão, dando alguns telefonemas. Ele tem 53 anos, uma esposa, três filhos brasileiros, de 17, cinco e dois anos de idade, e uma Lan House que gerencia no Centro Comercial Presidente. Nos aproximamos meio acanhadas do estabelecimento pouco habitado, tomado pelo forte aroma de incenso e pelos cantos árabes que tocavam sem parar. Peter se mostrou um homem de poucas palavras, e muito reservado. Ele deixou a Tanzânia, país situado na chamada África Subsaariana, já
tem vinte anos. O plano inicial era chegar ao Brasil, onde tinha alguns amigos, e partir com eles para os Estados Unidos. “Eles foram e eu fiquei”. Ele não se estendeu muito sobre os motivos que o levaram (ou o forçaram) a ficar por aqui. Na verdade, Peter decidiu não se estender muito em quase toda a entrevista. Uma ligação ali, e um atendimento a um cliente que saía da cabine de telefonemas aqui, interrompiam os momentos em que tentávamos desenvolver uma conversa mais profunda com ele. Apesar de não apresentar queixas quanto ao seu país, descobrimos que Peter gosta do Brasil. As coisas funcionaram para ele aqui, e muitas pessoas buscam sua loja para telefonar para inúmeros países da África. Há duas pequenas cabines contendo um telefone de fio, onde na parede está pregado um papel contendo os valores cobrados por minuto de ligação. Alguns centavos por minuto, preços diferentes para cada país do continente africano. Malawi e Togo eram alguns dos mais caros. Em 2013 os documentos brasileiros oficiais do estrangeiro Peter ficaram prontos, e desde então, ele sustenta muito bem a família em São Paulo. Ele afirma que não tem muito como deixar a saudade da terra natal bater, já que seus retornos à rica e selvagem Tanzânia são bem frequentes. Peter aparentou não estar muito pra conversa, e nós, percebendo isso, nos retiramos e deixamos o tanzaniano continuar a ouvir sua música, e atender seu telefone em paz. TÉRREO Assim como Peter, Teresa, uma cabeleireira angolana de 43 anos de idade, que encontramos no primeiro dia de entrevistas, não estava muito afim de papo quando viemos com a história de conhecer um pouco mais
sobre sua vida aqui no Brasil. Diferentemente do tanzaniano, porém, a moça tímida, que veio ao Brasil uma vez, em viagem, e decidiu ficar permanentemente, há seis anos e meio, parecia muito concentrada no trabalho que estava fazendo em uma de suas clientes. Teresa, apesar de fechada, é simpática e estava se divertindo com a situação - mesmo não demonstrando abertamente. Deixamos que ela mesma se apresentasse, e a angolana, calmamente, começou a falar enquanto trançava os cabelos de uma moça. “Eu vim aqui só pra conhecer o Brasil. Depois de vir para cá e ver que tem vários africanos que vieram para trabalhar, conheci comerciantes [africanos]. Conheci uma que ia para a Nigéria pra comprar produtos chineses e vender aqui. Eles vão para outros países também pra comprar produto. Teve um momento que eu tive que passar aqui no Brasil para ver como funciona também e aí decidi ficar”. E foi assim, decididamente, que a nova vida de Teresa começou. É fácil - e até genérico- pensar que o principal motivo que impulsiona uma pessoa a sair do seu país, deixando parentes e costumes pra trás, para se mudar para uma nova terra, totalmente distante (geográfica e culturalmente) da sua, são as dificuldades financeiras ou a instabilidade política/ social da sua nação. Acreditamos que a maioria das pessoas raciocina assim quando vai conversar com um imigrante. Não fizemos diferente. E percebemos, com o relato de Teresa, que nem tudo deve ser colocado numa mesma tigela. “Porque no meu país é como aqui no Brasil. Se você quer trabalhar, você vai ganhar, mas se você não quer trabalhar, você também não vai ganhar. Lá na África, a gente vive bem. Se você sabe trabalhar, você não vai sofrer, não. Eu não vim pra
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cá por causa de sofrimento, não. Eu vim aqui só pra conhecer. Aí falei: ‘tá bom, vou ficar’”. E assim foi, e continua sendo. Teresa trabalha, Teresa recebe, Teresa ensina. Seus quatro filhos também aprovaram sua escolha de ficar no Brasil, por que “aqui eles conseguem estudar”. Ela deixa as quatro crianças de três, seis, oito e 12 anos, pela manhã na creche e no colégio, e pode passar o dia trabalhando no salão. Teresa já era comerciante em Angola, país que é nosso “irmão” de colonização. Angola foi colônia de Portugal até meados dos anos 1970, quando conquistou a independência. Hoje, a nação membro da União de Cidades Capitais de Língua Portuguesa, ainda luta para se estruturar política, social e economicamente. E Teresa está aqui, fazendo sua parte, trabalhando dia após dia, e mantendo a família unida, e voltando sempre que pode para sua terra: “Sinto falta da Angola, mas todo ano nós [eu e minha família] vamos para lá. Fui para lá trabalhar esse ano, e fiquei de julho até agosto lá”. A primeira conversa com Teresa foi assim: amigável e rápida. Tanto é que, semanas depois, quando retornamos à Galeria para conversar com mais alguns imigrantes africanos, a cabeleireira reconheceu nosso grupo quando passamos pelo salão dela, e deixou um sorriso solícito, enquanto falava detrás do balcão do caixa: “Tudo bem com vocês? Precisam de alguma coisa?”. Naquele hora não precisávamos, mas sabíamos que poderíamos contar com ela, caso seus compatriotas não quisessem conversar muito conosco. Neste mesmo dia, em nossa segunda visita, no andar térreo da Galeria do Reggae, ou melhor, da Galeria África, reencontramos a “quinta” integrante do grupo, Sirlene. Chegamos muito cedo naquela manhã de segunda feira, quando
maneira, a vida deles tem nuances, particularidades e são únicas. E dentro de cada um dos 54 países africanos, existe uma lista repleta de nomes, que indicam vidas, famílias, culturas, costumes, tradições, problemas, riquezas, esperanças, totalmente diferentes uns dos outros, cada um repleto de peculiaridades e complexidades, pois isso é a África.
o turno de Sirlene ainda não havia começado. Não pudemos esconder o nosso descontentamento em não encontrar nossa guia sentada na recepção do Centro, como da última vez que a vimos. Tivemos que zanzar pela Galeria contando com a memória do que ela havia nos dito da primeira vez. Deu tudo certo no fim das contas, e já estávamos indo embora quando vimos a recepcionista conversando com algumas pessoas perto da saída. E aí Sirlene! - gritamos animadas em sua direção- Lembra da gente? As meninas da reportagem né? ela disse, como se estivesse cavando na memória nossos rostos. Acertou! Aproveitamos o momento para pegar algumas informações sobre essa importante personagem, que foi o nosso luzeiro dentro daquele espaço novo e totalmente desconhecido por cada uma de nós. Eis então, novamente, Sirlene, baiana de nascimento, mas registrada em São Miguel Paulista, bairro da zona leste da grande São Paulo, do qual é moradora fiel há 49 anos. Sirlene construiu bonitos laços de amizade na Galeria África. “Sou grata a este lugar, conheci muitas pessoas das redondezas, e também outras culturas”. A recepcionista trabalha no local há 27 anos. Com
certeza, como ela mesmo afirma, e demonstra, Sirlene ama o seu trabalho no Centro Comercial Presidente. E também aprende muito com as pessoas por ali. Sirlene teve duas décadas de convivência com os africanos que vieram ao Brasil para começar um novo capítulo de suas vidas. Nós tivemos apenas dois dias, mas que foram suficientes, por hora, para nos mostrar que existe uma gama, uma lista, repleta de nomes, como os Dossôs, os Peters, as Teresas, Angélicas, Aminatas e Bajgours, de vidas, de histórias, de lutas humanas, que circulam todos os dias ao nosso redor, em nossa cidade. Seja no país de origem, enfrentando a falta de recursos, de dinheiro, fugindo da opressão dos costumes, da violência, ou mesmo na nova terra, lidando com os desafios de aprender uma nova língua, de lidar com um povo diferente, que funciona em uma estrutura social diferente, eles estão ali! Alguns são conquistados pelo Brasil, e, por isso, decidem vir para cá. No entanto, isso não muda o fato de que continuam a amar seus lares, e os visitam sempre que podem. Já outros estão aqui pela força da necessidade, seja por religião ou falta de capital. De qualquer
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Se pararmos um instante, mesmo nessa grande capital que não dorme, para ouvirmos um pouco sobre suas trajetórias que tiveram até chegar a este destino, mais especificamente na Rua 24 de Maio, bairro da República, com certeza saíremos convictos de que este grande continente, tão explorado e pouco valorizado pelo “primeiro” mundo, tem muito a nos ensinar. E faz isso por meio destes nomes, destas vidas, que agora dividem a terra “onde canta o sabiá” conosco. EPÍLOGO – BOSQUE Ryszard Kapuściński chegou ao continente africano em 1957. Correspondente especial vindo da fria e cinzenta Londres, Kapuścińsk conheceu o calor das terras africanas, tomada pelo intenso poder do sol aproximadamente 24 horas por dia, durante os anos em que trabalhou escrevendo relatos sobre as mudanças políticas e sociais que tomaram vários países da região na época. Quando estava em Acra, capital de Gana, o jornalista notou algo curioso a respeito do tempo. Sim, o tempo. Disse Kapuściński: “os habitantes da África têm uma noção totalmente diferente do tempo. Para eles, o tempo é algo mais solto, aberto, elástico, subjetivo. É o homem que influencia a formação do tempo, seu desenrolar e seu ritmo”.
Curiosamente, esta passagem veio à mente enquanto conversávamos com um jovem angolano, recém chegado ao Brasil. Kennedy Bunga, seminarista de 23 anos, “é um filho da cidade”, como ele mesmo se define, mas tem lidado com uma nova noção sobre o tempo, aqui na capital de São Paulo. Literalmente. Faz dez meses que Kennedy convive com a correria permanente da “metrópole que não dorme”. Nascido na capital de Angola, Luanda, Kennedy - o tímido seminarista do Seminário José Manuel da Conceição (JMC), o mais antigo do Brasil - deixou sua grande família - pai, mãe, e quatorze irmãos mais novos - para seguir o propósito de se tornar pastor da Igreja Presbiteriana. “Tudo começou em 2013, alguns irmãos seminaristas do JMC foram para o meu país dar formação (teológica) na minha
igreja, lembro que um deles, Jonatas Reis, escreveu o nome de Deus em hebraico na lousa e eu fiquei super maravilhado”. Kennedy ainda não sabia, mas esse sentimento iria mudar sua vida por completo. Aproveitando a ida dos seminaristas, ele participou do curso para jovens na África e assim o interesse pelo estudo das línguas e da teologia foi só aumentando. Em 2014, dois seminaristas voltaram para a Angola, a Eliane e o Jair. “Não sei o que viram em mim, mas acharam que eu tinha jeito. Os seminaristas então falaram com meus pais sobre a possibilidade de vir ao Brasil para estudar teologia e, felizmente, eles deixaram”. Por mais que Kennedy quisesse muito seguir seu sonho, havia o impasse da dificuldade financeira. Mesmo com empecilhos, Kennedy foi atrás do que queria.
Após quatro anos e várias economias, veio para São Paulo estudar no seminário JMC com o objetivo de se tornar pastor. Kennedy diz que há várias diferenças entre os dois países. Angola possui muitas províncias, e estas, por sua vez, muitas aldeias. O país que conseguiu a independência há 40 anos ainda luta para se desenvolver. Ao seu ver, o Brasil, ou pelo menos, São Paulo, está muito mais avançado na tecnologia. “O brasileiro também é muito simples na vestimenta e na Angola é tudo mais exagerado, com mais cores, mais acessórios” No bosque da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o angolano nos fala que sua rotina é muito puxada como a de vários paulistanos. Estuda de segunda a sábado, no período integral. Todo o seu tempo livre usa para ler e estudar mais, porque, gosta de sempre estar fazendo algo útil. “Cada minuto vale muito. No Brasil, tudo é muito corrido. Quando eu cheguei, e estava andando pela cidade, principalmente para pegar o metrô, eu via muitas pessoas. Me perguntava para onde estavam indo, porque eram muito velozes. Uma vez falei com uma amiga do porquê esse pessoal anda assim tão rápido. Ela me respondeu que a vida é muito corrida e falou que daqui um tempo eu estaria assim. Eu duvidei, mas é verdade, nunca mais andei lento aqui.” Entre o tic- tac do relógio, Kennedy vai vivendo. Desde muito novo, soube a hora de esperar e a hora de fazer acontecer. Atualmente, corre contra o tempo para alcançar seus objetivos e ultrapassar seus obstáculos. Assim, não vê a hora de começar um novo presente, com sua noiva que o espera em Angola, e um dia, levar a mensagem do evangelho e transformar vidas em sua terra, como presenciou tempos atrás.
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UM DIA COMO Andreas Lischka
Entre mitos, contos e a realidade. Uma bruxa moderna pode ser assustadoramente normal
E
Por Isabela Assis e Natália Lucchesi
m uma rua residencial pacata da zona leste, entre casas brancas e outras ainda em tijolo, uma placa grande e colorida destoa do contexto suburbano: “Consultas de Tarot. Aulas de Wicca, bruxaria natural e astrologia”. No mesmo portão onde está presa a placa, avistamos um cachorro com a cabeça entre as grades que procura curiosamente quem está se aproximando da casa. Ao ouvir a campainha e a agitação do cachorro no portão, uma mulher aparece na porta. De cabelos muito curtos, shorts e camisa e segurando o cachorro, ela se apresenta como Evelyn, “essa é a Afrodite, ela está de castigo”. Ainda no corredor do quintal, a caminho de uma casa ao fundos nos deparamos com 3 gatos que se entrelaçam em todas pernas que avistam. Quanto mais nos aproximávamos da entrada da casa
mais animais surgiam e Evelyn fazia as apresentações. No total eram 13 gatos, 2 pássaros, 1 cachorro e uma tartaruga, todos animais resgatados de situação de rua. Evelyn faz questão de quebrar o primeiro tabu do dia lembrando de quando foi perguntada por uma amiga, “o que vocês fazem com animais?”, calma e com um sorriso discreto no rosto ela responde, “a gente cuida, ué”. De maneira cômica, o ambiente é exatamente o que se espera da casa de uma bruxa: teias de aranha, manchas de sangue e bonecas de ponta cabeça penduradas na janela. Da ponta de uma escada no canto da sala, desce a bruxa Jéssica, de 28 anos, a maquiagem preta nos olhos contrasta com sua pele branca, seu cabelo ainda está molhado como quem tivesse se arrumado para visita. Quebrando toda a aura assustadora, a dona do espaço Templo da Deusa e de ótimo senso de humor já explica que tudo isso faz parte das brincadeiras de Halloween da escola. Logo depois, descobrimos que ela é casada com Evelyn, que não participa ativamente das atividades da escola, há oito anos e meio. Jéssica nos recebe com a mesma simpatia que demonstrou no primeiro contato, feito pelas redes sociais, que hoje é parte importante no alcance do templo. A sua conta no Instagram, “Templo da Deusa - Escola de Magia
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e Bruxaria”, tem mais de 48 mil seguidores, e é alimentado com conteúdo sobre datas comemorativas, conceitos da religião, dicas de pedras energéticas e astrologia que apesar de ser escrito por Jéssica é organizado e postado por uma assessora. A sala em que a bruxa dá aula é ocupada por quatro mesas escolares, uma delas na ponta em frente às outras, onde ela senta e logo começa a nos contar sobre como começou o Templo da Deusa, que no começo era um estúdio de dança. É nesse momento que temos o nosso primeiro encontro com as suas crenças. Ela afirma que seus ‘mentores’, espíritos designados para nos guardar em vida, de modo sacana levavam as pessoas a ligar para escola de dança perguntando sobre Tarôt, Wikka e bruxaria, ação que ela disse só ter entendido depois de certo tempo: no seu juramento na consagração como Bruxa, ela afirmou que sempre passaria conhecimento para frente. Jéssica, que nessa época já não era nova no meio místico, disse ter percebido os sinais do universo, e que tinha que fazer algo. A conversa é interrompida pela primeira aula do dia, a “peregrinação” da bruxa Carmem, em busca do seu nome cabalístico para sua consagração como Maga. Carmem tem 57 anos é podóloga e terapeuta, e está na busca de conhecimentos para seguir a profissão com a terapia holística. A organização da hierarquia bruxa não é muito diferente das que se conhece em outras religiões. Com três anos de estudo, uma iniciante é consagrada Bruxa, com mais três anos de “dedicação”, como explica Jéssica, elas viram Magas, e assim por diante, viram Sacerdotisa, Mestra, e enfim o título mais alto que exige mais 9 anos de estudo, Grand Mestra. O atendimento com a Carmen consistiu numa associação de chakras com objetos mágicos e outros conceitos da religião feitos pela aluna com sugestões da Sacerdotisa.
Após toda sugestão Jéssica indaga sua aluna: “você está feliz com essa troca?”, e uma hora depois, feita a leitura do material a bruxa confirma uma última vez sobre a satisfação de Carmem, que com os olhos marejados responde: “É um feliz que preenche a minha alma” Foi com a emoção de Carmem e a prontidão de Jéssica em se certificar que a aluna estava contente, que ficou clara a entrega dessas mulheres à sua crença pela primeira vez. O que até então parecia apenas alguns conceitos básicos e organização burocrática religiosa, se mostrou para nós como uma verdadeira rede de acolhimento e aprendizado. Mais pontos dessa rede se mostraram durante o dia de modo natural: as conversas sobre as famílias com as alunas e convites para viagens de fim de ano. Ao saber que passaríamos o dia em sua companhia, a bruxa pergunta se gostaríamos que ela fizesse almoço, o senso de acolhimento parece característico em toda ação de Jéssica, que também convida Carmem para o almoço. Evelyn sugere um marmitex de 10 reais na esquina da rua que moram. O almoço é marcado pela informalidade. Os gatos, que como o casal disse, são donos da cozinha como são do resto da casa, pulam na mesa e sobem no colo das visitas. Se fazem presentes, por causa dos miados, pelos, ou simplesmente nas suas poses em cima dos vários armários da cozinha. Carmem é aluna do Templo da Deusa há quatro anos, e carrega na sua fala – assim como sua professora – o apreço pelo místico. Ao contar que conheceu Jéssica após tropeçar em sua vassoura em um evento a lembrança tira uma risada de todas na sala, pelo encontro entre o imaginário popular e as bruxas reais. Era exatamente assim que se esperava que duas bruxas se conhecessem. Sobre sua iniciação na bruxaria Carmen diz que ela não existe de fato: “nesse meio a gente não entra, a
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gente já nasce. Você nasce gostando da natureza, das pedras, você já se sente diferente dentro do seu círculo de amizades e de familiares”. Ela também confessa que sempre foi vista como um ser estranho por acreditar no místico, mas que também tinha medo de procurar sobre o assunto pela incerteza que a internet traz, que lá é difícil distinguir o verdadeiro do falso. “Mas quando eu conheci a Jéssica eu encontrei a verdade nela. Principalmente por que ela passa o conhecimento que ela tem sem ego”. O olhar de Jéssica é carinhoso sob Carmem que sorri em retribuição. A aluna continua, “a Jéssica não põe valor comercial em todo esse conhecimento que ela passa e faz isso porque quer que todos tenham acesso ao conhecimento, e não é assim em todo lugar, pode ter certeza”. Apesar das trocas carinhosas, Carmem afirma que nem sempre é assim, às vezes Jéssica fica brava, e a professora se manifesta, “meus alunos tomam pouquíssimas broncas, é uma por ano e olhe lá!”. Em meio as risadas, que de novo tomam conta da conversa, Carmen concorda dizendo que realmente existem situações que a “bronca” poderia ter sido maior, como no atraso da aluna na sua peregrinação pelo nome cabalístico. Carmen relaciona seus aprendizados sobre bruxaria com a carreira que pretende seguir como terapeuta holística, profissão que se preocupa com a parte física, emocional, mental e espiritual do paciente. Bruxaria não é a única vertente que ela estuda para se tornar uma profissional da área, ainda faz cursos de hipnose, psicanálise, mesa quântica e litoterapia, que são tratamentos e curas através do uso de pedras, “a litoterapia é meu maior encanto, aliás todos esses cursos são apaixonantes”, diz com os olhos deslumbrados, o que depois de uma tarde em sua companhia, percebemos ser normal sempre que fala sobre o místico. “Eu só vou
Enrique Meseguer
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conseguir exercer tudo isso como terapeuta mediante todo ensino que a Jéssica me proporciona, ou seja, incluindo a essência da maga que eu vou me tornar”. Segundo o Google, a plataforma de busca mais famosa do mundo, a definição de bruxa é: “Geralmente retratada no imaginário popular como uma mulher antiquada, com nariz grande e encarquilhada, exímia e contumaz manipuladora de Magia Negra e dotada de uma gargalhada terrível”. Ao saber de tal descrição, Jéssica caiu na gargalhada “é por isso que eles escrevem essas coisas, porque toda vez que alguém lê isso uma bruxa cai na gargalhada. Uma gargalhada terrivelmente debochada”. Carmen foi a primeira a se posicionar sobre como lida com essa impressão geralmente negativa ao contar que é bruxa, e com a mesma calma que demonstrou durante tarde toda ela diz que isso não causa incômodo, “só iria me incomodar se eu me sentisse assim. E eu provavelmente não vou conseguir mudar a mentalidade de uma pessoa que diz isso, então, eu não me incomodo”, mas continua bem debochada, “às vezes, dependendo da pessoa, você até acha legal que ela tenha esse pensamento negativo. Sou bruxa mesmo!”. Mais uma vez caimos na risada. Jéssica não parece se incomodar tanto com essas definições completamente equivocadas, o que realmente a incomoda são as más interpretações de pessoas formadas bruxas da sua cultura. Um exemplo dado por ela foram as roupas que foram fotografadas na Convenção de Bruxas e Magos em Paranapiacaba, que aconteceu em maio de 2019. “Eu não deixo meus alunos virem aos rituais vestindo túnica, capa e chapéu porque assim vira Harry Potter e dessa forma eu perco a seriedade do meu trabalho”. Jéssica diz que leva seu trabalho muito a sério e jamais
permitiria que alguém zombasse dele de maneira alguma, muito menos os próprios integrantes desse círculo. “Existem clãs onde a galera realmente se fantasia, desfila fantasiado de fada, de gnomo, de elfo, de Harry Potter. E na minha opinião isso traz um processo comercial, escapismo, coisa que na minha escola não acontece”. Ela interrompe sua fala para que um de seus gatos suba em seu colo e continua enquanto faz carinho nele. Segundo ela por esses motivos os alunos que fazem parte desse tipo de clã não se dariam bem com os métodos adotados no Templo da Deusa e vice-versa. O clã é o círculo de aprendizado dentro da bruxaria, um grupo de pessoas que aprende e convive junto, cada clã funciona de forma diferente. Na despedida de Carmem ela nos abraça e nos agradece, diz que é importante que alguém esteja falando sobre isso. Jéssica não tem muito tempo para mais conversa, pois já estava se preparando para mais aulas. Dessa vez seria por chamada de vídeo, e alguns minutos antes de começar se ouve um grito estridente pela casa, “Evelyyyyyyn, traz doce para mim!”, e antes que sua esposa pudesse responder, complementa: “E para as nossas convidadas também, elas querem doce!”. Pouco tempo depois Evelyn desce as escadas do fundo da casa carregada de doces, um saco grande suspiro, pacotes de bolacha e um pote de balas e chocolates. E enquanto come um pedaço de suspiro, Jéssica começa a aula online. A primeira aluna, Natália, estava treinando a leitura do tarot, e sem pensar duas vezes Jéssica dispara que seríamos “cobaia” para a leitura da aprendiz. Jéssica auxiliava sua aluna entre as leituras, Natália estava cercada de papéis e com as cartas em cima de sua cama, enquanto a bruxa na sua sala de aula tentava reproduzir a mesa de Tarot em um desenho de papel para acompanhá-la. Entre um
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doce e outro, gatos para lá e pra cá e conversas pessoais entre aluna e professora, o que novamente mostra o envolvimento de Jéssica com seu clã, a aula durou um pouco menos que uma hora. Logo depois, mais uma aula por vídeo, dessa vez sobre planetas e astrologia. Jéssica conta que a aluna Isabela, que teve uma filha há pouco tempo, está com dificuldade em agendar as aulas por causa “da pequena”. Durante a conversa outros momentos de intimidade e conversas pessoais se entrelaçam nos ensinamentos sobre o significado de cada planeta. E o místico, que sempre questionamos, parecia encontrar outro modo de se fazer presente. As duas alunas “online” de Jéssica daquela terça-feira, compartilhavam mais que a curiosidade e o encanto com nós por aquela realidade. Por coincidência ou não, se chamavam Isabela e Nátalia, assim como as autoras dessa matéria. Finalmente, já no fim da tarde, Jéssica remarca um atendimento de Tarot para que pudesse conversar. A conversa seguiu o mesmo tom do dia que tivemos, descontraído, com Evelyn sentada na escada, gatos em todo lugar que pudéssemos ver e a tartaruga do casal que vez ou outra batia nos pés que estavam no chão. Ao conhecer a história de Jéssica, entender quem é a bruxa e quem é a mulher é difícil, a separação quase não existe. Vinda de família umbandista, a casa dos pais dela foi construída em cima de um antigo terreiro “a minha casa foi construída em solo sagrado”, afirma, e foi ali que ela começou seu conhecimento espiritual, em casa e na umbanda. A Sacerdotisa conta que a bruxaria de fato, entrou na sua vida no seu aniversário de dez anos. “Eu estava passeando no shopping, passei em frente uma loja esotérica e vi um duende. A moça que trabalhava na loja veio até mim e disse ‘não é todo dia que se vê uma bruxa’, e a minha
Alexas Fotos
mãe deu risada e falou que eu era a bruxinha dela”. Quando a moça soube que era o aniversário de Jéssica, a presenteou com o duende que se chama “Às” e explicou quais cuidados deve-se ter com eles. “E eu fiquei simplesmente encantada com aquela história, eu sou apaixonada pelo Ás”. . Ela conta que os duendes são seres elementares e inteligentes que favorecem certo auxílio aos seres humanos, mas que é muito difícil de ter contato com eles “porque eles não gostam de ser humano, e isso se dá por uma série de questões, por que o ser humano destrói a natureza, machuca animais e rouba pedras preciosas”. Ter pais que nunca limitaram a sua ligação com a bruxaria foi fundamental nesse processo “eles sempre me apoiavam, meus presentes eram todos objetos esotéricos, livros, minha mãe chegou a assinar uma revista para mim uma época”. Com 15 anos ela se considerava “uma bruxinha solitária” e a vontade de frequentar uma escola de bruxaria aflorou mas só poderia ser concretizada aos 18 anos e foi o
que aconteceu. A participação da mulher na bruxaria é inquestionável, e a sacerdotisa diz que o movimento foi precursor do entendimento do sagrado feminino, que vê a figura da mulher, como mãe. Segundo Jéssica, que ministra história da bruxaria, os homens começaram a fazer parte dos clãs no período de inquisição quando as mulheres começaram a morrer devido a perseguição da Igreja Católica Apostólica Romana e por isso elas compartilhavam seus conhecimentos com seus filhos, para não deixar o conhecimento morrer com elas. Ainda sim, existem clãs que não aceitam a participação masculina por entenderem que eles não pertencem a isso, eles só seriam aceitos se fossem filhos de bruxas, criados na bruxaria. Ao entrar no assunto política Jéssica afirma é perigoso começar grandes alardes, para não causar pânico e nem teorias de conspiração, mas que “a mulher já é perseguida, ela é temida e é justamente por isso que
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é oprimida”. A sacerdotisa conclui que por isso uma mulher, sendo bruxa ou não, corre perigo. “Isso nós podemos ver apenas por mim que sou bruxa, lésbica e assumidamente de esquerda. Vocês querem mais que isso?” Já no crepúsculo do dia, ir embora parecia algo difícil. Ficar imersa na crença, nos relacionamentos e no estudo por só um dia parece muito pouco para entender a realidade desse grupo. De volta no portão da rua residencial pacata da zona leste, só que agora acompanhada com o Jéssica e Evelyn ouvimos “mas já? Eu ia agora na padaria comprar algumas coisas para fazermos um lanche”. Agradecemos a hospitalidade, por ter deixado que duas completas estranhas acompanhassem seu dia e se intrometessem em suas vidas. O casal nos abraça, e logo após as despedidas Evelyn abre um sorriso malandro e é ela que faz a última pergunta do dia: “E aí, quando vocês vão virar bruxonas?”.
Caro leitor, a grande reportagem a seguir tem o objetivo de contar histórias de pacientes portadores de Alzheimer em diferentes estágios da doença, e a relação deles com seus familiares. Emocionalmente envolvida com um dos personagens, contarei meus relatos utilizando itálico. E essa será minha voz, experiência e sentimento.
Gerd Altman
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Gerd Altman
T Gabriela Catan ***
omada por uma remota preguiça, cogitei ir à academia com um short de pijama que é coberto de corações. Resolvi então pedir a opinião do meu avô a respeito do traje. Olhou no fundo dos meus olhos e como de costume, sorriu. Ficou em silêncio por alguns segundos e em seguida me perguntou se eu tinha percebido os corações no short. Respondi que sim. Perguntou-me se os corações representavam pra mim o amor. Novamente fiz que sim. Ele sorriu de novo, e terminou sua resposta “Pra mim também, então acho que não tem problema você ir assim, né?”. Ele não costuma questionar a vida. Sua expressão, na maioria das vezes é branda. Oswaldo Catan é um advogado, ou melhor, era. Toda sua vida havia sido dedicada a ajudar
pessoas. Agora se resume a não lembrar muito de ninguém, às vezes nem dele mesmo. Maria Alice Louzada sempre apreciou a sua própria companhia, mas nunca deixou de dar muito carinho. Diferentemente de Oswaldo, sempre gostou de ficar isolada, fazendo o seu crochê e vendo televisão. E, aos 77 anos, o esquecimento é ainda maior. Não consegue mais viver sozinha, e muito menos demonstrar afeto. Alberto de Sá trabalhou como gerente de vendas e viajava de Kombi pra vários estados e cidades, vendendo as páginas amarelas. A hérnia de disco aos poucos o tirou de sua rotina. Hoje, com 85 anos, deixou de ir à igreja, de freqüentar o centro espírita onde trabalhava. E de fazer tudo o que fazia. Oswaldo há muito, não sai de casa. Tranca absolutamente todas as portas, fecha todas as janelas e num ritmo frenético, abre a porta da geladeira. Maria já agrediu as filhas, tratou
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com hostilidade enfermeiras e não reconheceu suas netas. Seu olhar agora é vazio, e meramente atravessa a todos. Alberto era tão próximo de sua vizinha, Dona Zumira, que cedeu o Jazigo da sua família para enterrar o marido dela. Agora acredita que ela quer tomar a casa dele, faz macumba e trás más energias. O esquecimento soa de vários modos, em tons completamente distintos e outros extremamente idênticos. Que dia é hoje? Não me lembro. Que horas são? A cada respiração, os movimentos são diferentes, ao passar um segundo as lembranças do agora não existem mais. Às vezes as batidas são as mesmas, outra hora não pertence a ninguém, não tem memórias e muito menos algum resquício de vida. É como se o corpo estivesse ali, vivo. Pulsando, funcionando, mas a alma não. Ela está perdida no espaço? No passado? Futuro? Quem sabe? Ou pode ser que esteja exatamente
onde deveria. O desejo da volta é a ignorância de quem não sabe onde está seu próprio eu. Já a lucidez e as histórias, essas sim, não voltam mais. Não voltam, mas se transformam numa linda aquarela, onde as cores são leves, se misturam facilmente. E às vezes são transparentes, e líquidas como as águas. Entre essas pinturas de aquarela, as vozes ainda conscientes dos familiares, ecoam. Renata, filha de Maria Alice, por exemplo, já não sabe mais quem é a mãe. “Eu já me despedi da minha mãe faz tempo, essa pessoa que agora tenho responsabilidade, não sei quem é”. O Alzheimer atinge mais de um milhão e duzentas mil pessoas no país. A perda gradativa de memória, seguida da perda de cognição, funções motoras. Tempo. Espaço. Razão. Vai apagando aos poucos cada ser, que um dia foi advogado, fez crochê, vendeu páginas amarelas. E dissolvendo o coração dos familiares que estão ao redor. Patricia, filha de Oswaldo também compartilha desse sentimento de perda: “A pessoa vai desaparecendo, não existe mais”. E eu também... Meu avô tem 82 anos de idade e há alguns anos foi diagnosticado com Alzheimer. Por muito tempo me lastimei, questionei e fiquei triste por vivenciar os últimos anos de vida da pessoa mais inteligente que pude conhecer se resumir a quase nenhuma lembrança, ou alguma noção. Advogado, preso na ditadura militar, nordestino e também colega dos ilustres Caetano Veloso e Gilberto Gil. Pensei algumas vezes o que ele diria da atual situação do país, desejei realmente sua lucidez nesse momento para que eu pudesse pelo menos por um dia absorver um pouco mais de conhecimento vindo desse homem que admirava tanto, mas ele não existe mais.
As histórias de dor se repetem entre as famílias. Está estampado nos olhos de cada um o desespero do esquecimento, e da transformação gradual que cada portador desenvolve, até o momento da perda total. O lidar exige cuidado, paciência e amor incondicional, mas nem todos estão preparados para dar amor a quem te xinga, te agride, e não faz a menor idéia de quem você seja. Como no caso de Renata: “Eu considero um luto em vida”. Ninguém aprende a lidar com a doença. Mas a convivência transforma a situação em rotina. Rotina conflitante, onde escorre como um líquido pelas mãos, daqueles que não sabem mais como segurar, o corpo daquele que foi força. Mesmo assim, nas entranhas do esquecimento, ainda existem as pinceladas de amor, e uma luzinha de lucidez, que ainda pode ascender de vez em quando. A primeira vez em muito tempo que o vi reagir foi quando cantei, “Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, num sol de quase dezembro, eu vou”, sim, Caetano. Meu avô, Oswaldo agora só se lembra de fechar as janelas, trancar portas e abrir freneticamente a geladeira, ou então perguntar o dia e o horário. Alegria, Alegria, foi à única possibilidade de pincelada de amor, lucidez ou qualquer que seja a referência para um lapso de memória que ele teve. Agora temos todos os dias, a mesma seqüência de ações, perguntas, confusões, mas entre esses momentos, ele canta Caetano. Às vezes não lembra quem canta a música, ou a letra por completo, mas não existe um dia que ele não olhe pra mim e pergunte “Caminhando contra o vento?”, eu respondo continuando a canção, ele sorri e termina “EU VOU, EU VOU, PORQUE NÃO?”. Já seu Alberto, esses dias pediu a escada do vizinho e conhecido, emprestada. Saiu com a mulher para
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fazer exames, e assim que voltou, lembrou de buscá-la. Desceu do carro, rumo à casa errada para pegar. Na outra residência estava acontecendo uma reforma. Confuso, começou a xingar os pedreiros, e a mulher que estava na casa. Falava sobre a escada. E então, na casa ao lado, o vizinho, apareceu com o objeto na mão. Foi nesse exato momento que surgiu a tal pincelada de consciência, que ainda acontece na maioria das vezes com Alberto. Sabia que tinha emprestado a escada, mas não lembrava para quem. Ele tem mais momentos de lucidez que Oswaldo, e que Maria. Conta ainda apenas com a perda da memória recente. Em uma das memórias que ainda vivem dentro dele, está à vontade que sente de voltar para estrada. Maria Alice, hoje tão pouco fala, utiliza fraudas, na maior parte do tempo senta e anda sobre duas rodas. Vem perdendo as funções motoras, e recentemente não sabe mais mastigar os alimentos. Sentada na cadeira de rodas, tem o olhar vago. Sua filha, Renata, fala sobre a força que ela e a família encontram todos os dias para lidar com a situação. Constroem a relação através do amor, dentro de casa, buscando passar isso para Maria. “E ela retribui isso nos pequenos momentos que ainda restam um pouquinho de lucidez, porque do contrario o olhar transpassa, então os poucos momentos que existe um contato, do olhar dela, a gente faz festa”, conta a filha. Da festa ao inferno, os que convivem todos os dias com essa doença têm ainda a oportunidade da lucidez. Reflexão. De valorizar o contato com o outro, perceber a grandeza de ter boas relações, estar bem com as pessoas. Esses sim, se olham no espelho. Espelho que enxerga naqueles serzinhos desorientados, a oportunidade que temos todos os dias de viver. Viver em comunhão, alegria, aproveitar cada minuto junto das pessoas. Viver
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o real. Antes que seja tarde. Que seja esquecido, que seja quem é você? *** A parte mais difícil de realizar entrevistas com outros pacientes foi olhar para Maria e sentir uma angústia gigantesca em imaginar que meu avô poderia chegar naquele estágio. Durante os dias que estive escrevendo sentei perto da cama onde dorme, e ele cantou Caetano para mim. Eu me sentia extremamente privilegiada em ter aquele pouco que ainda restava dele. Os momentos de gratidão, não foram duradouros. Depois de uma semana que entreguei o texto, meu avô tomou um tombo grave enquanto caminhava contra o vento. Fraturou vértebras da cervical e quebrou o nariz. As fraturas levaram a agravantes ainda piores durante a internação de mais de 20 dias. O coração não ia bem, nem os rins, e muito menos os pulmões. Na minha primeira visita, só pensava em cantar pra ele. Mas as únicas coisas que saíram do meu corpo foram lágrimas. Percebi o quanto era difícil ser portador da doença, também naquele momento. Ele ficava 24 horas por dia amarrado, pois não se lembrava onde estava, e tentava desligar os aparelhos ou então se levantar. Implorava desesperadamente de 5 em 5 minutos para soltar ele, e eu não podia. Em outras visitas cantei, mas não houve manifestação se quer vinda dele. Já não falava, nem andava, e de vez em quando sorria. Por muitos dias foi Maria e por vários me despedi dele. Minha angústia se tornou real. Ele agora está em casa, mas não vejo ninguém. Toma banho de cadeira de rodas, fica com vigia todo tempo e quando não, está amarrado. Usa fraldas e quase não fala mais. Desde que caiu até hoje, vivo com numa eterna despedida, falo adeus para ele em pensamento todos os dias. A minha maior felicidade ainda é quando eu canto. Às vezes ele mexe o corpo, como se dançasse. Como se ainda me entendesse.
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“Mudanças de Pele” Still don’t know what I was waitin’ for And my time was runnin’ wild A million dead end streets and Every time I thought I’d got it made It seemed the taste was not so sweet ... Changes, David Bowie
Tradução: “Eu ainda não sei pelo que eu estava esperando E meu tempo estava passando muito rápido Um milhão de ruas sem saída Toda vez eu pensava que tinha conseguido E o sabor parecia não ser tão doce”
“Grande parte da vitalidade de uma amizade reside no respeito pelas diferenças, não apenas em desfrutar das semelhanças”. James Fredericks Alexandre Carvalho de Souza
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omo uma cobra que muda de pele depois de um determinado tempo, o ser humano também muda, tanto biologicamente quando mentalmente. E com isso, suas crenças, hábitos, padrões durante a vida nunca vão permanecer estáticos. Marina Melo tem 22 anos e há três anos passou de uma vida regada a festas, bebidas e rapazes para a seriedade e compromisso pregado em uma crença religiosa. Morava em São Carlos, cidade do interior de São Paulo. De família tradicionalmente espírita, não se encontrava em tal filosofia religiosa. Acreditava que cada pessoa tinha um lugar para exercer sua crença, e
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não encontrava na crença da família “seu lar” religioso. Foi quando, por meio de terceiros, entrou em uma igreja católica, conheceu a Opus Dei, uma instituição ultraconservadora, A Opus Dei é uma instituição hierárquica da Igreja Católica — uma prelazia pessoal —, que tem como finalidade contribuir para a missão evangelizadora da Igreja. Concretamente, pretende difundir uma profunda tomada de consciência da chamada universal à santidade e do valor santificador do trabalho cotidiano. O Opus Dei foi fundado por São Jose Maria Escrivá em 2 de outubro de 1928. E foi de lá que se descobriu como uma católica. Abriu seu coração ao catolicismo e se converteu. Em 2015, através de um aplicativo de relacionamentos de nome Tinder, conheceu João Vitor e, como uma
reação em cadeia, um mudou a vida do outro. Ainda feminista, tinha atritos com João que estava voltado ao catolicismo. Atualmente, ambos estudam na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Puc-Sp) e, da admiração a Olavo de Carvalho ao combate ao socialismo, chocamse bastante com seus colegas universitários. Contrastam bastante com o que foram e acreditavam, mas tiveram o coração e mentes abertas a mudanças que, para eles, deixaram um saldo positivo. Planejam se casar em um futuro próximo e criar seus filhos no catolicismo. Gabriel Argenti tem 20 anos, residente em Pirassununga, interior do estado de São Paulo. Ele faz seu aprendizado de modo autônomo, ou seja, terminou o ensino médio e não frequenta cursos de formação profissional, mas sim, como autodidata, estuda para o vestibular sozinho. Ele transitou por extremos no espectro político nos últimos anos, foi da “extrema – direita liberal” para uma “extrema – esquerda” que diverge do comunismo clássico, a anarquista.
Carlos Parra, de 18 anos, atualmente residente em São Paulo, cursando o segundo ano do curso de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, segue uma trajetória parecida. Era anteriormente um seguidor do nacionalismo exacerbado (Bolsonarismo), porém, na atualidade, migrou e se encontrou na vertente direitista do Anarcocapitalismo. O papel que a família exerce em nossas vidas, destacandose aí a dos entrevistados, é de extrema importância. Cada um dos personagens foi influenciado ou não pela sua educação familiar, porém, tiveram a liberdade e foram respeitados em suas novas escolhas. No tocante à religiosidade, João Vitor e Carlos dizem que a família teve muita influência em suas crenças, sendo eles, respectivamente, de origem católica e protestante. Já Marina, veio de uma família tradicionalmente espirita, sendo inclusive seu avô o fundador do centro espirita na cidade de São Carlos. Mesmo assim sua mãe a apoiou na jornada para o catolicismo.
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Para Gabriel, este não sofreu muita influência da sua família no campo político ideológico, completa: “Em casa vejo um tom um progressista, porém nada muito ideológico, desse modo, acredito que não fui muito moldado politicamente”. Alguns indivíduos tem o talento de acender a faísca para a mudança. Porém, só há a chama em ambiente propício, assim como a semente só germina em solo fértil. A chama para João foi conhecer o polêmico e autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, respeitado por muitos e odiado por muitos, e também o Padre Paulo Ricardo, ambos católicos fervorosos. E assim, “a primeira peça de dominó caiu”. Afinal, encontrara pessoas que admirava e compactuavam com suas crenças. E a “última peça” tenha caído, talvez, ao conhecer Marina, seu amor. Sobre os posicionamentos políticos atuais dos entrevistados, no caso de Carlos, foi um youtuber do canal “Ideias Radicais” que o fez mudar de filosofia política e se converter ao anarquismo. Com suas ideias convincentes, cuja premissa é a ausência do Estado,
onde indivíduos agem segundo suas normas de condutas, e defendem a lei da propriedade privada. Carlos se identificou. A maioria dos entrevistados compartilha que já sofreu casos de preconceitos por conta de suas crenças e ideologias e são, às vezes, até perseguidos e sofrem ofensas verbais. Com Carlos o assédio (bullying) começou no WhatsApp, antes implicavam com ele por conta de ser protestante e após descobrirem sua posição política não tão convencional, decidiram usar de sarcasmo nos grupos da faculdade. O ápice foi da polêmica trouxe a todos bons frutos: um debate intenso na sala de aula. João relata, com expressão de prazer que o episódio lhe trouxe e entre tragadas de seu exótico cachimbo, que tiveram aulas em Filosofia do Direito, onde o tema de discussão era “São Tomás de Aquino”. Explicou que “para Aquino, a fé era independente da razão e a razão da fé, mas as duas se auxiliavam mutuamente”. Foi um dos defensores da Escolástica, método dialético que pretendia unir a fé a razão em prol do crescimento humano. Uma de suas maiores obras, Summa Theologica, é o maior exemplo da Escolástica, na qual apresenta relações entre a ciência, razão, filosofia, fé e teologia. Tomás de Aquino foi grande estudioso e ávido escritor nas áreas da filosofia, metafísica, física, teologia, ética e política. Enfim, homem de cultura grandiosa, que foi professor, disseminou suas ideias e conciliou, com sabedoria, a ciência e a religião. Segundo Aquino, “Nada há no intelecto que antes não tenha passado pelos sentidos.” Durante o debate João Vítor mencionou Jesus Cristo, sua professora rebateu que não falariam sobre isso, sua tréplica foi: “Como não vamos falar de Cristo em um debate sobre São Tomás de Aquino?” Ela emudeceu... Marina, como já relatado,
católica fervorosa, compartilha com os amigos de mesma ideologia cristã os prints dos grupos da sala onde sofre bullying por suas crenças religiosas e políticas, contém muitos xingamentos e ataques velados. Ela conta magoada, que ainda não aprendeu a conviver com a discriminação. Na verdade, acredita que preconceito não é algo para se aceitar e se resignar, mas sim, algo para se rebelar e combater. Porém, o que sente lhe tem servido de orientação para a vida: jamais discriminar um ser humano, qualquer que seja a diferença entre ele para si mesma. Pede respeito e, se já o praticava anteriormente, agora ainda mais. Gabriel utiliza uma abordagem mais pacífica, relata que tenta não entrar em atritos, em discussões, e se utiliza de um tom mais respeitoso ao abordar assuntos que geram polêmicas. Entende que, ao tratar com respeito a diferentes crenças e ideologias, será também respeitado. Quando perguntado a ele quais eram suas maiores influencias intelectuais diz serem os seguintes: Bakunin, Kropotkin, Elisee Reclus, Enrico Malatesta, Joseph Dejacque. Eles defendem princípios como a comunização dos meios de produção, autogestão popular, ajuda mútua e abolição do estado. Para ele quando perguntado sobre a situação política do Brasil diz “Acredito que o brasileiro venha se politizando aos poucos, porém a alienação é ainda muito forte. No Brasil os partidos políticos infelizmente tem muito poder persuasivo, o neoliberalismo com toques de assistencialismo acaba sendo aceito pela população carente, já que há essa ilusão que tais partidos se importam com a população, porém mesmo se importando um pouco mais com as massas que os outros, a estrutura é a mesma, a opressão ainda existe”. Finalizando a entrevista
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compartilha que “Sinto que 5 anos atrás eu não estava preparado para digerir toda essa informação emanada pelo “Ancom”, vejo que virar anarquista/comunista é um caminho natural para aquele cuja alma ainda não fora corrompida pelo poder”. O poder atrás de sua fala, era alguém convicto de suas crenças. Depois de recarregar seu fumo, João pondera sobre um fenômeno observado por ele “A idolatria à ciência, é fruto do materialismo que vivemos (marxismo, liberalismo). Essa idolatria, privar uma criança da imaginação, a ciência não é mais um método, algo que você estuda com experimentos, a ciência é uma lei e se você fizer um estudo que contraria isso, você está indo contra a lei”. Finaliza. Conversamos sobre o ateísmo. Segundo ele, a grande parte dos ateus são pessoas imaturas intelectualmente que acreditam que o pensamento deles é novo e que refutam Deus com 240 caracteres e não se dispõem a um grande estudo sobre o assunto sendo que o mesmo argumento utilizado por eles foram refutados pela Igreja no século 12. Sobre a banalização da religião é algo que ele acha que está afetando bastante a Igreja. Muitas pessoas seguem uma versão pessoal de Cristo e não o Cristo da Igreja que morreu na cruz. E da má formação dos católicos torna difícil aproximar a pessoa e ensinar a seguir o catecismo que a Igreja prega. O processo de mudança é algo bem complicado, pode partir de dentro de nós ou pode vir de influencias externas, como um amigo, um professor, ou até de um youtuber. Ele pode durar muito tempo. É importante que se tenha paciência, que se perca antes de se encontrar seu caminho, o seu Norte, o farol que vai guiar sua embarcação para casa, sua nova pele.
Goran Horvart
V Arthur Codjaian
aidosa, Bruna Gabriele gastava horas observando seu corpo de estatura baixa e quadril largo. Sofria muito, na época da pré-adolescência pois, seus colegas de sala a apelidavam de nomes maldosos. “Testa de amolar facão, quatro olhos, gordinha”. A história que mais marcou foi, quando, aos 13 anos, distribuíram panfletos da Copagaz com o seu nome substituindo a palavra botijão. Sempre que o caminhão passava em frente à escola tocando a música do gás, todos apontavam para ela. Ficou uma semana sem ir à aula e começou um processo que resultou em bulimia e outras sequelas. Ainda hoje, com 25 anos, tem medo de subir em balanças.O tímido Victor Zamur também ouviu ofensas por
causa de seu peso. Tinha receio de frequentar as áreas de convivência de seu condomínio. Chegou ser agredido fisicamente. Quando tinha nove anos, tentou questionar o motivo de tanta humilhação. A resposta foi mais violência. Com o olhar triste, se lembra da ocasião em que, além de tapas, as outras crianças o colocaram no chão e pisaram em cima dele. “Era como se fosse um filme infantil, com o valentão, líder da gangue”. Isso o afastou de seus amigos e fez sua infância ser solitária. Yngrid Silva já passou por agressões pesadas. Além de apelidos maldosos, seus colegas espalhavam boatos. Quando tinha 13 anos, um grupo de 20 crianças formaram uma roda e começaram a agredí-la. Depois disso, foi apelidada de olho roxo. Ao tentar se defender, obteve uma reação ainda mais violenta. Foi ameaçada. Durante seu ensino médio, quando todos zombavam de sua aparência, seus poucos amigos cortaram relações. Eles, ao andarem
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com Yngrid, apanhavam, eram xingados e até já foram ameaçados. Quem era amigo da moça se tornava vítima de bullying. Isso a deixou ainda mais vulnerável e fez sua autoestima diminuir. “Eu sempre tive dúvida se eu realmente era aquilo que me chamavam. Mas quando meus amigos deixaram de andar comigo, fez minha mente acreditar em todas aquelas ofensas. Foi como se tudo que foi dito, fosse real. Afinal, não valia a pena estar do meu lado”. Como consequência, além de desenvolver complexo de inferioridade, foi diagnosticada com depressão, ansiedade e bulimia. Isso a fez entrar em um relacionamento abusivo, que intensificou ainda mais seus problemas psicológicos. A baixa auto-estima da moça a fez perder uma oportunidade única, negando uma bolsas de estudos na Espanha, mas sua situação só chegou ao limite quando pensou em suicídio. Não é só a Yngrid que passa por essa situação. O bullying é um problema
mundial presente em muitas escolas. No Brasil, estima-se que 17,5% dos adolescentes, com 15 anos de idade, sofram com isso. No mundo, metade dos jovens são ou já foram vítimas de bullying, segundo um levantamento da ONU em 2017. Há pesquisas mostrando que vítimas de bullying, além de envelhecerem precocemente, têm mais chances de possuírem dificuldades financeiras e uma baixa qualidade de vida. Outros estudos associam o bullying, ao aumento no número de pessoas com distúrbios psicológicos como ansiedade e depressão. É o caso de Bruna, que além de tudo, desenvolveu bulimia. Ela passou anos da sua vida sem conseguir se olhar no espelho. Sempre estava insatisfeita com seu corpo. O modo que encontrou para fazê-la se sentir melhor consigo mesma foi ajudar outras pessoas a aceitarem seus corpos. É o projeto Ser. Por meio de fotografias, enaltece a beleza real de mulheres. A fotógrafa criou uma conta no Instagram, onde posta fotos de mulheres, contando suas histórias. “Eu tenho um projeto que fala para as pessoas se amarem do jeito que são, mas nem sempre consigo me aceitar”. Victor também não. As constantes agressões diminuíram sua autoestima e o tornaram tímido. Com dificuldades de se enturmar, passou anos do seu ensino fundamental sem amigos. As soluções encontradas pelos jovens Seja ajudando outras pessoas na mesma situação, ou aprendendo a se defender, os jovens precisaram encontrar soluções criativas para superar o trauma. Yngrid encontrou nos livros sua maneira de escapar dos males causados pelo bullying. Ela é fã de Harry Potter. Por isso, conheceu outros admiradores da obra que, mais tarde, se tornaram seus amigos. O grupo se encontra com frequência para jogar uma espécie de Quadribol, esporte praticado pelo bruxo. Além disso, faz parte do projeto
Henryk Niestrój
Jovem do Futuro, grupo que visa conscientizar alunos e professores sobre bulliyng. Junto com sua melhor amiga, Maria Luiza, vão para escolas públicas de Mogi das Cruzes, para conversar com estudantes sobre o tema. Primeiro, relatam o caso de Yngrid e desafiam os estudantes a acharem soluções para os problemas enfrentados pela jovem. “Nós trazemos o relato da Yngrid, falamos o que aconteceu com ela e depois fazemos uma dinâmica dos alunos. Eles se colocam como protagonistas para solucionar o caso dela”, conta Malu. Além de servir como assistência aos estudantes vítimas de bulliyng, isso serve para ajuda-los a identificar práticas agressivas. Victor não contou com essa assistência, mas a família o ajudou a seguir em frente. Além de incentivarem não aceitar o bullying, seus pais sempre o auxiliaram. “Meu pai me falava como revidar e o que fazer em certas situações”. Além disso, a perspectiva do rapaz mudou depois que fez novas amizades, que também foram vítimas
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de bullying. Seu melhor amigo revidava as ofensas e assim como aconteceu quando Victor se defendeu, apanhou mais. Porém, dessa vez tinham o apoio de outra pessoa, o que foi importante para ambos. Bruna, por meio da sua paixão, a fotografia, conseguiu superar seus traumas e apoiar meninas que passaram pelo mesmo problema. Além do seu projeto, busca se fortalecer emocionalmente e entender que as críticas não a definem. Para isso, ela contou com uma ajuda especial. A do seu principal agressor. Ele viu um texto no Facebook que abordava relações tóxicas e refletiu sobre seu comportamento na adolescência. Arrependido, enviou uma mensagem para a Bruna pedindo perdão. Hoje, os dois são amigos e até trabalham juntos. Ele virou cliente da Bruna, que superou tudo isso, continua vaidosa e hoje, ajuda outras mulheres a encontrarem a própria vaidade. Ela não se incomoda mais com o que pensam do seu corpo. “É o meu jeito, sou eu, não tem o porquê eu ficar mudando”.
Ulrike Mai
Beatriz Gonçalves
P
ublicitária de 26 anos. Olívia Santos e seu ex namorado foram a uma festa de faculdade. Bebida. Ciúmes. A brutalidade a arrastou pelo braço para longe de testemunhas. Levou um soco no lábio. Sangue e lágrimas por sua face. Foi arrastada pelos cabelos pela rua, até passarem em frente a um posto de gasolina. Uma ajuda, finalmente! Acenou Olívia em desespero. “Não bate nela aqui não moço. Leva ela pra casa, lá vocês se resolvem. Mulher é assim mesmo. Aqui vai dar problema pra você”, disse um dos frentistas. “Aquilo me marcou. Os dois não fizeram nada. Todas as pessoas
que entraram em contato com a gente, ninguém fez nada. E isso me marcou. A violência por parte dele, eu já esperava. Eu sabia que podia acontecer. Mas o descaso das pessoas me marcou mais. Porque eu vi aquele sintoma da sociedade totalmente”, refletiu Olívia. Chamou a polícia. Mas você não vai encontrar registros dessa história sem precedentes. Ele era bolsista e pai. Iria perder a faculdade e a guarda do filho. Pois é. Até no momento de maior dor de sua vida, teve piedade e empatia. Contudo, sua voz não estremece quando diz que se arrepende duramente por isso. Já Júlia Guedes, beletrista de 24 anos, durante um ano, o que sentia, não falava. A vida era somente dos dois. “Me afastei dos meus amigos, principalmente porque a gente passava tanto tempo junto. No começo, acho que foi espontâneo, mas depois ele simplesmente não
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aceitava que a gente saísse com os meus amigos. Era sempre com os dele, e nunca era de uma forma que eu pudesse me envolver, me tornar amiga dos amigos dele. Era sempre “Você ta aqui, meu chaveirinho.” Das inúmeras vezes que Júlia se sentiu pequena, que ele a fez sentir culpada, debulhada em lágrimas, ela não se colocou. Sozinha. Não queria brigar. Não o queria perder. Afinal, ele a fez acreditar que somente ele a amaria. “Como deixar um homem perfeito ir embora?”, questionou-se. Beatriz Alves, conheceu seu ex namorado no Tinder. Redatora publicitária de 35 anos, desde o primeiro beijo, já sabia que havia algo errado. Não gostou. Mas, de alguma forma, acreditava que devia “sossegar”. Morou com ele. Noivou com ele. Aturou-o por quatro anos. Para Olívia, foi a atração física pelo ex que a prendeu. A agressividade na primeira briga já fez
a suspeitar de um comportamento que, meses depois, a traria insônia, medo e ansiedade. Medo de ficar sozinha. Medo de perder a vida. Seu rosto, esculpido, olhos castanhos claros contra uma pele levemente bronzeada. O corpo? Moldado, digno de passarela. Possui uma discrição e leveza sobre o andar que hipnotiza qualquer olhar, antes, distraído. Para ele, “nem é tão bonita assim”, dizia. Para ele, suas roupas eram “muito arrumadas”. No sexo, trazer uma coisa nova para experimentar? “Credo Olívia, isso é coisa de puta!” Foi em um momento de ciúmes descontrolado. A briga se acirrou. Colocou-a contra a parede e a enforcou. Chorava descontroladamente. Depois disso, passou a dormir com a porta do quarto trancada, mesmo vivendo em um apartamento monitorado por 24 horas. Os pedidos de desculpa a fizeram acreditar que podia ser diferente. A problemática de Beatriz era de um macho, encostado. Ela trabalhava fora, chegava em casa, limpava, cozinhava. Ele, por volta da meia noite. “Tem comida?”. E sentou-se no sofá. Não lavou um prato. Não olhou em seus olhos. Pediu, suplicou ajuda, atenção. Deu de ombros. Deu de ombros por anos. Acordava com ele vendo filmes adultos. Ela pediu para parar. Deu de ombros. Deu de ombros por anos. Sua conduta sexual faz jus ao estereótipo de homem egoísta, uma vez que prazer feminino no sexo não era prioridade, e nem considerado. Afinal, a mulher está lá para servir seu homem. Certa vez, voltaram de um evento e deitaram-se para descansar. Ele iniciou carícias. Ela não quis. Ele continuou. Pediu para que parasse. Deu de ombros. Invadiu-a. Apenas parou quando a viu abarrotada em prantos. Deu de ombros. Para ele, nada mudou. Para ela, anos de terapia.
Até hoje, questiona-se porque acreditava que não tinha saída. Talvez pela autoestima, que hoje, é sólida feito rocha. Perdeu 54 quilos. A vida a fazia acreditar: “Você é gorda. Você não vai arrumar um emprego. Você é gorda. Você não vai encontrar um namorado. Você não presta. Porque você é gorda”. Mas a história muda, quando ele sugere experiências sexuais. Ela não queria. Foi um beijo roubado de uma mulher, no carnaval. A fez repensar. Quis experimentar as aventuras propostas. O casal passou a frequentar festas de amor livre, ménages, sexo grupal. Entre as experiências sexuais que teve, divertiu-se. E todas essas, ele não estava presente. Passou a perceber que era sua ausência no sexo que a trazia prazer. Mas, mesmo assim, não o largou. Apenas excluiu a rotina que não fazia bem para sua relação, afinal, ele passou a se referir a ela como “puta” ou “vagabunda”, por ela, finalmente, sentir prazer. Encontrou recibos e camisinhas em seus bolsos, ao lavar suas roupas. O CNPJ era de um puteiro. Ela pediu para que ele parasse. Ele disse que pararia, mas, ao que tudo indica: deu de ombros. O ápice foi em uma crise interna. Estava desempregada, triste. Foi viajar com a mãe. Deixou-o por três dias. Ligou, pois queria ver os gatos em vídeo chamada. Ele ignorou-a. No dia seguinte, horas de briga e ele confessou: comendo uma puta. Dentro de um mês, ele estaria para fora de casa. No final de semana em que suas coisas já não habitassem o apartamento do casal, Beatriz reencontrou seus amigos liberais. Pela primeira em sua vida, dropou ácido. Pela primeira vez, o sexo foi completamente dedicado a ela. Foram quatro pessoas proporcionando prazer, de uma só vez, somente a ela. Chegou em seu apartamento tarde da noite. O apartamento estava
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vazio, apenas com o que a pertencia. Deitou em sua cama. Pôs-se a chorar. De felicidade, de angústia, de liberdade, não sabe. O efeito da droga atacou. Borboletas neon brilharam por seu quarto. Maravilhou-se até pegar no sono. Eram o fim dos anos de dor. “O que faz com que pessoas se mantenham nesse tipo de relação é sempre por questões delas mesmas, como por exemplo, uma pessoa extremamente insegura, ela acaba se deixando conduzir pelo outro. Uma pessoa extremamente carente, vê nessa relação um cuidado que ela nunca teve”, explicou Taís Soares, psicanalista e consultora de casais em sua clínica. Apenas quatro meses depois de findar um dos relacionamentos mais abusivo que essa escritora teve a oportunidade de ter conhecimento, Gabriel e Beatriz Alves moram juntos. Compraram um apartamento juntos. Ele a acorda com café da manhã na cama, faz o jantar. Lava a louça, a leva para viajar. A ama todas as noites como se fosse única. A ama como se todas as noites fossem as melhores de suas vidas. Beatriz Alves tem os cabelos azuis, olhos verdes, repleta de tatuagens coloridas e floridas. Usa calças jeans rasgadas, blusas monocromáticas com casacos altamente estilosos para a moda hipster do século XXI. Com um piercing na sobrancelha, a publicitária de 1,84 de altura, conquistou sua autonomia de volta quando percebeu seu valor, principalmente sexual. Reergueuse das cinzas pelo orgasmo de ser mulher. Sentiu-se mulher. Afastouse da dor de ser julgada como gorda. Abraçou-se. Compreendeu-se. Amou-se. Hoje, também ama Gabriel. Não temeu seu toque, e nem sua presença. Para ele, sabe que pode e deve entregar-se. Afinal, a diferença de ser tratada como um ser humano a fez compreender todo carinho que
tinha em seu peito, e aprendeu a doálo para quem a valoriza. Aprendeu a canalizar seu amor, sua energia, nas dóceis palavras que usa com quem a permeia. Beatriz Alves é uma Mulher. Beatriz Alves existe. Júlia passou três meses aproveitando a vida universitária como ninguém. Não queria saber de amarras. Ninguém tinha dono, amigos eram amantes. Contudo, a beletrista sabia que algo não estava certo. Desenvolveu crises súbitas de ansiedade e, falar de sentimentos? Isto nunca era uma opção com ninguém. Até Douglas entrar em sua vida. Como mais uma amizade que parecia inocente e prazerosa, ele se acomodou ao seu lado, tratando-a com respeito e admiração. “Estávamos em sua casa vendo filme, e do nada, peguei em sua mão e falei: “Acho que eu vou ter uma crise de pânico”. Eu já não conseguia respirar. Ele levantou na hora, me encostou em seu peito e começou a fazer exercício de respiração comigo. Eu pensei: “Meu Deus, uma pessoa que se disponibilizou a cuidar de mim, justo quando acho que estou ficando louca!”. E eu fiquei... bem confusa na
hora, mas feliz porque alguém tinha me ajudado”, disse rindo. Ela passou a perder o medo de amar, tendo segurança e estabilidade, garantindo que ele nunca a machucaria, mostrando amor e cuidado com suas necessidades. Júlia namora Douglas há três anos e nunca mais teve dúvidas sobre seu relacionamento saudável. Olívia, por outro lado, passou um ano solteira em Belo Horizonte. Teve de mudar de cidade, vivendo duras noites de choro e estudos sobre o que eram relacionamentos tóxicos. Passou a frequentar festas do interior de São Paulo, onde conheceu André, seu parceiro de vida. Foi ele compreender a liberdade que habita no espírito dessa Mulher, que encantou-a. A incentiva a sair, é sua companhia número um quando o assunto é pegar a estrada. No início, teve apreensão em viver o mesmo. Foram alguns meses para perceber que cada ação daquele novo homem, eram opostas ao que viveu. Conseguiu vê-lo como André. Dele, não escondeu nada de seu passado, que foi acolhido, apesar de questioná-la se também não
poderia carregar culpa, colocandose naquela situação. Mas culpa não se estendeu sobre ela. Canalizou sua experiência para entender o que não queria viver. Canalizou o medo para entender de onde vinham suas inseguranças. Era a má relação com o pai, proporcionando um vazio. Ressignificou-os. Hoje, ama André, sem receios, em um apartamento no Centro de São Paulo. Olívia se recuperou sozinha. Entendeu o que viveu e porque viveu, estudando a si mesma. É durante esse processo pós termino que a psicanalista, Taís, acredita que existem dois pontos cruciais para a superação: apoio familiar e terapia. Afinal, se entender e entender porque passou por isso são itens chave para compreender nossos vazios internos e preenchê-los com nós mesmos. Pelo menos, foi isso o que conclui. Conclui enquanto fumo um cigarro com Ludovico Einaldi como trilha sonora. Envolta em um cobertor de zebra, num domingo nublado, com o homem que afirmo: superar passados. Reencontrar a si. Empatia com o outro. E estar ao lado do amor da sua vida. Anemone123
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E
Beatriz Mazur Barboza
Wolfgang Claussen
la mostra uma pilha de comprimidos, as “morfinas companheiras da noite”, necessárias após um único dia de diversão. Para pacientes de doenças crônicas como Júlia, a escala de dor de um a dez tão querida pelos médicos não é ideal, mas como fazer alguém entender a natureza de uma dor que só você parece sentir? A resposta é que não é possível. Pelo menos não completamente. Segundo a Associação Internacional para o Estudo da Dor, a dor é “uma experiência sensorial ou emocional desagradável associada a lesão tecidular, real ou potencial, ou descrita em função dessa lesão”. Algo que todo ser humano já sentiu e vai sentir diversas vezes ao longo da vida, mas mesmo assim não é possível descrevê-la para que outra pessoa sinta exatamente o que
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você está sentindo. A dor não é um retrato falado; se assemelha mais à música: com seus altos e baixos, seus ritmos característicos e seus sentidos diferentes para cada indivíduo. Para pacientes de doenças raras e crônicas, o “ritmo” dessa sintonia é constante; notas agudas vêm e vão, mas a música continua. A mineira Júlia Machado, de 22 anos, canta sua história com a familiar prática e arranjo de um paciente crônico, que precisa explicar a situação com palavras complicadas e conceitos ainda mais complicados há muito tempo. Nasceu com uma má formação na articulação do quadril devido à síndrome de Ehlers-Danlos (um grupo de doenças hereditárias raras que afetam os tecidos conjuntivos do corpo); o tratamento foi refratário, ou seja, não surtiu os efeitos esperados, então aos 16 anos Júlia foi submetida a uma cirurgia no quadril. À procura do melhor profissional do Brasil para realizar o procedimento, ela e a família foram para o Rio Grande do Sul. Um evento que deveria servir como solução para a condição da jovem, porém, marcou o início de uma história que traria muita dor e muitos obstáculos: um erro médico foi cometido durante a cirurgia, e o nervo ciático de Júlia - o
maior do corpo humano e o local de junção de todas as raízes nervosas do plexo lombar - foi pinçado, estirado e comprimido. “Foi aí que tudo começou”, ela conta. “E é aquela história que tu já conhece, né. Por ser jovem, bonita e não sei o que, eles não acreditavam, falaram que era psicológico”. Júlia chegou a ouvir de médicos que ela não conseguia se mexer simplesmente porque “não queria”; que estava sendo dramática, fresca. Em uma situação tão assustadora e com tão pouca idade, ouvir tais palavras vindo das pessoas - dos profissionais - que deveriam ajudar machuca uma pessoa de um modo muito particular. Depois de seis semanas o tempo em que os médicos afirmavam que os sintomas de Júlia passariam - ela precisou fazer uma eletroneuromiografia. Na menção do nome do exame meu rosto involuntariamente se contorce em uma careta, relembrando minha própria experiência, e Júlia sorri do jeito característico que já vi algumas vezes: compreendendo, simpatizando, compartilhando. Trata-se de um exame bastante dolorido que Júlia realizou em Belo Horizonte. Mesmo com o resultado do teste, os médicos ainda não acreditavam em suas queixas - a submeteram ao mesmo exame novamente, agora no Rio Grande do Sul, onde a conclusão do teste foi exatamente igual a anterior. Então só então - as pessoas começaram a dar mais credibilidade aos relatos de Júlia. A lesão no nervo ciático havia dado origem a mais um problema: síndrome complexa de dor regional. A causa não é conhecida e, consequentemente, o tratamento permanente também não. Um tratamento específico chamado bloqueio, que provoca interrupção da via nociceptiva, finalmente forneceu alívio para as dores de Júlia. Quando foi repeti-lo em Belo Horizonte, no
entanto, Júlia sofreu uma hemorragia medular. “Pra variar, eles não acreditaram”, lembra. “Falaram que ia passar”. Não passou: o exame de líquor realizado em seguida mostrou que Júlia havia tido uma hemorragia medular que não foi tratada. De fato, foi completamente ignorada. Uma outra cirurgia foi realizada em 2018 na AACD, em São Paulo, dessa vez com foco no quadril direito. A síndrome de dor havia se espalhado; mais uma vez, após vários exames, outra doença foi descoberta: a siringomielia - uma degeneração medular progressiva de progressão lenta. Júlia passou a usar a cadeira de rodas definitivamente. “A partir daí é a saga que você já conhece”, comenta. “Fisioterapia, os médicos falam que não é possível… Mas eu acho que se a gente for levar tudo o que eles falam em consideração a gente acaba pirando, né?”. Se considera uma pessoa bastante realista, mas não acha que realismo signifique a perda de esperança. Tem fé. “Eu não sou uma estatística”, afirma, determinada, olhos brilhantes e voz firme - declarando um fato. “Pela ciência eu não estaria nem viva. Pela ciência eu não ficaria de pé. Pela ciência eu não teria a possibilidade de andar. E muitas dessas coisas eu já ultrapassei”. Júlia concorda que não é fácil. O pior, segundo ela, são os comentários de algumas pessoas. Relembra um episódio da semana passada que a chateou muito: Júlia, cadeirante, chegou no estágio e se deparou com o acompanhante de um paciente que, ao a avistar, exclamou em confusão e um senso de humor questionável: “Fisioterapeuta em cadeira de rodas?” O homem começou a rir histericamente. Júlia respirou fundo. De novo. De novo. Mais uma vez. Então respondeu: “Fazer o que, né? Mas pelo menos eu conheço o lugar do paciente e
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nunca vou fazer com os outros o que fizeram comigo”. Mesmo cercada pelo choque e mágoa, Júlia diz que devemos perdoar a ignorância alheia. “Só quem passa por uma situação de saúde complicada consegue enxergar o outro lado”, reflete. “A empatia é muito difícil de ser vista no mundo”. A futura fisioterapeuta tenta focar, portanto, em tudo que há de bom, e não abandona a fé em si mesma e em seu potencial - seja para o que for. De vez em quando, uma nuvem escura de dúvida ameaça cobrir a luz do sol: “e se não der certo?”. É um sussurro, uma pergunta quieta mas persistente. E se? Como tudo de Júlia, a resposta é repleta de uma sabedoria muito maior do que sua idade. “Pelo menos eu vou ter minha consciência limpa, sabe? Eu vou poder pensar: ‘não, eu fiz tudo que eu poderia fazer para melhorar, para ter uma boa qualidade de vida’.” Além disso, Júlia valoriza muito a chance de poder ajudar outras pessoas. Ninguém deveria ser obrigado a carregar o fardo surpreendentemente pesado de ser um “exemplo”, “uma inspiração”. Mas é o que acontece, e a oportunidade de usar isso para ajudar os outros é o que faz as coisas valerem a pena. Simplesmente compartilhar uma história pode transformar a vida de alguém. Os estereótipos e expectativas que as pessoas têm para pacientes com síndromes parecidas com as de Júlia não tornam as coisas mais fáceis. “Dor crônica não é a mesma coisa que dor aguda” - é um mantra que precisa explicar constantemente. Depois de viver anos, décadas com dor, a pessoa se acostuma. Esta pessoa estar mexendo no celular, rindo, socializando não significa que está fingindo. “Pelo contrário”, diz Júlia, “a gente finge justamente que não tá com dor”. A dor aguda é uma reação, um alerta do corpo. Para pacientes crônicos, a dor é uma companheira;
às vezes é ignorada, às vezes faz questão de tomar conta do palco. Na maior parte do tempo, anda ao seu lado, esperando que você a olhe de volta. Para Polyana Silva Costa, de 30 anos, sua jornada se consolidou na vida adulta; mas os sinais estavam lá desde a infância. Polyana, hoje uma dedicada enfermeira, se lembra de acordar no meio da noite gritando por causa de sua dor nas pernas quando era criança. A hipermobilidade (hoje conhecida como uma das características da síndrome de Ehlers-Danlos) parecia inofensiva, ainda que durante a adolescência os problemas gastrointestinais estivessem se agravando. Durante seu último ano de faculdade, porém, o mundo da baiana virou de cabeça para baixo. Tumores ósseos começaram a se manifestar e Polyana foi submetida a várias cirurgias; depois de uma delas, o pé operado infeccionou, resultando em 6 cirurgias nos pés. “Foi um tormento na minha vida”, lembra. Sempre determinada e dedicada à sua educação e futura profissão, não poder comparecer aos estágios era uma enorme frustração para Polyana. Enquanto fazia residência em São Paulo na área de Oncologia,
Polyana passou por 4 cirurgias para a reconstrução do ligamento fêmuro-patelar dos joelhos. Quando se mudou para a cidade, exausta com a piora das dores no corpo e desidratação, precisou realizar ainda mais uma cirurgia por causa de um novo tumor ósseo no pé; um procedimento que acabou em uma Osteomielite, inflamação dos ossos causada por infecção. Tudo isso se juntou ao surgimento de cada vez mais alergias medicamentosas - o que atrapalhava consideravelmente o tratamento. Em 2018, Polyana voltou à Bahia para realizar um estágio optativo. Um novo ano, uma nova oportunidade mas a vida não parecia querer dar à Polyana uma chance para descansar. Uma gastrointerite infecciosa a levou a mais uma internação e evoluiu para uma colite pseudomembranosa - a partir desse ponto, suspeitas de alguma doença rara se fortificaram, já que as infecções eram incessantes. Polyana tenta listar todas de 2018 a 2019 mas perde a conta, e os nomes das diferentes enfermidades se confundem. Primeiro foi confirmada sua Síndrome de Ativação Matocitária, causadora de suas várias alergias. Depois, quando a situação estava
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insustentável, procurou uma geneticista. Assim descobriu que possuía Síndrome Auto Inflamatória Familiar Tipo 2 Induzida Pelo Frio e a Síndrome de Enhler-Danlors. Mas as respostas, apesar de bem vindas, não resolviam os problemas, e Polyana se encontrava mais cansada do que nunca. “Começou a me desestruturar”, relembra. As reações de algumas pessoas da família após o diagnóstico não ajudaram. Como todo paciente de doença rara, diz Polyana, ouviu centenas de “isso é coisa da sua cabeça”; “menina, tem que procurar a igreja”; “você já fez tal e tal coisa?”; “por que fica procurando problema onde não tem?”. Polyana é prática: “Pra algumas pessoas eu explico; pra outras, eu nem perco meu tempo.” Polyana é cuidadosa com seu tempo. É um bem precioso, destinado a ser utilizado para trabalhar, estudar e ajudar as pessoas. Por isso, perdêlo por razões injustas é ainda mais frustrante - e o que mais acontece com pacientes de doenças raras no Brasil. “Hoje o que eu acho mais difícil em ter doença rara é não ter recurso. Você sabe do que eu to falando”, declara. “Quando você não tem uma estrutura financeira muito favorável”. Polyana deveria ter vindo
à São Paulo essa semana para uma consulta com um médico da cidade reservada para designar um novo tratamento; não pôde fazer a viagem. A enfermeira também é, e sempre foi, independente; sua mãe nem sabe que está internada por causa de um sangramento nesse exato momento. Tão independente que se molda para criar o necessário do nada. “Aqui na Bahia é muito difícil, ninguém entende”, ela diz, e então revela: “Os médicos não sabem o que é, e eu que estou estudando junto com eles pra poder ajudálos.” Polyana tem a força de um soldado, mas até soldados caem às vezes. E tudo bem. “Fica cada vez mais difícil”, admite. “Às vezes eu acho que tô dando murro em ponta de faca ou tô nadando, nadando, nadando e vou morrer afogada, sabe? Tenho vontade de desistir sim.” As palavras são dolorosas de ouvir. Mas a batalha continua, e Polyana continua a “matar um leão por dia”, como ela mesma diz. Polyana menciona, inclusive, que pretende procurar acompanhamento psicológico - mais uma vitória para a Mulher Maravilha. Polyana e Júlia são tão diferentes mas tão similares ao mesmo, assim como todos os pacientes de doenças raras e crônicas. Todos têm, afinal, uma companheira em comum: a dor. A física, obviamente, e a outra, mais íntima. A negação, a desconfiança, os olhares tortos, a impaciência podem vir de qualquer um: família, amigos, colegas, estranhos, médicos. Júlia recorda a fala de uma professora que duvidou da sua condição: “você acha que alguém com dor crônica
consegue fazer faculdade, namorar, ter amigos?”. Por outro lado, momentos de crise e situações extremas podem revelar quais relações são verdadeiras e quais não são. Júlia já teve que lidar com pessoas próximas se afastando por causa de sua condição, mas também ganhou muitas relações novas e mais fortes. “Acabam sendo vínculos mais fortes quando são criados em momentos de dificuldade”, Júlia pondera. A comunidade de pacientes de doenças raras no Brasil, inclusive, é muito maior do que alguns pensariam, e ainda mais unida. Vários portais foram criados nos últimos anos, permitindo a formação de um grupo e de amizades que beneficiam todas as partes. Um exemplo é o Muitos Somos Raros, em parceria com A Frente Parlamentar Mista de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras (FPMDR). A troca não apenas de informação, mas de experiências, aproxima as pessoas
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de modo muito especial. Ainda há um longo caminho pela frente, mas Fábio Ivankovich, criador do projeto “Cada passo importa” - que resultou na criação de um gibi especial da Turma da Mônica apresentando Edu, um personagem com Distrofia Muscular de Duchenne e diretorgeral da Sarepta Therapeutics que desenvolve medicamentos para doenças neuromusculares raras - tem uma boa visão para o futuro. Em uma entrevista para o Muitos Somos Raros, afirmou que nos últimos anos passou a ver o ambiente de doenças raras no Brasil com mais esperança devido ao crescimento da conscientização, do acesso à informação e da possibilidade de uma futura legislação sobre o assunto. Ao entrevistar Júlia e Polyana é fácil esquecer, às vezes, de que se está conduzindo uma entrevista e não uma conversa: falar com alguém que entende o que você passa é uma experiência libertadora e terapêutica. Nos identificar, compartilhar histórias, apoiar uns aos outros, reclamar e ouvir tanto as reclamações e frustrações quanto os eventuais triunfos de uma vida tão separada mas tão próxima da sua. O que queremos - e necessitamos como seres humanos é saber que não estamos sozinhos. Queremos que nossas melodias, por mais dolorosas que sejam, se encontrem e se encaixem, mesmo que apenas por um momento, em harmonia. Precisamos compartilhar a dor não apesar da sua dimensão mas por causa dela - não para punir o outro ou por egoísmo mas por solidariedade e compaixão. Como alguém com doença rara, não é diferente.
e inseguranças no mercado de trabalho afligem jovens
P Caio Simões
Mohamed Hassan
esquisa de 2015 do Núcleo Brasileiro de Estágios aponta que 46,06% dos jovens têm dificuldades para conseguir emprego e 43,7% sentem insegurança a respeito do futuro. A baixa demanda de oportunidades e a alta concorrência derrubam as expectativas criadas ao longo da adolescência. Além disso, a crise econômica e o alto índice de desemprego também geram preocupações. Marcelo Bomfim, 20, tinha convicção na sua vocação: educação física. Hoje, é aluno de arquitetura da Anhembi Morumbi. Fã de musculação e curioso em descobrir como o corpo funciona, Marcelo era motivado para entrar nessa área, mas as coisas foram para outro rumo. A situação foi diferente para João Aires, 21 anos. Desde sua adolescência encarou a pressão dos pais para a escolha de uma faculdade para que ele pudesse ter um bom futuro. Sem se identificar com nenhum curso, João ingressou no mercado de trabalho logo cedo. “Sei que vou ter que bancar minha
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faculdade. Meu pai por muito tempo estava desempregado, então comecei a procurar emprego para ajudar nas contas de casa. É o que venho fazendo desde os meus 16 anos”. Esse problema Marcelo nunca teve. Sua motivação de trabalhar era bancar suas próprias despesas. Mas o certo na vida se tornou uma incerteza. Após dois anos em educação física, percebeu que o curso não garantia um lugar no mercado de trabalho e perdeu o interesse. “Queria ter saído depois de um ano, mas meus pais insistiram que eu continuasse no curso por todo dinheiro investido”. Formado em engenharia mecânica pela Mauá, Vinicius Cruz, 27 anos, ficou três anos desempregado logo após sair da faculdade. Em um país com mais de 13 milhões de desempregados e com a alta concorrência por vagas de emprego, Vinícius não via outra alternativa a não ser aprimorar suas habilidades e investir em uma pósgraduação. Após dois anos estudando no Centro Universitário FEI, portas começaram a se abrir. “Recebi duas oportunidades de emprego, uma aqui em São Paulo e outra no interior, em Araçatuba”. Aceitou a segunda. Agora, com bom salário e se virando sozinho, encontrou aquilo que buscava na faculdade. Aprimorar as habilidades também é um dos objetivos de João Aires. “Acredito que para um cara da minha
idade tenho uma boa experiência. Já passei por cinco empregos até agora, o atual é jovem aprendiz na Toyota. Isso acaba me dando mais confiança para continuar no mercado de trabalho”. Apesar de não saber o que fazer de faculdade, João parece decidido com seu futuro.“Pretendo prestar concurso público para entrar no exército. Sempre gostei de treinamento militar e dos equipamentos bélicos”. Além disso, a estabilidade que a carreira proporciona é algo que também o atrai. Em outros casos, muitas pessoas já sabem o que querem para suas vidas, como é o caso de Stefanie Grigio, de 19 anos, estudante de odontologia da faculdade Mount San Antonio College, nos Estados Unidos. “Sempre quis ser dentista, desde os meus 12 anos. Quando fui ficando mais velha, procurei a respeito do curso e me identifiquei bastante, não me arrependo da decisão”. Stefanie morava aqui em São Paulo, mas seu padrasto foi transferido para a Califórnia no ano passado. O que era uma situação bastante segura em relação ao seu futuro profissional acabou trazendo preocupações. “O custo de faculdade aqui nos Estados Unidos é muito alto, muito mais que no Brasil. Pensei em procurar emprego para ajudar nas despesas, mas após eu conversar com
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minha mãe e meu padrasto, fiquei mais aliviada pela segurança que me passaram em relação à situação financeira”. Mencionei a questão dos salários nos Estados Unidos para Vinícius e ele me contou sua visão a respeito. “O salário mínimo aqui no país é muito baixo, e com a crise, muitos empregos acabam não pagando bem. Esse é um dos motivos que faz com que o Brasil seja um país muito desigual. E isso com certeza afeta a motivação de qualquer pessoa que queira entrar no mercado de trabalho”. Apesar das expectativas em relação ao mercado de trabalho terem sido abaladas, nenhum deles desistiu de buscar o que almejam. Hoje, Vinicius está contente com o emprego atual e sua vida em Araçatuba. Marcelo está muito entusiasmado com o curso e suas atividades em seu primeiro semestre no curso de Arquitetura. Stefanie está muito mais segura de si mesma agora com sua vida profissional e está batalhando para ganhar experiência em um mercado competitivo como o americano. Por último, mas não menos importante, João Vitor Aires, apesar de atualmente não estar cursando faculdade do jeito que seus pais queriam, está feliz que tenha se decidido em relação ao que buscar daqui para frente e agora está determinado nos estudos para conseguir a vaga no concurso público.
As mulheres que questionaram a morte
E
Camila Oliveira statísticas não são seletivas. Não há rosto, cor, idade ou nome. Portanto, pelo advento da biologia, cada personagem que compõe um número é filho de alguém. No Brasil, cada uma das 67 milhões de mães carrega o medo de que a morte chegue mais cedo que o esperado em suas famílias. Aos 11 anos, João Victor Oliveira, se tornou uma das 215.000 crianças com menos de 15 anos diagnosticadas com câncer, por ano, no Brasil. O tumor foi encontrado acima da orelha superior, durante uma tomografia para tratar de um abscesso na garganta. Para o paciente foi explicado que um feijãozinho havia nascido no lugar errado. Para o restante da família foi pedido força e união. Para os médicos foi implorado por mais certeza, exames e explicações. Para o tumor foi requisitada a sua saída. João teve de passar por uma cirurgia para retirada do tumor. Foram oito horas em que Rachel não conseguia pensar ou comer nada, só na vida de seu filho. “Ele é tão brincalhão que tirou uma selfie antes de ir”, a recordação virou plano de fundo do seu celular. Durante meses, a rotina da família foi abalada e tudo parecia incerto. Rachel Oliveira hoje vê a descoberta como uma benção. “Foram tempos difíceis que salvaram meu filho”. Como toda mãe, sua preocupação foi e ainda é frequente, mas na fé e na
união foi encontrado um refúgio. Quando a fragilidade humana é testada, a forma de reagir também definirá o impacto do acontecimento. Situações de estresse causadas por doença de familiar podem ocasionar desequilíbrio emocional, afastamento, desnutrição e até crises psicológicas.
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A união familiar também faz parte do processo de cura, tanto para o paciente como para os envolvidos. “Todo apoio é necessário para que os envolvidos se estruturem emocionalmente”, explica Luciana Takeuti, terapeuta quântica que foca em curar pessoas de seus traumas. “Acho que isso que é importante no mundo, as pessoas se colocarem no
lugar dos outros”. O apoio de amigos, familiares e alunos foi essencial para Valéria Martins, que perdeu seu marido, Alexandre Huady, enquanto estava grávida de sete meses. A morte súbita de Alexandre foi causada por um ataque fulminante do miocárdio, o qual foi presenciado pela esposa. Ele estava retornando de uma corrida matinal da qual estava habituado. Valéria sempre o acompanhava mas, por estar grávida de sete meses, ficava de repouso. “No primeiro momento tentei não me desesperar para não afetar o bebê, mas após anunciada a morte, os médicos me levaram para a maternidade”. Após uma semana do acontecido, Pedro nasceu prematuro sem ter desenvolvido o pulmão, um dos últimos órgãos a serem formados e, por conta disso, teve de ser encaminhado para a UTI. E mais uma vez a rotina de Valéria foi abalada e suas preocupações eram constantes. “Mãe de UTI vai para casa com mais medo do que outras mães de hospital”. Rachel também levava consigo as recordações de seus momentos da UTI com João. Na primeira noite após a cirurgia, um bebê faleceu no quarto ao lado por problemas respiratórios. “Eu ouvia a mãe gritar, me coloquei no lugar dela”. Assim como Rachel presenciou, mães de UTI nem sempre retornam para casa com boas notícias. Ednalva Catapreta, aos 53 anos, perdeu seu filho Alexandre Catapreta, com 25 anos, em um acidente de trabalho dois dias após o Natal de 2011. Alexandre foi auxiliar um colega a levantar uma peça da empilhadeira que estava com defeito. Porém, o objeto se desprendeu e caiu em cima de sua cabeça desprotegida. Das 9h30 às 16h, foi levado de hospital em hospital com 1% de chance de sobreviver. “Se ficasse vivo, ele ia sofrer mais ainda porque ficaria vegetando”. Como mãe, ela ainda se culpava
dos erros cometidos durante a infância de Alexandre e assume que a parte mais difícil é falar de quem ele foi e como foi a sua criação. “Ele foi meu companheiro a vida toda”. Alexandre era cuidadoso com sua família e começou a trabalhar aos 15 anos para ajudar com as contas. Para Luciana, os casos em que as mães perdem os filhos são mais difíceis de curar. Seus pacientes contam histórias em que sofreram acidentes de carro com os filhos ao lado ou que perderam os filhos por suicídio em decorrência de distúrbios psicológicos. “Muitas destas mães chegam seu sentido para continuar a viver, mas trabalho na cura interior para que elas possam continuar”. Em um país em que a taxa de mortalidade é de 6,6 mortes a cada mil habitantes, cada participante de uma história que chegou ao fim tem o seu processo de luto. Uma mulher que perdeu seu marido, uma irmã que perdeu um irmão, uma mãe que perdeu um filho. Quem se foi deixa história, deixa amor e, claro, saudade. A cura é gradativa. Luciana explica que cada pessoa tem o seu tempo para processar o acontecimento e reintegrar sua vida de forma com que o trauma não consuma seu emocional e leve a complicações psicológicas. “A cura vem da aceitação e sua constante aplicação da aprendizagem na vida dos envolvidos”. Rachel vive diariamente as consequências do impacto da cirurgia na vida de seu filho. João ainda se apega muito ao fato de ter tido a doença e usa o acontecido como uma maneira de livrar-se de certos hábitos que não são de seu interesse, como praticar esportes ou comer mais saudável. Além de uma certa rebeldia de João, tomografias, ressonâncias e radiografias agora fazem parte da rotina da família Oliveira. Sem contar o anticonvulsivo que precisa ser tomado duas vezes ao dia. “Por
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mais que seja difícil, ele é meu filho e nunca vou desistir dele”. Já Valéria teve de lidar com a ausência do marido enquanto criava seu filho Pedro. “Eu não perdi qualquer marido, eu perdi o marido”. A sua ideia de família, portanto, não existe mais. “Alexandre foi ótimo durante toda a gravidez, parece até que ele sabia o que ia acontecer”. Hoje, ela vive um dia de cada vez. A tristeza, portanto, é uma companheira incerta pois sabe que enfrentará dias bons e ruins ao longo do crescimento de Pedro. Datas como Dia dos Pais na escola serão difíceis, mas Valéria pretende manter a memória de Alexandre viva para que o Pedro entenda que tem um pai. Ele só não está no mesmo plano. Ednalva faz parte de um grupo de mães que também perderam seus filhos e segue com acompanhamento psicológico e ajuda de remédios. “Nunca vai tá bem, vai tá sempre faltando uma parte”. Seu luto ainda é visível, mas ela encontra refúgio na fé. Fotos, terços e lembranças de Alexandre não faltam em sua casa. Há um retrato perto da televisão, outro no hall e um altar na cozinha. Na casa de Ednalva, o processo de luto é diferente para os envolvidos. Enquanto a mãe falava sobre o filho para sentir a sua presença, Daniel Catapreta, seu pai, preferia não falar sobre, pois sentir a presença do filho causava muita dor. Já Lívia, irmã de Alexandre, segue os conselhos deixados. “Se ele estivesse aqui, estaria me dizendo para ir ganhar o mundo”. A memória está viva e assim permanecerá porque, como ela mesma diz, uma mãe nunca esquece um filho. Ednalva conta que seus piores momentos são próximos ao aniversário de Alexandre. Ela não canta mais Parabéns para você em aniversários. «A parte do muitos anos de vida não me agrada muito”. A última vez foi na missa de aniversário de Alexandre, em novembro de 2011, antes do acidente.
à brasileira
A
Fábio Ribeiro Barreto
Joseph V M
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paraense Didi é ajudante doméstica na capital paulista e parte da família vive na pobreza, mas tem uma prima que “paga de patricinha e lindinha”. Suas linhas de expressão marcadas pelo tempo não escondem a inconformidade com a parente que se casou com um homem rico: “A gente ri da cara dela, a gente chama ela de pobre menina rica, porque ela quis essa vida: que dá ouro, que dá prata, mas é infeliz.” O contrastante drama familiar de Didi demonstra muito sobre a realidade existente na sociedade brasileira. Ao longo dos últimos sete anos, mais de 500 mil brasileiros juntaram-se aos outros 15 milhões que vivem em situação de extrema miséria no país. Tal definição é dada aos que sobrevivem com um salário inferior a um dólar americano por dia, de acordo com dados do Banco Mundial. Tudo isso enquanto os 10% mais ricos da população acumulam quase metade do total dos recursos. Tal desigualdade chega a se tornar física ao andar pelas ruas e becos de São Paulo, maior cidade do país. Mendigos em todos os cantos implorando por uma melhora de vida, ambulantes espalhados por todas as linhas do metrô e até mesmo refugiados vendendo os mais variados alimentos nas esquinas mais movimentadas. Cada um vivendo como pode, tentando fechar as contas ao final do mês de maneira honesta. Um dos exemplos é Nicolas
Likens, haitiano de 29 anos que sustenta seu filho de apenas dois anos sem um trabalho fixo ou fonte confiável de renda, realizando pequenos bicos por toda a capital paulista. Mas ele é apenas uma história tocante entre os mais de 172.288 de refugiados do país. Dentre esse total, apenas 11.231 já foram reconhecidos e devidamente regulamentados, enquanto os outros 161.057 aguardam as solicitações de reconhecimento da condição de refugiado. A maioria possui origem síria, congolesa, angolana, colombiana, venezuelana ou haitiana, como no caso de Nicolas. Na capital paulista há quase seis anos, saiu do Haiti por motivos políticos. Trabalhou vendendo água, carregadores e capinhas de celular em faróis de trânsito na divisa entre seu país natal e a República Dominicana, até juntar ou dinheiro suficiente para um passaporte e todos os custos para mudar-se para o Brasil. Teve de abandonar a escola para trabalhar em sua adolescência porque o governo não está trabalhando muito bem no Haiti, principalmente com a falta de incentivos aos jovens, que ficam sem oportunidades de emprego ou estudo. “A gente vê que o político não está fazendo nada, aí a gente sai”. Chegando aqui, não contou com a ajuda de qualquer ONG e decidiu se virar sozinho. Em seu primeiro trabalho regulamentado, em uma importadora de alumínio, recebeu com bom humor as brincadeiras de seus colegas: “os caras me chamavam de piche. Piche é meu pau”. Com português claro e pronúncia quase perfeita, aprendeu a língua por insistência e ouvindo de canto de ouvido as conversas alheias. O queriam de volta na empresa, mas não volta, já que o salário é muito baixo. Utilizando sua mente empreendedora e espírito investidor, juntou dinheiro suficiente para alugar um terreno e montar uma pequena
quitanda, mas não deu sorte e o negócio acabou falindo. “Estava indo bem no início, mas foi na época em que as frutas estavam muito caras”. O período em questão foi a crise dos caminhoneiros, ocorrida em 2017. Com o resto do dinheiro da quitanda, começou a vender morangos na saída da estação do metrô São Joaquim. Local em que me contou sobre sua vida. Inesperadamente, parou de contar sua história e começou a tirar as caixas de dentro da estação sob o olhar atento do guarda. Ocupado e dedicado, hoje Nicolas também virou religioso: dedica boa parte de seu tempo livre à igreja adventista e até compõe algumas canções para a banda do culto. Confidenciou-me batendo forte em seu peito que “tudo o que você buscar, perto de Deus, você vai conseguir. Mas tem que confiar, tem que ter fé”. Parecia que o haitiano não falava comigo, mas repetia o dogma para si mesmo, como se fosse um mantra milagroso que curaria todos os problemas da vida. Ainda sonha com um retorno ao Haiti, ser dono de um negócio de sucesso e uma vida melhor ao filho de dois anos. Apesar das dificuldades e a distância de casa, Nicolas ainda se encontra com uma vantagem: possui uma casa para chamar de sua. Uma pesquisa realizada pelo IPEA em 2017 constatou que Brasil conta com mais de 100.000 moradores de rua, sendo 20.000 somente em São Paulo. Alarmante, o número cresceu 25% nos últimos quatro anos, de acordo com a Folha de S. Paulo. Apenas um indivíduo de tal estatística, Robson Novaes, também conhecido como o Baiano da Sé, está há três anos em situação de rua. A principal causa é a cocaína, mas deixou a droga de lado e está sem usála há meses, hoje vive “só de cigarro e cachaça”. De corrente de ouro, camisa listrada da Tommy Hilfiger aberta até o peito e tênis esportivo
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com amortecedor e cadarço roxo, ele pede desculpas pelo estado sujo das roupas e diz que quando não dá mais para usá-las, ele as joga fora e arranja outras. Contava a deprimente situação pela qual os moradores de rua passam no centro de São Paulo e pedia por ajuda quando interrompeu sua fala e apontou para uma senhora de óculos escuros e uma enorme bolsa de couro sentada num banco próximo, apresentando-a. “Tá vendo aquela mulher ali? Ela pode te arranjar qualquer documento que precisar.” Parque Dom Pedro, Bela Vista e Sé: são apenas alguns dos inúmeros bairros em que os ambulantes e moradores de rua disputam pau a pau o espaço com os pedestres. Robson apelida tais regiões de segundo mundo, que é onde o filho chora e mãe não vê. “Tô falando por todos que vivem aqui, que passam a maior dificuldade quando chove, tem um rapa que leva tudo: tira o papelão, tira o cobertor”, mas Robson não é amargurado, não rouba e procura ser correto, “só Deus por nós”. Apesar do estado embriagado e palavras enroladas na agitação em demonstrar tamanha inquietação, Baiano da Sé tem seu lado engajado e enfatiza que a solução para a desigualdade na sociedade brasileira reside nas mãos do governo: “quero saber o que o governo vai fazer pra isso! O Bolsonaro não tá nem aí.” “A gente não é cachorro, somos seres humanos, correto?!” me perguntou, como se esperasse a minha confirmação e estivesse em dúvida quanto à definição de si mesmo. Em época de aperto financeiro é assim, cada um levando como pode. Uns vendem documentos, sofrem com altos contrastes dentro da própria família, mudam de vício e o resto arranja bicos para sustentar um sonho antigo de melhora de vida. Cada um remando seu barco de acordo com uma maré interior, esperando que o mar volte a ter peixe.
superando limites DrSJS
Fisiculturismo é um esporte que leva o corpo próximo do limite, com o objetivo de ganhar o máximo de massa muscular e o mínimo de gordura o atleta deve seguir uma rotina impecável, na busca da melhor versão de si mesmo. Uma rotina de treinos, contagem exata de calorias consumidas e o uso de drogas para melhorar o desempenho, não existe receita de bolo, mas basicamente são esses 3 passos que todo atleta segue. Após 5 anos de treino pesado, estratégias variadas de dieta e um recente uso de esteroides anabolizantes, Marco Antônio se prepara para sua primeira competição no fisiculturismo, com 29 anos, um início tardio para quem busca uma carreira nesse esporte. A 4 meses do campeonato, com 111 quilos, Marco inicia seu protocolo de cutting, onde todos os seus esforços são para diminuir o nível de gordura e manter os músculos conquistados nos anos de academia. Os últimos 3 meses foram usados para ganhar peso, com um superávit de 600 calorias, e para o início da preparação ainda não se mexe tanto na rotina, “Geralmente não mexe
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em muita coisa no começo, senão você perde a referência do que está funcionando, e dá um choque muito grande e desnecessário no seu corpo”. Nesse momento a única mudança na estratégia passada pelo treinador de Marco, Rubens Gomes, foi na quantidade de calorias consumidas, agora ele entra em um déficit de 500 calorias, consumindo 2900 diariamente, com seus macronutrientes divididos em 327 g de carboidratos, 70 g de gordura e 260 de proteínas. A estratégia é seguida diariamente, bater a meta de macros, fazer um cardio em jejum e um treino de musculação do grupo muscular da vez. Esse é o básico e o mais difícil, mas para chegar no nível competitivo ainda não é suficiente, glutamina, carnitina, creatina, lactobacilos, multivitamínico, termogênico, citrulina, tadalafil, norvaline, whey protein, melatonina, 5htp, Gaba, Mk-677 são suplementos usados nessa fase, aumento de desempenho no treino, melhor transporte de nutrientes pelo corpo, maior imunidade, sono com mais qualidade e aceleração do metabolismo são alguns dos efeitos esperados com o uso deles. Mas ainda existe um lado mais obscuro na preparação de um atleta de fisiculturismo, durateston, boldenona, stanozolol oleoso , GH, propionato, masteron, trembolona e clenbuterol, hormônios sintéticos e drogas que vão acompanhar Marco na sua primeira vez nos palcos, substâncias que potencializam toda a dedicação na dieta e no treino, levando o corpo a uma condição além da que ele chegaria naturalmente, mas com um preço, nada do que foi listado deve ser usado sem cuidados, exames médicos são indispensáveis, efeitos colaterais não são incomuns e em casos extremos um erro pode ser fatal, “eu realmente estou fazendo isso com a pretensão de competir e quero chegar bem, dando meu melhor tanto na alimentação quanto
no treino ”. Marco sabe os riscos do uso dessas substâncias, e por isso o conhecimento é seu aliado, tanto dele como dos que estão próximos nessa preparação, saber o que está entrando em suas veias tranquiliza sua cabeça e assim corpo e mente podem trabalhar juntos em busca do melhor físico da sua vida. A preparação vai andando e as estratégias vão mudando, após o peso estagnar em 105 quilos a medida para queimar mais calorias é aumentar 1 km na distância do cardio e diminuir as calorias, faltando 3 meses para o campeonato, é hora de começar com grandes mudanças. Com os macros apertando chega a hora de usar alimentos mais limpos para conseguir um volume maior de comida, cada vez mais os alimentos com maior densidade calórica perdem espaço em prol de maior saciedade. A mudança nos macros vem da necessidade de acelerar a queima de gordura antes de mudanças mais bruscas na preparação. O treinamento na academia tem foco nos principais músculos que um atleta da categoria men’s physique precisa mostrar nos palcos: deltoides, costas e peitoral, que bem alinhados com uma cintura fina são os pontos mais avaliados pelos árbitros. Dividido em 5 dias de treino e 1 de descanso Marco deve trabalhar cada músculo 1 vez na semana, deixando tempo para ele se recuperar. Na metade da preparação Rubens muda a estratégia na dieta de Marco, a partir de agora ele não tem mais uma mesma meta diária de macronutrientes, agora ele segue um ciclo de carboidratos dividido entre 3 dias de carbo baixo e 1 de carbo alto, nos dias de baixo os macros são divididos em 160 g de carboidratos, 255 g de proteínas e 71 g de gordura, no dia de carbo alto os carboidratos sobem para 380 g, as proteínas caem para 188 g e a gordura vai para 162 g, dessa forma ele recupera o
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glicogênio nas células e tem melhor desempenho nos treinos. O ciclo de esteroides também muda nessa fase, e agora até o fim da preparação as agulhadas são diárias. Com a dieta cada vez mais apertada e começando a sentir fome, Marco busca saciedade nas chamadas receitas fit, e ensina a preparação de uma “panqueca zero”: 2 claras e 1 ovo inteiro, 30g de whey, cacau em pó, canela e adoçante, mistura tudo, joga na frigideira e pronto, “ é uma coisa que se você come quando tá tentando ganhar peso, você não vai sentir gosto de nada, mas nessa fase é a coisa mais gostosa do mundo.” Faltando um mês para a competição a fase final da preparação começa, antes era passada uma meta de macronutrientes e Marco tinha liberdade para cumpri-las com os alimentos que quisesse, mas a fim de ter mais controle para acertar os últimos detalhes Rubens passou um cardápio fechado para ele seguir. Dividido em 6 refeições por dia o cardápio conta com alimentos bem básicos na dieta de qualquer bodybuilder, frango, ovo, castanhas, patinho, legumes verdes, tilápia, batata doce e outros. O número de calorias totais subiu, mas parte da alimentação que era composta por carboidratos foi substituída por proteínas, que tem uma estrutura mais complexa, fazendo com que o corpo tenha mais trabalho para digerir, resultando em um efeito termogênico da dieta. Duas semanas para a competição, como parte da estratégia Marco já viaja para o lugar da competição, Flórida, nos Estados Unidos, lá ele vai ficar na casa do seu treinador acertando o físico para o palco. Nesse momento a dieta está ainda mais controlada, os dias de baixo carbo foram substituídos por dias com zero carbo, refeições com apenas frango e brócolis são majoritárias, nessa fase também se inicia a super-hidratação, com uma meta de 8 litros de água por dia, com o objetivo de fazer o corpo
Skeeze
liberar cada vez mais água, uma vez que ele tem mais que o suficiente “vou no banheiro o dia inteiro, a cada 15 minutos”. Na última semana da preparação o treino tem o objetivo de depletar o corpo, tirar todo o excesso de água, sem muita força, o risco de lesão é maior agora que, com pouca comida, o corpo está sem energia. Os 8 litros de água de antes diminuíram para 1,2 L, com o corpo acostumado a jogar água fora, essa estratégia tira o excesso de água extracelular no corpo. Um dia antes da competição a água está barrada, o último treino já foi feito e apesar de cansado Marco ainda tem forças para sorrir, ele sabe que fez seu melhor, seu 100%, o resultado no palco não importa mais tanto assim, ele conquistou o melhor físico da sua vida. Antes de ir dormir ele recebe uma surpresa de seu
treinador, uma barra de chocolate, parte da estratégia para encher o corpo para a competição, após tanto tempo sem carboidrato os músculos absorvem toda a glicose, que leva junto dela todo restante de água para dentro das células. Chega o dia da competição, dormir não foi fácil, a mistura de ansiedade, fome e sede não é a mais confortável, de pé às 6 da manhã a estratégia de encher o físico continua com um café da manhã com panquecas e bacon, depois disso é esperar, ir para o backstage da competição, fazer alguns exercícios para levar sangue para os músculos e posar para os árbitros. Em cima do palco ele é tomado por uma felicidade sentida poucas vezes na vida, o nervosismo que ele estava esperando, não veio, o foco é mostrar o resultado em 117 dias de preparação, cada pose é
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acompanhada de um sorriso sincero, cada confronto é feito buscando agradar os árbitros, a primeira vez nos palcos acabou com a certeza de que o seu melhor foi feito. Se passou a preparação, Marco não se classificou para as finais em nenhuma das categorias, se engana quem acha que a preparação foi equivocada, diferente de outros esportes, o fisiculturismo não pode ser vencido com sorte, com uma jogada milagrosa, “são anos de preparação esculpindo seu corpo para melhorar cada vez mais, não é uma corrida, é uma maratona, onde o adversário é você mesmo”, passado a competição o próximo passo de Marco e voltar para casa, aproveitar alguns dias de refeição livre e começar tudo de novo, faltam 6 meses para a próxima competição.
Engin_Akyurt
“A
Gabriel Sabatini
porta fechou, o perigo passou”, essa é a frase mais escutada nos metrôs e trens de São Paulo. Gritada pelos ambulantes, o tal perigo são os guardas, chamados também de urubus por confiscar suas mercadorias. “Se não tirarmos deles somos nós quem vamos ter que vender coisas no vagão”, ri de canto boca o vigia Fabiano, impotente diante da situação. “Só sigo as ordens que pagam meu salário”. O auditório dos marreteiros, como eles se denominam, é composto por caras emburradas e olhares
exaustos. Isso quando as pálpebras não os sobrepõem, compensando as horas de sono atrasadas. É notável a diferença de comportamento entre quem está passeando pela cidade e os frequentadores do transporte ferroviário ao retornar do trabalho. As piadas e frases impactantes perdem a emoção depois da décima vez em que é escutada. Jonathan, vendedor de chocolates nos vagões, garante que a padronização ainda surte efeito. O jovem negro de estatura média e cabelo raspado com dois risquinhos laterais, apesar da pouca idade possui experiência no ramo. “Já vendi de tudo por aqui, agora estou vendendo chocolate porque vi que uns parceiros ganharam mais com essa mercadoria, não é muito dinheiro mas com certeza mais que em qualquer bico que eu pegar por aí”. Já um vendedor de acessórios para celular que preferiu não se
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identificar diz que é possível ganhar entre 700 a 900 reais em uma semana boa de vendas. “Passando muitas horas no metrô e de fim de semana principalmente, que é quando os patrões estão “de boa”, descansando e dando uma volta por aí, eles acabam comprando mais e dá pra tirar um bom dinheiro.” Jonathan passa pelos corredores lotados, desviando das pessoas e se equilibrando entre uma freada e outra do maquinista. “Mais alguém, alguém mais?”, pergunta insistentemente, ainda que ninguém tenha comprado sequer uma de suas barras, até que uma senhora levanta a mão, o entrega uma nota de dez reais e leva dois chocolates. Essa técnica de venda é eficaz?. “Olha, eu estou com fome, vi os chocolates e deu vontade, mas normalmente esses meninos incomodam com essa gritaria”, gargalha. Nesse sentido, outra tática
utilizada pelos vendedores possui vantagens, o bilhetinho no colo dos passageiros. Eles não precisam se esgoelar, nem perturbam os viajantes. O curioso é que todos possuem a mesma vida, descritas com as mesmas palavras, o mesmo tamanho de papel A4 em uma tirinha bem fina. Não faz muito tempo que observei o pedinte lendo, muito interessado, o seu papel, como se estivesse descobrindo a vida que ele próprio vendia naquele instante. Até os erros de português são iguais, os ambulantes são aqueles alunos que na hora da prova precisam colar, mas escolhem o colega que não estudou o suficiente, pensei. Me arrependi. Não é uma comparação justa, boa parte dos vendedores que conversei não teve a oportunidade do ensino. Das padronizações, a mais importante é a das vestimentas, já que essa causa impacto de cara, não é preciso pedir atenção, apenas o olhar já causa o choque. Para ser um marreteiro é imprescindível calçar um chinelo com furadas meias brancas, uma bermuda, a bermuda mais surrada que tiver e uma camisa social três vezes maior que o tamanho ideal. A uniformidade sugere uma ideia proposital e trapaceira, a credibilidade vai por água abaixo. Não é necessário traje de gala, apenas uma muda de roupa que não remeta uma brincadeira de dia do gêmeo. O processo de vendas é semelhante a uma peça de teatro bem ensaiada, com o defeito de entrar em loop depois de três a cinco frases. “Pessoal, desculpe incomodar a viagem de vocês pessoal”; “Olha a novidade do Shopping Trem”. “Lá fora é 20, aqui na minha mão é 10”. “Devido a mega operação dos guardas, chamou com 10 leva dois”. A diferença para uma atuação é a falta de um diretor. “Não existe ninguém no comando, eu sou meu próprio chefe, senão procuraria algum trabalho que me desse um salário fixo”, disse
Nicolas, ex presidiário e atualmente vendedor das mais variadas balas nos trens. Jonathan seguiu a linha do companheiro de vagão. Segundo ele, os marreteiros aprendem pela necessidade e observando outros vendedores, se espelhando neles. “É uma experiência que vai se passando de vendedor para vendedor”. Maycon, pedinte de apenas 15 anos, explica que existem regras entre eles e não um líder. “A maioria se conhece, nós conversamos entre uma estação e outra. Então é cada um na sua sem atropelar ninguém.” Maycon conta que os ambulantes são organizados, raramente entram dois no mesmo vagão, ou oferecendo o mesmo produto em seguida do outro, o que ele define como respeito. É como se ao entrar no transporte público, você entrasse também em um grande rodízio, mas ao invés de pizza ou carne, te servem produtos baratos. Fato é que essa homogeneidade, além de gerar dúvidas aos passageiros, tanto da necessidade como da sinceridade do vendedor, facilita a identificação aos guardas. Em 2016, as apreensões no metrô aumentaram 83% comparado a 2015, sendo 12.172 no total. No primeiro semestre de 2019, elas aumentaram quase 50% nas estações da CPTM segundo a própria empresa estatal que controla os trens. Quem faz algo diferente, se destaca no meio do formigueiro. É o caso de Marcelo, violinista da linha verde nas horas vagas e vendedor de balas da linha azul nas ocupadas. Sem encontrar um emprego há dois anos, desdobra-se para pagar as contas. “Eu sou violinista, mas se eu começo a tocar aqui nessa linha (azul), os seguranças me tiram e eu preciso pagar outra passagem, então eu trago algumas balas para vender na volta para casa, é mais discreto e me ajuda a estar sempre ganhando uns trocados”. Marcelo não segue os scripts. Passa oferecendo suas balas com
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um sorriso leve, mas sincero. Com uma fala mais informal, sem chantagem emocional e o padrão “pessoal, desculpa atrapalhar a viagem de vocês, pessoal”, transmite credibilidade ao passageiro e o ganha no carisma. Ele começou a desabafar comigo durante sua volta para casa enquanto outro homem vendia carteiras no mesmo vagão. Sua mochila parecia bastante pesada, suava sem parar, até que decidiu a colocar no chão disputado por tantos pés amontoados no metrô. “Sou sincero, não quero enganar ninguém para vender, não acho que seja necessário. Se eu estou aqui é porque preciso, não preciso fazer uma encenação”, disse. Sobre conseguir um resultado melhor ele não garantiu, mas contou que as pessoas lhe dão mais atenção, mesmo quando não compram a bala ou doam pela apresentação musical. “Eu vou passando pelo corredor e quem não pode me ajudar me diz que não pode, as vezes me pedem desculpa até. Fico feliz de pelo menos não ser ignorado, de não fingirem que eu não estou ali, pra mim já é algo legal.” Empresários estão perdendo uma grande oportunidade de investimento, de dar inveja aos coachs. O carisma dos ambulantes somado à criatividade de um profissional o assessorando diariamente e claro, a vontade de ambos ganharem dinheiro traria um resultado interessante. Disposição não falta, percorrem de ponta a ponta os vagões abarrotados, descem e sobem escadas rolantes com um peso enorme nas costas, da sua mochila transbordando produtos para vender, e o da necessidade financeira, um fardo maior que qualquer barra de chocolate ou caixa de bala. Eventualmente apostam corridas de tiro curto (às vezes se transformam em meia maratona) com os urubus. Os marreteiros são funcionários extremamente dedicados.
As diferentes faces da feminina Wendy Corniquet
Giovana Ventura
V
itória Bello Marroni adorava ser solteira. Depois de um relacionamento de anos de confiança e amizade, mas sem atração, estava finalmente se sentindo liberta e desejada. Até que conheceu Rafael. Mais velho, trabalhador, com casa própria e responsabilidades. Não era nada como os garotos bobos que estava acostumada. “Ele me seduzia”. Porém, após poucos meses de namoro, Rafael começou a mostrar que definitivamente não era um “guri bonzinho” como a estudante de psicologia estava acostumada. Vitória prende em um coque os seus longos cabelos lisos e franze as sobrancelhas. “Ele já tinha dado todos os sinais de estar me traindo”. Mas algumas mulheres gostam mesmo dos certinhos. Quem vê Clarisse hoje, não acredita que um homem de farda já a fez suspirar. Talvez ela tenha mudado o seu gosto por um bom motivo, com nome e sobrenome. Namorou Antônio por 2
anos, e nunca se preocuparam muito com proteções. Ele não gostava de usar camisinha, mas era bom garoto. Era um pouco bruto demais, mas era um bom garoto. Às vezes a machucava um pouco, mas era um bom garoto. Sabia a dominar e a fazer se sentir incrível. Porém, depois que teve de esconder um roxo no rosto para ir para a faculdade, ela jurou nunca mais olhar na cara dele. Promessa que teve de ser quebrada em pouco tempo. Algumas semanas depois, estranhou a menstruação
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estar atrasada, e resolveu fazer um teste. Pelo amor de Deus que seja qualquer coisa menos isso, pensou. E em poucos minutos viu as duas barrinhas coloridas. Assim como Clarisse, Maria Julia Nunes nunca tinha imaginado as consequências de uma noite de impulsos. A advogada transbordava confiança. Não pensava duas vezes antes de deixar claro que gosta tanto de homens quanto de mulheres. Poucas vezes transou sem camisinha, apenas com alguns caras
que já conhecia, e normalmente por insistência deles. Usava preservativo para evitar justamente a gravidez, então nunca se preocupou de usar com as garotas. A camisinha é feita por homens para homens, nunca foi pensada para o sexo lésbico. “Óbvio né, por que mulher é feita pra satisfazer os desejos dos homens, e quando tem os seus, só homem pode satisfazê-la”, ela literalmente revira os olhos. Nunca se sentiu confortável indo em ginecologistas. Quando se é bi ou lésbica, isso é comum. Com 36 anos, por indicação de uma amiga, decidiu ir no Coletivo Feminista Sexualidade Saúde e se sentiu verdadeiramente confortável em um consultório pela primeira vez. Porém, infelizmente, foi ali que descobriu ser soropositiva. O chão dessas mulheres desabou. Clarisse teve que passar pela gestação dolorosa sozinha. Tinha se afastado dos amigos (por “indicação” do ex), e nunca foi próxima à família. Como ia criar e cuidar de uma criança? “Era responsável por uma vida agora, sem ser a minha, qualquer coisa que eu fizesse, não ia mais só me afetar”. A estudante de publicidade sorri enquanto olha para o filho. Passou por altos e baixos, tentou até formar uma família tradicionalmente feliz com o pai da pequena sementinha que estava crescendo dentro dela. Obviamente não deu certo, uma criança não apaga esses problemas. Não soube como aguentou, mas tudo fez sentido quando Theo nasceu. Voltou do hospital pra casa chorando o tempo todo. Um choro silencioso, calmo, ao olhar o “serumaninho” no seu colo. Sua rotina mudou radicalmente, agora tudo era em torno do Theo e ela era tudo para ele. Trancou a faculdade e parou de trabalhar. Cuidou os primeiros meses sozinha, pois o pai aparecia uma vez por mês para ficar algumas horas com o filho, tirava algumas fotos e ia embora.
Depois postava nas redes sociais essas fotos o mês inteiro, como se fosse um ótimo pai presente. Não precisou de muitos outros motivos para desenvolver uma depressão pós-parto. Todo o brilho que antes via em Theo, agora estava opaco. Se sentia sozinha, vazia e frágil. Tão vazia quanto Vitória. O sentimento vitorioso por ter “conquistado um coração indomável” do Rafael desapareceu totalmente ao ver as mensagens trocadas com outras. E se não fosse por uma amiga dela, que ele deu em cima, provavelmente a estudante de psicologia nunca teria acreditado nas fofocas e no seu instinto. “Eu me sentia completa por saber que ele me queria e não precisava de mais ninguém, então quando descobri eu senti um buraco dentro de mim”. Entregou sua confiança para ele, mesmo contra o que todos seus amigos lhe diziam. Foram meses de negação, reconciliação, discussões e lágrimas. Continuou pois nunca deixou de acreditar no amor que sentiam. Decidiu apontar os seus erros, mas não o julgar. “Eu nunca me senti tão vulnerável, mesmo depois de me quebrar por dentro, eu escolhi o nosso relacionamento e dei mais um voto de confiança, que ele não merecia, né?”. Mas ela merecia, e sabia que podia ser com ele, se o perdoasse. Maria passou pelo susto, pela incredulidade e pela raiva. Não sabia perdoar, como Vitória, pois não se machucou só emocionalmente. Era físico. Achou que nunca poderia se sentir tão impotente. Conversou muito com sua médica e entrou em uma verdadeira jornada de autoconhecimento. Ser soropositivo é já ter contraído o vírus da HIV, mas é possível não apresentar os sintomas. Talvez algum dia ele se mostre, ou talvez não. O que mais mudou, além da sua rotina agora com remédios e cuidados, foi a
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maneira que ela se relaciona com as outras pessoas. Hoje, Maju não sabe mais nem como se relacionar com outras mulheres. A chance de contrair HIV é muito baixa no sexo lésbico, alguns médicos até dizem que é impossível, mas não podemos confirmar isso, principalmente pela falta de pesquisa sobre o assunto. “Não sei como vou fazer quando realmente sentir desejo por alguém e não poder fazer nada”. A advogada não consegue nem pensar em se abrir, confessar ser soropositiva e pedir pra ser amada e desejada “igual a qualquer outra”. Sabe que, algum dia, conseguirá compartilhar essa vulnerabilidade com alguém. A mulher confiante, que adorava sair em bares e festas, sem tabu nem papas na língua de antes, hoje é comedida, fechada e até um pouco tímida. “Estou aprendendo a me amar inteiramente, eu comigo mesma”. Seu sentimento de fragilidade criou um escudo contra o mundo que, quando estiver pronta, deixará cair aos seus pés. Já o escudo que Vitória contruiu, não foi deixado de lado, mas se modificou. Cresceu para proteger duas pessoas. A vulnerabilidade que era um sinal de tristeza e insegurança, agora os une e é compartilhada. “Somos parceiros de verdade: fortes para o resto do mundo, mas nos deixamos ser frágeis um para o outro”. Se tornaram um porto seguro mútuo. Assim como Clarisse e Theo. Cuidar de uma criança é a coisa mais difícil que ela já fez. “Me sinto vulnerável até para sair na rua, não só por ser mulher, mas por ser mãe, porque se eu morrer, quem vai cuidar do meu filho?”. Alguém vai depender dessa estudante de psicologia para o resto da vida. E nada nunca foi tão gratificante quanto isso. A cada aprendizado novo, risada gostosa ouvida e até noites mal dormidas, ela tem mais certeza de que não mudaria nada. Vulnerabilidade pode ser amor.
Eternamente Mães
O
luto materno assombra milhares de mulheres todos os anos. A dor de perder um filho é considerada por especialistas em psicologia, a maior do mundo. Pode causar grandes danos emocionais nas mulheres que sofrem com isso. É como se uma parte dela sucumbisse, pois a ligação entre mãe e filho é fortíssima desde o período da gravidez, até o nascimento e crescimento da criança. Enfrentar essa agrura pode ser torturante e levar muito tempo, mudando radicalmente a forma como a pessoa vive. Apesar dos abalos psicológicos que uma mãe possa sofrer após entrar em luto, ela tem uma vida para viver e tem de encontrar alguma forma de seguir nela. Sozinha, é praticamente impossível que permaneça saudável e que siga em frente sem padecer todos os dias, todos os momentos. É necessário suporte familiar e de pessoas próximas. E hoje em dia, é imprescindível também a assistência médica e psicológica de profissionais, que podem amparar e diminuir o sofrimento durante o processo. A dor se torna pior quando se trata de uma tragédia, pois é algo inesperado que acontece de repente As consequências e os sintomas, por isso, chegam com mais força e propicia mais dor. A professora Luizete, 41, sentiu isso na pele da pior forma possível. Perdeu suas duas filhas mais novas, Yanlla Thyfany, 17,
e Victória Evelyn, 10, num acidente de carro onde seu filho mais velho, Wilson - o único que continua vivo - estava dirigindo. O processo para lidar a situação vem sendo muito difícil, Luizete se lesionou no acidente e fraturou duas colunas cervicais na altura do pulmão. Hoje vive apenas com seu filho Wilson, estudante de Direito, 28, que também sentiu muito a tragédia e por um período trancou seu curso na Universidade e voltou a morar com a mãe. Hoje, ele já retornou aos estudos e passa o dia na faculdade e no avô. Praticamente só chega em casa para dormir. Sua irmã Vera a visita diariamente para ajudá-la a enfrentar as dificuldades pelas lesões no corpo e a superar emocionalmente o acontecido. “Esse colete só posso tirar para tomar banho por no máximo 45 minutos. Tenho que usar até dezembro” explica Luizete com um tom de desesperança. Ainda não chegou nem perto de superar a situação e sofre até hoje fisicamente e emocionalmente. Luizete se sente sozinha, hoje tem apenas sua irmã e seu filho, mas não é o suficiente para confortar seu coração. “A morte das minhas filhas gerou uma comoção das pessoas que eu conheço. Mas isso durou apenas as três primeiras semanas. Depois desses 21 dias tudo ficou diferente. O distanciamento, aquele vai e vem de pessoas já acabou, hoje eu só consigo aliviar a dor da saudade através de posts em minhas redes sociais e principalmente da minha fé. Eu rogo noite e dia à Deus para ter forças e
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superar a dor”. Na maioria dos casos, resta apenas Deus para essas mulheres. Por mais que num primeiro momento elas possam questionar o por que isso aconteceu, elas abraçam novamente sua fé ou religião, para que as conforte. Essas mães não têm escolha, é acreditar que tudo vai melhorar e que todos os acontecimentos têm um propósito, ou conviver com o eterno sofrimento de se sentirem injustiçadas. Algo importante no processo de luto é o quanto a pessoa tem de disposição para sair do sofrimento e seguir em frente. O que alguns profissionais da área medicinal dizem, é que o paciente com câncer ou outra doença grave, para conseguir sua cura, é fundamental que tenha força de vontade para lutar contra essa doença e não se entregar diante dela. Isso vale para o luto materno, que não deixa de ser um tipo de doença a ser curada. “Realmente é a pior dor que existe no mundo” Afirma a psicóloga Verena Cohim, 38. A frase que é dita por especialistas em psicologia é repetida por essa mulher, que além de profissional da área, passou pelo pior momento que uma mãe pode passar. Seu filho Guga morreu afogado em uma piscina, com apenas 2 anos. Diferente de Luizete, Verena aparenta estar recuperada do acontecido e fala com naturalidade e tranquilidade sobre o assunto. Até gosta de falar sobre seu filho, é perceptível que ela já trabalhou diversas vezes o assunto. Claro que o processo para ela foi muito doloroso
e não existe aceitação em relação a perda de um filho. Mas Verena conseguiu achar formas de amenizar essa dor que a acompanhará pelo resto da vida. Já fazia terapia na época e passou a ter acompanhamento psiquiátrico. Sua profissão a ajudou muito nesse processo, pois ela soube utilizar seus conhecimentos e sua experiência para que seu tratamento fosse o melhor possível. Antes da perda, já trabalhava com luto materno nas suas sessões de terapia, e depois, fez questão de auxiliar mães nesta mesma situação. Verena acredita que tem mais bagagem e propriedade que outros psicólogos, porque além da formação, sentiu na pele o que é passar por isso. “O fato de eu ajudar outras mães nesse mesmo processo, acabou me ajudando bastante, eu consegui transformar minha dor e todo processo que eu estava vivendo em um novo momento que eu pudesse me reconstruir, reorganizar minha vida e me reinventar” Ajudar outras mães que passam pelo mesmo problema pôde ajudar Verena a perceber que não era a única naquela situação, e buscar superar junto a elas. Aquilo que os médicos dizem sobre força de vontade, é uma filosofia de vida para Verena. “Eu não me entreguei à minha dor, teve momentos de eu ficar muito triste, de eu não levantar da cama, de eu não escovar os dentes, de eu não comer, de eu não querer falar com ninguém. O luto tem várias fases, tem vários momentos, a gente passa por várias situações que faz parte do processo natural. Eu fui vivendo tudo isso, fui permitindo a chorar quando eu tinha vontade, a sofrer quando tinha vontade, mas eu não transformei isso no final da minha vida, numa tragédia.” A fé volta a aparecer no luto materno, agora pelo espiritismo. Ela se converteu do catolicismo, mas considera que não possui religião, e sim fé, que é muito mais complexa.
“Eu passei a conhecer o espiritismo, Guga me apresentou através de sonhos, que eu não conhecia. Eu fui criada no meio católico, estudei em colégio de padre, minha família sempre foi bem católica, tanto do lado do meu pai quanto o da minha mãe, mas espiritismo me deu um suporte muito grande. Mas acho que a fé é muito além da religião, é o sentido de eu ter criado meus rituais, fazer movimentos que me ajudem, frequentar lugares diferentes que me ajudem, então eu não tenho uma religião, eu sou espiritualista.” Além da ajuda dos seus familiares, da profissão, da religião, Verena não se esquece de mencionar a importância do seu cachorro Tchuco, Bulldog Francês, que fez com que ela continuasse sendo mãe. “Na época eu tinha um cachorro e meu filho. Aí meu filho faleceu e ficou só meu cachorro. E ele me deu muito suporte, a companhia dele, o amor dele, ele também adoeceu e deprimiu também com o falecimento de Guga. Então continuar maternando os meus animais foi um processo que me ajudou muito também.” Maria Alice, 59, aposentada, perdeu seu filho mais velho para uma doença grave, endocardite. Ivan morreu com 31 anos. Tinha dores nas juntas, nos dentes e 15 dias antes de falecer teve um AVC. Durante esses 15 dias ele permaneceu internado 3 dias de forma lúcida, e no quarto dia teve que ser entubado. Até que a bactéria chegou ao coração e ele não resistiu. “Em 15 dias a bactéria venceu” diz em tom de choro. Era seu único filho. Ela acompanhou de perto todo o processo até a morte do filho, antes disso ela já estava em luto pela morte do pai meses antes de acontecer o mesmo com o filho. Em pouco tempo sua vida parecia ter acabado. Por meio cigarros e bebidas alcoólicas, buscou um refúgio, emagreceu muito, ainda recebe apoio dos seus amigos e parentes, mas em casa só restou sua mãe Carla, idosa que precisa de
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cuidados e atenção. “Olha amigo, só posso te dizer uma coisa, perder um filho, não importa como foi, é a pior dor do mundo e o tempo não ameniza, piora porque vem a saudade do olhar, do cheiro, da voz, do sorriso e do carinho, não tem como descrever, vai fazer 1 ano e parece que foi ontem” Maria Alice intensifica a ideia de que não existe dor semelhante a esta. O que é um consenso entre essas mães é que elas não deixaram de ser mães porque seus filhos faleceram. E elas não querem esquecê-los, pelo contrário, gostam de falar sobre eles. Ao ser perguntada sobre o nome do seu filho, Maria Alice responde: - Olha amigo, você foi o primeiro estranho a me fazer essa pergunta de uma maneira bem amável, porque sempre me perguntam “qual era o nome do teu filho.” Ivan Alves é meu filho. Ela deu uma pausa para dizer “Como está sendo bom pra mim falar, tente conversar com outras mães, vai ser bom para elas também. É uma terapia.” Verena também leva isso para seu dia a dia e conta que apesar das pessoas negarem, ela enfatiza que Guga continua sendo seu filho. “Quando eu vou responder um cadastro que pergunta: você tem quantos filhos? - na época que eu não tinha a Maria, eu respondia: - eu tenho um filho, mas ele faleceu. E a pessoa me respondia: então você não tem um filho, vou colocar zero. E eu falava pra ela: Não, você tem que colocar 1, porque eu tenho um filho.” Para Verena, isto é a base da sua vida. Ela leva seu filho consigo através do espiritismo. “A minha história continua sendo marcada pelo falecimento do meu filho, eu não deixei de ser mãe, apesar das pessoas acharem que quando você perde seu filho você perde o seu lugar. Eu continuei sendo mãe de Guga, eu tenho outra filha, Maria, mas eu não tenho só ela de filha, eu tenho dois filhos”
O futuro nos
“
Guilherme Pansonato Neto
Mais alguém, alguém mais? Mais alguém, alguém mais?”. Com esse bordão João Victor Santana termina o anúncio publicitário dos chocolates que vende. A porta do vagão se abre na estação Vila Matilde da linha vermelha. Hora do intervalo comercial do shopping metrô, como ele próprio anuncia. O garoto põe a cabeça para fora e mira atento para os lados. Nada de policiais, ele pode vender em paz até a próxima estação. A vivacidade de seus olhos se esvaiu junto com os raios de sol escondendo-se das janelas do metrô. Quando me aproximo para conhecer um pouco de sua história, o menino ergue os olhos e parece ver um oásis salvador no meio do deserto de vendas do vagão. “Vai levar meu patrão? Me ajuda a terminar essa caixa pra eu ir embora, já deu de vender por hoje”, desabafou com a voz seca do peregrino do deserto, correndo para um gole d’água quando avistou seu oásis. Jão, como é chamado pelo colega que o acompanha vendendo balas no mesmo vagão, tem 15 anos, e atitude de adulto. Seu uniforme de trabalho é camiseta e shorts de tactel, e não falta
o chinelo de dedo no pé descalço. O bigode ralo começa a transição para a puberdade. Parece adulto faz tempo. O garoto é o exemplo de quem sonha na comunidade, ele vive os versos dos Racionais Mc’s. É necessário sempre acreditar que o sonho é possível/ Que o céu é o limite e você, truta, é imbatível/ Que o tempo ruim vai passar, é só uma fase/ E o sofrimento alimenta mais a sua coragem/ Que a sua família precisa de você/ Lado a lado se ganhar pra te apoiar se perder. Ciente da sua raiz humilde e batalhadora, João Victor trabalha todas as tardes por um bem maior: ajudar a mãe. Ela está desempregada, e sustenta a família fazendo marmitas para a comunidade. O jovem vendedor garantiu que vai na escola todas as manhãs, e vende chocolates no metrô o resto do dia para ajudar nas contas de casa. A Pesquisa Nacional por amostra de Domicílios, realizada pelo IBGE em 2016, mostrou que João Victor faz parte dos cerca de 1,8 milhão de crianças e adolescentes dos 5 aos 17 anos que trabalham no Brasil. Deste total, 54,4% (998 mil) estavam em situação de trabalho infantil, sendo 190 mil entre 5 a 13 anos, e outros 808 mil entre 14 a 17 anos trabalhando
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sem registro na carteira de trabalho. Ele faz parte dos 808 mil que tem entre 14 e 17 anos e não trabalha com registro na carteira de trabalho. Além disso, comercializar qualquer tipo de coisa nas linhas de metrô ou trem é irregular, passível de apreensão pelos guardas dos produtos que estão sendo comercializados. Porém, é a alternativa encontrada por milhares de brasileiros para gerar uma renda, uma vez que os passageiros do transporte público estão parados sem fazer nada, e podem querer consumir alguma coisa. Outra pessoa no perfil realizado pela pesquisa se chama Joyce dos Santos. . Assim como o João, ela usa uma camiseta e shorts de tactel, e sua fisionomia é marcadamente infantil. Pequena como uma criança, mas forte como uma mulher, ao vêla andando pelo vagão com o isopor embrulhado em um saco preto e chamando os clientes para comprar o seu refrigerante, percebe-se o desgaste do peso em suas costas. O peso dos refrigerantes é o peso da própria vida sobre a menina em busca de uma condição melhor. Quando pergunto o preço, sua feição muda. Afinal, uma vendedora não atende o seu cliente de cara
feia. Esperta e ágil, ela oferece todos os sabores rapidamente e me vejo obrigado a comprar. É assim que, aos 14 anos, Joyce ganha a vida. De manhã, ela vai à escola estadual de Perus, onde mora com a família, e ajuda o pai durante a tarde na linha rubi da CPTM. Desempregado há três meses, ele vê nos trens um sustento para a família enquanto uma outra oportunidade não aparece. Enquanto ele comercializa sorvetes, a menina vende refrigerantes, e assim eles constroem a renda mensal da família. Acompanhei de longe o trabalho dos dois jovens, e conversei com eles sempre durante as pausas de suas vendas. Afinal, os clientes vêm e vão a cada estação, e eles não perdem a oportunidade de oferecer seus produtos. O garoto está cansado, mas o desânimo passa longe. Afinal hoje é sexta, e amanhã cedo tem futebol. Aos sábados de manhã ele volta a ser criança e joga com os outros garotos do Morrão Vila Verde, sua comunidade. O futebol faz a sua alegria nos fins de semana, quando está livre da escola e do compromisso com o shopping metrô. Apesar disso, é incômodo para o menino falar sobre o Corinthians, seu time do coração. Ele se irrita com o assunto, pois não assiste mais. O motivo é ele morar perto da Arena Corinthians, mas nunca ter ido. Reclamou que é muito caro. “Eu acho que é um monte de bacana jogando bola pra um monte de bacana assistir. Não adianta, minha mãe não tem dinheiro pra isso”, mostrou seu olhar de reprovação, com os olhos apertados e as sobrancelhas franzidas. Vamos papear sobre filmes então. Durante a infância todo mundo sonha em ser um daqueles super-heróis salvadores do mundo. No entanto, a resposta do garoto surpreende pela sinceridade: “Eu até vejo filme de herói, mas gosto do Cidade de Deus, tá ligado? Não por causa dos crime e das droga, porque
nós é gente do bem, mas é porque mostra mais nossa realidade da quebrada, da correria de sempre. E nós tem que se vira igual os moleque do filme, tá ligado?” explicou João Victor comparando a sua realidade à dos meninos que protagonizam o filme. Lá na linha rubi da CPTM, quem frequenta durante a tarde conhece a Joyce e seu pai. Dona Ruth, senhora de 60 anos que pega o trem todos os dias para voltar do trabalho, virou cliente fiel e nunca recusa um refrigerante. “Essa menina é do bem, e tem futuro viu. O que ela faz para ajudar o pai é muito nobre, coisa de Deus mesmo. Espero que Ele ilumine sempre a vida dela”, declamou seu versículo bíblico abençoando a garota. A menina não se vê ali trabalhando de forma irregular, ou que seja algo que atrapalhe a sua vida. Segundo ela, está apenas ajudando o pai, e seria pior do que sair da escola e ficar em casa. “Não acho que to perdendo minha infância. Eu me divirto e brinco com as minhas amigas quando não to aqui, mas a vida não pode ser só diversão também. Aqui eu aprendo muito na prática, quem sabe no futuro eu possa ser vendedora de loja e ganhar um bom salário” seus olhos brilham, como se estivesse naquele sonho bom que não se quer acordar. Seu Márcio é só elogios sobre a filha. “Ela é empreendedora”, afirmou contente. “Mesmo sendo nova ela tem vocação pra coisa. Acabou que eu vim ajudar ela, e não ela me ajudar”, e abriu um sorriso sincero, esperando que no futuro a menina possa lhe ajudar. O pai deixou claro que a filha só vai quando ele está junto, nunca sozinha. Ele sente do medo de algum “marmanjo” mexer com ela. Nesse momento, ela fez questão de me confidenciar sua tática infalível: “Tá vendo essa roupa aqui? Shorts, camiseta e tênis de menino? Meu pai pede para eu usar quando estou aqui com ele. Como às vezes fico sozinha
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no vagão, tenho medo que mexam comigo, e com essa roupa, sei que a chance é menor” revelou contente, mostrando as experiências de vida que adquiriu no metrô Antes de me despedir, questiono ambos sobre o futuro. Não apenas no futuro financeiro, se venderão no metrô pelo resto da vida. Mas sim no que eles lembrarão da sua infância e adolescência quando adultos, dos momentos que viveram dentro de um vagão, da experiência que tiveram, dos dias bons e ruins, do choro e do riso. Joyce mostrou-se sonhadora e animada. Quer crescer na vida, seguir nos estudos e conseguir um emprego como vendedora. Ela se inspira nos vendedores do shopping. Como vai muito raramente, gosta do jeito receptivo das moças, e quer se tornar uma delas. “Quando eu for adulta eu quero passar por aqui e ajudar as crianças que estão aqui vendendo como eu estou hoje, e contar pra elas como eu consegui algo maior na vida”, finalizou, espiando para fora do vagão em busca de algum guarda fiscalizando o local. Por outro lado, João Victor manteve os pés no chão. Concorda que terminar a escola é preciso, mas não seguirá nos estudos. Quer continuar no metrô até conseguir outro emprego mais rentável que o simples chocolate. Não falou de sonhos futuros e comentou sobre o que deseja lembrar da sua infância. “Quero lembrar de jogar bola com meus amigos, mas daqui do metrô não. A maioria dos dias são bem ruins aqui, e a verdade é que eu to aqui só porque eu preciso tá ligado”, se despediu, em busca de outro vagão com mais passageiros. São apenas duas crianças em busca de um futuro melhor, querendo ajudar as suas famílias e experimentar um pouco de infância ao mesmo tempo. Afinal, o presente é a realidade dura e crua do trabalho, e o futuro é o refúgio do sonhar acordado.
O PALCO INVISIVEL
Gustavo Beckenkamp
“
Hoje o movimento está ruim”. Paulo Ricardo, o rapper Pauê Ovelha Negra, ou simplesmente Pauê, entra para a linha verde na Consolação e segue até o Alto do Ipiranga. Diz bom dia, liga a caixa de som, explica seus motivos e começa. Para cada vagão, um rap improvisado, muitas vezes com crítica social. Faz o trajeto dez vezes por dia e junta cerca de 100 a 150 reais antes de retornar para casa no Parque Bristol, zona sul de São Paulo. “O mais importante do meu trabalho é por que eu faço isso na rua, por que a rua é o único lugar que aceita todo mundo, diferente se a pessoa tem ou se a pessoa não tem, e por eu querer fazer meu show na rua para todo mundo eu tenho orgulho de dizer para vocês, eu sou um artista de rua”, Gustavo é Margarina Bailarina, artista circense gaucho, que viaja por todo o Brasil apresentando nas ruas de diferentes
cidades e inicia e termina seus shows no vão do MASP com essa frase. Muitos artistas que estão começando ou não tem influência para tocar em eventos públicos e estabelecimentos privados acabam vendo a rua como um palco vazio pronto para ser usado em prol da sua arte. Nas ruas, Lindomar conheceu Oliver. Cantam e tocam MPB aos domingos, transformando o ponto de ônibus em frente à gazeta, na Paulista, em palco invisível. Poucos param para ver. Lindomar perdeu a aposentadoria e mora nas ruas de São Paulo e São Bernardo, onde conhecidos o ajudam a guardar seu violão Tagima cor madeira com marcas de uso em todo corpo. O rap fez parte da vida de Pauê como profissão apenas quando ele decidiu se apresentar na rua, acabou vendo no metro uma possibilidade de fazer seu freestyle e se sustentar com uma carreira artística, e cantando no metro Pauê conheceu outros rappers que faziam parte do grupo rimadores do vagão que ajudam artistas a se apresentarem no metro. Margarina se apresenta na rua há dez anos, sua jornada começou
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na cidade de Rondinha no rio grande do sul, foi na escola que Gustavo conheceu o artista circense Manteiga, que ensinou tudo que sabia para o menino, após três meses Margarina partiu de sua cidade natal procurando ruas para se tornarem seu palco. Os dias da semana passam, dentro do metrô a rotina dos usuários tem uma certa coincidência todos os dias. Quebrar a monotonia dentro do metrô é o cotidiano de Pauê. Seus dias começam na escolha de uma linha, vai para a estação com maior movimento, escolhe um vagão não muito cheio e canta seu rap. O rapper faz isso todos os dias, enquanto seu rap é inesperado e diferente, sua rotina se torna o contrário, passando a catraca da consolação toda a tarde e noite como se estivesse batendo ponto em um escritório. Demonstrando o compromisso de Pauê com a sua profissão, ser rapper. As ruas da cidade vivem em constante mudança, não existe uma rotina fixa para Lindomar e Oliver que percorrem toda a cidade em busca de uma rua para tocar, em um dos dias da semana os dois decidiram se apresentar na praça da república,
se acomodaram no banco em frente à casa afinou o violão, posicionou sua caixa de madeira e uma folha A3 plastificada com uma mensagem explicando o porquê ele estar na rua, começou a tocar músicas do seu repertório, o músico começou abrindo seu show com Elis Regina passando por diversos nomes da MPB e terminando com Tim Maia. As três da tarde quando os dois fizeram uma pausa , uma senhora de idade veio em direção de Lindomar e chorando disse que uma de suas músicas a fez lembrar de um ente querido que se foi, os dois acalmaram a senhora e conversaram sobre a sua vida, a senhora saiu daquela praça com um sorriso no rosto. Era um domingo chuvoso na paulista, havia poucos artistas de rua naquele dia, a chuva e o frio pareciam ter espantado os artistas e o seu público. Lindomar e Oliver encontraram um ponto de Ônibus perto da TV Gazeta, as condições climáticas eram um empecilho para os dois, porem eles não tinham escolha, a arte de rua era a profissão de Lindomar e para sustentar ele precisava tocar, mesmo com a chuva e o frio. No conjunto nacional, Margarina espera a chuva passar, parte do seu show usa a pirofagia, após uma hora de espera Margarina pega seu caixote com os materiais usados na apresentação e se dirige para a rua em frente ao vão do MASP, liga a caixa de som e faz um pequeno aquecimento fazendo sua apresentação como um treino, após isso Gustavo deseja bom dia e interage com o publico para animar o ambiente. Após seus diferentes números ele termina o show falando da importância dos artistas de rua e com um chapéu coco em sua mão, as pessoas começam a fazer uma fila colocando diferentes valores no chapéu, algumas pessoas abraçavam Gustavo emocionados pela atitude e paixão do artista pela rua, e assim o dia nublado e chuvoso se tornava
mais quente graças ao afeto das pessoas. Nem todos os dias são bons para os artistas de rua, ainda existe muita resistência contra a sua presença em locais públicos. “Com certeza ainda existe muito preconceito não só de pessoas, mas também das autoridades, muitas vezes os artistas são proibidos de apresentar” Margarina conta que já foi impedido de apresentar por vários motivos, “algumas vezes por usar caixa de som, algumas vezes por fazer fogo, outras vezes já fui parado de apresentar porque a pessoa estava aplaudindo demais nós estamos em uma ditadura contra a felicidade” afirma o artista enquanto esperava para começar a próxima sessão do show. Pauê compartilha o sentimento de ser censurado, para o rapper o culpado disso acontecer é a doutrinação, existem diferentes estilos de vida e arte de rua é um deles porem ninguém valoriza o nosso esforço e existe um preconceito por não conhecer as dificuldades de cada um. Durante uma de suas performances freestyle, Pauê foi abordado pelos guardas que afirmaram que a sua musica estava incomodando os passageiros sendo convidado a se retirar do vagão, mantendo a voz calma e pedindo desculpa ele se retirou do trem, disse que para mudar essa imagem construída todos tinham que mostrar o melhor de si, não discutindo com os guardas apenas fazem o trabalho deles, afinal podemos estar incomodando alguém, sempre mostrar respeito para conquistar o espaço de atuação. Andando pela rua Lindomar observa um cartaz anunciando um evento da prefeitura de São Paulo e divulgação da cultura, o músico reclamando fala “Se os governantes contratassem os artistas de rua para fazer uma apresentação apenas, já mudaria a vida de muita gente”.
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A necessidade de tocar na rua surge por falta de oportunidades, o palco que mistura movimentos artísticos com a rotina de trabalhadores é uma saída para aqueles que são invisíveis para a maioria. Margarina ressalta antes de terminar uma de suas apresentações “A arte de rua pra mim é a cultura com acesso a todo mundo, a gente está fazendo show pra todo mundo, indiferente se a pessoa tem ou se a pessoa não tem dinheiro”, ao terminar o show guardando suas cosias Margarina diz que já foi chamado para apresentar em vários circos no Brasil, mas recusou a todos, ele não troca nada pela sensação de apresentar na rua, a sensação de fazer parte da vida das pessoas, sendo as que pararam para ver ou não, a sensação de fazer arte na rua não tem preço e para ele é o mínimo que ele pode fazer pois na rua Gustavo aprendeu o que sabe. A grande conquista dos artistas de rua é saber que ele serve de inspiração, que existem pessoas que admiram o seu trabalho e se inspiram nele, sendo eles companheiros de profissão ou não. Durante um dos freestyles de Pauê, um garoto veio conversar com ele após os dois saírem na Marechal Deodoro, o menino conta que mora no Parque Bristol igual a ele, disse que gostou muito do seu rap e agradeceu, pois, ele fez a viagem de volta para casa muito melhor. Pauê fala que essa é uma das maiores conquistas do seu trabalho, ver a satisfação no olhar das pessoas humildes, que as suas musicas fizeram a diferença na vida de alguém, o rapper conta do primeiro elogio que recebeu, um garoto falou que o seu rap foi o primeiro que ele escutou, alguns meses depois ele acabou encontrando o garoto de novo no metro, e o mesmo disse que se aprofundou no rap graças ao freestyle de Pauê. Essas pequenas diferenças no cotidiano é o que fazem o rapper
acreditar em sua luta, pois a música pode fazer um jovem da periferia sonhar, e escapar da realidade que é injusta. Lindomar e Oliver acreditam que a maior conquista das suas ações são os momentos vivenciados, para Lindomar partilhar historias com as pessoas é a maior conquista que se pode ter, “claro que precisamos do dinheiro para sobreviver, mas o mundo já está muito individual e a musica é algo que une as pessoas, pois ela pode ter diferentes significados”, quando alguém vem conversar sobre o que uma musica do Tim Maia representa na vida daquela pessoa, Lindomar ganhou seu dia pois deixa de fazer algo mecânico e se torna especial, pois se faz com paixão. Assim como o público, os artistas possuem uma inspiração, alguém que os fez querer seguir esse caminho e enfrentar dificuldades
para fazer o que ama, mostrando que a arte no geral é para todos e deve ser compartilhada assim como o artista que começou sendo um admirador e decidiu dedicar sua vida a arte. Pauê tem admiração por muitos rappers que fazem parte do seu repertorio, porem mano brown se destaca entre eles, por despertar o orgulho na comunidade por sua verdadeira personalidade, foi esse sentimento de querer mostrar uma imagem positiva da comunidade que fez Pauê estudar e dedicar a sua vida a arte de rua, pois não existia ninguém que o apoiasse dentro da sua comunidade, e por isso Pauê quer ser um exemplo de superação e luta para todos da parque Bristol. Margarina pensa em alguém que admira enquanto estende a lona com os utensílios usados na apresentação, depois de um tempo diz que foi o manteiga, pois se ele
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não tivesse se apresentado em sua cidade talvez ele nunca tivesse saído de Rondinha, inclusive o seu nome artístico é uma inspiração e homenagem a este artista que abriu as portas da arte de rua para Gustavo, e ele espera que com suas apresentações possa ser uma inspiração assim como o manteiga foi para ele. Mais um dia começa, as pessoas saem de suas casas, pegam o transporte público, atravessam ruas e praças para chegar em seus destinos e mais uma vez a arte de rua vai estar mesclada a esta paisagem, se tornando uma só e evoluindo para trazer felicidade e igualdade para todos que saberem parar e apreciar pequenos manifestos que podem mudar seu dia, e por isso hoje e sempre o artista de rua será importante, para trazer vida a este palco invisível que passa desapercebido pela rotina.
O XADREZ DA VIDA
D
Phil Shaw
Gustavo Iglesias
esde o século VI, na Índia, p e õ e s , cavalos, carroças e elefantes protegem o rei, representando os elementos das forças militares da época. O jogo seguiu as rotas comerciais, foi à China e à Pérsia, e finalmente chegou à Europa entre os séculos VIII e XV. Na Idade Média, as carroças e elefantes deram lugar às torres dos castelos e aos bispos da Igreja. Foi introduzida a rainha, a peça mais versátil e poderosa do jogo.
O xadrez não depende do fator sorte - única exceção é o sorteio das cores do início - e por isso faz com que os jogadores tracem uma estratégia para infiltrar na defesa adversária. São inúmeras possibilidades de jogadas que podem acontecer em uma partida. Cada movimento tem sua consequência. Existem diversas saídas préestabelecidas em um jogo de xadrez, como um padrão a ser seguido. O objetivo é conquistar o centro do tabuleiro para criar amplitude. Dessa forma abre-se um leque de oportunidades ofensivas e defensivas. Um exemplo é o ‘Mate Pastor’, jogada
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em que as peças brancas atacam o peão preto protegido exclusivamente pelo rei. O bispo domina uma diagonal e, a rainha outra. Formase, então, um xis no campo- de ação. Caso ao adversário não perceba, o xeque-mate pode acontecer em apenas quatro rodadas. Alina Melo, 26, embarcou em 2014 para Boston, nos Estados Unidos. Cansada do Brasil, ela resolveu se aventurar no exterior. Durante dois anos, sua felicidade cresceu exponencialmente, bem como seu amor pela cidade. Seu interior pintou-se de azul, vermelho e branco. As cores verde e amarelo
foram aos poucos dissolvidas. “Eu me sentia em casa, não pensava jamais em voltar para o Brasil.” Assim como um enxadrista, Alina estava mirando o futuro e se preparando para as próximas rodadas. O começo do jogo é importante para se estabelecer e mais à frente dominar as ações. No entanto, às vezes nem tudo acontece conforme planejado. Em 2016, ela entrou na faculdade, pagou a inscrição e solicitou o visto americano estudantil. Seu pedido foi negado e Alina se viu de volta ao território brasileiro. Um xeque-mate e tanto. Hora da revanche. Antes de começar a partida, ocorre o posicionamento das peças no tabuleiro. O rei branco é colocado na casa preta, e o rei preto é colocado na casa branca. Uma sensação de não pertencimento. Há oito meses, a jovem guerreira embarcou à Holanda para tirar cidadania portuguesa. “Aqui eles também falam inglês”. De qualquer forma, Alina está se adaptando ao estilo europeu através de uma estratégia conservadora. O próximo passo é proteger o rei assim que possível. É comum a prática do roque, jogada em que ocorre a troca de posição entre a torre
e o rei, colocando-o mais próximo da extremidade do tabuleiro e consequentemente longe do alcance adversário. Contudo, é preciso que as duas peças estejam intactas até o momento da troca. Um movimento simples, mas essencial. Ana Maria Rocha Campos, 82, é mãe de duas mulheres e avó de dois meninos. A adolescência de suas filhas, nos anos 80, foi um tanto quanto protegida. Ana Paula, 48, a primogênita, conta que sua mãe não a deixava andar de ônibus sozinha para ir à escola. “Ela não dava muita liberdade para nós vivenciarmos novas experiências. Era como se estivéssemos correndo com o freio de mão puxado”. Mas na opinião de Ana Maria, a distância de certos ambientes era uma maneira de proteger a integridade de suas filhas. Ela conta tinha medo de assaltos no transporte público, por isso não gostaria de dar chance para o azar e colocou a segurança em primeiro lugar. Com o passar do tempo as duas estavam bem protegidas, longe do alcance adversário, e foram aos poucos se desenvolvendo. Através da dança, Ana Paula e sua
irmã conheceram novas pessoas e convenceram a mãe que era o momento de amadurecer. Olhando para trás, elas revelam discretamente a importância de ir à luta e brigar por aquilo que te satisfaz. Dançar balé clássico provocou nestas meninas um crescimento que as aproximou dos objetivos traçados. No xadrez, uma peça que auxilia muito na progressão do jogo é o cavalo. Seus movimentos parecem com a letra L. São duas casas na horizontal e uma na vertical, ou viceversa. Basicamente são dois para um lado, um para o outro. É a única peça que pode saltar sobre as demais. Por conta disso, ele é capaz de criar emboscadas através da técnica de triangulação, mirando duas peças adversárias ao mesmo tempo. Dois para um lado, um para o outro e um salto para coroar a performance. Uma verdadeira dança. Brenda Sarmanho, 20, faz aulas de jazz e revela a importância em sua vida. “Enquanto eu danço não me sinto tímida, não penso nas minhas obrigações, só quero reproduzir a coreografia da melhor maneira possível”. Mas isso não passa de um hobby. Ela conta que é muito difícil Steve Buissinne
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ser dançarina profissional e viver apenas disso. As aulas acontecem duas vezes por semana visando uma apresentação no final de cada ano no Teatro Gazeta. Para seguir carreira, é preciso treinar todo dia, se inscrever para inúmeros testes, se dedicar muito e criar uma rede de contatos. Em meio à faculdade, não sobra tempo para Brenda perseguir este caminho. No Xadrez, os cavalos saltam para lá e para cá, como em uma dança. Mas para dar o xeque-mate no adversário apenas utilizando-os, é muito complicado. Isto porque eles não conseguem ficar frente a frente com o rei e criar uma armadilha. Leva muitas e muitas rodadas para o encurralar na extremidade no tabuleiro, quem dirá não deixá-lo sair. É um tempo que os enxadristas não têm. Independente do que aconteça, quem é importante mesmo, a ponto de decidir o vencedor, é o peão. Ao longo do jogo, ele costuma permanecer estático por muitas rodadas, até chegar o momento ideal para atacar. Quando um peão cruza o tabuleiro e chega ao outro lado, ele é promovido e pode tornar-se um bispo, cavalo, torre ou rainha. Geralmente é coroada uma nova rainha, a peça de maior valor do xadrez. Matheus Dietrich, 23, entrou na ESPN Brasil como estagiário há três anos, e recentemente foi efetivado
como editor do Sportscenter. “Certamente estou apenas no começo da minha caminhada profissional. Cada pequena evolução significa muito para mim”. Matheus planejou seu ápice justamente no término de seu contrato, evidenciado assim seu aprendizado gradual e seu valor para os companheiros. No início da trajetória como estagiário, ele era só uma pequena engrenagem que fazia o sistema funcionar. Com o passar do tempo, ele aumentou seu tamanho e passou a controlar outras engrenagens. Ele se tornou mais valioso assim como o peão. “Meu objetivo é ser âncora de um telejornal”. Definitivamente este cargo é a rainha do jornalismo. Uma vez sendo muito valorizado, com olhos para todos os lados do tabuleiro, é possível galgar ao topo e conquistar seus objetivos. No Xadrez, isso é sinônimo de xeque-mate. A partida termina assim que o rei for capturado, quando não tem para onde ir. Em persa, a frase significa que o rei está morto. “O que levamos desta vida inútil tanto vale se é a glória, a fama, o amor, a ciência, a vida; como se fosse apenas a memória de um jogo bem jogado, e a partida ganha a um jogador melhor”. Este é um trecho no poema Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia, escrito por Fernando Pessoa, que conta a história de dois enxadristas que jogavam o jogo de forma contínua e ininterrupta em meio à invasão de uma cidade na
Pérsia. O poema pode ser interpretado como um xeque-mate da vida. Apesar de buscarmos alcançar nossos objetivos, não é possível controlar quando eles se realizarão, como isso acontecerá e se de fato se tornará realidade. É um universo incontrolável. No entanto, um jogo de xadrez é possível estar no comando das ações e ditar os acontecimentos. Por isso os dois enxadristas do poema preferem ignorar a invasão na Pérsia. Não há o que fazer para impedila. Assim, eles preferem controlar aquilo que é possível, no caso suas peças. “Ardiam casas, saqueadas eram as arcas e as paredes; violadas, as mulheres eram postas contra os muros caídos; transpassadas de lanças, as crianças eram sangue nas ruas... Mas onde estavam, perto da cidade, e longe do seu ruído, os jogadores de xadrez jogavam o jogo de xadrez.” A sorte não está presente no xadrez. Matheus Dietrich construiu seu próprio mérito, assim como um peão não chega ao outro lado do tabuleiro por acaso. Ana Paula descobriu na dança um jeito de amadurecer, e Brenda um hobby, bem como o desenvolvimento de um cavalo na partida. Alina mostrou que planejamento não é tudo, porque as jogadas adversárias muitas vezes são imprevisíveis. Fato é que no xadrez da vida vence aquele que se adaptar melhor à cada circunstância.
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Transformação e mudança, os guias para um jovem universitário cristão Sspiehs3
Isabela Bumerad O começo: Uma sala de aula, ampla, cheia de janelas, o piso branco e sem aparentemente nada que a tornasse especial. E a sala em si nada tem de especial, o que torna o lugar diferente são as pessoas que passam por ali. Costumava acontecer no lugar uma reunião chamada Dunamis Pockets, uma reunião entre jovens universitários de todos os cursos da Universidade Presbiteriana Mackenzie e de fora dela. O fundador desse encontro é Felippe Borges, tudo começou em 2010 quando ainda estudava no prédio 6 de Engenharia. Era volta
às aulas, ele estava fazendo jejum, queria ouvir mais de Deus e logo que a professora entrou na sala sentiu que deveria orar por ela, se aproximou tímido para em seguida se apresentar, contava em durante a pregação na Igreja Monte Sião. - Oi professora, tudo bem? Eu sou o Felippe, amigo de Deus. - Oi Felippe, muito prazer. - Então professora, isso vai soar muito estranho, mas Deus me disse para orar pelo seu irmão. Os olhos da professora se arregalaram, pouco antes de entrar na sala havia recebido uma ligação
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referente ao irmão, ele havia sofrido um acidente de moto, ainda não sabiam muito sobre o estado, mas aparentava ter se machucado bastante. Felippe ainda receoso perguntou a ela: - Posso orar por você? - ela perimitiu. Naquele momento ele fechou os olhos e começou a orar. - A oração foi rápida e baixa, aquela oração de cura que você faz quando está receoso e não sabe se vai dar certo. Depois da oração ele voltou para a carteira e a professora começou a aula, quando acabou conta que foi
embora correndo. E na semana seguinte no momento em que ela entrou na sala parou diante da carteira de Felippe e indagou. - Quem é você? - Professora, sou eu Felippe, o amigo de Deus. Nesse momento todos davam risada, mas logo se silenciava a fim de ouvir a próxima parte. - Logo depois que você saiu da sala eu recebi uma ligação do hospital dizendo que meu irmão só tinha tidos ferimentos leves e iria receber alta. A partir daquele momento todos vinham pedir a Felippe por alguma oração que ele fazia de bom grado. Algum tempo depois ele começou a ficar na sala 306 do prédio 6 louvando, orando, às vezes sozinho e às vezes com amigos. Foi assim que o Pockets começou. Esperança: Entre todos os que frequentam o Pockets, sempre há rostos conhecidos, estudantes que costumam ir nas reuniões quase toda semana, quando não toda semana e durante esse tempo buscam se conectar com Deus e esperança para os momentos e situações difíceis. Stephanie é um exemplo, uma jovem alta, pele da cor do chocolate, longos cabelos escuros e olhos castanhos sempre brilhantes. Em um dos encontros compartilhou o milagre que havia vivido, mesmo sem ter nenhuma bolsa de estudos disponível naquele semestre, haviam oferecido uma parcial ao perceberem a dificuldade e a real necessidade do benefício. A estudante de psicologia estava feliz, iria continuar a estudar ali. - Ainda não é o que eu preciso, eu preciso de 100%, mas onde não existia nada, Deus fez surgir, então eu acredito que esse processo ainda não terminou. Outro caso de bolsa de estudos foi o de Helen Mezzetti Sousa de 22 anos,
a jovem de pele clara e cabelos pretos faz parte da equipe do movimento. Nascida em um lar cristão, tornouse rebelde na adolescência, piorou quando entrou na faculdade. Dessa vez tinha deixado totalmente de lado a igreja e passado a frequentar cada vez mais a Borba (Maria Borba, rua dos bares perto da faculdade). Problemas em casa a faziam querer esquecer de tudo como a dificuldade financeira, além do irmão problemático que havia saído de casa, mas ameaçava constantemente voltar e machucar a família. Mesmo depois do pai ter trocado todas as fechaduras em casa, ela ainda sentia medo. Helen sentia uma dor imensa que não contava para os pais e não podia contar para os novos amigos, eles só se importavam com a diversão. Chegou a ter pensamentos suicidas, mas não queria mais um motivo para que a família sofresse. Problemas financeiros impediam que pudessem pagar as mensalidades o que fez com que ela quase saísse da faculdade. Seu ponto de virada foi um dia do qual não se lembra de tudo, mas se lembra do principal. Era seu aniversário, chamara todos aqueles que ela costumava sair, haviam ido para o bar e no final da noite ela havia sido deixada sozinha, bêbada e tentando achar uma maneira de ir para casa. Não se lembra de como voltou para casa, mas se lembra de ter orado para Deus. - Eu falei que eu estava cansada e não aguentava mais a solidão, a dor, então que ele realmente existia para me ajudar a sair disso tudo. limpava algumas lágrimas com as pontas dos dedos ao terminar a fala. Ela parou de frequentar os bares e perdeu aqueles que pensava serem seus amigos. Alguns dias depois daquilo ela fora sido chamada pela Universidade para conversar, era sobre a inadimplência com as mensalidades. - Eu estava morrendo de medo,
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eles me perguntaram o que estava acontecendo que havia parado com os pagamentos e eu expliquei da situação financeira ruim em casa, eu também ainda não tinha estágio então não dava para pagar. - já sem lágrimas ela prosseguia a história Então a moça falou que eles iriam me oferecer uma bolsa retroativa, iria valer para todas as mensalidades em aberto e eu fiquei muito feliz, era exatamente o que eu precisava. Veio a conhecer o Pockets um pouco depois, sentia que os caquinhos dentro de si eram reconstruídos pouco a pouco, mas apesar de ver mudança em si e na sua mãe, ainda não via no seu pai. Elas haviam começado a frequentar uma igreja, mas ele não queria saber. - Ele ainda é um pouco difícil, mas eu não desisto. - confidenciou. Transformação e Mudança: Giovanna Verroni de 21 anos, estuda Fisioterapia na Universidade e foi líder do Pockets durante um ano e meio. Uma figura alta, esguia, sempre sorrindo. Sua pele bronzeada combina com seus longos cabelos castanho claro e os olhos brilhantes também castanhos. Mexia nos longos cabelos para em seguida responder não só com palavras, mas usando as mãos também sobre propósito do movimento. - O nosso intuito é gerar bolsos de avivamento, bolsos de esperança e graça dentro das sete esferas da sociedade e fazer com que as pessoas que frequentam o Pockets entendam que elas são uma voz dentro dessa geração, independente do seu status, independente da sua posição social e que elas são capazes de exercer transformação e mudança através dos princípios do reino de Deus. Transformação e mudança, duas palavras presentes nos vocabulários e nas histórias da maioria dos estudantes que frequentam assiduamente o movimento.
Samuel Lee
VENTRE DA CULPA
A
luz azul do corredor faz sombra à psicóloga, um metro e sessenta, cabelos pretos no ombro e sorriso doce. O abraço aconchegante remete a infância. Aline, conta que a salinha de 1,50m x 2m é o melhor cantinho para muitas mães. “Elas falam aquilo que gostariam que fosse compartilhado fora daqui, mas devido uma conotação histórica essas angústias são sufocadas.” Os últimos 12 anos da carreira de Aline são dedicados a compreender este cenário materno que liberta e sufoca tantas mulheres. “A melhor maneira de se livrar desse desconsolo materno é analisar o contexto.”. Segundo a psicóloga a imagem de Maria de Nazaré relatada nos livros sagrados como uma mãe zelosa, que doa-se pelo filho e faz de tudo por este que é concebido em seu ventre, é o passo inicial para a construção da maternidade romantizada. Dona Ignes, aos 92 anos, conhece
o peso destes preceitos. O vestido florido até os joelhos não esconde a cicatriz de 15 centímetros de um questionamento. Casou-se aos 18 anos, o primeiro filho veio aos 19 anos e o terceiro aos 24 anos. O sonho de ser professora de português não foi concretizado. O falecido marido não permitia outra função a não ser a de educar os filhos, tomar a lição de casa, cuidar da saúde deles e servir às tarefas domésticas. Completou 33 anos e ao cortar o bolo de aniversário estabeleceu que ia realizar o sonho oprimido. No dia seguinte, acordou cedo, colocou a água do café para ferver e foi aprontar as crianças para escola. Sentaram-se à mesa posta com bolos, pães e queijo. Ignes serviu o café do falecido e pôs a falar sobre a decisão. “ Não tive tempo de reagir, ele virou a garrafa de café quente na mesa que escorreu para a minha perna, deixando essa cicatriz horrorosa.” A vida feminina era quase que predestinada. A mulher acatava-se ao casamento e aos filhos. “ Quando pensava em fazer minhas vontades próprias, me sentia muito culpada pois sabia que estaria decepcionado meu marido e que poderia deixar falhas acontecerem com as crianças.”
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Conta Dona Ignes, com o olhar conformado. Aos 72 anos, Deise Falótico lembra-se lucidamente de quando abriu mão do bom cargo. “Era coordenadora de contabilidade na Fundação Álvares Penteado, conquistei autonomia, comprei o meu carro e ajudava em casa. Mas quando engravidei, meu marido fez com que eu saísse do emprego para dedicar-me a maternidade. Fui burra em aceitar! ” Deise dividia-se em culpas: a de não exercer o desejo profissional. Assim como, a de voltar trabalhar e ser uma mãe incompleta para os três filhos. “Minhas amigas falavam que ser mãe é assim mesmo, tem que abrir mão dos sonhos para dar o melhor para as crianças.” Clara Maria, aos 37 anos é mãe de dois filhos. A profissão de advogada exige uma rotina complexa. Se desdobra em mil para tentar conciliar o dia a dia. “Tem hora que não aguento, choro como se fosse uma criança. Tenho vontade de deitar no colo da minha mãe por horas, mas ao mesmo tempo sinto culpa por me sentir assim”. Para Aline, essa pressão exercida tanto socialmente quanto internamente de dar conta de
todas as necessidades maternas, profissionais e de casa é a principal razão para o surgimento de doenças mentais, como depressão, ansiedade, pânico e estresse. O primeiro zíper externo da bolsinha preta de Helena é dedicado ao Rivotril sublingual. O remédio prescrito pelo psiquiatra é o companheiro diário da assistente de consultório. “Depois da gravidez desenvolvi pânico e até hoje não consegui me livrar dele”. É mãe solteira e tem de arcar sozinha com as despesas das filhas. Trabalhou de babá aos finais de semana para não ser tão dependente da mãe. “Foi a pior coisa que fiz! Fui cuidar de outra criança que não eram as minhas”. Após três meses preferiu ficar às custas da mãe do que chorar no banheiro do serviço por estar suprindo a necessidade de outra mulher. Com precisão na voz, a advogada diz que fica com dó do marido pois trabalha muito e sente-se mal em pedir ajuda com as tarefas dos filhos. Por isso, conta com o auxílio de duas funcionárias para cuidar das crianças. “A Fátima e a Angela são duas anjas, mas mesmo sabendo que são super cuidadosas, me sinto um lixo por precisar delas. Todo dia penso se meus filhos vão ter mágoa de mim”, diz Clara com o olhar fundo e cansado das noites não dormidas. Renan, é o caçula e ainda desperta na madrugada. Fernanda é envolvida com movimentos feministas, luta por uma maternidade mais simples e para que os pais compartilhem das mesmas responsabilidades maternas. “Mesmo me esforçando para quebrar paradigmas, é muito difícil desconstruir a ideia de que a mãe sabe cuidar melhor do filho e que cabe a ela essa função.” Os cabelos loiros exigem cuidados semanais, mas fica desesperada para voltar para casa ao deixar a pequena Sofia com o pai. “Enquanto meus cabelos estão hidratando carrego uma culpa imensa, pois sinto que ele está fazendo
um favor para mim.” A jovem sentese mais confortável e serena quando em sua ausência a vovó da Sofia assume a responsabilidade. Outro estimulador de culpa materna são as redes sociais, pois são fartas de publicações de famosas compartilhando a imagem estereotipada da maternidade perfeita. Essas ferramentas sociais têm semeado espaço para o debate de diversos conceitos. A amamentação é um dos assuntos reforçados e propagados pelas mães influenciadoras digitais. Paula guarda até hoje as fotos chorando enquanto aumentava, o universo digital foi um dos principais motivos para insistir tanto em ter os seios machucados. “Assistia às famosas amamentando dizendo que é um ato de amor e fui ao meu limite, 6 meses de dor.” Essas influenciadoras digitais possuem uma responsabilidade enorme quando falam sobre maternidade, já que são inspirações para diversas mães. Porém, quando as aspirações são frustradas as mães tendem a cair em culpa. Aline conta que geralmente as mães famosas mostram o lado angelical da maternidade porque dispõem do auxílio de babás,cuidados pessoais e parcerias com diversas marcas. As paredes estampadas da escola infantil da pedagoga Waleska Aleixo são testemunhas das mães angustiadas ao deixarem os filhos pela primeira vez no ambiente escolar. A separação é mais dolorida para as mães do que para as crianças, na maioria das vezes. “Elas mandam mensagem de 2 a 3 vezes ao dia”. Deise criou as duas filhas para serem independentes dos companheiros, a mais velha é divorciada, empresária e criou dois filhos sozinha. A autoconfiança de Patrícia abrilhanta o mulherão que afirma ser, mas não nega que às vezes queria não ser mãe. “Não significa que não amo meus filhos. Mas tem dias que queria estar livre das obrigações maternas.” A empresária
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conta, com um sorriso de orelha a orelha, que a autonomia dos filhos liberta mais da metade das culpas que as mães carregam diariamente, principalmente na primeira fase da criança. “Eles são maiores de idade, consigo sair e me divertir sem carregar peso.” O caderno de bolso de Fernanda tem escrito a frase “Juntas vamos a luta”, mas a estudante se remói para colocar em prática os ideais do que considera uma maternidade justa e livre de culpa. “Temos um longo caminho a seguir, carregamos traços de uma maternidade romantizada de séculos.” Paula deixou de seguir influenciadoras que divulgam a imagem de uma maternidade irreal para ela. “O que funciona para mim pode não ser a melhor opção para outra mulher”. Para a dona de casa, a falta de educação digital é um agravante no mundo materno. As mães não filtram o que assistem nas redes sociais, consequentemente não há apuração do que é cabível para a rotina daquela mulher, e portanto, gerando frustração à idealização do que é ser mãe. Para aliviar o sofrimento, a instituição da Waleska possui um aplicativo onde são disponibilizadas fotos dos alunos. É uma excelente ferramenta para as mães verificarem que os filhos estão bem e alegres. Assim, essas mulheres conseguem realizar suas rotinas pessoais com mais tranquilidade e sem aperto no peito. A maternidade transborda emoções. Os sentimentos ficam à flor da pele e levam as mães do céu ao inferno em questão de segundos. As mulheres de hoje lutam por um espaço onde possam falar que ser mãe nem sempre é a melhor coisa do mundo e dizer sem vergonha que a maternidade é cheia de aflições e choros oprimidos. Porém, independente de todos os anseios um sorriso sincero e um “te amo mamãe” derrete qualquer mãe e faz todo sofrimento valer a pena.
O perto mais distante que existe
ArtTower
O
Lucas Galante
estado de São Paulo hoje, tem o maior número de comunidades do Brasil ao lado do Rio de Janeiro. Segundo a própria prefeitura , 20% da população moram nas periferias. Residente da favela do pantanal, Sandere Araujo de 17 anos de idade teve realidades que muitas pessoas de mais de 40 anos nunca terão na vida. Teve o conhecimento da morte logo cedo, sem pedir licença, levou sua mãe quando ele ainda tinha dois anos de idade.
Com essa perda ele relatou “Eu não me lembro de nada como foi, mas é uma dor que me consome ta ligado? Ela dói sem eu saber como foi ”. Após essa perda, uma luz em seu caminho apareceu, e essa luz tinha nome e endereço. Apesar de uma grande parte da população viver nas periferias de São Paulo em condições nada favoráveis, existem partes de São Paulo que se destacam por ter uma grande quantidade de prédios e casas nobres, que é o caso de Alphaville, que possui cerca de 32.000 mil habitantes distribuídos em seus residências. A região conta com diversos hospitais 24 horas e dois shoppings com as
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mais diversas lojas. Isabela Bastos, com seus dois irmãos mais velhos e seus pais fazem parte dessa contagem desde seu nascimento, 16 anos atrás. Ela estuda na melhor escola da região desde o maternal, Colégio Presbiteriano Mackenzie, cursando o terceiro ano do médio no momento. Faz tudo que precisa pela região de sua casa, sem precisar se locomover muito para isso. Sandere, com 3 anos de idade encontrou um anjo da guarda após sua perda, Dona Terezinha, como chamava ele com total admiração e respeito, cuidou dele até os 14 anos, as condições não era das melhores,
comenta, mas que a mulher sempre fazia o máximo para dar tudo do bom e do melhor para seu filho adotivo. “Não sei dizer o que eu fiz para merecer Dona Terezinha, minha verdadeira mãe, mas foi algo muito bom, sempre foi e sempre será meu maior exemplo e motivação”. Aos 14 anos, Sandere teve o amargo e injusto gosto da morte mais uma vez, e dessa vez com consciência, com sentimentos. Terezinha faleceu e ele se viu sozinho mais uma vez, única opção que o destemido menino encontrou foi recolher suas roupas, memórias e partir em direção a selva de pedra. A capital paulista foi seu destino com apenas sua coragem de um homem de 14 anos, sua maturidade teve que chegar mais cedo, sem nenhuma opção ou convite para entrar. Apesar da situação que se encontra, Sandere diz com gratidão e orgulho sobre sua casa “é simplesinho e sem muita coisa, mas ai, tudo que eu tenho aqui, juro por Deus, fui eu que comprei.” Os olhos brilhantes e sonhador dizendo sobre seu lar claramente transforma toda residência em uma sala de troféus, colecionando mais do que apenas uma cama ou uma geladeira, coleciona vitorias, superações e a escolha que ele julga ser certa. Na área do Alphaville, Isabela nunca teve outra experiência a não ser, viver pelo bairro. Com um quarto para cada irmão e ainda outro para visitas. Ela vê sua casa como um verdadeiro refúgio de paz e segurança. Além de contar com academia, cinema, quadras, piscinas e outros espaços que consegue fazer atividades extras em seu prédio. Ela não é alienada e sabe bem sobre as condições diferentes dela, nunca presenciou mas já ouviu falar, não deixando de lado a gratidão por tudo o que tem Um menino de 14 anos de idade na periferia sem um norte pode ser alvo de propostas que, de primeira impressão pode ser irresistível. “Já
me chamaram uma par de vezes para ser do corre, você entende né? Dona Terezinha desde o começo me falava que esse mundo existia e que nois não podia deixar cair em tentação com as coisas erradas”. Relatou que a dois anos que esta lá já ouviu mais de 4 historias que viraram tragédia nessa vida e com todo ele diz que, essa nunca foi nem nunca será uma opção em sua vida. Em bairros com uma condição econômica melhor a relação com as drogas mudam. E quem aponta isso é a própria Isabela. Ela explica que ela não utiliza por ter problemas na família com álcool e drogas, e por isso se vê longe desse assunto. Já os amigos dela não tem o mesmo pensamento ou medo. “Olha, todos meus amigos e amigas bebem e fumam maconha ou cigarro, isso aqui é normal, mas drogas sintéticas não são assim tão comum, mas conheço muitos que usam, e eles falam que é simplesmente para socializar e ficam com aquela famosa frase ‘Se eu quiser eu paro’ mas todos sabemos que não é assim. Para conseguir essas coisas é muito fácil também, sempre conhecem amigos que vendem, que conhecem uns contatos meio barra pesada.”. Ela ainda contou que é muito fácil ter o contato com as drogas, já que a maioria das festas são nas casas gigantescas que Alphaville possui sem nenhuma supervisão dos pais. “Aqui, nesses ‘roles’ é bem fácil se perder, eu mesmo já exagerei muito no álcool, mas depois do falecimento do meu avô por conta da bebida, estou querendo parar e olha, não é nada fácil”. Sozinho, com 200 reais de aluguel para pagar, Sandere teve que arrumar uma forma de ganhar dinheiro mesmo sem educação básica completa. Achou uma solução possível para seu problema: cuidar de carros. O trabalho que ele arrumou por ser informal, ninguém respeita ou o trata de uma forma digna. “Tem um pessoal aqui que entende que a
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gente tá aqui pelo certo, só quero juntar uma moeda para conseguir pagar meu aluguel, mas não são todos, direto me ignoram, saem correndo, ou nem me olham no rosto sabe? Sinto que sou indigente assim, mas tem situações que me fazem esquecer essa falta de educação, ergo a cabeça e continuo meu dia” relata Sandere. Na região de Moema ele, todos os dias, pega um ônibus que demora quase 40 minutos e sem espaço nenhum para respirar, tendo uma cena desumana para chegar até seu ponto estratégico. O garoto passa o dia todo cuidando dos veículos na região “É complicado esse ônibus, sempre vem cheio de gente e temos que dar um jeito de entrar por que demora muito tempo pra vir outro”. Ela não utiliza nenhum tipo de transporte publico, vai até seu colégio de carro com sua mãe, Aniseth Bastos, 47 anos, todos os dias, volta com a perua escolar e admite “eu poderia voltar de ônibus para casa, mas não sei, tenho medo então meus pais acabam pagando a perua para mim que é bem mais tranquilo”. Ela nunca pegou um transporte público e quando fala sobre suas mãos ficam suadas e suas pernas se mexendo incontrolavelmente revelando que já ouviu histórias na qual não gosta nem de lembrar e não pensa em algum dia ter que passar por isso. Nos finais de semana o menino trabalha também, segundo ele o dia que mais consegue uns “trocados” é no Sábado, mas não deixa de ter um tempo com seus amigos. Tomar uma cerveja no boteco perto da sua casa, frequentar bailes funks ou fazer um churrasco na laje são as formas em que Sandere , seus amigos e amigas tem para se divertirem e sair da rotina. Sem precisar trabalhar para se sustentar Isa, como é chamada por seus amigos, consegue ter tempo livre para fazer atividades extracurriculares. Sua escola oferece um curso de inglês em
uma das melhores redes de línguas estrangeiras no mercado, e ela aproveita fazendo duas vezes por semana depois da aula, almoçando no local. Em época de provas faz aulas de reforço particular em sua própria casa. Em dias que não tem o compromisso com as aulas extras ou o inglês, A garota de 16 anos não mostra nenhuma dúvida de que, cuidar do corpo é uma prioridade e frequenta a academia de seu prédio três vezes por semana e ainda pratica aulas de Muay thai, luta de origem tailandesa. Pede a sua mãe que compre produtos da linha fitness para que mantenha a forma, desde roupas até alimentos com baixas calorias que sua nutricionista recomendou. De sexta feira ela não hesita em dizer que é seu dia favorito, apenas de tocar no assunto já fica animada. “Lá na escola o assunto sempre é sexta feira, ou a que passou com as fofocas e tudo que aconteceu no
‘role’, ou a próxima sexta, onde vai ser a festa, qual roupa usaremos ou até quem beijará quem” e também completou dizendo que toda sexta tem algo, alguma festa, em alguma casa luxuosa de amigos que os pais não estão em casa ou em baladas que para entrar é em torno de 80 reais, fora o consumo dentro do local. Domingo é o dia da família na casa dos Bastos, seus pais sempre fazem um almoço que é um verdadeiro banquete, cheio de opções. Na mesa sempre cabe mais um e fazem questão de quando há visita o tratar da melhor forma possível oferecendo tudo do bom e do melhor e eu não fiquei de fora dessas condições. Isabela conta muito orgulhosa desse momento em família, todo domingo, sem exceções e diz que entre os amigos ela é a única que tem isso, pois a maioria não tem um bom relacionamento com os pais e nem sequer pensam em ter. Apesar de morar sozinho e ter a dor da perda mais de uma vez,
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Sandere não desanima. Transformou seus amigos em família, que é o caso de Osni Resende, se conheceram em um dia de trabalho, Ele foi pedir um dinheiro para Osni que, com simpática, puxou assunto e em uma relação que o menino chama de “feita pelo destino”, os dois se tornaram grandes amigos. Fazem aniversário no mesmo dia e ele ainda acrescenta “ O Osni foi um cara que veio de Deus pra mim, me ajuda, me abençoa e eu sempre aprendo muito com ele. Você acredita que ele me levou para pular de paraquedas no nosso aniversário? Nunca nem pensei que um dia isso seria possível” A discrepância que a cidade de São Paulo possui não é necessário muito esforço para enxergar. Pessoas da mesma faixa etária, tão perto geograficamente e ao mesmo tempo de realidades impressionantemente distantes, muitas pessoas vivem dessa maneira, sem uma boa distribuição ou oportunidades iguais para pessoas de mesma idade e localização.
Mar de Gente
N
unca eu havia levado um choque de realidade tão grande quanto este. Jamais pude imaginar que qualquer parte de São Paulo poderia estar em uma situação tão precária como a Cracolândia em 2014. Essa área existe desde o início dos anos 2000. Mas como pode uma área tão rica, culturalmente falando, ficar naquele estado? Sala São Paulo, estações como a Júlio Prestes e da Luz, o Memorial de Resistência de São Paulo, a Folha de São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa,
Pinacoteca....Enfim, motivos não faltam para apreciar a região. Quem passa na Cracolândia com frequência acostumou-se as desgraças que por lá estão. Inúmeras vezes que peço um Uber, os motoristas cancelam a viagem para não correr o risco de passar por lá. Nem a construção dos prédios na Rua Helvétia ajudou a melhorar a situação, diferentemente do que a polícia dizia antes das obras se iniciarem. Acabou que os moradores de rua apenas foram para a quadra de trás. Mas engana-se quem pensa que é impossível andar por aquela região. Obviamente deve-se tomar o cuidado necessário. Porém, em cada esquina, se vê um grupo de policiais ou seguranças terceirizados da Porto Seguro. Os da empresa seguradora
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são os mais competentes quando o assunto é enfrentar os mendigos. Ficam doidos para expulsá-los quando estão perturbando alguém ou algum estabelecimento. É preciso entender que existem certas regras na Cracolândia. Uma delas é muito simples: nada de câmeras. Meu pai, Nelson, que possui uma padaria/restaurante na região, me contou duas histórias: “Quando eu abri o restaurante, fiquei tão chocado com a quantidade de “nóias” que ia tirar uma foto de dentro do carro mostrando as ruas. De repente ouvi um grito: “Tão filmando por que, porra? ”. Eles simplesmente jogaram tudo o que podiam. Parecia que estava chovendo pedra. Eu só acelerei e fui embora, se tivesse ido para o restaurante, eles poderiam me seguir
e sabe-se lá o que iria acontecer”, me contou. “Uma outra vez foi quando deu um ano da operação de acabar com a Cracolândia, do então prefeito João Dória. O Fantástico queria fazer um especial, de como ficou o lugar. O pessoal da produção do programa foi até a padaria e gostou do fato de ter três andares. Aí fizeram a proposta: Me pagar se eu deixasse eles usarem o terceiro andar para controlar um drone e fazer as gravações. Eu recusei na hora. Imagina se começam a seguir esse drone? O restaurante vai abaixo!”. Em outubro de 2019, um morador de rua, como de costume, entrou na padaria para incomodar os clientes, e logo de imediato chamei a polícia que estava no seu horário de almoço. Enquanto os dois guardas ficavam sentados, um segurança da Porto expulsava-o com as próprias mãos. O ‘’Negão’’, como é conhecido, é o que mais aparece no restaurante. ‘’Me divirto fazendo isso”, disse ele após mais um dia despejando os mendigos. Os moradores de rua não são todos iguais. Existem os que não sabem mais diferenciar a realidade da ilusão que o crack causou. São quase que mortos-vivos andando pelo centro de São Paulo. Cada indivíduo reage de um jeito ao fumar a droga. Normalmente ficam nos dois extremos: ficam extremamente agitados ou se desligam por completo, ficando sabe-se lá quanto tempo desmaiados na calçada. Existem os agressivos, que são os que mais precisa tomar cuidado nas ruas. Não necessariamente eles usaram algo para estarem nesse estado, mas são muito imprevisíveis. Não têm nada a perder. Sempre andam prontos para uma briga, seja com as próprias mãos ou com alguma arma. Também há aqueles que não precisa se preocupar de tão bons. Ronaldinho e Thiago são dois ótimos exemplos. Este último não há muito o que falar. Apenas 28 anos. Todo dia,
entre às 09h00 e 10h00, ele aparece na porta do restaurante e dá um “bom dia”. Sempre lhe dei uma bandeja de doce ou salgado que não estão mais em condições de venda. Se não tenho o que dar a ele no momento, peçolhe para voltar no fim do expediente. Sobre Ronaldinho, é um belo de um personagem. Não há quem não ria com ele. Talvez seja o único da região que seja permitido entrar no restaurante. Dificilmente o verá sem o seu cachorro. Assim que ele entra no estabelecimento, seu fiel amigo fica na porta esperando voltar com alguma comida. Meu pai, conhecido pelos clientes como Seu Nelson, frequenta a região há pelo menos 6 anos, quase 15 horas por dia todos os dias. Já o perguntaram inúmeras vezes o porquê não abrir um negócio em qualquer outro lugar que não dê tantos problemas quanto a Cracolândia. “É tudo uma questão de oportunidade. Uma funcionária me perguntou isso um dia, e eu respondi: “Pelo mesmo o motivo que você”. Abri principalmente pelo fato de ser vizinho de uma filial da Porto Seguro. Eles são a minha principal fonte de renda. E tem que ver o lado positivo dos moradores de rua: Com eles, necessariamente precisa-se de mais seguranças e policiais, que são a minha segunda maior fonte. Tudo isso além dos agentes de saúde que por aqui andam. E eu ajudo os “nóias” dando comida para eles, ao invés de jogar tudo fora. Óbvio que uma padaria na Oscar Freire não tem tanto problema quanto aqui, mas é preciso saber ver todos os lados”, ele me respondeu como se fosse realmente óbvio. Se você for do tipo de pessoa que é mais sensível, realmente não é a melhor opção andar pelas calçadas da Alameda Cleveland. Uma coisa é ver na televisão o pessoal usando crack, outra é ver a menos de 2 metros de você. Dificilmente verá um morador de rua andar sem um objeto metálico de 15 centímetros. O que será fácil de ver é, em dias de chuva, em qualquer
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canto na calçada que junte poças, algum morador enxaguando a cara ou fazendo bocejo com a água suja que se formou. Celina é a melhor funcionária que tinha na padaria. Ela já contou que teve um casal veio procurar pelos filhos, mesmo sem saber se ele realmente estava lá. Mostrando fotos e pedindo informações para todo mundo que via. Até que então dois moradores de rua falaram que o reconheceram e levaram os pais até um beco. Mataram os dois. No dia seguinte voltei a falar com a Celina. Ela me contou que três horas depois que eu saí, o restaurante teve que abaixar as portas por causa do tumulto que aconteceu. “Você sabe como é seu pai né? Qualquer barulho mais alto na rua e já tranca tudo”. Um segurança morreu saindo da estação Júlio Prestes e houve confronto com bombas e tiroteio dos moradores de rua com a polícia. Em frente a padaria, se localizam duas escolas. Meu pai comentou que por uma semana, ambas ficaram sem luz pois os mendigos roubaram os fios nos postes. Fazem isso para vender o que tem dentro. Outro fato curioso é a relação deles com a comida que recebem dos clientes. É normal vê-los jogando o refrigerante inteiro fora para ficar apenas com a lata ou não abrindo o pacote de comida, para conseguir vender logo em seguida. Andar e ver as ruas cheio de lixo é uma coisa diária, mas não é por que as pessoas apenas jogam na rua. Os moradores de rua pedem para ajudar a colocar no cesto e o abrem logo depois. Não só para ver se tem algum resto de comida, mas também para qualquer lata de refrigerante. Essa reciclagem é muito importante para eles, sendo uma das principais fontes de renda. Outro motivo é para ficar apenas com o saco. O lixo todo é jogado na rua e apenas o saco plástico é o que pegam, seja para guardar seus pertences ou se cobrir do frio das ruas de São Paulo.
vida em preto e branco Anemone
A
princípio, a tristeza pode parecer como alguém que te conforta, mas depois ela se torna aquele ser que te convence que o verdadeiro amor não existe, que suas dores nunca se passarão e que deixa o vazio criar marcas profundas. Conviver com essa tristeza e angústia no dia a dia têm sido a realidade de muitos brasileiros nos dias atuais. A doença acometeu Denise Maria Bianchezi, 57 anos, bancária, depois do falecimento de seu marido. Na época, Denise tinha somente 31 anos e já era mãe de dois filhos. Após descobrir sobre mais um relacionamento extraconjugal de seu esposo, percebeu que era necessário tomar alguma atitude sobre o acontecido, pois não queria que seus filhos fossem expostos à verdadeira índole do pai. Comunicou o marido sobre sua decisão de acabar com o casamento e, apesar das lágrimas, saiu de casa para mais um dia de trabalho. Ao retornar, o encontrou enforcado em um dos cômodos da própria casa. Mesmo estando na Era da informação e aceitação, não conseguia admitir que o que minava suas energias e acabava com seu prazer em viver se tratava de depressão. Jovem, decepcionada, viúva e mãe de dois filhos pequenos, não
encontrava forças para lidar com os sentimentos e com toda culpa que estava sendo colocada sob seus ombros. A reviravolta em sua vida fez com que diversas doenças fossem tomando conta de seu frágil corpo, dentre elas, a depressão e ansiedade. Escondia sua própria tristeza, a fim de consolar seus filhos que sofriam com a ausência do pai. A saúde de Denise ficava cada vez mais debilitada. Além da necessidade de lidar com o trauma, precisava superar a dificuldade financeira que
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acometeu a família, após a morte do provedor da casa. Os meses foram se passando e chegou o momento em que ela percebeu a necessidade de focar em seu próprio bem-estar. Compreendeu que um tratamento e acompanhamento de um profissional psiquiátrico era fundamental e, a partir disso, começou a se recompor e a lutar contra os sentimentos ruins que a acompanhavam. A palavra depressão também surgiu na vida de Patricia da Rocha
Messa, 29 anos, bancária, no momento mais feliz de sua vida, por mais difícil que seja acreditar nisso. “É terrível pensar dessa forma”, ela diz. “ Eu vejo todos me olhando com olhares tristes e piedosos e, na realidade, eu também sinto pena de mim mesma na maioria das vezes. Eu me encontro num buraco tão fundo há tanto tempo, que já passou a ficar confortável estar aqui.” Sua expressão é de indiferença, mas os olhos que lacrimejam e a voz que embarga mostram a dor que sente de verdade. Ela afaga os cabelos do filho, Bernardo, sem dizer mais nada. Sua doença começou a dar os primeiros sinais após o parto de seu primeiro e único filho. Nove meses intensos se passaram e Bernardo veio ao mundo, em outubro de 2016, com peso ideal e saudável. Desde o primeiro dia em casa, Patricia ficou sem saber como agir diante dos choros e gritos ensurdecedores de seu filho. “Algo estava errado e os médicos não sabiam me dizer o que era” afirmou ela com os dentes cerrados, “ eu sabia que bebês, naturalmente, choram, também sabia que talvez eu tivesse certa dificuldade para lidar com as situações novas mas, honestamente, a cada dia que passava eu menos queria estar com ele ou até mesmo levantar da cama e fazer as tarefas mais simples, como comer. Eu sentia uma culpa enorme, porque eu não queria cuidar do meu filho ou até falar sobre ele”. Ao mesmo tempo que Bernardo foi diagnosticado com intolerância a lactose, o que causava dores horríveis e inflamações em seu intestino, Patricia descobriu sua depressão. Essa situação toda dificultava que ela assumisse as as rédeas da própria felicidade e a cada dia se sentia mais dependente dos remédios. Ela só queria se sentir feliz com aquela criança em seus braços, conseguir sair na rua sem se sentir apavorada, deixar de se sentir culpada por aquela rejeição que estava direcionada ao filho e conseguir levantar da cama
para realizar seus afazeres. Nesse mesmo período, deixou seu emprego para se dedicar à melhora do filho. Atualmente, já conseguiu retornar ao mercado de trabalho, a doença de seu filho está praticamente curada e ela tenta dar pequenos passos para construir toda a sua vida novamente. Por trás do olhar triste, esconde-se um grande vazio, que às vezes ela usa como esconderijo para não ter que lutar contra os próprios sentimentos. “ Vivo um dia de cada vez. Tenho dias melhores e dias piores. Dias em que eu me sinto muito fraca para tentar. Dias em que eu sinto que nunca tive absolutamente nada… doença nenhuma. De qualquer forma, eu sigo tentando. Só tenho a agradecer por todo apoio e ajuda que recebo da família, amigos e dos profissionais que passaram pela minha vida. Força para todos que seguem na luta diária e boa vida para os que já ganharam a batalha” Daniele Marin, 31 anos, dançarina, também passou por tratamento, pois apresentava vários sintomas de depressão e bulimia nervosa. “Eu sempre tive um corpo diferente das minhas colegas de trabalho, mas nunca me senti mal por isso. Depois que comecei a ser alvo de comentários maldosos do meu chefe, nunca mais fui a mesma”. Ela atua como dançarina de ballet contemporâneo e após ser chamada de gorda em frente a toda companhia de dança, começou a fazer dietas rígidas e tomar pílulas para emagrecimento. Apesar de ser magra e muito talentosa, não conseguia mais sair de casa para trabalhar e se sentia insegura com os trajes das apresentações. Estava emagrecendo muito, porém não enxergava dessa maneira. A culpa chegava após cada refeição, o que fazia com que ela provocasse os vômitos. “Eu não podia engordar, pois além do peso, meu chefe criticava minha idade também. Eu já estava muito velha para dançar”, disse ela. Depois de muito tempo aflita
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e ficando cada vez mais doente, se aposentou da companhia de dança e foi atrás de sua felicidade. Tudo mudou depois de abandonar o lugar tóxico em que trabalhava. Com apoio dos familiares e do acompanhamento médico, vem tentando se recuperar e manter seu corpo e mente saudáveis. Ir em direção à felicidade tem sido algo difícil, não somente para a mãe do Bernardo, para Denise ou para Daniele, mas também para uma grande parte da população. A depressão e ansiedade, segundo a OMS, são as doenças que mais crescem e prevalecem no Brasil e no mundo. A depressão afeta 322 milhões de pessoas no mundo e, de acordo com os dados de 2015, essa doença já matou 788 mil pessoas, porque acabaram cometendo o suicídio. Essa enfermidade é caracterizada por angústia persistente, falta de interesse em realizar atividades, ausência de prazer, sentimentos de culpa e baixa autoestima, distúrbios do sono ou do apetite, além de sensação de cansaço e falta de concentração. Pode ser encontrada em pessoas de qualquer faixa etária e pode ser genético ou não. Segundo a enfermeira do Hospital Nove de Julho, Thalita Serafim Guerreiro, 30 anos, o número de pacientes que chegam nos prontos socorros com crise de ansiedade é muito grande.“ É difícil ver uma crise de ansiedade de perto. Muitas pessoas acham que é frescura, que é algo que se pode controlar, porém eu já vi um pai de família morrer, na minha frente, por ter demorado muito para acudir a crise e acabou tendo uma parada cardíaca”. Tomar as rédeas dessa situação angustiante pode não ser a tarefa mais fácil do mundo, porém tudo piora por conta da cobrança por parte da sociedade que exige uma disposição para ser feliz, ter êxito nos relacionamentos em geral, constituir uma família e também ter êxito profissionalmente. Apesar de a realidade onde tudo acontece
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perfeitamente seja bem inalcançável, o desânimo causado pela depressão alimenta o medo, fazendo com que a vida pare, não evolua e não nos permita tentar viver, mesmo que o relógio dos demais continue girando e que os dias continuem passando. A causa da doença que provoca uma angústia sem fim, não foi totalmente esclarecida, mas sabe-se que o uso excessivo das redes sociais e tecnologias influenciam no desenvolvimento de diversos distúrbios, pois acabam manipulando a visão que nós temos sobre como deveríamos viver para conquistar a felicidade.. Além disso, há também o fator da cobrança no meio profissional, que apesar de sempre ter existido, tem sido algo muito influenciador no quesito do desenvolvimento da doença depressão nos indivíduos. Somos cobrados para trabalharmos mais que máquinas, recebendo pouco para
isso e tendo que nos profissionalizar e estudar até o final de nossas vidas, tudo isso para podermos nos destacar num mercado de trabalho já muito saturado. Além das exigências, somos submetidos a longas jornadas de trabalho e longa permanência de conexão em instrumentos tecnológicos. No Brasil, a doença causa diversos licenciamentos, sendo considerada a segunda maior causa de afastamento do trabalho. A pressão excessiva do mundo moderno pode gerar não somente a depressão, mas sim uma série de problemas de ordem emocional, como por exemplo estresse, ansiedade, transtornos bipolares e ataque do pânico. São muitos os que vivem uma realidade parecida com a da Patricia, Denise e Daniele, não somente os que foram realmente diagnosticados e estão sendo devidamente tratados, mas também
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existem os que não acreditam que isso é sério e precisa de atenção como qualquer outra patologia. Hoje, existem diversos tipos de medicamentos, que conseguem repor os neurotransmissores no cérebro, como serotonina, dopamina e noradrenalina que, normalmente, estão diminuídos na depressão. Para auxiliar na melhora, é necessário associar os medicamentos com a psicoterapia, que proporciona o autoconhecimento necessário para resolver as dificuldades emocionais e conflitos internos. Alguns procuram a medicina alternativa para tentar entender suas angústias e aliar com a medicina tradicional, como por exemplo a meditação, que ajuda a controlar os sentimentos, a acupuntura, que alivia os sintomas da doença, reiki, que relaxa e acalma, alimentação antidepressiva, que estimula a produção de hormônios do bem-estar, entre outros.
Sobre ter mais pais como André e Mirella no mundo Andrea Don
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ma aula de jiu jitsu em uma sala com 12 crianças, o mais velho tinha 14 anos e o mais novo 8 anos. Na sala tinha Breno, Paulo, João, Murilo, Carlos, Fernando, Enzo, Yuri, Rafael, Davi, Lucas e Mateus, cada um com seu jeitinho, uns mais fechados, outros mais sorridentes, descontraídos. Atrás do vidro da sala de aula, inúmeros pais, vibrando a cada passo da aula. O tio Zé com uma paciência e um amor inexplicável do começo ao fim da aula, toda quarta e sexta. O que esses alunos têm em comum além do amor pelo tio Zé? Todos eles são autistas, todos eles enxergam o mundo de uma forma diferente, cada um com sua peculiaridade, cada um com seu grau, seu desenvolvimento. Os pais do lado de fora, tinham
orgulho a cada conquista do filho na aula, cada um tinha sua história para contar sobre seu filho, mas todos eles tinham o mesmo objetivo, ver o filho feliz. “Ter um filho autista não é fácil, demanda tempo, dinheiro, psicológico forte, paciência, mas ver esses momentos deles interagindo e brincando é gratificante”, conta Mirella Soderi mãe de Breno. Assim, como eles, muitas outras crianças possuem o autismo. Segundo uma estimativa da CDC (Center of Deseases Control and Prevention), órgão ligado ao governo dos Estados Unidos, existe hoje um caso de autismo a cada 110 pessoas. Dessa forma, estima-se que o Brasil, com seus 200 milhões de habitantes, possua cerca de 2 milhões de autistas. Mas será que essas famílias desses quase 2 milhões de autistas espalhados pelo mundo, tem conhecimento sobre a doença? Tem conhecimento da importância do seu papel no desenvolvimento dessa criança com a doença? Será que todos pensam como tio Zé? Será que todos têm disposição e o conhecimento sobre o tratamento do autista como Mirell e André, pais de Breno? A falta de conhecimento sobre a doença gera “preconceitos”, medos e um certo estranhamento quando se vai interagir com um autista. André, pai de Breno, conta que muitas vezes a vida social de seu filho, só não é mais intensa por falta de espaço. “Desde pequeno, tentamos tratar o Breno
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como uma criança normal. Sempre jogamos o Breno para o mundo, claro que entendendo as limitações dele, mas nunca colocamos ele dentro de uma bolha. Tudo que a gente propõe para ele que vai envolver mais gente, ele adora” Nem todos os autistas são como Breno, o autismo ele tem vários graus, vários níveis e de acordo como o autista é jogado ao “mundo” e com os tratamentos feitos por eles, essas diferenças acabam sendo nítidas com quem convive com eles ou simplesmente com quem vai assistir a aula do tio Zé. Breno, por exemplo, sempre teve muito apoio dos pais, psicológico, pedagógico, muitos investimentos em tratamentos, o que facilitou muito para o desenvolvimento dele. Mas nada disso, foi fácil. Ser pai e mãe não é uma tarefa fácil, ser pai e mãe de uma criança especial, é mais difícil ainda. Lidar com os medos, as dúvidas, os preconceitos, entender o universo e a realidade que ele vive e entender o espaço que ele precisa com certeza são desafios enfrentados por todos esses pais. Breno por exemplo, tem seus momentos que ele se “fecha” no mundinho dele. “Seja por que alguém falou algo que não devia ou por antipatia social, ele fica bastante agitado, muito recluso, vai para o quarto dele, se isola e enfileira todos os carrinhos e bonequinhos dele no quarto, como se fosse um exército e ali ele se sente protegido
do “mundo real” e por mais que eu tente proteger isso e não permitir que meu filho passe por isso, eu tenho que entender que ás vezes acontece e que eu preciso respeitar esse tempo e espaço que ele precisa”. Ao longo da aula do tio Zé, as crianças vão se divertindo, até futebol tem na aula, André com os olhos marejados conta o quão difícil foi escolher uma escola para o Breno estudar, foram em várias, algumas rejeitaram por ser autista e disseram que não tinham preparo, outras, até aceitavam, mas Mirella não gostava muito, até que acharam a Escola do Carmo, gostaram do espaço, da diretora, das professoras e decidiram matricular o Breno, mas ai que veio a dificuldade, a escola pediu para que nos primeiros anos da criança na escola, alguém acompanhasse ele. “Nós graças a Deus, tivemos condições de pagar a escola e mais uma pessoa para ficar com ele dentro da escola, mas quantas crianças autistas não tem essa oportunidade? É um absurdo a falta de preparo nesse País. ” Mirella, complementa a fala de André, dizendo que se fosse hoje, eles com certeza tinham obrigado a escola a “aceitar” o filho dela sem uma pessoa junto. “Hoje com mais experiência e conhecimento sobre o assunto, com certeza, eu tinha feito o barraco, mais meu filho ficaria na escola apenas com as professoras da escola” Breno sempre foi muito bem desenvolvido comparado à algumas outras crianças com a doença, André e Mirella se orgulham contando que mês passado, Breno se apresentou em um Sarau para mais de 100 pessoas e quando se fala de autista, isso é muito raro, já que a timidez é característica predominante na maioria deles. Mostrando o vídeo, Mirella estava com um sorriso de orelha a orelha, comentava a cada detalhe, orgulhosa e grata por tudo que o filho vem conquistando. “ Perceba o autocontrole e o ritmo dele. Perceba também a expectativa
dos amigos em ele se dar bem. A torcida dos amigos e a cumplicidade dos pais foi fantástico”. Atitudes como essa, fazem toda diferença no desenvolvimento de uma pessoa com autismo. A dedicação de seus pais, a torcida de seus amigos e o carinho de todos a sua volta foram essenciais para o Breno ser a pessoa que ele é hoje. Breno impressiona muitas pessoas ao seu redor. Ano passado, fez sua primeira viagem sozinho, sem seus pais, apenas com sua turma da escola. Foram 3 dias de acampamento. Lá foi ele, todo sorridente, deixando a mãe e o pai orgulhosos, receosos, mas a cima de tudo confiantes de que o filho deles dava conta. “Para mim, foi um desafio maior que o dele, eu acho, decidi que mandaria ele com os amigos sim. Quando fui á empresa pagar a viagem, algumas mães me encontraram e fizeram inúmeros questionamento. Tenho certeza que me acharam louca, como mandar um filho especial para uma viagem de 3 dias sozinhos? Ouvi muito isso, mas eu confiava no meu filho.” Breno foi, se divertiu, dançou, participou das festas, das brincadeiras e Mirella com sorriso de orelha a orelha pega os vídeos para me mostrar. “Olha isso, como ele está se divertindo e feliz, para que eu vou prender meu filho? Sim, ele tem suas limitações, mas eu preciso colocá-lo no mundo e desde o momento que eu vi aquela criancinha minúscula na incubadora, eu sabia que eu queria ele de filho e que ele era muito especial” Breno foi adotado por Mirella e André. Logo que nasceu, teve 7 paradas cardíacas, foi encubado e muitos médicos achavam que ele não sobreviveria. “Quando eu o vi ali, foi amor à primeira vista, André me falava que eu era louca que aquela criança não ia sobreviver, que íamos adotar e acabar perdendo ele rápido. Mas eu sabia que ele era meu filho, era aquele que eu queria e Deus foi muito bom comigo, olha
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o tamanho dele já” nos conta Mirella com sorriso no rosto e os olhos marejados, olhando encantada para a aula que já estava quase acabando. A aula do tio Zé acaba, crianças exaustas e pais felizes e orgulhosos. Hora de ir para casa? Não, hora de levar Breno para sua pedagoga. “Fernanda é luz nas nossas vidas, está com Breno desde que descobrimos a doença e é peça fundamental para o desenvolvimento dele”, conta Mirella. A conversa flui, Mirella mostra orgulhosa algumas conquistas de seu filho. Eu a questiono sobre as dificuldades e ela para, respira fundo e desabafa. “Não é fácil, tem horas que eu quero sumir, que eu quero sair gritando e confesso que algumas vezes me pego pensando em como seria minha vida, caso o Breno não fosse diagnosticado com autismo. ” Ela para, me olha e me pergunta: pesado ouvir isso né? Eu concordo com ela e deixo ela falar mais. “Mente aquele pai ou mãe que diz que é fácil, nossas preocupações são dobradas, temos que nos doar mais, afinal, eles precisam muito mais de nós, deixamos nossas vontades, particularidades, deixamos nossa vida muitas vezes para viver em função deles. ” Essa hora, os olhos enchem de lágrimas, o nó na garganta parece tirar as palavras de Mirella, mas ela respira e continua, “Mas todos esses sentimentos somem, quando ele aparece com aquele sorriso de lado, o pezinho batendo no chão e o corpo balançando para frente e para trás. É lindo demais, não sei dizer o quanto ele me tornou em uma pessoa melhor desde que apareceu em minha vida”. Enquanto Mirella falava, Breno estáva ali, sentado brincando com o ipad, prestando atenção em tudo, entendendo tudo que estava sendo dito, deixava escapar alguns sorrisos, porém fingindo que não estava ali. É, conviver com pessoas especiais é muito mais especial do que imaginam.... Por mais Andrés, Mirellas e Brenos no Mundo!
Copo meio cheio “Da velhice eu não acho nada, porque eu vivo como um jovem” Nátan Rusnok
O
Rafaela Damasceno
tempo lhe tirou muitas coisas: a cor dos cabelos, a agilidade, a visão perfeita. Mesmo assim, Antônio Luiz Damasceno tenta levar a vida com otimismo. Sua filosofia de vida é: “Já passou, não passou? Então o que eu posso fazer?”. Sua expressão é risonha e as rugas ao redor dos olhos e da boca mostram que costuma ostentar um sorriso recorrente no rosto. Ele faz parte daquele grupo de pessoas que enxerga o copo meio cheio, ignorando completamente a metade vazia. Não foi feito para ficar parado. Passou a infância e adolescência se movendo, de uma cidade para outra, com seus pais e seus dez irmãos. Desde muito pequenos, todos trabalhavam da maneira que podiam para ajudar no sustento da casa. “A família era
grande. Nós fomo tentar a vida, né?”. As mãos calejadas pelo trabalho se adequam ao cabo da enxada que ele usa para capinar sua horta. Depois de muito se mudar, criou raízes no interior de São Paulo, em uma cidade pequena chamada Lençóis Paulista. Agora, aos 79 anos, não depende de ninguém e cuida da sua terra com apreço. “Com a idade que tenho… me sinto jovem hoje!”, conta, sorrindo. Quem não gosta dessa movimentação toda é Dona Neide, sua esposa, que representa a parte calma do relacionamento entre os dois. Mais tranquila e comedida, sempre se desespera quando Antônio começa a exagerar. O afeto pode não ser explícito - os dois não são dados aos abraços e beijos - mas os pequenos gestos demonstram a atenção e cuidado que Dona Neide dirige ao marido. Ele retribui: construiu, próximo à horta, um orquidário onde ela pode cuidar de todas as suas flores. A defende com unhas e dentes sempre que alguém se dirige a ela rispidamente. E ficou ao seu lado
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do primeiro ao décimo oitavo dia em que ela passou no hospital, há alguns anos, quando operou o coração. Juntos, já passaram por muita coisa. Há 55 anos, quando jovens e recém-casados, tinham pouco. E é por isso que Antônio não teme a velhice - foi a idade que trouxe tudo o que tem hoje. “Me sinto, hoje, uma pessoa feliz - porque o que eu tenho é meu. Eu que realizei: não dependo de ninguém, não devo nada para ninguém, e vivo a minha vida”. Dona Neide pensa um pouco diferente; não vê a idade com amargura, mas o envelhecimento trouxe sequelas. O desgaste nas articulações veio com muitas dores e ela se sente, agora, muito mais cansada do que se sentia quando jovem. “Mas tudo bem. Não dá pra reclamar porque não tem jeito de voltar atrás, não é? Então tudo bem”, conforma-se. Quem também vê o envelhecimento de maneira diferente de Antônio é Josette Aiello. Aos 55 anos, está começando a enfrentar os efeitos da menopausa e das dores que começaram a vir com
a idade. Aos poucos, já sente que está envelhecendo: as alterações em seu corpo, internas e externas, ainda estão no início. “Flacidez, pele, rugas… Tudo que tem no seu corpo vai ficando diferente. A gente tem que ter a autoestima muito boa, porque hoje vivemos em uma sociedade só de cobrança, então é difícil”, critica, destacando o fato de que muitas mulheres acabam optando por realizar diversos tratamentos estéticos e acabam perdendo a própria expressão, a própria identidade. Josette perdeu o pai aos seis anos e foi criada pela mãe, Delcides, com quem conviveu até 2017. Dinha, como era chamada, sofreu muito com os efeitos da velhice - após cirurgias nos joelhos e as dores causadas pela artrose, passou a ter dificuldade em caminhar sozinha. Depois de várias quedas, começou a se locomover com a ajuda de uma bengala. Infelizmente, com a saúde já debilitada, não resistiu a uma pneumonia e faleceu pouco tempo depois de ter contraído a doença. A queda brusca dos hormônios estrogênio e progesterona, causada pela menopausa, está sendo difícil para Josette lidar. “Você acaba até tendo o risco de uma depressão. Os hormônios alteram muito o organismo da gente”, explica. A falta do estrogênio, hormônio ligado a sentimentos de bem-estar, pode alterar de maneira negativa os sentimentos da mulher. Josette acredita que a menopausa é o marco da transição de uma mulher para a velhice - e a perda da juventude também é complicada, principalmente em meio a essa sociedade de estética e aparência. Já faz mais de dez anos que colore os cabelos de castanho escuro, tentando esconder os fios brancos inevitáveis, e já pensou em fazer cirurgias para se livrar das rugas e das pálpebras caídas. Dona Neide também se recusa a assumir a cabeleira branca.
Aos 73 anos, continua frequentando salões de beleza, pintando os cabelos regularmente. Antônio, ao contrário, exibe os fios grisalhos orgulhosamente. Josette acredita que a velhice é mais gentil com os homens. “Eles envelhecem bem depois que as mulheres. Com elas, a sociedade tem uma cobrança bem maior”, expõe, resignada. Antônio não se importa com as marcas físicas que a idade lhe deixou e gosta de ver as coisas de maneira otimista. “Eu não tenho o que reclamar. Não tenho dor, não tenho dificuldade, consigo fazer minhas coisas”. Sua memória é invejável. Recostado na cadeira, com as mãos batucando na mesa, relembra das cidades em que passou, com os olhos longínquos - presos em um passado distante. Antônio e a família levantavam voo, igual passarinho: assim como as andorinhas, não criavam raízes, não se apegavam e estavam sempre migrando, à procura de novos lugares. “Nós trabalhava e mudava para melhorar de situação. Quando não dava, a gente saía. Eram dez irmãos, né?”. Dona Neide já vai logo emendando: “O pai dele gostava de mudar e de fazer filho. Ainda bem que nenhum filho puxou o pai”, brinca, rindo. Antônio, ainda hoje, tem muita energia e um andar confiante. Já Dona Neide é mais contida, andando em passos curtos, com medo de tropeçar. Se fosse só por ele, os dois viajariam o mundo - o tanto que a renda, vinda hoje da aposentadoria, permitisse. Mas, por ela, ele acaba se contendo. Apesar de tentarem encarar a velhice com bons olhos, eles sabem que, com idade, vem algumas privações - e, também, a aproximação do inevitável. “Não quero que ele morra antes de mim”, confessa Neide, baixinho, com medo de expressar as palavras. A simples ideia da morte a faz estremecer toda
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e se empertigar na cadeira, como se pudesse afastar o pensamento se mostrando mais confiante e altiva. Dona Neide reforça o quanto Antônio é importante para ela: “Eu num posso ficar aqui, sozinha - ele morrer e eu ficar. Porque ele me faz muita falta para mim, nossa Senhora. Ele é meu anjo da guarda”. Depois da cirurgia que fez no coração, não pôde mais fazer exercícios físicos e hoje se cansa com facilidade. Ao invés de passar as tardes assando bolos e cuidando de suas plantas, passa a maior parte do tempo dormindo. O cansaço, com o tempo, aumentou muito, e as dores também se tornaram mais fortes. Seu maior medo é a solidão. A idade lhe trouxe problemas - e Dona Neide tem medo que ela também tente lhe tirar as pessoas que ama. Josette, por outro lado, teme as barreiras físicas que começaram a aparecer. “O mais difícil pra mim é a condição física. Sou uma pessoa muito ativa, e agora estou encontrando dificuldade para fazer as coisas”, conta. A osteosporose, doença que deixa os ossos mais frágeis, se manifestou há alguns anos. Desde então, a doença foi piorando, proporcionalmente à sua idade. Apesar de conformada, ela pensa constantemente no que faria se fosse dez anos mais jovem. “Eu curtiria bem mais”, revela, saudosa dos tempos antigos. Mas mesmo com as dificuldades, Josette sabe que a passagem de tempo é necessária para o amadurecimento. “Você começa a pensar em outros valores”, explica, pensativa. “Você não pensa mais nos outros, em agradar os outros. Você valoriza mais as coisas que tem - e começa a perceber que qualidade é melhor do que quantidade”. Antônio também acredita que a velhice acaba trazendo um certo conhecimento. Agora ele entende que todas as pessoas têm um jeito diferente de viver e de envelhecer. “Cada um tem um sistema - você é diferente de mim. Cada cabeça é um
sentimento”, afirma. Apesar das consequências da idade, foi só com a velhice que Dona Neide e Antônio puderam, finalmente, descansar. Depois de muito trabalhar, os dois agora conseguem viver confortavelmente. Fizeram de sua chácara um refúgio: é como férias particulares. Além disso, o espaço é como uma terapia para os dois eles se ocupam cuidando do lugar, juntos. Josette, que há alguns anos teve que recorrer aos óculos para corrigir a vista cansada, está à procura de um hobbie algo que possa ocupá-la para se distrair do fato de que está envelhecendo. Recém-aposentada, está começando a se dedicar à
caridade. Perto do natal, está ajudando a arrecadar brinquedos para crianças com câncer. Também quer, agora que lhe sobra tempo, viajar - conhecer culturas e lugares novos. “A gente tem que saber as limitações da gente”, afirma, acreditando que as coisas funcionam na base do equilíbrio: aquilo que é feito sem exagero não traz consequências. “Assim a gente consegue viver de uma forma diferente, fazendo outras atividades, trabalhando de uma outra forma”. Além da osteosporose, Josette também sofre com a artrose que deixou suas mãos nodosas e rígidas. A doença degenerativa faz com que ela perca, aos poucos, os movimentos dos dedos e sinta dores
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fortes. Não há cura e o tratamento apenas ameniza as dores, que se tornam piores com o avanço da doença. O que as pessoas precisam - e o que falta para todos - segundo ela, é de preparo emocional e físico. “Só assim você vai realmente aceitar todas as mudanças que podem ocorrer na velhice - que vão ocorrer, na verdade”. Apesar de tudo, Josette tenta, assim como Antônio, enxergar o envelhecimento sob a perspectiva do copo meio cheio. Há diversas visões diferentes sobre o assunto e cada pessoa reage à idade de uma forma diferente, mas a verdade é uma só: a velhice chega para todos. Por que não encará-la, então, através de uma perspectiva otimista, acolhendo-a como uma amiga?
Sophie Cohen Chermont
N
o dia 9 de Julho de 2013, o grupo de K-pop BTS anunciou em seu Fancafe o nome oficial de seu fanclub. A partir desse dia suas fãs ficaram conhecidas como A.R.M.Y ( 아미). O nome possui dois significados: Adorable Representative M.C. for Youth (Adoráveis Mestres de Cerimônia Representantes da Juventude) e “exército”, uma vez que o significado de BTS é Bangtan Sonyeondan (Garotos a Prova de Balas), as Armys seriam o exército que os protegem. Jhennifer Coqueiro, de 22 anos, conheceu o grupo por volta de 2015. Uma amiga sua de RPG era extremamente fã e os apresentou a ela, que começou a ouvir as músicas e se afeiçoar por BTS. Na época, o grupo tinha lançado a alguns meses o álbum Dark & Wild e, embora ela seja o tipo de pessoa que só ouve suas músicas preferidas, com BTS não conseguiu evitar de ouvir de todas, assim como os clipes, que achou muito interessantes e com fortes coreografias. No entanto, embora já estivesse tão imersa no “universo BTS” se recusava a ser chamada de Army, pois acreditava ser algo de “Kapopera”, e não queria investir seu tempo naquele nicho musical, “mas não teve jeito”. A forma com que eles interagiam com os fãs, o tempo investido, a cativou, pois eles se mostraram extremamente acessíveis,
coisa raramente mostrada por outro artista do mundo do K-pop. A filosofia da empresa responsável pelos meninos também é diferente. A Big Hit Entertainment, fundada em fevereiro de 2005, tem como missão “Music & Artist for Healing” (Música e Artista para Cura), como pode ser visto pelo caso contado por Jhennifer. Logo no início da criação do grupo, o gerente da época tentou agredir o integrante mais novo, Jeon Jung-kook. As Armys, quando descobriram, fizeram um grande protesto, tanto pela internet quanto na frente da sede oficial da empresa. Mas a surpresa de Jhennifer foi, quando ao invés de abafar o caso, a empresa se posicionou publicamente sobre o ocorrido e demitiu o agressor. Ela conta que o por que de gostar tanto do grupo, ela não sabe, mas o que contribuiu, foi essa atenção e consideração com os fãs, sejam elas coreana ou internacionais. Jhennifer explica que parte do seu respeito se deve também a quebra de estereótipos coreanos que BTS realiza ao longo de sua obra. A música “NO” é toda uma crítica ao sirena educacional coreano e é a que a deixa mais impactada, e Jhennifer fala que é possível perceber esse
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impacto não só nas armys, mas em toda a sociedade em si. Que vê jovens, crianças de 10, 12 anos, que afirmam que se sentem melhor com sigo mesmas graças a música do grupo BTS. Que suas mensagens tratam de assuntos extremamente delicados, como a depressão, auto-estima e repressão de forma extremamente delicada e reconfortante. Coisa que nunca antes viu em nem um outro grupo de K-pop, mesmo em alguns extremamente populares, como foi o Big Bang, grupo que muitos “kpopers” antigos afirmam ter sido aquele que pavimentou a entrada do K-pop no ocidente. No entanto, embora Jhennifer reconheça a importância do grupo, afirma que nem um outro jamais teve a relevância social que BTS tem agora, pois é um grupo capaz de tocar e movimentar milhões, e fazê-los querem ser pessoas melhores. Conta como exemplo o caso de um grupo de armys brasileiras que plantaram cerca de 400 mudas de árvore em Osasco (SP), em homenagem ao líder do grupo RM. Na matéria escrita por Louise Queiroga, no site “Extra”, é dito que a data escolhida foi justamente no Dia da Árvore, e que “Armys sul-coreanos seguiram a
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campanha ambiental e plantaram 1,2 mil árvores em Seul”. Porém, Jhennifer fala que um dos maiores impactos do grupo foi na Arábia Saudita. De acordo com a matéria publicada pelo site “Reverb”, o show da turnê “Speak Yourself, que aconteceu no dia 11 de outubro de 2019, foi a primeira vez na história do país que mulheres foram “autorizadas a assistir a uma performance do tipo em um estádio”. O grupo e a equipe que realiza o show foi instruída previamente para se adequar aos costumes da Arábia Saudita. A mensagem do grupo também influenciou Nathália Corominas Pereira, de 21 anos, que conheceu o BTS em 2016. Sua melhor amiga de escola era completamente apaixonada por eles, e lhe apresentou a música “Fire”. Na hora, não entendeu muito bem o que era a proposta do grupo, e lembra de se perguntar “mas porque aquele cara pegou fogo do nada?”. No entanto,
apesar dessas pequenas dúvidas gostou muito da música deles, “era tudo bem diferente do que eu estava acostumada, e apesar de sempre ter sido fascinada pela cultura asiática nunca tinha escutado as músicas pop de lá, além disso me lembro de achálos realmente muito bonitos”. Nathália conta que os meninos estiveram presentes durante o seu ensino médio, no qual comentava cada mudança e novidade da carreira dos artistas. Acompanhou grudada na televisão a apresentação do BTS no AMA’s (American Music Awards) de 2017, e ficou ainda mais impressionada com eles. Ainda assim, não se via como Army. Quando sua amiga se mudou para o japão, no início de 2018, ela passou a ouvir cada vez mais as músicas do grupo, e conta que “demorou literalmente 48 segundos para eu ficar completamente apaixonada por eles, no caso a primeira palavra de Spring day. E como em um passe de mágica tudo mudou”.
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Ela conta que é difícil escolher momentos em que eles foram cruciais em seus dias, mas que um dos mais importantes foi o discurso de Namjoon (RM) na Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU), que aconteceu em setembro de 2018, quando, de acordo com o site Bangtan Brasil “o BTS lançou a campanha Love Myself com a UNICEF, construída sobre a crença que o verdadeiro amor começa com amando a si mesmo. Ao formar a parceria com o programa #ENDViolence da UNICEF para proteger crianças e jovens em todo mundo da violência” e por causa disso, foi convidado a participar do evento. Nathália lembra que na época, estava se sentindo muito triste há uns dias, e que ao chegar na faculdade e ver que eles estavam na ONU, a deixou ansiosa para ouvir o que eles iam dizer. Conta também que aquele dia em específico foi péssimo, tanto a aula quanto o desenvolvimento
de um dos trabalhos a deixou ainda mais triste e irritada. Mas ao chegar em casa ver o discurso RM, soluçou de tanto chorar. Ouvir as palavras que nem sabia que precisava foi um grande choque, e fez toda a diferença para que se sentisse melhor. “Talvez pareça meio loucura, mas este é o efeito que eles causam”. Nathália afirma que possui o discurso colado na porta de seu guarda-roupa, para que sempre possa se lembrar do que ele disse e transmitiu. “E eu posso ter cometido um erro ontem, mas o eu de ontem ainda sou eu. Hoje, eu sou oque sou com todos os meus defeitos e erros. Amanhã eu posso ser um pouco mais sábio, e isso também será eu. Essas falhas e erros são o que eu sou, compondo as estrelas mais brilhantes da constelação da minha vida. Eu aprendi a me amar pelo que eu sou, pelo que eu fui e pelo que eu espero me tornar”. Explica que o BTS se destaca não só pela qualidade musical ou pelas letras bonitas, mas por trazer um significado para o que fazem, promover campanhas importantes e por se relacionar diretamente com os jovens e seus sentimentos. E isso que faz com que os armys os vejam como mais do que um “ídolo” ou apenas um espelho. “Em diversas ocasiões eles demonstram o quanto são humanos, que eles também erram, e o quanto se esforçam para realizar seu trabalho da melhor forma possível, e nos fazer feliz”. Nathália diz que a música deles interfere diretamente em si e em seu humor, que normalmente ouvi-los é a única coisa que diminui a sua ansiedade e faz com que consiga enfrentar os desafios que precisa, além de lhe fazer sorrir. Cada um deles desempenha um papel importantíssimo para si, e as características e peculiaridades de cada um lhe inspira sempre, seja a dedicação ou a forma de ver o mundo. E diz que um dos grandes sentimentos que eles lhe transmitem é de que ninguém está verdadeiramente sozinho,que basta ir a qualquer evento
relacionado a eles para perceber. Salas e salas de cinema lotadas para assistir um documentário, filas absurdas para comprar uma bebida e comemorar o aniversário de um dos integrantes, e se unir em prol de grandes projetos que impactam toda a sociedade, como plantar árvores (como contado por Jhennifer) e promover doações de sangue. “Eu acho isso extremamente fascinante, principalmente porque no Brasil poucas coisas nos unem e nos fazem mover montanhas a este ponto. Muito disso creio vir do sentimento de querer devolver um pouco da alegria que eles trazem e de poder ajudar os outros assim como eles nos ajudam”. Tal sentimento de pertencimento ficou ainda mais claro entre os dias 25 e 26 maio, os dias em que o grupo coreano realizou apresentações no Allianz Parque, em São Paulo. Eram quadras e quadras tomadas por Armys em diversas filas que ultrapassavam o Shopping West Plaza e chegavam na porta dos prédios residenciais próximos do local. Nas filas, pessoas das mais diversas idades, majoritariamente vestidas de preto, remetendo ao estilo do próprio BTS, e sempre com algum acessório do grupo. Muitos se encontravam sentados no chão, alguns contavam inclusive com barracas e sacos de dormir, pois estiveram acampando a 2 meses para ver o grupo. Todos muito sorridentes, cantando as músicas, dançando e conversando. Não importava sua idade, cor ou gênero, todos eram bem vindos. Jhennifer conta que, no meio daquela multidão, tinha uma senhorinha, já bem de idade, com alguns acessórios do grupo. Ela conta que a senhora estava sempre bem humorada e que quando conversava com ela, comentava que se sentia muito bem por ser parte de um fandom tão receptivo. Jhennifer conta também que, na hora da entrada no show, todos da fila foram respeitosos com a senhora e os staffs do show a ajudaram em seguida. Então, bem nessa hora da
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abertura dos portões, todos os Armys correram para dentro do estádio. Na parte que se encotrava o palco, eram exibidas as antigas músicas do grupo em grandes telões, o que trouxe maior animação a todos. Mais e mais Armys entravam no espaço, e juntos aos videoclipes iam cantando. Uma hora antes do show, às 18h, era possível ouvir a cantoria do lado de fora do estádio, projetado justamente pra impedir o vazamento de som, mas o grande momento antes do show foi quando tocou “IDOL”(2018). Armys cantavam e pulavam com a tanta energia, que era possível sentir o chão tremendo. É isso por que o grupo ainda nem tinha entrado. E assim, foi tal momento que fez com que a Army Maria Mariana se sentisse finalmente parte parte de algo “grande, forte e bom”. Maria Mariana Amaro, de 19 anos, que conheceu o BTS em 2016, quando resolveu descobrir o que era o famoso “K-pop” que todo mundo estava falando. Um dia, a sua irmã, que estava lhe acompanhando nisso, a mostrou o clipe de “Dope”, porque tinha achado que Maria ia se identificar com eles. “Foi imediato o meu gosto e curiosidade sobre os meninos, mas demorei muito pra conseguir saber quem é quem (tenho muita dificuldade com isso de decorar nome e rosto)”. Naquele ano, tinha trocado de colégio e se sentia muito sozinha, porque só tinha sua irmã pra conversar. Na escola, não teve uma identificação imediata com as pessoas que conheceu e se afastou naturalmente das pessoas que conhecia. Acha que esse é um dos principais motivos que a levou a ser uma Army. Conta que um tempo depois naquele ano viu um tweet falando “o BTS só aparece pra você quando você precisa”, que mostrava como eles conseguem ser um amigo pra passar por momentos difíceis. Ela se identificou no mesmo instante, pois explica que precisava de uma esperança vinda de algum lugar.
Em busca da Cleber true23
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Victória Gearini
l h are s distantes, m ã o s calejadas e corpos cansados. Só em São Paulo são 105,3 mil pessoas em situação de rua. Vivendo à margem. Cem mil histórias, invisíveis, esquecidas. Mas afinal, o que leva uma pessoa a morar nas ruas? Liberdade? Abandono? Medo? Solidão?
Leito 127, Hospital Vila Maria. Luiz Brito, jovem alto e magro de 23 anos, abatido da hemodiálise, descobre que os dois rins pararam de funcionar. Drogas e bebida. De pé, fazendo canetas artesanais, usa a arte como saída nos dias longos dentro do hospital. Parou de estudar na oitava série e encontrou no artesanato, logo cedo, sua fonte de renda. Começou a beber aos oito anos, depois de ver o pai agredir a mãe. Não parou mais. Com 18 anos, conheceu as drogas e saiu de casa sem rumo, “viajando de cidade em cidade”.
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Antes de ir para as ruas encontrou no crime uma forma de sustentar seu vício. “Não sirvo para essas coisas, tenho bom coração”. Adrenalina. Uma única palavra que pode causar diversas emoções. Luiz não nega que esta sensação foi a mais gostosa que já sentiu. Longe das drogas, não voltaria para essa realidade. “Gosto do artesanato, de trabalhar na rua e de manter o contato com as pessoas, não me vejo dentro de uma firma”. Se compara aos seus irmãos. “Com quem você se identifica mais?”. Surpreendentemente com o
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seu pai. Apesar de todas as brigas e mágoas é a pessoa mais parecida. Em comum, a bebida. Embora todos soubessem de seus vícios, não queria que vissem seu estado degradante. “Estava lamentável, sempre fui vaidoso e não estava mais me cuidando”. Abandonou irmãos, uma avó de 90 anos, pai e mãe. Foi nas ruas que encontrou a liberdade. “Indo de lá para cá”, aprimorou a sua arte. Ficou três anos morando sozinho em meio à multidão. Espera, não se engane, sozinho de tudo não estava. “Na rua tive mais carinho até mesmo que em casa.” “Algum dia pensou em voltar para casa?”. Silêncio. O jovem procura palavras que possam explicar. “Tinham dias que a saudade apertava, mas as drogas falavam mais alto”. Silêncio. Voz embaraçada. Liberdade
e medo, definem sua decisão. Seu Irvando Seu Irvando Forgerini, 60 anos, encontrou nas ruas a liberdade que sempre sonhou. O senhor magro e grisalho viajou para mais de 30 cidades brasileiras, em oito anos. Com brilho nos olhos se lembra da Bahia, lugar que mais gostou de conhecer. Debilitado e se recuperando de uma tuberculose, seu Irvando fala com dificuldade. Procura encontrar forças para contar toda sua experiência nas ruas. Ruas não, estradas, assim como ele mesmo gosta de definir. Pausa para tosse. Se esforça para retomar a conversa. Tosse novamente, desta vez com sangue. Sentado no degrau de sua humilde casa, o ex-andarilho conta que encontrou nas ruas a liberdade
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da família. “Vamos andar?”. Estava sentado em uma rua no Parque Novo Mundo, quando dois homens lhe fizeram esta pergunta. “Por que não?”, lembra de ter pensado. Foi assim que viajou sem rumo até a Bahia. A pé. Bom emprego e família estável, mas seu Irvando queria mais ... queria ser livre. Lembra que os outros funcionários ficavam bravos, pois só ele podia consumir a bebida do patrão. Benditas bebidas! O sentimento em busca pela liberdade o consumia cada vez mais. Tomou coragem e deixou tudo para trás. “Vivi como peregrino, nas estradas do Brasil”. Dias e dias de caminhada. Chegou. Praia e cheiro de natureza. Conseguiu emprego em um quiosque. “No começo é bom, você conhece os lugares”. Nas ruas você é obrigado a trabalhar para sobreviver. “Bebida alcoólica ninguém dá, a gente tem que se virar para comprar”, entre tosses e risadas. Com as mãos tremulas, Irvando relembra os perigos que encontrou pelo caminho. Enfrentou cobra. Viu a morte de perto várias vezes. Sobreviveu a todas as peças que a vida lhe pregava. Dias em que se alimentava outros que ficava faminto. Em todos a sede apertava. “Olha um riacho”, motivo de sua felicidade. Na estrada aprendeu que a maior virtude de um homem é ser verdadeiro. Aprendeu a dividir. Andava sempre com mais de duas pessoas. Hoje em dia, não sabe sobre seus paradeiros. “Nas ruas cada um acaba seguindo seus próprios rumos”. A verdade é a chave para sobrevivência. Caso contrário estará sozinho. “E quando batia a saudade?”. Breve silêncio. “Mentir não adianta, quando batia a vontade de voltar, eu enchia a garrafa e me agarrava na pinga”. A bebida era fundamental para conseguir ficar longe da família. Pausa para tosse. A realidade das ruas
Sob marquises. Em praças. Embaixo de viadutos ou pontes. Não importa o lugar. Não importa a classe social. Nada importa. Nas ruas o que realmente importa é a sobrevivência. Luiz, jovem negro e sozinho, apanhou diversas vezes da polícia. “Uma vez apanhei tanto que fui parar no hospital”. Irvando lembra que muitas vezes foi acordado por guardas de forma brutal, mas nunca chegou a ser agredido. No entanto, guarda as lembranças das humilhações na assistência social. O colocaram com outros moradores de rua, em fileiras e nus. Sentiu-se aprisionado. Aprisionado! Implorava por liberdade. Para Luiz, a assistência social era um meio de conseguir passagens. “Sentar-se no ônibus e ir olhando a paisagem pela janela. A brisa batendo sobre meu rosto era muito boa”. Nunca se sentiu aprisionado, pelo contrário, encontrou um meio de viajar. Comemorava a liberdade. Na primeira oportunidade, Irvando fugiu. Correu o máximo que pôde. Encontrou outros viajantes. Rumo? Sem rumo. Destino? A estrada. Sob incertezas, Luiz construía suas casas com madeiras e papelões que encontrava nas ruas. Fugiu da polícia. Fugiu da fome. Medo. Frio. Fugiu de si mesmo. No fim, em cada cidade nova, sempre deixava seu lar para trás. Liberdade. Uma única palavra. Diversos significados e sensações. Mas o que de fato é ser liberto? Para ambos, é ter o controle da própria vida. Não seguir regras. Não se aprisionar a responsabilidades. Ter o livre arbítrio de ir e vir. Consequências inevitáveis. Futuro incerto. “Essa escolha está relacionada a uma noção (ainda que vaga) de liberdade proporcionada pela rua, e acaba sendo um fator fundamental para explicar não apenas a saída de casa, mas também as razões da permanência na rua”. Contrapõe o Ministério do Desenvolvimento Social.
Pesquisas e mais pesquisas tentam compreender essas decisões. Motivos intrínsecos. 35,5% vícios. 29,8% desemprego. 29,1% conflitos. Fatores que os unem. Fragilizados. Vulneráveis. Encontram nas ruas o afeto que nunca tiveram. Afinal, as ruas são inimigas ou salvadoras? Opressoras ou libertadoras? Questões que afligem a sociedade. Decisões individuais. Realidades desconhecidas. 70,9% das pessoas em situação de rua são remuneradas. 58,6% tem alguma profissão informal. Irresponsabilidade dizer que não lutam. Na verdade, não só lutam, sobrevivem! Encontros e desencontros Os dois homens se conheceram no Hospital Vila Maria. Leito 127. O encontro de duas gerações. Histórias únicas em meio a estáticas. Invisíveis. Ignorados pela sociedade. Em meio ao caos procuram serem ouvidos. Compreendidos. Lembrados. Dado como morto, a família de Luiz o encontrou por acaso nas ruas. “Eu estava no farol vendendo doce e artesanato. Chegaram uns caras e me amarraram a força junto com a minha família”. Longos meses internado no centro de reabilitação. Frio extremo em São Paulo, Irvando foi até o hospital mais próximo. “Estou com frio e fome, teriam algo para mim?”. Magro e debilitado, foi examinado por enfermeiros. Diagnóstico: pneumonia e trombose. Doente e sozinho, sensibilizou uma moça no hospital que localizou sua família. Abalados com a situação, o acolheram sem pensar duas vezes. Choros e abraços marcaram o reencontro. De casa para hospital. Do hospital para casa. Altos e baixos. Essa é a rotina de Irvando. A tuberculose o consome. Doente e sem os rins, Luiz encontra nas linhas de lã a sua válvula de escape. Dias que está bem. Outros que os enjoos o derrubam. “No momento me encontro triste, por conta dessa doença que peguei”.
79 | Narrativa
Na fila de transplante pelo SUS, o jovem lamenta não saber quanto tempo lhe resta. “Uma pessoa consegue viver sem um rim, mas sem os dois aí é difícil né?”. Família ausente. Solidão. Sentimento que mais lhe dói. “Às vezes eu fico muito sozinho aqui no hospital”. Hora do almoço, uma enfermeira entra no quarto. “Luiz, você não vai almoçar?”. Responde: “Já vou, ‘to’ conversando”. Continua sua história. Para ele os detalhes são fundamentais. Se preocupa em não esquecer de nada. “Vou anotar tudo para não esquecer”. Seu Irvando não deixa nada passar em branco. “Homem responde tudo direito!”. A voz feminina é de sua ex-mulher, Marisete. Sem casa e debilitado, voltou a morar com a ex e com os filhos. Anos desaparecido não o impediu de ser bem acolhido. Muitas histórias para contar, tão diferentes, mas tão parecidas ao mesmo tempo. Lacunas. Cicatrizes. Aventuras. Liberdade. Sentimentos controverso, ou serão complementares? Não importa. As diferenças os unem. “Eu e o Irvando temos uma identificação, em relação a essa liberdade que a gente teve de ficar longe da família e fazer o que quer. Temos a mesma visão e sentimento”. Seu Irvando compartilha da mesma emoção. “Infelizmente ele está em um estado triste, mas me fazia rir”. Recomeços Buscam recuperar a confiança familiar. Entre tosses Irvando arruma forças para rir. “Quando saímos dessa vamos para o bar beber, mas dessa vez só refrigerante, nossos dias de pinga acabaram”. No fim, qual seria os verdadeiros lares de Irvando e Luiz? Casa? Hospital? Ou a Rua? Gostariam de ser livres novamente. Fragilizados e debilitados entendem suas situações. Dias difíceis. Outros mais fáceis. Dias sóbrios. Outros de recaídas. Mas todos incertos. Incertezas por não saberem quanto tempo lhes restam.
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS 80 | Narrativa