Júlia Milward Intervalos Ou como instalar ateliês em aeroportos
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© Júlia Milward, 2019 Este livro segue as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa coleção camafeu Produção editorial Fred Spada Otávio Campos Projeto gráfico Júlia Milward Otávio Campos Revisão Fred Spada
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) M662i
Milward, Júlia. Intervalos: ou como instalar ateliês em aeroportos / Júlia Milward – Juiz de Fora: Edições Macondo, 2019.
isbn
1. Ensaio I. Título
[2019] edições macondo Rua Dom Silvério, 302/302a Alto dos Passos – Juiz de Fora – mg 36026-450 contato@edicoesmacondo.com.br www.edicoesmacondo.com.br
cdd: B869.4
INTERVALOS ou como instalar ateliês em aeroportos
O presente ensaio está atrelado ao texto “A construção poética do ateliê” e aqui _ leitor_ encontrará a experiência realizada nas salas de embarque dos aeroportos CGH, BSB, VCP e IZA, entre os anos de 2017 e 2019.
CGH 21.08.2017
Existe um trajeto regrado para se chegar até o ateliê. É preciso se desvencilhar dos metais, exibir as ferramentas, tirar os sapatos e o cinto, tudo isso nas costas do busto dourado de Santos Dumont. Algumas vezes, ocorre passarmos por uma segunda vistoria dita aleatória onde nos posicionamos sobre o tapete de pés demarcados. Considero esse protocolo de segurança como um rito de passagem. Atenção
cliente Gol voo 1316 com destino ao Aeroporto Santos Dumont no Rio de Janeiro, seu embarque é imediato pelo portão de número 19 no piso inferior. Para
construir o próprio espaço de trabalho, parto da definição de ateliê como sendo um ambiente que o artista cria para si1. Com o material e as ferramentas organizados dentro da mala de mão, de dimensões estabelecidas pela ANAC, sem objetos perfurantes ou explosivos, sigo arrastando as pequenas rodas sobre o chão de granito à procura do espaço que me contemple com a conjunção dos elementos mínimos de que preciso para iniciar o estado-ateliê: uma cadeira, uma mesa, uma tomada, uma janela. Cadê o Luiz Henrique?Estabeleci o meu primeiro ateliê no aeroporto de Congonhas perto da entrada ao lado do restaurante de cachorro-quente e atrás do Grand Cru. Cliente Latam do voo 3137
com destino a Curitiba. Portão de embarque confirmado, portão de número 2. Iniciaremos o seu embarque em instantes. O dia estava apenas começando, e a luz do sol a marelada, intensa e cálida entrava paralela ao grande vidro e provocava uma ambiência Edward Hopper. Os carros expostos para a venda na sala de espera são comercializados por vendedoras. A bateria do computador estava carregada e a princípio não necessitaria de
uma fonte elétrica. Fiz a opção pela mesa mais alta por causa da proximidade com a janela, escolhi a última mesa partindo do restaurante como ponto de referência, mais próxima ao portão de embarque. Antonildes? Me acomodei no banco feito sob medida para a altura da mesa, o que me fazia manter uma postura menos encostada (extremamente difícil nessa hora do dia), posicionei o notebook, o caderno de notas, o estojo, a câmera, o livro “Intervalles” de Michel Butor. Tinha uma hora de disponibilidade para trabalhar no projeto “Minuta”, comecei filmando os primeiros movimentos na pista de pouso recém-aberta. 1270 com direção
a axias do Sul, o seu embarque está C confirmado no portão de número 10. Por causa da intensidade e da incidência da luz, aviões e funcionários se transformaram em silhuetas na câmera. Eram sombras que geravam outras sombras. A sombra da escada de Talbot. Funcionária de
uma empresa aérea retira as placas azuis e vermelhas com indicações das filas.
A sombra gravada na parede de Hiroshima.
Em seguida vem outro funcionário e instala as placas laranjas. Ra-
chaduras na pista.Os movimentos circulares dos veículos
CGH 28.08.2017
Para a segunda experiência cheguei 3 horas antes do voo e estabeleci o ateliê próximo aos grandes telões. Para ficar perto das informações tive que perder a mesa e improvisar uma prancheta. Ganhei um caderno espiralado vertical de Denise Alves-Rodrigues, que facilitou muito as anotações do dia no ateliê. A exposição individual em Guarulhos está próxima e o projeto ainda não se sustenta. Porque ele não é Elvis. O Elvis tem tudo! Como traduzir a sensação de falta de ar em imagens? Pensei numa instalação observando as formas dadas pela relação entre um saco nas pistas de aterrissagem e decolagem.
plástico com um ventilador, cena que presenciei na lixeira colocada na entrada do banheiro feminino no segundo andar da Japan House. Ainda não sei como traduzir essa imagem. Ela mergulha na mobilidade do tempo e ela pertence à eternidade2. A escrita ofegante poderia ser composta por uma associação entre uma frase longa sem vírgulas intercalada por Tenha em três frases curtas e incompletas.
mãos o cartão de embarque e o documento válido com a foto. Oscilante como um navio arfante, que abaixa ora a popa, ora a proa. O excesso que rompe o ar, respiração descompassada, ruído anormal. Cercada por e ngravatados que pretendem algo em Brasília, o peso das intenções políticas e o histórico dos desastres aéreos dessa categoria. Fisiculturista utilizando o telefone público com troféu dourado na mala. A exposição precisa de pedras e quedas. E com
BSB 21.09.2017
sua atenção p assageiros Latam do voo 3251 com destino a Foz do Iguaçu, embarque encerrado através do portão de número 5. P assageiros Latam voo 3912 com destino ao Rio de Janeiro, Aeroporto Santos Dumont, o embarque está sendo iniciado pelo portão de número 15, número 15, localizado no piso inferior, acesso pelas escadas ou e levadores.
Foi numa mesa bem iluminada e com restos alimentares alheios que instalei o ateliê. Quando somente há vidro e vista. É preciso dois funcionários para deslocar a es-
cada de acesso ao avião, enquanto um empurra o outro direciona.
Bem próximo ao portão de embarque, na lateral do Subway. De onde estou consigo ver as ruínas aeroplanas. Fiz algumas fotografias e gravei algumas imagens para o “Minuta”, o eterno projeto que me
Fotografia do local de instalação do primeiro ateliê, CGH, 14.11.2017.
acompanha desde 2010. Trata-se do registro de cenas-rascunhos com duração de um minuto em aeroportos e durante os deslocamentos aéreos. E com
BSB 05.10.2017
sua atenção passageiros Latam do voo 3703 com destino ao Aeroporto de Congonhas, embarque encerrado através do portão de número 25. P o r algum tempo acreditei que ele tivesse chegado ao fim, mas, ao rever, notei falhas no discurso e ausência de algumas imagens importantes, como o momento em que o avião se fantasia de estrela ou a projeção da sombra do avião no solo. O projeto se tornou mais complexo quando percebi a necessidade de r omper a relação entre som e imagem, mas que deveria acontecer por uma barreira presente no próprio local e não alterada na edição. Vi apenas mulheres na função de limpeza dos aviões. Ao olhar pela janela translúcida e blindada, escuto os sons próximos, vejo a paisagem do cerrado e ouço a conversa entre um homem e uma mulher que trocam a utobiografias na rápida intimidade instaurada pelo local de espera, narrativa essa que perde volume e, consequentemente, continuidade pelo comunicado de alguma empresa aérea. GABRIELLE!! Surge uma
riança correndo enfeitada com chifre c de unicórnio rosa. O ateliê foi instalado na parede atrás de uma loja de conveniência, onde descansam os funcionários da limpeza e dos restaurantes. Sentei na borda da janela, apoiada pelos ferros que sustentam a estrutura do prédio de característica similar à de qualquer outro aeroporto. Sem personalidade e completamente distinto da arquitetura que o cerca, esquece-se da cidade e do país. Os não-lugares são estrangeiros, semelhantes entre si, feito de amplos corredores compostos por esteiras
rolantes e duplicatas de lojas, restaurantes, lanchonetes. Onde todas as línguas são possíveis, fala-se o inglês universal. Os souvenires estereotipados tentam se aproximar do tom do local, mas falham pelo material chinês.Boa t arde! Cliente
vianca Star Airlines Voo 6061 com A destino ao Aeroporto de Congonhas e demais conexões. Neste momento estão convidados a se dirigirem ao espaço escolhido não vejo a portão 30. No paisagem, mas o o utro terminal do mesmo aeroporto. A união de dois pedaços de fita adesiva, colados um sob o outro na vidraça, forma um X e me faz pensar qual poderia ser a questão. Começo a editar uma versão reduzida do projeto de vídeo “Minuta”, mas ainda sinto a n ecessidade de registrar outros momentos infra-ordinários. Às vezes me surpreendo gravando aquilo que é o atípico, como quando um helicóptero preto pousou bem perto do avião. Apesar de r egistrada, essa imagem não poderá ser utilizada, mesmo que sinta um grande prazer estético por ela. Foge do protocolo das ações repetidas que compõem a rotina em aeroportos. Ainda tenho mais 2 horas de estado-ateliê. Os funcionários tendem a pegar os cones primeiramente pelo topo e ao ser levantado colocam
CGH 11.03.2018
A construção artística é a conjunção da projeção com a espera3. Frase que escrevi em outro momento e que retorna agora como um problema. Como falar da espera dentro de um outro contexto e experiência distinta, sem gerar uma incoerência na trajetória poética? Como continuar discursando ambos, se aparentam carregar contradição? Sou um ser que se modifica constantemente, logo devo também adaptar a representação a este fato4. Instalo o ateliê próximo ao banheiro e a mão no buraco da parte mais larga.
perto dos telões com informações, publicidades desfilam
na tela do centro, enquanto as outras duas marcam as decolagens: sua saúde, Prem Baba, beber água, carro, uol, perfume, trigo, vá ao
cinema, vivo rio Nando Reis, vivo cloud armazene, compre no s nackbar Cinemark, muitos trabalham na indústria pelo petróleo muitos trabalham graças ao petróleo (mulher negra costurando em ambiente
de tons pastéis), telecine, empresômetro, roda gigante família feliz, vai lá escalar Google Cloud, transformative, mais proteção para a tua bagagem, movida, telecine vá ao cinema, o mistério no relógio de
parede, legal é combater a sonegação dos impostos, uol futebol, uol economia, telecine assassinato no expresso oriente, tom Brasil, teatro
mágico, vivo cloud acesse o dispositivo de qualquer lugar (homem negro engravatado), ao som de Marisa Monte, ibp petróleo, here we
espero pelo voo que parte em 2 horas, repenso na noção da espera na frase escrita em 2014. Senhores pasgol, incrível homem loiro sereio, vá ao cinema,
sageiros, bom dia! A Latam voo 3137 com destino a Curitiba portão de número 2. Convidamos para embarque prioritário, passageiros com mais de 80 anos, primeira fila exclusiva. Em seguida convidamos os demais passageiros prioridades por lei ao embarcarem pelo acesso exclusivo atendimento preferencial. Compreendo, agora, a espera
como duração característica da própria existência. Estamos atrelados a duas datas, mas conhecemos apenas a da chegada, por isso vivemos na espera da segunda5. O que fazer durante esse tempo de espera? Uma construção permanente de projetos e projeções, mesmo que não realizados, o que interessa é o constante movimento em direção ao imaginado, todo mundo pode praticar uma atividade criativa sem temer o mal feito6. Penso, agora, que, talvez, o meu erro tenha sido o de ordenação. A frase revista
CGH 08.04.2018
agora passa a ser escrita e dita da seguinte maneira: a construção artística é a conjunção da espera com a projeção. Pedimos a compreensão. Amadores dos fluxos, dos transportes, dos deslocamentos. Velocidade interpretada como progresso. A espera, assim como a lentidão, torna-se um problema para aqueles que correm. Adiantam serviços, ultrapassam motoristas, usam o passo apressado. A velocidade acelerada é um caminho curto para o tédio.Com sua atenção cli-
entes Azul, voo 2696, com destino a Belo Horizonte, aeroporto de Confins e demais c onexões. Informamos que seu embarque é imediato pelo portão de número 6, localizado neste mesmo piso. Por gentileza mantenha o documento com foto junto ao seu cartão de embarque destacado para a agilidade do processo. Por não saberem o que fazer com o tempo que resta, acabam se lançando nos jogos passatempo, nas redes sociais, e registram por compulsão. Adaptados ao ritmo socialmente imposto pelo movimento das chegadas e saídas, são os primeiros das filas de embarque, mesmo antes do anúncio da abertura do portão. Esbarram com truculência naqueles que se colocam à direita na escada rolante, apressam o atendente do restaurante, comem rápido e batem na porta do banheiro quando há alguém. Instalo o ateliê na mesa da lanchonete mais próxima do portão de embarque, apoiada sobre cotovelos, sou capturada pela marcação numerada do salgado, penso nos números tatuados em prisioneiros dos campos de concentração nazistas, nos gados marcados para morrer. Precisava acabar o “Minuta”, movimentação coordenada entre a entrada da equipe
de limpeza e a saída dos passageiros de maneira que não sejam vis-
tos, mas ainda faltam imagens, não há repetições su-
ficientes e tenho perdido bons momentos, mesmo já compreendendo a sequência orquestrada das chegadas e partidas. Percebo que alguns funcionários começaram a me notar por repetição e a desconfiar do meu comportamento de espera. Fique aten-
CGH 17.06.2018
to, cliente Gol José Pereira Andrade, cliente Gol José Pereira Andrade, do voo Gol 1554, voo quinze cinco quatro, com destino a Recife. Esta é última chamada para o embarque, portão de número 8. Reina nesses lugares uma atmosfera particular consubstancial à circunstância do entre-dois: um tipo de abandono semelhante aos das salas de espera m edicais ou possivelmente dos consultórios dos analistas7. As pessoas contam com os pormenores da própria vida, abrindo a autobiografia destacada pelas viagens feitas e pelo resultado fotográfico da experiência de vida, as imagens mostradas no celular são animadas pela voz em off presencial e contextualizadas para que o ouvinte compreenda cada personagem, situação e problema. Sentada no saguão de piso inferior onde não há escape para a janela, consigo um lugar perto de uma torre de tomadas elétricas e, por mais que não seja o ideal, ali instalo o ateliê. Fique aten-
to, cliente Gol José Ricardo Pereira Andrade, esta é a última oportunidade para embarque, portão de número 9. O seu embarque está sendo finalizado. Ao meu lado uma jovem me conta sobre o final
de semana que passou em São Paulo com tudo pago pela empresa Jequiti, explica como funciona o processo de aumento das vendas e como se
tornou a representante da região dela, que não levou roupa suficiente e teve que lavar no banheiro com o s abonete do hotel, que é proprietária de um armarinho de presentes que também faz sex-shop, que já foi secretária da prefeitura da cidade, que é mãe solteira, que tem uma secretária, que foi a única a entrar na piscina do hotel, que bebeu champagne. A intimidade gerada pela espera dá origem a uma tagarelice que só é interrompida pela chamada do voo. Enquanto ela falava, eu o lhava as datas de encerramento dos editais de exposições, numa tentativa de trabalhar minimamente no estado-ateliê. Enviei uma nota fiscal pela venda de uma obra e tive que dar o meu dia de ateliê como encerrado. Boa
tarde! Cliente Avianca Star Airlines Voo 6064 com destino a Brasília e demais conexões. Neste momento estão convidados a se dirigirem ao portão 7.
IZA 19.06.2018
Instalo o ateliê perto da grande porta de vidro que me reflete, ao lado de uma torre de tomadas elétricas e sem mesa de apoio. É um pequeno aeroporto no interior de Minas e por isso não há aviões na pista. O que aterrissa é o mesmo que decola. Noto a paisagem bem próxima e um grande pássaro em casa. Como o celular não c apta na sala de embarque, fico no modo avião, praticamente sozinha nesse local. Reescrevo o projeto “Minuta” e r egistro uma cena da relação entre a pista de pouso e o reflexo de uma planta de interior, aparentando uma dupla exposição. O lugar está repleto de balões rosas para o mês da prevenção do câncer de mama. O local não gera muitas imagens para o “Minuta”, por isso me dedico ao tratamento das fotos feitas em Londres para o projeto “ Nome-monumento” e inicio a primeira versão da diagramação de uma possível edição.
Vista do ateliê, BSB, 13.03.2018.
Acredito que um artista está vitalmente comprometido com seu trabalho, por isso vive no estado de arte8.
Olá boa tarde! Vamos preparar para o embarque do voo Gol 1353. A sala se enche rapidamente, o avião pousa e o tempo de espera se torna curto. Observo o fluxo de passageiros que chega, saciados de coisas vistas, andam com propriedade na pista. O tratamento dado à porta de vidro impede o atravessamento dos olhares externos para os internos ávidos pela visão. O pisca-pisca ver-
melho do corpo de bombeiros no lado oposto da pista. Numerações no chão: A320/A319 e A318; E738 E195/E190. Um
padre com fones de ouvido olha de maneira fixa para o celular. O embarque acontece no antigo edifício
BSB 26.06.2018
do aeroporto ainda ativado para alguns voos. Com formato circular, podemos a companhar a chegada dos passageiros pela transparência do corredor em vidro e o trabalho dos funcionários responsáveis pelos jardins internos desse espaço. Instalo o ateliê no banco mais perto do vidro onde existe um apoio plano para bolsas e coisas. Ali coloco a câmera, os livros, o estojo e o caderno. Aguardo a nova chegada de passageiros para poder gravar esse deslocamento contínuo. Clientes Gol, ocorreu mu-
dança de portão, o embarque do voo 1774 com destino a Recife vai acontecer pelo portão de número 1, clientes do voo gol 1774 com destino a Recife, o seu embarque vai acontecer pelo portão número 1. Enquanto isso tento capturar a cena do jardineiro que rega as plantas e as troca por outras mudas. Um avião chega, posiciono a câmera. Os passageiros começam a sair pelo finger. Por causa da diferença de intensidade de luz entre o lado interno e o externo, através do visor da câmera, tenho
a impressão de ver as pessoas saindo de um branco extremo, como se estivesse assistindo a um filme de ficção científica de baixo orçamento. O fluxo con-
BSB 02.07.2018
tínuo de pessoas andando em marcha é interrompido por um homem que para diante do portão, vestido com a exigência da etiqueta social política, ele se põe na ponta do pé e olha para dentro do túnel, retira o celular do bolso, desbloqueia a tela e, provavelmente, envia uma mensagem. Alguns minutos depois surge um homem com o mesmo estilo indumentário, ambos aguardam em paralelo. A última pessoa a sair do avião é uma mulher de tailleur preto que acena na minha direção. O ateliê foi instalado atrás da Casa do
Pão de Queijo, onde há três assentos e vista para a pista. Um funcionário da limpeza pilota uma grande máquina de lustrar chão. Dá pequenos saltos como se estivesse num touro mecânico, tem uma dedicação especial pelos cantos. Começo a filmar, mas essa cena não poderá ser usada no vídeo “Minuta” pois não existia uma barreira translúcida entre nós. Em algum momento quis colocar o zoom na mesma categoria estética que o vidro, construída na distância através de uma camada de ar, mas o discurso era falso e inseguro. Fique atento na in-
formação da Gol, voo 1516, quinze dezesseis, com destino a Maceió, o embarque está acontecendo nesse momento pelo portão de número 20, localizado no piso inferior, acesso pelas escadas e elevadores. Abro o calendário dos editais de um futuro próximo. Como artista inserida no contexto mercadológico contemporâneo, só me resta esperar pela aprovação dos trabalhos enviados aos
ditais, salões e seleções. A obra só é concretamente e construída se houver uma garantia de exposição9. É um estado de espera contínuo que facilita a portabilidade, o deslocamento pela ausência de materialidade. A única coisa que permanece expandindo é a lista das obras não realizadas. Quanto maior for o tempo de espera, maiores são as chances de a resposta ser negativa. Na lógica dos editais, o perdedor é sempre o último a saber. Porém, é nesse estado de espera que o projeto se transforma, se duplica, ganha leveza e afirma uma ética. Essa é
sua última chamada para o embarque através do portão de número 6. No final
e tenho 8 anos.
CGH 20.08.2018
do saguão de embarque do Aeroporto de C ongonhas, precisamente em frente ao portão de número doze, existe uma janela com visão para o obsceno do local: tijolos expostos, obra não acabada, pedaços de pano cobrindo janelas. Me chamo Leona
É diante desse desleixo arquitetônico que instalo o meu ateliê. Um banco simples, sem tomada, mas com vista. Espalho no chão algumas fotografias impressas em pequeno formato para pensar no encadeamento das imagens. Fique
atento na informação da Gol, voo 9018, nove zero um oito, com destino a Caldas Novas, o embarque está acontecendo nesse momento pelo portão de número 19, localizado no piso inferior, acesso pelas escadas e elevadores. Organizo esses frágeis papéis antes de fixá-los na parede. O não-lugar me fez reduzir ainda mais as obras e pensar nas formas que sejam as mais transportáveis. Precisava de um estilete para retirar as bordas de uma imagem, mas só consegui uma tesoura emprestada. Realizo ali uma exposição
VCP 02.10.2018
temporária de um projeto inacabado. As salas de embarque possuem a geografia particular de um entre-dois: nem cá, nem lá; uma história própria, nem enraizada, nem atópica; um espaço novo, nem fixo, nem fugitivo; um tempo outro, nem mensurável, nem contínuo; uma comunidade nova, nem estável, nem durável10. Uma zona aparentemente neutra de um estado onde a violência foi controlada pelo sistema de inspeção que apreende canivetes de estimação, facas ornamentais, ímãs, isqueiros, ferros de passar, explosivos, garrafas de vidro e proíbe o porte de armas de fogo. Um lugar onde não é preciso vigiar os objetos pessoais, mas que qualquer mala solitária pode ser considerada uma ameaça. Pedimos a compreensão. A higienização requerida pelos p assageiros contradiz os traços deixados pelos mesmos. Como se quisessem provar a própria passagem, deixam rastros alimentares entre as cadeiras, chicletes colados nas entradas USB, manchas de líquidos espessos nos carpetes. Um histórico do consumo alimentício manifesto sobre qualquer superfície plana disponível. Faço a instalação do ateliê no Starbucks, a tentativa de construir um ambiente de café de rua no espaço do stand não é das mais eficazes, mas precisava de nutrição, tomada, mesa, cadeira, e esse local me contemplava com todos esses elementos. Revi alguns vídeos do “Minuta”, mas achei as imagens muito fracas. Não sei se perdi a firmeza na mão ou os aviões estão tremendo mais. Talvez o vídeo tenha a duração máxima de 40 minutos. Mas quem seriam os espectadores dessas 40 sequências estáticas de um minuto? Como passar a sensação de espaço-intervalo nesse tempo-duração? Como tornar aparente a relação do entre-dois? Aeroportos são como ilhas, o lugar do sonho de estar se separando, ou que já se está
s eparado, longe dos continentes, da cidade deixada atrás do portão, que se está só; ou, então, é sonhar que se parte de zero, que se recria, que se recomeça, uma origem que é segunda, uma re-criação, um recomeço11. Faço a instalação do ateliê no corredor sem janelas, com cadeiras chaise longue e torre de tomadas elétricas. Estou só nesse espaço que é o único acesso aos portões de embarque localizados no piso inferior. Composto pela conjunção de intervalos, o som local é uma mistura de pausas, de diferentes ritmos de passos (acelerados, lentos ou ritmados), de uivos das pequenas rodas das malas de mão, de apitos seguidos por vozes padronizadas. Não sei qual é a intensidade da luz externa, coloco um alarme para me lembrar do horário da partida.
Azul informa: Pitágoras Vichy, última chamada para o voo com destinação ao Aeroporto de Guarulhos.
cliente Avianca Star Airlines do voo
CGH 11.03.2019
A câmera de filmar utilizada para o “Minuta” quebrou após um empréstimo, por isso dei o projeto como encerrado. Preciso rever o que foi gravado e recomeçar a edição, pois na última versão tive um problema de codagem nos arquivos. Apesar disso, a questão à qual deveria me ater é como faço o encadeamento das sequências infra-ordinárias. São muitas as imagens das organizações dos cones, do levantamento de peso para rodas, dos carrinhos rotatórios. Contei 20 cenas de nuvens escultóricas mas apenas duas que são à maneira de Friedrich. O entre-dois passa a habitar o pensamento daquele que se projeta no distante. Um horizonte impalpável entrelaçado com figuras da repetição: apitos sonoros, chamadas aos ausentes, fluxo e refluxo dos passantes. Bom dia
6004, com destino ao Santos Dumont Rio de Janeiro. Informamos que devido ao posicionamento da aeronave, seu embarque está confirmado através do portão 21, localizado no piso inferior, acesso pelas escadas rolantes ou elevadores. Agradeço a atenção. Obrigada! A composição do tempo local é esculpida pelos diferentes andamentos: o Grave dos viajantes de primeira viagem, o Presto Con Fuoco dos retardatários, o Andantino das pessoas de negócios, o Adagio Melancolico dos aposentados. O intervalo entre os espaços é feito de espera, que é caminho, é trajeto, é método. Na área de embarque, entre o Doog e o portão quatro, r einstalo o ateliê. Tive que aguardar pela chamada do voo de um senhor calvo que ocupava o banco alto, a mesa elevada e a tomada elétrica.
Mala abandonada no café. Responde Roseli. Uma mochila, não é mala. Do as-
sento quente pelo corpo que embarcou, c ontemplo, através do translúcido do vidro, a pequena nuvem de fumaça procedente do atrito entre pneus e solo, a evidência efêmera da aterrissagem, do primeiro contato entre veículo e terra. Escrevo um protocolo em formato lista, uma proposta de observação da espera para ser preenchido durante os deslocamentos. Não é mais sobre a viagem, falo da passagem. O meio, o entre, a duração, a projeção. Enquanto me repito, espero a chamada do voo e compreendo, nesse intervalo, que o projeto é um giroscópio. Viro para trás e olho a paisagem que abandono por agora. Perderei certamente algo na tradução desse microcosmo comunitário onde se articula uma intersubjetividade limitada pelo tempo12 e nes-
sa relação que se desintegra com a retirada das malas da esteira. O leitor tem de colaborar; é arrastado para dentro da movimentação do pensamento, mas a todo instante espera-se dele que se surpreenda, investigue e complete13.
KORFF-SAUSSE, Simone. L’atelier de l’artiste, Le Carnet PSY, 2016/5 (N° 199), p. 23-27. DOI: 10.3917/lcp.199.0023. URL: https://www.cairn.info/revue-le-carnet-psy-2016-5page-23.htm 2 FONCILLON, p. 05-06. 3 MILWARD, nota avulsa. 4 AUERBACH, p. 253. 5 Tento aqui abordar superficialmente a relação do tempo com a espera proposta pela filosofia de Vladimir Jankélévitch a partir da noção de duração de Henri Bergson. 6 A partir de Robert Filliou. 7 ONFRAY, p. 37. 8 Entrevista de Brígida Baltar a Arte & Ensaios – com participação de Elisa de Magalhães, Ivair Reinaldim, Juliana de Paulo, Lara Ovídio, Ricardo Basbaum e Wilton Montenegro – na residência da artista, em Copacabana, em 13 de maio de 2017. 9 Lisette Lagnado, Ateliê, laboratório e canteiro de obras, Caderno Mais, São Paulo: Folha de S. Paulo, 13 de janeiro de 2002. 10 ONFRAY, p. 41 11 DELEUZE, p. 10-11. 12 ONFRAY, p. 37. 13 AUERBACH, p. 253. 1
Bibliografia AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2015. AUGE, Marc. Non-lieux: introduction à une anthropologie de la surmodernité. Paris: Éditions du Seuil, 2015. BUTOR, Michel. Intervalles: anecdote en expansion. Paris: Éditions Gallimard, 1973. DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Editora Iluminuras, 2014. DAVILA, Thierry. Marcher, Créer: Déplacements, flâneries, dérives dans l’art de la fin du XXe siècle. Paris: Éditions du Regar, 2002. FONCILLON, Henri. Vie de Formes. Paris: Presses Universitaires de France, 1943. ONFRAY, Michel. Théorie du Voyage. Paris: Librairie Générale Française, 2007. PEREC, Georges. L’infra-ordinaire. Paris: Éditions du Seuil, 2012. SANSOT, Pierre. Du bon usage de la lenteur. Paris: Éditions Payot & Rivages, 2000.
Protocolo para a composição e ocupação da página em “Intervalos”: 1. O texto deve ser escrito dentro dos locais de espera e não durante o deslocamento;
2. Pelo fato de a escrita, ela mesma, ser realizada nesse lugar de passagem, ela deve aparentar o espírito do local; 3. Marcar o lugar e o dia do registro;
4. Provas fotográficas são necessárias (ainda existem leitores desconfiados);
5. A aparência do texto sobre a página branca é pensada de acordo com os tipos de vozes do ambiente, por isso, utilizam-se diferentes dimensões da mesma tipografia, segundo a cartela assim estabelecida:
o texto do ateliê as citações
as vozes tagarelas e eventos que interrompem as vozes informacionais os infra-ordinários
Foram impressos 50 exemplares de Intervalos para as Edições Macondo em Abril de 2019. Uma cópia desta publicação está disponível em www.edicoesmacondo.com.br