Rumor - Tombo II: escritos

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Tombo II


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Conselho editorial Cinara Barbosa (Universidade de Brasília - UnB) Ciro Miguel (Institute for History and Theory of Architecture GTA\ETH Zurique) Clarissa Borges (Universidade Federal de Uberlândia - UFU) Eliane Chaud (Universidade Federal de Goiás - UFG) Fabrícia Jordão (Universidade Federal do Paraná - UFPR) Francis Wilker (Universidade Federal do Ceará - UFC) Graça Ramos (Jornalista, Curadora independente e Historiadora da Arte) Isabela Prado (Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG) Marília Panitz (Professora e Curadora independente) Matias Monteiro (Artista e Curador independente)

Agradecimentos Universidade de Brasília Marília Saenger Ricardo Gauthama Phil Jones


Organização Cecilia Mori Júlia Milward Karina Dias Silvino Mendonça Yana Tamayo

Brasília / DF Programa de Pós-graduação em Artes Visuais - PPGAV Universidade de Brasília - UnB Dezembro de 2020



Sumario 9

Rumor Cecilia Mori, Karina Dias & Yana Tamayo

12

Já que é pra tombar: reflexões sobre a materialidade na arte contemporânea Cecilia Mori

33

! HA-gaz-AH ! Gê Orthof

42

Fundar um lugar na cidade: Relato de uma experiência artística Iris Helena

56

Impressões evidentes Júlia Milward

68

Orla [como atravessar um pequeno litoral] Karina Dias

86

Questiona o objeto de estudo Leopoldo Henrique Wolf

100

Caminhada espacial Levi Orthof

112

Da estima de compor um dueto com a outra de si: heterônimos, pseudônimos e (des)alteridades Luisa Günther

128

Notas sobre o espaço ressonante Luiz Olivieri

138

Jenipapo: ou como transpor fronteiras afetivas Maria Eugênia Matricardi

152

Projeções de uma Brasília Cinematográfica Silvino Mendonça

168

Curadoria: escuta, cuidado, mediação e criação Yana Tamayo



Rumor Lá, a pedra não está morta. O pavio se ergue Quando um olhar o inflama Ingeborg Bachmann

A exposição Rumor teve a curadoria de Yana Tamayo e contou com a participação de 29 artistas da cidade, muitos deles professores da Universidade de Brasília e outros, estudantes do PPG-Artes Visuais. Nesta mostra foram reunidos os trabalhos de Alina Duchrow, Cecília Bona, Cecilia Mori, Clarice Gonçalves, Débora Mazloum, Débora Passos, Gabi, Gê Orthof, Gisel Carriconde, Gustavo Silvamaral, Íris Helena, João Teófilo, Júlia Godoy, Júlia Milward, Karina Dias, Levi Orthof, LHWOLF, Lua Cavalcante, Luciana Ferreira, Luisa Günther/duplaPLUS, Luiz Olivieri, Maria Eugênia Matricardi, Mauricio Chades, Nina Maia, Raquel Nava, Rômulo Barros, Silvino Mendonça, Tatiana Duarte e Thalita Perfeito. Fruto de diálogos entre o Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília e a gestão da Caixa Cultural Brasília, Rumor se propôs como uma ação coletiva que ocupasse os espaços da Caixa num recorte da produção artística local em sua interface com a UnB e espaços independentes de pesquisa experimental na cidade. Nesse sentido, foi uma mostra que aproximou artistas de diferentes gerações e circuitos sinalizando a importância dos espaços de acolhimento, produção, circulação e formação para o desenvolvimento da prática artística, além da projeção profissional no campo das artes e do fortalecimento de diálogos entre as diversas redes, circuitos e instituições. Em um primeiro momento, esses diálogos foram articulados nas diferentes linguagens artísticas resultando uma exposição 9


que ocupou as galerias Principal, Piccola I e Piccola II com desenhos, pinturas, objetos, objetos interativos, esculturas, fotografias, vídeos, instalações, performances e ações. Porém, entre as conversas sobre as obras e sobre os processos e procedimentos de ateliê com esse grupo de artistas, percebemos que a escrita faz parte da construção poética de muitos. Seja essa escrita a dos jogos de palavras nos títulos de alguns trabalhos, seja a da literatura como parte integrante de algumas obras, seja na relação dos processos de ateliê com a poesia como suplemento vital e diário ou até da escrita como potência anarcopoética e artivista em intervenções que transbordaram os espaços das galerias. Dessa constatação da escrita presente tanto nos processos construtivos das obras quanto nas reflexões posteriores sobre os procedimentos de ateliê, surgiu o desejo em desdobrar o tradicional catálogo para um livro-catálogo que pudesse abrigar também essas diversas relações textuais, das escritas de artistas, escritas em queda. Assim, o livro-catálogo conta com dois Tombos: O Tombo 1 reúne imagens das obras e informações da exposição, o Tombo 2 apresenta textos escritos pelos artistas. Nosso desejo com esses dois volumes é o de compor um espaço de múltiplas observações sobre os trabalhos expostos. Como sabemos a escrita, para muitos artistas, assume formas variadas e nessa aproximação entre palavra e imagem, as coisas se avizinham pelo abismo que as separa1 ou, quem sabe, a escrita do artista seja o desejo de reencontrar a palavra perdida que se mantém sempre na ponta da língua2. O presente livro-catálogo é publicado pela Editora do 1 Em referência a Michel Deguy que escreve: a poesia escava o abismo entre vizinhos para que possam novamente “avizinhar-se” pelo abismo. DEGUY, Michel. Reabertura após obra. Campinas: ED. Unicamp, 2007, p.127 2 Em referência ao título do livro de Pascal Quignard: O nome na ponta da língua. Belo Horizonte: Chão da Feira, 2018. 10


Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade de Brasília. Realizar uma exposição num momento em que editais são cortados e a verba reduzida nos programas de pósgraduação significa muito. Em tempos sombrios, o importante é seguirmos buscando os faróis que, iluminando a escuridão, nos mantém em movimento. Gostaríamos de agradecer à Marília Saenger pelo convite e pela confiança, ao professor Emerson Dionísio, coordenador do PPGAV-UnB, pelo apoio à realização deste livro-catálogo, a Júlia Milward e Silvino Mendonça por darem forma aos nossos tombos e por estarem conosco na Comissão Organizadora desta publicação, ao Conselho Editorial que prontamente aceitou o nosso convite e, principalmente, aos artistas integrantes da Rumor, por toda produção e composição de uma guerrilha poética. Em momentos nada dóceis o essencial é, como escreve Camus, não se perder e não perder o que, de si mesmo, dorme no mundo.

Abraços esperançosos,

Cecilia Mori, Karina Dias e Yana Tamayo.

11


* Artista plástica, pesquisadora doutora, com Prêmio UnB de Teses na área de Artes. É professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília onde pesquisa a mentira como verdade poética. Premiada no Salão de Artes Visuais do MAB, possui obras no acervo do Museu Nacional e da Casa da Cultura da América Latina-UnB. Investiga o orgânico e o inorgânico em diferentes linguagens artísticas e experimenta materiais ordinários na sua potência poética e na (de-)formação plástica com pseudo-métodos. 12


Já que é pra tombar: reflexões sobre a materialidade na arte contemporânea Cecilia Mori*

"Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo? A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então por que estamos grilados agora com a queda? Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos."1

A imagem da queda, na nossa tradicional concepção de mundo ocidental, é uma imagem trágica. Implica em declínio, desmonte ou diminuição de algo ou alguém. Como um enfraquecimento que leva à destruição, à extinção e à ruína, a queda é algo a ser evitado. Representa a depreciação, o descrédito e o desprestígio. Como desvio do caminho considerado correto, a queda é a culpa, o erro, o pecado e o vício. Seu extremo oposto, a escalada ou até a ascensão, por sua vez remetem às virtudes, à redenção e a aproximação com os deuses, sejam eles habitantes do Olimpo, das montanhas, dos platôs mais altos das florestas ou até dos céus. Segundo o Aurélio, virtude se opõe ao vício quando este é percebido como uma inclinação para o mal. E essa relação de oposição não se restringe aos nossos dias. Giotto di Bondone 1 Ailton Krenak, “Ideias para adiar o fim do mundo”, p. 30. 13


(1266-1337), um dos principais artistas do século XIV, pintou essa oposição entre vícios e virtudes no interior da capela dos Scrovegni, em Pádua2. Essa obra é representativa não só da produção do artista como também de sua época. Para Giorgio Argan (1909-1992), sua obra tem o “valor de summa, de síntese de grandes experiências culturais, de sistema.”3 A capela dos Scrovegni4, de 1305, é recoberta com as Histórias de Nossa Senhora e de Cristo divididas em trinta e nove cenas, em afresco, que vão desde a Anunciação à Santa Ana ao Juízo Final, com a cena do Apocalipse. Para Argan, a continuidade ideológica entre o Antigo e o Novo Testamento é expressa na história da relação afetiva e humana entre Nossa Senhora e Cristo. É também, para Giotto, o ponto culminante e crucial da história da humanidade, à qual a presença real de Cristo oferece com extrema clareza a alternativa moral do bem e do mal. (Ibid., p. 26)

Além das que seriam as imagens mais importantes da Capela, Giotto pintou quatorze pequenas alegorias, de sete vícios e sete virtudes, na parte inferior das paredes laterais da mesma. Essas alegorias têm o tamanho reduzido, comparadas às cenas principais, e estão divididas de forma que cada virtude enfrenta seu vício correspondente: a Fé de frente da Infidelidade, a Justiça confrontando a Injustiça, a Tolice encarando a Sabedoria

2  Nota Insurgente: as obras citadas e analisadas neste texto não podem ter suas imagens reproduzidas sem a autorização dos colecionadores, portanto detentores dos direitos de imagem das mesmas (e até do acesso a elas). Assim, peço desculpas aos leitores e às leitoras que terão o penoso trabalho de imaginar as características estilísticas ou plásticas citadas ou ainda de procurar pelas imagens na internet. Cheguei a cogitar não citar imagens na elaboração deste texto mas como falar do que escapa às imagens sem imagens? Como saber o que escapa sem conhecer o que resta? Assim, apresentarei resquício textuais a partir das obras na desesperança de ser suficiente. 3  ARGAN, 2003, p. 21. 4   Para visualizar as obras citadas, visite os seguintes endereço: http:// www.cappelladegliscrovegni.it/index.php/en/ e https://www.youtube. com/watch?v=n1R7ZPD1PhQ&ab_channel=arte%26pittura (acessíveis em 25/10/20) 14


e assim por diante. No entanto, o mais notável dessa obra é o recurso técnico usado por Giotto. Se fazendo valer de imagens alegóricas, o artista busca torná-las atemporais, ao contrário das demais imagens pintadas nas quais o pintor transforma o público em testemunho das cenas apresentadas. Se para o público se ver dentro da cena, o artista tem que ter uma preocupação naturalista com as cores, adereços e detalhes dos figurinos e da natureza representada ao fundo da cena, nas alegorias a preocupação é inversa. Adereços, figurinos e cenários devem ser usados na medida certa para que as imagens fiquem de tal forma deslocadas de seu tempo e espaço que possam, com isso, estar presente em qualquer tempo e em qualquer espaço. E não há linguagem artística melhor para dar tal efeito que a escultura ou o relevo, pois evocam a materialidade e a ideia de permanência da pedra, mesmo que pintada. A pintura das alegorias apresentadas por Giotto não são expressivamente narrativas, diferentemente do restante da capela. Elas não são imagens de cenas que poderiam ser ditas oralmente com diferentes personagens e pequenas histórias dentro de um mesmo cenário. Elas revelam valores morais e intelectuais que se expressam por sentimentos humanos e não por ações. Contidas em seus nichos, as alegorias da capela interrompem a narrativa tanto pela ausência de movimento das esculturas (com exceção da primeira virtude que, não à toa é a esperança), quanto pela repetição nas estruturas arquitetônicas construídas entre elas como pausas. Com esses recursos visuais, elas nos remetem a um passado distante que queremos de volta (a Antiguidade clássica) e também dão continuidade ao passado recente de Giotto (com suas temáticas e moralismos religiosos medievais) e também se situam no presente, ao se remeter à Divina Comédia e ao posicionar o produtor de imagens como mais que o sábio artesão. 15


Assim, Giotto, com sua mentalidade ilusionista e utilização de táticas de enganação, como o uso do trompe l’oeil (para pintar esculturas em nichos arquitetônicos), permite que as alegorias se aproximem do público de forma menos ameaçadora (como eram as representações iconográficas do medievo) com imagens e referências humanas, portanto que permitem relações de eqüivalência, troca e transformação. Com sua intenção ilusionista, a arte de Giotto age como o Bobo da Corte, trazido aqui como alegoria metodológica da/para a arte, em diversos períodos históricos. Como ilusionistas, os afrescos da capela dos Scrovegni retomam as alegorias com representações humanas na tradição artística ocidental e tornam profanos, humanos e concretos nossos vícios e virtudes. Diante dos vícios apresentados por Giotto temos uma clara noção do que o artista nos aconselha, da lição moral implícita. Mesmo sem saber ler as inscrições das alegorias, identificamos o grupo das que devemos nos afastar seja por estarem alinhadas em direção aos seres atormentados do painel do Juízo Final no fundo da capela ou seja pela leve tonalidade avermelhada das imagens dos vícios, que nos remete às imagens literárias do inferno de Dante, em voga na época, além das imagens infernais representadas em abundância na arte cristã medieval. Para o filósofo francês André Comte-Sponville (1952-), no Pequeno Tratado das Grandes Virtudes (1995) a virtude, a partir do sentido que Aristóteles atribui à palavra grega arete (excelências), seria uma força que age ou que pode agir. A virtude é o poder específico que algo tem em sua essência como a virtude da lâmpada é iluminar. Então, enquanto a lâmpada exercer sua função de iluminar, ela estará agindo com excelência. Portanto, a virtude de cada coisa é o que lhe confere valor e o torna o que é, sua própria excelência. Assim, a virtude como tal não carrega a moral mas a moral utiliza das virtudes para julgar. Assim, quando distinguimos o certo do errado, o sagrado 16


do profano, o homem da mulher, a vida da morte, a luz da escuridão, a verdade da mentira, estamos fingindo que a figura do trickster não existe. O trickster é identificado pelo poeta e professor estadunidense Lewis Hyde (1945-), em Trickster makes this world, como uma figura-chave nos contos e nos mitos, bem como na arte. Com a utilização de um grupo de mitos antigos, Hyde analisa e valoriza um tipo de inteligência da ruptura (presente nos tricksters) que, segundo o autor, é fundamental em toda cultura que deseja permanecer viva, flexível e aberta a transformações. Distinguimos as coisas, as pessoas, as culturas numa falsa tentativa de apreensão dos objetos, dos seres, do mundo. E, assim, fingimos que as coisas, pessoas e culturas não podem ser ambivalentes (ou até contraditórias) até o momento em que o trickster entra em cena e elimine toda e qualquer possibilidade de distinção. Uma vez não obliterado da cena, o trickster traz para a superfície o que estava escondido, integra o obscuro à luz, cria sfumatos. Ele cria cortinas de fumaça, que instauram o confuso espaço do entre, é “o deus do limite em todas as suas formas."5 Assim, diante de comportamentos dúbios, paradoxais e repletos de fracassos, o trickster é apontado, por Hyde, como criador da cultura. Como Hermes, ele teria sido imaginado não apenas por ter roubado certos bens essenciais do céu e os dado aos humanos mas também por ter ajudado a formar o nosso mundo como um local hospitaleiro para a vida humana. Ele é a mulher que, ao apresentar Enquidu a Gilgamesh, forma a união de forças contrárias e complementares. Ele é a Serpente que incentiva Adão e Eva a conhecerem o bem e o mal. Segundo o escritor, "Hermes não apenas adquire o fogo, ele inventa e

5   (tradução própria) “the god of the threshold in all its forms." HYDE, 1998, p.7. 17


divulga um método, uma techné, para fazer fogo.”6 O paradoxo explícito no mito de Hermes dita que as origens, a vivacidade, e durabilidade de culturas exigem que haja espaço para figuras cuja função é revelar e perturbar as mesmas coisas nas quais as culturas se baseiam. A partir dessa conexão com a mitologia antiga, a sociedade pode depender de tratarmos os personagens anti-sociais como parte do universo sagrado. Dessa forma, se pensamos a construção da arte como a precariedade que sustenta a obra, como a instabilidade que equilibra os materiais na sua frágil instantaneidade temporal, podemos pensar a ambiguidade como própria da (construção da) obra de arte. O escritor, curador e crítico de arte francês Jean-Yves Jouannais (1964), em L’Idiotie: art, vie, politique – méthode (2003), fala que a idiotice é o que fez a arte entrar no seu período moderno. Para tanto, Jouannais resgata, etimologicamente, o termo idiotice/idiotia. Começa com a definição que o filósofo e escritor francês Clément Rosset (1939-) faz da idiotice como simples, particular e único. Nesse sentido, todas as coisas e pessoas seriam idiotas, uma vez que não existem outros senão elas mesmas. Daí a conexão desse sentido de originalidade com a arte moderna. Na visão de Jouannais, se os artistas modernos com seus clamores pelo novo, recusavam a tradição e a história, eles poderiam muito bem trocar o famoso grito do poeta modernista Ezra Pound “make it new!” por “make it idiot!”. O outro sentido apontado por Jouannais é o de desprovido de razão, insensatez, imaturidade até a demência/loucura, deficiente de raciocínio, tolo. Assim, para o autor, “Essa mudança na perspectiva de uma leitura

6   (tradução própria) "Hermes doesn’t simply acquire fire, he invents and spreads a method, a techne, for making fire.” (Id., p.9, grifo do autor) 18


da modernidade sugere que o artista, forçado a fazer existir/nascer objetos necessariamente e essencialmente idiotas, que seja satisfeito em jogar consigo mesmo, de forma mimética, a comédia de uma idiotice como comportamento. De "simples" a “simplório", seria sobrepor os objetos de arte à condição de idiota, à postura de idiota do artista. Além de ser idiota, como representado pela sua produção, o artista fará idiotice/o idiota. Idiotice dupla que, se não condena, pelo menos renegocia os limites da arte. Proporcionalmente adicionado à sua antiga jurisdição, a arte banal se mostra, assim, menos segura, desprovida de seu próprio domínio, alarmado pelo que excede, diverte, faz rir.”7

Assim, seja pela primeira definição, de originalidade, ou pela segunda, de besteira, vemos que a idiotice e, consequentemente, o riso são relativos à modernidade, sendo o riso uma forma bem sucedida de se obter uma arte prazerosa enquanto subversiva. Sendo idiota, o artista torna possível a abordagem de assuntos ou temas vigiados pelos guardiões da moral. Sendo idiota, o artista consegue combinar imagens conflitantes. Sendo idiota, o artista mente sendo verdadeiro. Sendo o idiota, então, a arte, a cada passo, renegocia seus próprios limites. Entre caricaturas, mentiras, obscenidades, absurdos e ridicularizações, uma nova forma de pensar a arte pode surgir. Entre idiotices, uma outra forma de pensar a vida pode surgir. A idiotice, essa incandescência do espírito de Jouannais, nos permite compreender não apenas a relação da arte com o humor mas também (e talvez mais importante) do humor com

7  JOUANNAIS, 2003, p. 14-15. (tradução própria) Ce déplacement, dans la perspective d'une lecture de la modernité suggère que l'artiste, contraint de donner jour à des objets nécessairement et essentiellement idiots, se soit plu à jouer pour lui-même, sur um mode mimétique, la comédie d'une idiotie comme comportement. De "simple" à "simple d'esprit", se serait superposée à la condition idiote des objets d'art la posture idiote de l'artiste. En plus d'être idiot, tel que représenté par sa production, l'artiste fera l’idiot. Idiotie double qui, sinon condamne, du moins renégocie les limites de l’art. En proportion de ce qui est ajouté à son ancienne juridiction, l'art comme poncif se montre alors moins assuré, dépris de sa propre maîtrise, alarmé par ce qui le déborde, le moque, l'entraîne au rire. 19


a essência, com o absurdo. Daí a conexão da ‘Patafísica com as artes, pois a experiência artística se constitui de exceções e particularidades indefiníveis que, muitas vezes, parecem colocar o público diante do ridículo. Ou seja, já que o artista é aquele que usa a ambivalência na sua potência e a arte (como linguagem), ele atua entre as forças de construção e de destruição. Assim, o processo de construção da obra de arte pode agir como o trickster. Pois ele é próprio o Bobo da Corte, o crossdresser, Benjamin Button, Buster Keaton, o idiota, o porta-voz das mais sagradas profanações. Sobre a intrínseca relação entre a essência (o absurdo) e o ridículo, Daumal escreve: a aparência bem-humorada do raciocínio patafísico, que à primeira vista parece ridículo, então numa análise mais aprofundada parece conter um significado oculto, então ainda mais de perto indubitavelmente ridículo, de novo mais profundamente verdadeiro e assim por diante, enquanto as provas e a comicidade da proposição continuam crescendo e se reforçam mutuamente por tempo indeterminado.8

Com esse ciclo sem fim entre o ridículo e o absurdo, Daumal (e os patafísicos de forma geral) promove reflexões profundas sobre situações de enfrentamento da vida com a morte, da presença com a ausência. Situações como estas são promovidas pelo artista holandês Bas Jan Ader (1942-1975). Suas quedas de diferentes lugares são a própria síntese da relação vida-morte. Ao cair de uma cadeira posicionada no topo do telhado de uma casa, em Fall I9, de 1970, do galho de uma árvore, Broken Fall 8   DAUMAL, Op. Cit., p. 8-9. (tradução própria) whence the humorous appearance of pataphysical reasoning, which at first glance seems ridiculous, then on closer examination seems to contain a hidden meaning, then at even closer range indubitably ridiculous, the again even more profoundly true, and so on, as the evidence and the ludicrousness of the proposition go on growing and mutually reinforcing each other indefinitely. 9  As obras de Bas Jan Ader podem ser visualizadas em http://www.basjanader. com/, acessível em 16/10/20. 20


(organic), de 1970, ou saltando com uma bicicleta em um canal de Amsterdã, em Fall II de 1970, o artista cria situações simples porém extremas. Em Fall II (1970), Bas Jan Ader se atira, de bicicleta, num dos canais de cidade holandesa. Por se jogar de forma determinada e sem titubear, a obra acaba por abarcar também uma dimensão de idiotice, pois quem faria isso propositadamente? No entanto, o humor nas obras de Ader não é aquele que provoca gargalhadas, mas o que cria tensão. Prevendo a queda inevitável, permanecemos olhando o desafio que o artista se propõe sempre nos perguntando a reação que é esperada de nós. De tão sérias, suas quedas nos deixam em dúvida se foram feitas para provocar o riso ou o desespero. (Podemos rir desesperadamente?) Sob um olhar patafísico, suas quedas exprimem tensão e expõem a tênue e esfumaçada linha entre a presença e o vazio. São idiotamente absurdas. O poeta brasileiro Manoel de Barros, no Livro sobre o nada já expressa essa relação entre a idiotia e o estar presente no vazio. No poema Poesia, na página seguinte, de Manoel de Barros, o desconhecimento e a imbecilidade são tidos como elogios. A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades. Não tenho conexões com a realidade. Poderoso pra mim não é aquele que descobre ouro. Pra mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil. Fiquei emocionado e chorei. Sou fraco para elogios.10

A partir das inúmeras tentativas de Daumal em experimentar o vazio (que chegaram até à ingestão e à inalação de substâncias

10   BARROS, 1996. 21


tóxicas), o poeta francês reflete sobre a experiência da morte, o que nos remete ao embate do artista holandês com a natureza. Essa busca, tanto de Daumal quanto de Ader, pela experiência da morte se torna a experiência máxima do estar vivo. A busca pelo vazio seria o caminho para se reconhecer a realidade, como nos lembra a banda Nine Inch Nails com Hurt: “I hurt myself today, to see if I still feel. I focus on the pain, the only thing that’s real.”11 Visto pela última vez em 1975 quando se lançava no Atlântico em um pequeno barco para realizar a segunda parte de seu tríptico Em Busca do Miraculoso, Bas Jan Ader se dispôs à deriva absoluta. Sujeito à movimentação das marés, o artista estipulou que levaria 90 dias para atravessar o oceano se não usasse as velas do barco. Seis meses depois, metade do barco foi encontrada na costa da Irlanda. Vazio. Já na videoperformance de pouco mais de 4 minutos, Nightfall, de 1971, o artista explora o desequilíbrio e a tendência à escuridão ao levantar, com dificuldade, um pedaço de pedra pesado até conseguir sustentá-lo com apenas uma mão acima de seus ombros. Contudo, em pouco tempo a estabilidade da garra se perde, o pulso vacila e a pedra se põe a cair. Com o tombo da pedra, uma das lâmpadas posicionadas no chão e ao lado do artista é esmagada. A cena fica parcialmente iluminada. A ação é repetida e, ainda com a dificuldade em erguer a pedra sobre seus ombros, o artista agora acaba estilhaçando a lâmpada que permanecia acesa do outro lado da cena, restando apenas a plena escuridão. A partir do ato de desligar-se do Outro, que a psicanálise aponta como manifestação da pulsão de morte, o nada, o vazio e a escuridão podem ser vistos como alegorias ou imagens

11   (tradução própria) “Eu me machuquei hoje para ver se ainda posso sentir. Me foquei na dor, a única coisa que é real.” Letra de Trent Reznor, lançada em 1994 no álbum The Downward Spiral. 22


da morte. Mais que uma testagem dos limites da vida, pela experiência da angústia e da dor, a escuridão almejada por Ader, mesmo que construída com certo humor pelo absurdo patético da cena (ou até mesmo por isso!) remete a um grande e trágico fim. Um grande fim ou até mesmo o maior fim como a própria queda do céu. O xamã yanomami Davi Kopenawa, em A queda do céu, de 2015, relata a presença do céu como constante ameaça do fim e da escuridão: quando, às vezes, o peito do céu emite ruídos ameaçadores, mulheres e crianças gemem e choram de medo. Não é sem motivo! Todos tememos ser esmagados pela queda do céu, como nossos ancestrais no primeiro tempo.(…) Todos os seres que moram na floresta têm medo de ser eliminados pela imensidão do céu, até os espíritos.12

O artista estadunidense Richard Serra, na sua videoarte Hand Catching Lead13, de 1968, fica por 3 minutos tentando pegar um pedaço de chumbo. Com a cena fechada apenas em parte do antebraço, vemos a mão do artista abrindo e fechando tentando evitar a queda do metal. Porém a queda e o estatelamento da matéria no chão são inevitáveis. O encontro com o chão não é um pouso, controlado e preciso, é uma agressão à matéria, maleável, que pode desfigurá-la ou destruí-la. A queda, assim, pode significar o fim. O fim da ilusão da permanência, da ascensão como transformação e o (re-)encontro com o piso. Se pensamos ainda na palavra lead, que além de chumbo pode significar pista ou também liderança, a obra de Serra ganha ainda mais força quando sua mão falha em segurar uma pista ou em agarrar a liderança. O chumbo, a pista e a liderança parecem

12  KOPENAWA, 2015, p. 194.  13    A obra pode ser visualizada em: https://www.youtube.com/watch?v=_ NBSuQLVpK4&ab_channel=TIMESTEREO (acessível em 15/10/20). 23


todos terem seus destinos traçados, sua queda predestinada em cena. Seu encontro marcado com o chão. O chão, como nossa base de sustento, como apoio e superfície comum, é compreendido também na nossa língua, como aquilo que é moralmente baixo, vulgar, comum ou trivial. Se, por um lado, o chão é a expressão da sinceridade, da franqueza e do que é despretensioso, o chão é a base a partir da qual relacionamos todo o visível, o idealizado e até o desejado. É a partir do chão que pensamos inclusive o céu. Não é à toa que a noção de chão, nas representações pictóricas pré-históricas, marca uma grande mudança nas nossas construções narrativas, que deixam de representar as figuras flutuantes e, em grande parte, desconectadas uma das outras, sem criar histórias, relações ou contextos, e passam a situar as imagens assentadas em (ou a partir da) terra firme, já no período do Neolítico e, com isso, localizadas, situadas e presentificadas naquilo que chamaremos de cenários. Em Queda da linha própria14, de 2020, apresento uma instalação de parede construída de dois emaranhados pesados de borrachas e uma linha horizontal de desenhos desses enlaçamentos de nós feitos em pastel oleoso preto, como pode ser visto nas imagens ao lado. O primeiro grande nó de restos de borracha de refrigeração e automotiva é, na verdade, uma queda ou uma cascata em direção ao piso da galeria enquanto o segundo parece executar um outro movimento, no espaço entre piso e teto. Provavelmente, se não houvesse abaixo uma linha horizontal de desenhos formando uma referência ao chão, o agrupamento de borrachas à direita pareceria flutuar, se desprendendo de todo o contexto e, como uma nuvem, (se) perdendo (de si) e/ou enfraquecendo sua conexão com a materialidade que o compõe. Dessa forma, a presença física 14   Mais imagens da obra podem ser vistas no endereço: ceciliamori. com 24


marcada pelo traço grosso e opaco do pastel preto reforça a noção de chão necessária para que o emaranhado da direita possa parecer se lançar após um tropeço, pois com a referência do piso (ou tendo o horizonte como obstáculo), o céu é construído. Essa ambiguidade que a noção chão impõe acaba por estabelecer uma proposição paradoxal entre a ascensão e a queda. E ainda o céu, criado a partir do que foi estabelecido como chão, parece não ter limite (nem físico nem simbólico). Assim, o encontro com ele não apenas não estatela um corpo como é impossível, pois é postergado a cada pé subido em sua direção. Como um horizonte inatingível, prospectivo, a experiência do céu deve ser da ordem da sua suspensão, como nos diz o filósofo krenak Ailton Krenak em Ideias para adiar o fim do mundo, de 2018. Nas palavras de Krenak, Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe a ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades – as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência.15

E, como nos lembra Hyde, em vários mitos os deuses viviam na terra até que alguma ação do trickster os elevassem aos céus. Com isso, se tornou o mensageiro dos deuses, o autor da grande distância entre o céu e a terra, o próprio horizonte. O Bobo da Corte seria então esse ponto de encontro e a personificação (ou a alegoria) da ambiguidade, da ambivalência, da dúvida,

15 KRENAK, 2018, p. 32-33. 25


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Cecilia Mori, "Quedas da linha própria", instalação de parede, borrachas diversas e desenhos em pastel oleoso, 2020. Coleção própria. Fotografias: Ádon Bicalho.

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da duplicidade, da contradição e do paradoxo tão presentes na produção contemporânea. Dessa forma, sendo o piso, o que sustenta nossos corpos, ele é também a linha que nos apresenta toda a materialidade e o real. E ainda, na percepção de Kopenawa, o que conhecemos hoje como chão já foi o céu E, se o chão de hoje já foi o céu de ontem, nada impede que o céu de hoje seja o chão de amanhã. No início, o céu ainda era novo e frágil. A floresta era recém-chegada à existência e tudo nela retornava facilmente o caos, Moravam nela outras gentes, criadas antes de nós, que desapareceram, Era o primeiro tempo, no qual os ancestrais foram pouco a pouco virando animais de caça. E quando o centro do céu finalmente despencou, vários deles foram arremessados para o mundo subterrâneo. Lá se tornaram os aõpatari, ancestrais vorazes de dentes afiados que devoram toso os rostos de doença que os xamãs jogam para eles, embaixo da terra.16

O movimento na direção vertical põe em relação dois opostos: o alto e o baixo. O deslocamento do alto para o baixo ou do baixo para o alto formam diferentes formas de pensar o ser no mundo e, consequentemente, a construção artística. Na proposta materialista, o sentido almejado é o de baixo pra cima ao invés do proposto pelos idealistas, segundo os quais o belo (e consequentemente a prática do bem e as virtudes) estaria no mundo acima (inteligível) e cairia no nosso mundo por uma interlocução entre eles. Contrário a essa percepção de mundo, Comte-Sponville fala do sentido da sublimação, que partiria do desespero e do silêncio, no movimento para atingir os céus. A proposta materialista analisada pelo filósofo no Tratado do Desespero e da Beatitude, elege a vida como resultado do movimento contrário ao de Ícaro. A vida seria o que une o baixo com o alto, a matéria com a não-matéria, as virtudes com os 16  KOPENAWA, Idem, p. 195. 28


vícios, a verdade com a mentira e a queda com a ascensão. E da mesma forma que é no espaço da vida que os pares opostos se fazem presentes, é neste mesmo espaço que temos que lidar com seus limites e com a falta deles. Assim, essa composição de oposições forma relações paradoxais inevitáveis que exploram os espaços limítrofes entre eles. O desespero de Comte-Sponville como o não-esperar, como o agora, visa o dar-se conta do real e não mais contar com as soluções em um mundo metafísico. Seria, assim como o artista francês Ben Vautier fez, Lançar Deus ao Mar17. Só a partir disso que uma libertação se tornará possível. Afinal, já nos disse Ferreira Gullar que a arte existe porque a vida não basta. Ou ainda, como nos sugere Krenak: “quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo e respirar.”18 Só aí o sublime, e qualquer noção de ascensão, se faz. A partir do lançamento, e da inevitável queda, experimentamos o sublime, uma vez que nos põe em relação com a matéria do mundo real, o físico mundo da existência em desespero.

17  A obra de Ben Vautier, “Lançar Deus ao mar” é uma ação da série “Gestos”, de 1962 e pode ser vista em http://www.ben-vautier.com/50performanceben. pdf (acessível em 25/10/20). 18 Op. Cit., p. 28   29


Referências Bibliográficas

ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte Italiana: de Giotto a Leonardo. Tradução de Wilma De Katinsky. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. (Coleção História da Arte Italiana) v. 2 COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes; trad. Eduardo Brandão. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. ________. Tratado do Desespero e da Beatitude. São Paulo: Martins Fontes, 1997. FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer; tradução Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2018. JOUANNAIS, Jean-Yves, L’Idiotie: art, vie, politique – méthode. Paris: Beuax Arts Maganize/Livres, 2003. HYDE, Lewis. Trickster makes this world: mischief, myth and art. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1998. KOPENAWA, Davi e ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamâ yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.


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* Gê Orthof, Petrópolis, 1959. Pós-Doc, School of the Museum of Fine Arts, Tufts University, Boston 2001; Doutorado 1992 e Mestrado 1985 em Artes Visuais, Columbia University. Artista e professor do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da UnB (graduação e pósgraduação), onde coordena, junto com a Profa. Karina Dias, o grupo de pesquisa Moradas do Íntimo. Áreas de atuação: instalação, intervenção, performance e desenho. 32


! HA-gaz-AH ! Gê Orthof*

gaza-palestina-séc XV a.C.

Nero em um dia de fúria murmura no espelho: MORRA_ROMA_ MORRA!

O imperador sonhou ser Alice, mas tinha consciência de ser apenas menor ( razão de sua fúria desmedida ). Sonolenta demência, cindir, cindir, cindir, até a fratura transformar a fartura em estéril pó. Quantos desertos a mesquinha maldade ainda irá produzir? Quantas guerras, mortes e solidão? Aqui não há mais sintaxe ou mesmo semântica, apenas um pó turvo. Vícios de linguagem, vícios de palavras enganosas projetadas… bofetadas… Vícios de uma pátria naturalizante, controladora, covarde e que lambe, por milênios, a bota do poder. Fétido fetiche. Brancaleone exército a pisotear a mata, mata-mata, mata-tudo. 33


Tolinhos… desconhecem. Ignoram por maldade, interesse ou comodidade.

Se, humildes, acariciassem os livros, saberiam que um dia Mongóis usaram tijolos como dinheiro e que quando chegaram ao mar sua fortuna em lama verteu-se. Está tudo no livro das ilhas abandonadas e dos lugares malditos… Se acariciassem os livros… Noturno, vislumbro Yaci, mãe dos vegetais, luar dos belos pensamentos, alerta contra o maldizer. O perigo do mar, sempre ali a encantar. Sereias em pleno deserto. Areia movediça, mirar… Château de Montségur: Sina de satã, eco sinistro de noites a barulhar incertezas. Adormeço, milênios evaporam diante de meus olhos cerrados, para onde? Me refugio da tempestade de areia. Acordo na biblioteca de Canberra. Aroma forte de eucalipto me envolve, "um homem temporário” onde mesmo eu li isso? Sonhei? Escurece rápido, próximo da hora de fechar a fabulosa biblioteca encontro a ficha da certidão de óbito de Max Orthof, morto no campo de extermínio de Terezín, República Tcheca, em 30 de Julho de 1942.

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Areia, arde, areia, arranha, areia, aranha… murmuro tentando, como de costume, desviar o olhar do do naufrágio. Areia, afundo, fundo, fundo, fundo.

Não pude te ajudar, Max, pois você foi morto antes de eu nascer. Mas hoje eu te encontrei numa biblioteca do outro lado do mundo. Eu te encontrei, Max. Morrer não é igual a perder. Perder não é igual a esquecer, esquecer é pior, esquecer é igual a nascer em apagamento. Como salvar mortos sem bibliotecas? Cora Coralina me contou que em 1945 os jornais mencionavam um navio fantasma percorrendo os mares e procurando abrigo em um porto qualquer. Sua única identificação, uma bandeira branca a drapejar no alto mastro. Cora escreveu então, com letras de diamantes: Desce aqui. Aceita esta bandeira que te acolhe fraterna e amiga. Cora tem bom coração, ela acredita no azul. Sonhadora, sabe reparar nos ínfimos detalhes. Ela escuta minuciosamente a exata velocidade desse preciso azul.

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"Ay! Este azul! Provinciano se quiebra en mi voz, como antigua vidala en adiós, como un breve puñado de sol.…" Cora sempre teve bom coração.

Sozinho no grande arquivo vejo Max fantasma se dissipar em fumaça. Lentamente naquele preciso azul escorre entre os dedos. Estamos juntos, mas sós. Quanto medo, quanto medo. . . . _ eu é um outro ( Rimbaud ) . . .

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Agora estou aqui, afastado, isolado nessa ilha atípica, distópica. Choveu forte, mas agora a noite está fresca e límpida. Talvez seja um bom momento para eu escrever este texto, Max, talvez… Escreverei, com letras de diamantes, que te encontrei em 2019, que o tempo sempre foi um enorme oceano a devolver as vergonhas ao litoral. Aqui, nesta noite tão transparente e sob o brilho de Cora e Yaci eu escrevo o seu nome, Max. Escrevo as histórias em frágeis palitos de fósforos. Aqui neste caderno, nessa movediça faixa de areia, gaza, nessa faixa de milenar vergonha. Anoto o seu nome junto a todos náufragos da barbárie. Isso não te ajuda em muita coisa, eu sei. Não te salva de seu trágico destino. Mas morrer é diferente de esquecer, Max, esquecer é não ter existido. Nesta ilha perdida, não estamos bem, Max. Aqui queimam os livros mais uma vez, Max. Queimam as matas. Queimam as lembranças, uma tristeza, meu querido. Nero demente está aqui outra vez. Tudo de novo. Uma tristeza…. Mas Yaci vê lá de cima, de um outro ponto de vista, ou será de fuga? que Bachelard de mãos dadas com Cora escrevem: "Antes de ser filho da madeira, o fogo é filho do homem”. Eles sabem das histórias do mundo, são antigos e eternos, conhecem os perigos e os segredos. . . .

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“…Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver; dê-lhe apenas um, ou melhor ainda nenhum… Deixe que ele esqueça de que há uma coisa como a guerra…. Entupa com “fatos" assim, enganado, imaginará que está pensando, uma falsa sensação de movimento sem sair do lugar“ _ Fahrenheit 451 do livro de Bradbury. Cito de memória, Max. . . . .

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Desço ao inferno, E agora Nero? Como salvar sem bibliotecas? Simplesmente te esqueceram, imperador 451*, um número a ser brevemente apagado no campo desmatado do esquecimento.

* Temperatura de queima do papel em graus Fahrenheit, o equivalente a 233 graus Celsius.

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* Iris Helena artista é doutoranda em Deslocamentos e Espacialidades pela Universidade de Brasilia. Mestra em Poéticas Contemporaneas pela mesma universidade e graduada em artes visuais pela Universidade Federal da Paraíba. Para mais trabalhos www.irishelena.net 42


Fundar uma cidade: relato de uma experiência artística Íris Helena França de Araújo* há tantas coisas que deixariam de existir se fossem tocadas. Julia de Souza

Para se fundar um lugar é preciso ir à caça do espaço, de dentro da cidade estar à espreita do cotidiano com olhos desacostumados. Para se criar lugares, os caminhos devem se dar sob passos vagantes e o artista passa então a encarnar o agrimensor quando começa a delimitar com as medidas do seu próprio corpo os perímetros de terra que poeticamente decide habitar . Faz a sua ronda, espera que o lugar apareça e que a paisagem se faça. Assim eles, os lugares, nascem, do ato de riscar uma letra no solo. O X, a vigésima quarta letra do nosso alfabeto latino, representa, simbolicamente, ideia de uma incógnita. Nas equações matemáticas ela pode representar um número real ou não, e o seu valor necessita dos cálculos e de fórmulas para ser descoberto. No espaço, a escrita do X é a projeção, o marco zero que identifica os dois principais eixos de um lugar porvir. O X é pré-monumento, antes do erguimento de uma cidade, ante da fundação, antes do concreto, está o abstrato, o subjetivo. A inscrição do X é quando a errância, se assenta sobre o chão e esta encruzilhada se nutre das novas mitologias.

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Imagem aérea dos eixos rodoviários no Plano Piloto em Brasília,1957. Foto de Mario Fontenelle/Arquivo publico do DF.

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Dentro de Brasília (DF), cidade planejada cartesianamente, temos inúmeras zonas de respiro para quem por ela caminha. Pelo eixo central norte da cidade, nos salta à vista um vasto terreno vazio que existe entre duas quadras. Tendo os prédios das quadras vizinhas emoldurando o horizonte aberto ao vazio como uma janela que nos permite ver além da cidade. O vazio que sentimos, equivale ao que seria o espaço de uma Superquadra nunca antes construída, 207 Norte e seus supostos 13 blocos de apartamentos. A “Quadra Vazia”, como é popularmente conhecida, é hiatos da cidade, pois ainda que havendo a ausência de construções de concreto, outras formas de ocupação do espaço se apresentam sutis. As marcas do chão das inúmeras idas e vindas dos caminhantes que cortam caminhos por ela encontram-se impressas no chão subvertendo as rotas oficiais, trilhas do desejo. Entre dois caminhos paralelos traçados ao sabor da repetição dos passos experimentados pelos outros, escolhi fundar um lugar para se construir um totem/monumento, anunciar uma quadra vindoura e dar inicio a uma intervenção neste meio-lugar ou o que chama diz Michel de Certeau, um lugar praticado, mas em estado provisório, intermediário, inacabado.

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Imagem do lugar onde foi fundada o totem que inicia o Bloco A da quadra 207 Norte no Google maps


Fincar e fundar: dois verbos que muito me acompanharam neste processo de intervenção artística.

Primeiro, veio a

impressão dos pés e do traçado dos passos, depois, para reivindicar o espaço e tomar posse dele, entendi que precisava de uma presença física para além do meu corpo, uma espécie de menir, como um marco territorial. Estes megalíticos verticais são provas materiais das tentativas humanas de conquista do espaço, que além de manterem clara a relação do homem com a sua inclinação bípede, também atendem ao desenvolvimento de referencial externo entre a terra e o céu. A pedra monolítica que é uma linha desenhada no chão que se levanta, encarnada. Movimentada pela sombra, junto do movimento da terra, esse ‘menir’ atravessa perpendicular o horizonte num rasgo. O projeto que chamei de Fundação foi pensado para esse espaço específico da cidade. O terreno escolhido, pertencente à Universidade de Brasília, é também alvo de forte especulação imobiliária, por estar localizada numa área onde o metro quadrado é muito caro. Então, ideia da intervenção era instaurar a 'pedra fundamental' e inaugurar uma quadra imaginária ou quadra-devir. O marco escolhido para materializar a ação foi um totem de concreto usado para sinalizar e demarcar todas as quadras do Plano Piloto, símbolo este que já faz parte do imaginário dos Brasilienses e que, deslocado, para uma área vazia traria o lugar do reconhecimento mas também geraria um estranhamento na paisagem. No dia 1 de julho de 2017, sedimentei uma réplica idêntica de totem poliedro de concreto de 1.75 m de altura com os dizeres SUPERQUADRA 207 BLOCO A. E as duas da tarde deste dia, convidamos a comunidade e realizamos uma cerimonia de inauguração da nova quadra. No contexto de um terreno vazio de grandes proporções, o totem tornou-se um traço no espaço, porém enquanto monumento, criou à sua volta uma espécie de campo gravitacional, que atraiu, como uma força centrípeta, para si, a cidade.

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Registros da inauguração do totem Bloco A e cerimonia de inauguração da Quadra 207 norte em 1 de julho de 2017, Brasília – DF.

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Registros da inauguração do totem Bloco A e cerimonia de inauguração da Quadra 207 norte em 1 de julho de 2017, Brasília – DF.


Se uma cidade imaginária nasce da soma de todas narrativas das cidades vistas, a quadra imaginária inaugurada seria a síntese de todas as quadras da cidade? O totem erguido é a pedra inaugural e o restaurador do vazio, um invasor que se sustenta junto do entorno, ele surge da emergência do lugar em consonância com sua história trazendo dois os enunciados: o porvir de uma quadra e a espera da ruína, ambas possibilidades de futuro.

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Totem instalado na quadra 207 Norte

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A intervenção no espaço durou aproximadamente 12 dias, até que o totem foi encontrado completamente destruído. Esta era a resposta da cidade, o desmoronamento. Ainda que a coluna esteja partida em 2 pedaços tombados no solo, lhe resta a fundação - sua base que repousa na cova invisível e indivisível do solo. Um monumento nascido ruína.

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Totem destruído 12 dias depois de instalado

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Referências Bibliográficas

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes, 1998. ______________. Ensaios e conferências. Petrópolis: Editora Vozes, 2008. CARERI, Francesco. Walkscapes – el andar como práctica estética. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2002.


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* Nascida na baía de Guanabara, criada nas margens do Paraíbuna, atravessou o oceano atlântico até a Seine, desaguou no Rhône e praticou três anos de Stand Up Paddle no lago Paranoá. Atualmente, faz viagens em torno do próprio quarto. Graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora [BR] e em Artes Plásticas pela Université Paris 8 [FR]. Mestre em Fotografia Contemporânea pela École Nationale Supérieure de la Photographie [FR] e em Artes Visuais/Poéticas Contemporâneas pela Universidade de Brasília [BR]. Expôs coletivamente 50 vezes em 4 países diferentes [Brasil, França, China, Canadá]. Individualmente, 7 vezes. Participou de 16 publicações e 5 residências artísticas. Ganhou 5 prêmios [Arca-Suiss + Transborda + 15º Salão de Arte Contemporânea de Guarulhos + Funarte + Diário Contemporâneo] e foi indicada para um outro [Pipa]. 56


impressões evidentes Júlia Milward*

Na via pública, diante de um edifício em obras, sobre um acumulado de areia, salientava-se em negativo a inscrição de um par de mãos. O traço destrutível1, que pouco alterava a aparência acastelada, era o indício da passagem anônima que deliberadamente traçou o próprio corpo numa superfície sem garantias. Uma imagem por contato formada pelo atrito entre presença e matéria, que todos nós já experimentamos espontaneamente em determinado momento (...) seja pelo traçado dos passos ou da areia molhada na praia, seja pelos dedos manchados de tintas (...) sobre uma folha de papel2. Esses compostos de materiais banais e gestos elementares, que proporcionam um jogo de evidências (empíricas, retóricas, estéticas) de algo imediato, da leveza primeira, nos lançam ao lugar do início, ao passado, às entranhas, à origem do tornar imagem. O que via aquele que fez a imagem? O que pensou ao notar a superfície? O que fez para a conceber disponível? O que procurava ao tocar? O que carregava? O que sentiu durante o contato? O que viu ao se retirar? Qual é a razão da imagem? Sem a pretensão de responder as perguntas dispostas, proponho um exercício ficcional3, que é o de imaginar as motivações e 1   “Um traço indestrutível não é um traço, é uma presença plena, uma substância imóvel e incorruptível, um filho de Deus, um sinal de parousia e não uma semente, isto é, um germe mortal.” (DERRIDA, p.226) 2   Fragmento do texto curatorial escrito por Georges Didi-Huberman e Didier Semin, retirado do “Communiqué de presse” da exposição “FAIRE UNE EMPREINTE. . .”, Centre Georges Pompidou, 1997. Tradução nossa. 3   Proposição apresentada por Marie-José Mondzain na conferência “Qu’est57


experiência entre o corpo ausente e a superfície a partir dos rastros. Era cedo, aquele momento do dia em que o sol indica apenas um fragmento de testa. Talvez andasse em linha reta, descontínua, evitando os buracos da via. Seguia o trajeto cotidiano da repetição. O olhar oscilava entre os antigos prédios envoltos por uma fina rede de proteção, o trânsito moroso dos primeiros ônibus e as placas dos novos empreendimentos imobiliários. Diante do canteiro de obras desalmado pelo turno, um monte de areia fazia paisagem. Aproximou-se desse lugar que era outro, que era interior. Num gesto rápido, apoiou o próprio corpo sobre as mãos e ali se ateve por poucos instantes, sentindo a terra que coçava as palmas, que se deformava com o peso do corpo, que tocava ao mesmo tempo que era tocada. Ao se retirar deixou uma forma individual que atestava a própria passagem, uma imagem feita pelo contato entre corpo e matéria e que era dada “a ver aos olhos como um traço vivente mas separado de si”4. Na imagem por contato o corpo que molda imediatamente se vê traço, esse definido por Jacques Derrida em "A escritura e a diferença" como sendo “a desaparição de si, da sua própria presença, que é constituído pela ameaça ou a angústia da sua desaparição irremediável, da desaparição da sua desaparição”5. A imagem seria, então, uma parte integrante do homem6, que compreende dentro do sistema de sobrevivência os vestígios como uma forma de continuidade, que admira os próprios rastros, que se lança fisicamente sobre superfícies com o intuito de retirar uma forma que seja própria, identitária. Segundo o antropólogo Tim Ingold: “Não importa por onde vão e o que

ce que voir une image?” (2004) ao relatar uma possibilidade narrativa para a figuração da mão em negativo na Gruta Chauvet. 4   MONDZAIN, p.42. 5   DERRIDA, 1995, p.226. 6   MONDZAIN, p.40. 58


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fazem, os homens traçam linhas: andar, escrever, desenhar ou tecer são atividades onde as linhas são onipresentes, no mesmo sentido que o uso da voz, das mãos ou dos pés”7. Dentro desse nosso ímpeto de deixar traços, escolhemos pensar sobre os rastros inerentes através das inscrições dos corpos sobre superfícies, analisando como esse gesto simples, primeiro e inicial permanece atrelado à nossa forma de fabricar imagens. Em “A imagem entre proveniência e destinação”, MarieJosé Mondzain se interroga sobre a procedência da imagem, sua origem e causa, questão essa que é abordada pelo gesto e articulada a partir de dois momentos: o primeiro relacionado à “origem das operações imaginantes na sua manifestação inaugural” (MONDZAIN, 2015, p.41); o segundo com “a incidência determinante das posições teológicas na legitimação das imagens próprias à nossa cultura” (MONDZAIN, 2015, p.41). Limito-me somente ao primeiro momento e à narratividade sugerida pela filósofa para a (re)composição do gesto originário. Assim, a partir das mãos negativas da Gruta de Chauvet, Mondzain propõe que a formação da imagem tenha sido o resultado de três operações: o sentido do gesto, o sopro e o retrato. Partindo da própria imaginação para relatar “o caminho imaginante que subtrai o homem da necessidade natural” (MONDZAIN, 2015, p.42), isto é, do movimento contranatural daquele que é capaz de subverter as próprias funções fisiológicas e de esquecer por alguns instantes as questões de sobrevivência para poder realizar imagens, a autora constrói um universo erguido no reino das sombras, na caverna matricial, que, segunda ela, diante dessa opacidade, com braços estendidos e apoiados na parede, o homem teria compreendido o que o separa e o une, sendo a “mão (...) aquilo que aproxima, toca e ao mesmo tempo rejeita, afasta e toma da rocha a distância 7   Citação do antropólogo Tim Ingold retirada do Dossier de Presse da exposição “Une brève histoire de lignes”, do Centre Pompidou-Metz, 2013, tradução nossa. 60


de um braço.” (MONDZAIN, 2015, p.41). O lugar passa a ser constituído pelas relações do corpo com o espaço, inaugurando uma conversa entre essas duas polaridades em que “a imagem é o teor do que se mantém (...) entre o homem e a parede” (MONDZAIN, 2015, p.42). Na distância em que o olho e a mão se arranjam8, a boca que escolhe perder momentaneamente a função alimentar deixa de deglutir e passa a assoprar sobre a mão posta na parede um pigmento de cor desfeito por essa mesma cavidade oral. Encoberta pela coloração, a mão só se torna imagem distanciada da superfície, assim, convertida em ausência, é o rastro do próprio corpo que passa à visão de um outro. Mondzain considera, então, que “a mão negativa é o primeiro autorretrato, autorretrato não especular, sem espelho, do homem que é um sujeito que só conhece de si e do mundo o traço deixado por suas mãos.”9 Uma imagem traçada em negativo, provocada pela relação entre pigmentação e estrutura ausente. O retirar que deixa em evidência os contornos de um corpo que aqui é figurado sem volume, plano, como o inverso de uma sombra, marca desbotada, aberta, em que a “única presença era a ausência, a impressão sobre as paredes de tudo o que passou por aqui, as sombras das coisas que esses lugares abrigaram.”10 A primeira Delocazione de Claudio Parmiggiani, realizada entre novembro e dezembro de 1970, na Galleria Civica de Modena, segundo Georges Didi-Huberman em “Génie du non-lieu”, é uma resultante acaso: "o artista escolheu trabalhar numa sala que servia habitualmente como almoxarifado do museu. Nesse local haviam objetos descartados apoiados contra as paredes, obras em espera dentro de caixas de madeira, uma viga abandonada, um pedaço de escada ... e muita poeira, 8   MONDZAIN, p.42. 9   MONDZAIN, p.42. 10   PARMIGGIANI, 1996, apud DIDI-HUBERMAN, 2001, p.22-24, tradução nossa 61


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naturalmente. Ao deslocar os objetos para ‘fazer espaço’ (...) – primeiro ato de delocazione, então – o artista foi capturado pela visão, paisagem ou natureza morta, dos traços deixados em negativo pela poeira"11. Compreendendo a potência discursiva desse desfazer, Parmiggiani transforma a percepção em obra, e passa, então, a criar novos procedimentos com materiais e formas que consigam intensificar a consistência dos traços existentes, como a pesada fumaça de pneus queimados. O resultado é a formação de uma camada única feita de impressões sobrepostas, uma ativa (a do fogo) e outra passiva (a do tempo), que passam a coexistir no mesmo espaço-tempo. Apesar

das

Delocaziones

serem

consideradas

conceitualmente próximas das sombras dos corpos humanos inscritas nas paredes de Hiroshima, até mesmo pelo próprio artista, existem algumas noções sobre a constituição dessas imagens que parecem terem sido apartadas e, por isso, acabaram aproximando o parecido do semelhante. O raio que invadiu a cidade de Hiroshima no dia 06 de agosto de 1945, além do gesto impensável de aniquilação e deformação de um território e de uma população, agiu como uma câmera nuclear: “Na calçada onde o asfalto derreteu, uma silhueta cinza, cendrada. A evidência do corpo humano. Mas apenas o traço. Em outra parte, não muito longe, na superfície de um muro, uma outra silhueta: um homem (ou como também uma mulher) dessa vez em pé, segurando uma escada cuja impressão, ela também, é perfeitamente visível.”12 (ARDENNE, 2001, p.441, tradução nossa). O que ficou registrado sobre a superfície da cidade, que Paul Ardenne relata e que vemos nas fotografias documentais, são as sombras incrustadas de corpos humanos desaparecidos, aniquilados pela intensidade da luz.

11   DIDI-HUBERMAN, 2001, p.18. 12  ARDENNE, 2001, p.441, tradução nossa. 64


O instante não-visto em que o corpo se tornou ausente e que ficou registrado na espessura da parede, na textura do chão. Nas Delocaziones a ausência figurada não passa essa noção de aniquilação do objeto para a constituição da imagem, talvez, nesse caso, o discurso do artista sobre uma cidade morta13 faça mais sentido, pois se trata do aparecimento de uma forma após a retirada de um corpo, independente da destruição que é inerente a qualquer presença, e que acontece no depois, não no durante da execução da imagem. O desejo de falar do inenarrável da bomba de Hiroshima acabou eclipsando e enturvando o principal elemento que constitui o surgimento dessas imagens, isto é, a supressão da matéria e o total apagamento dos corpos que formaram as sombras. Assim, as imagens espectrais de Hiroshima são originárias do embate da sombra de um corpo aniquilado sobre uma superfície que se tornou fotossensível por radiação. Uma imagem por contato: como a fotografia; como a imagem da mão na Gruta Chauvet, mas não aquela que foi preterida por Marie-José Mondzain e discutida anteriormente, uma outra, embebida de pigmento, que pressionou a palma sobre a textura da parede, sentindo dentro do gesto a imagem que surgia a partir da pressão entre superfícies; como a escultura atípica “Terra” de Claudio Parmiggi, que consiste numa grande esfera de terra de 70 cm em que o artista inseriu os rastros da própria mão direita pressionando o material por diferentes durações de toque. A obra que ficou exposta apenas durante três semanas em 1989 e foi enterrada no dia 25 de setembro no Jardim St. Pierre, na cidade de Lyon; como, ainda, a “Impressão da mão do artista” , de Vassily Kandisky, uma aquarela verde, plasticamente distante das obras do artista, marcada pela data 25 de maio de 1926. Inicialmente a obra pode remeter às atividades que nos

13   Mesmo que estivesse falando da cidade morta de Hiroshima. 65


são propostas durante a infância, quando, ainda analfabetos, untam as nossas mãos e pés com tintas (geralmente, guache) e nos mostram como apoiar sobre a folha de papel. Uma imagem assinada com o nome da criança por um adulto e que passará ao local de recordação. Porém, as palmas do artista Vassily Kandisky parecem remeter a uma outra situação à da origem, à constituição de linhas que tornam essa imagem única, singulariza o indivíduo, atesta a existência, a presença naquele dia específico, marca a própria passagem.

Referências Bibliográficas

ARDENNE, Paul. L’image corps: figures de l’humain dans l’art du XXe siècle. Paris: Éditions du regard, 2001. BATAILLE, Georges. Oeuvres Complètes: vol.IX. Paris: Éditions Gallimard, 1979. DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Editora Perspectiva, 1995. DIDI-HUBERMAN, Georges. Génie du non-lieu. Paris: Les Éditions de Minuit, 2001. MONDZAIN, Marie-José. A imagem entre proveniência e destinação. In: ALLOA, Emmanuel (org.). Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. P.39-53. NANCY, Jean-Luc. O vestígio da arte. In: HUCHET, Stéphane (org.). Fragmentos de uma Teoria da Arte. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.


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* Artista visual e professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília, atuando na graduação e pós-graduação. Pós-doutora em Poéticas Contemporâneas (UnB), Doutora em Artes pela Université Paris I – Panthéon Sorbonne. Trabalha com vídeo e intervenção urbana. É autora do livro: Entre visão e invisão: paisagem (por uma experiência da paisagem no cotidiano). Coordena o grupo de pesquisa vaga-mundo: poéticas nômades (CNPq). Sua pesquisa está centrada nas poéticas da paisagem e da viagem, na geopoética, nos processos de produção artística, no lugar e seus modos de imaginação. www.karinadias.net https://cargocollective.com/vaga-mundo 68


Orla1 [como atravessar um pequeno litoral] Karina Dias* Percorrer uma faixa de terra, uma margem, um continente construído. Caminhar à beira do Lago Paranoá2 de um lado para o outro, repetidamente, num ritornello, sem começo nem fim. Atravessar o que, para nós, é como um pequeno litoral, não menos oceânico do qualquer outro. Estar à beira do lago é encontrar essa geografia oceânica, colocá-la em movimento, encontrar os ventos, reconhecer as correntezas. Nessa cidade composta de escalas distintas3, como nos mover? A caminhada na orla é da ordem das pequenas distâncias, da proximidade que recua, do longínquo que [se] aproxima num instante4. Nesse fluxo, as imagens filmadas, e posteriormente projetadas, parecem criar um tempo-paisagem5 constituído pelo percurso, 1  Orla é uma vídeo-projeção que apresenta a extremidade do Lago Paranoá em Brasília. Vemos a artista, a pé, indo e vindo, cruzando esse espaço limítrofe que a separa da água e das embarcações que cruzam a estreita faixa filmada. Trabalho exposto na exposição Rumor. Curadoria: Yana Tamayo. Caixa Cultural Brasília, 2019/2020. Vídeo-projeção, 6min 21seg, 2018. Câmera e edição: Albert Ambelakiotis. 2  Lago Paranoá é um lago artificial construído para amenizar os efeitos da seca em Brasília. Ele é formado pelas águas represadas do Rio Paranoá. "Paranoá" é um vocábulo de origem tupi que significa "enseada de mar", através da junção dos termos paranã (rio grande, mar) e kûá (enseada). http://tupi.fflch.usp.br/ vocabulariotupiportugues - consultado em 10/10/2020. 3 Brasília foi pensada em quatro escalas que se dividem nas expressões das seguintes ordens: a da função cívica (Monumental), a dos espaços de morada (Residencial), a do comércio e lazer (Gregária) e as de extensões livres com gramados, calçadas, bosques e jardins, bem como a presença do céu (Bucólica). Para acesso ao detalhamento das escalas para Brasília, buscar o Documento Brasília Revisitada que discorre sobre as Escalas da cidade. : http://portal.iphan. gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=280   4  MARQUES, Martins Ana. O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.64. 5  Tempo paisagem foi o título da minha exposição individual realizada na Caixa Cultural Brasília nas galerias Piccola 1 e 2 que teve a curadoria de Cristiana Tejo. 69


pelo movimento do/no lago e pela imensidão que os circunda. Orla-artifício, orla bucólica. * A caminhada como processo artístico que ativa o corpo e nos aproxima dos espaços percorridos aparece desde o tratado filosófico escrito por Thoreau6 na metade do século XIX, passando pelas vanguardas artísticas do começo do século XX, pelos Situacionistas no final dos anos 50 até as práticas de grupos e artistas contemporâneos que incorporam às suas ações o caminhar, como Richard Long e o núcleo de pesquisa do laboratório Stalker dirigido por Francesco Careri nos territórios de Roma7, entre tantos outros8. O ato de se movimentar dispondo um pé à frente do outro, engendra formulações e práticas poéticas decorrentes da experiência de se estar nos espaços ao ar livre, do lado de fora. Para Fréderic Gros9 quando se anda a pé, só há um desempenho que de fato conta: a intensidade do céu, o viço das paisagens. E nesse vasto espaço, estar do lado de fora é para o autor, ter a exata sensação de viver naquilo que perdura e insiste, o relevo ao redor. Ao ar livre somos lançados em meio a uma paisagem que não abandona os nossos olhos, que sinaliza a distância imensurável que nos separa do céu que nos acompanha, do cume que nunca chega, da planície que se faz sentir. Aqui acrescento o hífen que, como um traço de união, liga o tempo a paisagem, a paisagem ao tempo. 6  Henry David Thoreau (1817-1862) discorre sobre a caminhada em palestras e escritos e tem sua primeira edição sobre o assunto publicada na revista “The Atlantic Monthly. Magazine of Literature, Art, and Politics” em 1862, ano da sua morte. 7  Para um amplo panorama sobre o caminhar como prática estética ver: CARERI, Francesco. Walkscapes o caminhar como prática estética. São Paulo: GG, 2013. 8 Vale ressaltar a importância do caminhar para inúmeros filósofos e poetas e escritores tais como Montaigne , Rousseau, Nietzsche, Rimbaud ou Virgínia Woolf, entre tantos outros.   9 GROS, Frédéric. Caminhar, uma filosofia. São Paulo: é realizações, 2010.   70


Caminhando os pensamentos são compostos de céu, escreve Virgínia Woolf. Ação elementar que nos faz lembrar que não somos sedentários, que somos movimento. Desalojados então buscamos um destino, um horizonte. E nessa extensão que nos circunda, o horizonte é àquilo que delimita e excede à nossa visão. Um horizonte sempre (i)mutável e (in)visível, conhecido e pressentido, simultaneamente, limite e limiar, (im)possível de apreender porque não cessa de recuar a medida em que avançamos em sua direção. Se caminhar é uma revolução, como afirma Labbucci10 é porque segundo ele não existe nada mais subversivo, mais alternativo em relação ao modo de pensar e de agir, hoje dominante, que o caminhar. Caminhar é uma modalidade do pensamento, um pensamento prático. Ainda para o autor, caminhar é hoje uma forma elevada de (r)e(s)xistência. Em pé resistimos, um pé após o outro, fazemos face ao caminho, em busca de uma geograficidade aquela proposta por Eric Dardel11, para quem a geografia está fundada na experiência humana de ser-com12, em uma espécie de inquietude geográfica, uma vontade intrépida de correr o mundo, de franquear os mares, de explorar os continentes. Para o autor, uma relação concreta liga o homem à terra e essa geograficidade (géographicité) é o modo de sua existência e de seu destino13. Caminhando resistimos ao tempo da rotina e da repetição, às leis da cidade que impõem os modos de viver. Traçamos um

10   LABBUCCI. Caminhar, uma revolução. São Paulo: Martins Fontes, 2013. 11   DARDEL, Eric. O homem e a terra. São Paulo : Perspectiva, 2011. 12 A noção de ser-com foi desenvolvida pelo filósofo alemão Martin Heidegger no tratado Ser e Tempo. Após definir o homem como Dasein (Ser-aí), Heidegger afirma que o Dasein partilha deste mundo com os outros. O Dasein como sercom-os-outros. 13  Esse trecho foi publicado no texto escrito em parceria com César Becker, Ludmilla Alves, Iris Helena e Levi Orthof (Grupo Vaga-mundo: poéticas nômades) intitulado Cinco paisagens: habitar o relevo in Dispositivos e Artefactos , narrativas e mediaciones- Actas del I Seminário de Investigación en Arte y Cultura Visual, Ed. Universidade de Montevideo, 2018. 71


percurso que nos acolhe e pertence momentaneamente, que dura o tempo de nossos passos e medidas. Em movimento o espaço nunca parece ser conquistado pois nos convoca a seguir em movimento, experimentando suas distâncias. O espaço é sempre uma dúvida14, cuja questão que não cessa de nos provocar é a do lugar que ocupamos, onde estamos, somos uma coordenada, um ponto (i)móvel? Mesmo em espaços mais familiares, e porque não fraternais estaríamos, de certa forma, perdidos. Talvez seja essa desorientação primordial que nos ponha em movimento. Caminhar pela cidade é interrogar então os seus espaços, habitar percursos para quem sabe subverter os traçados estabelecidos. Nessa geografia dos passos15, questionamos se de fato a cidade nos pertence. Cidades que muitas vezes abandonam seus habitantes, subtraindo calçadas, privilegiando carros, diminuindo passagens que ligam os espaços uns aos outros. Esse sequestro do espaço público16 vivido por muitos habitantes ao redor do mundo inquieta porque nos confina aos caminhos da rotina e da repetição. Quantos são os caminhos que nos são destinados? Lembro-me sempre de como, ainda muito jovem, Rimbaud, o poeta caminhante, se definia: sou um pedestre, nada mais. Como então manter em meio à cidade nossas solas ao vento?17 O que nos põe em movimento? Mais uma vez evoco o poeta caminhante que em suas fugas raivosas18 urrava a sua impossibilidade de

14   Em referência à Perec que escreve : [...] l’espace est un doute : il me faut sans cesse le marquer, le designer ; il n´ést jamais à moi [...] in PEREC, Georges. Espèces d’espaces. Paris: Galillée, 2000, p.179. O espaço é uma dúvida: 15   Em referência a Michel de Certeau. 16  Penso aqui na precariedade da infraestrutura urbana, na violência que impõe fronteiras na cidade e interditam a circulação por ela. Em cidades violentas perder-se, condição presente em qualquer caminhada, pode significar ser morto. 17 Em referência ao poeta Paul Verlaine para quem Rimbaud era o homem das solas de vento.   18 Em referência ao capítulo Fugas raivosas dedicado a Rimbaud no livro Caminhar, uma filosofia de Fréderic Gros. 72


permanecer onde se está, de ficar parado num “aqui” atroz. Se o aqui é impossível, resta o movimento, a distância que nos separa de onde estamos. “Adeus aqui, onde quer que seja.”19 Seria essa faísca inquieta eternamente presente em nós que nos põe a caminho? Se temos o mesmo sangue das estrelas20, esse cosmos que está em nós nos lembra que estamos em movimento. Talvez resida aí esse desejo de espaço, de espaçarse, distanciar-se, ganhar terreno21. “Caminhei, despertando os hálitos vivos e mornos, e as pedrarias olharam e as asas se ergueram sem ruídos.”22 Como então alcançar na cidade as condições equivalentes a uma caminhada no campo, junto à natureza? Caminhar na cidade como possibilidade de viver as grandezas distintas de seus espaços, as espessuras variáveis dos lugares não em busca de uma equivalência tola, mas daquilo que, pela cadência de nossos passos e pela disponibilidade de estarmos ao ar livre e em movimento, experimentamos: a rua se transformar em estrada, os prédios em nuvens... não por uma simples transposição ou desejo de igualar o que não é igual, mas porque quanto mais caminhamos mais distantes estamos de um destino, mais próximos ficamos de nosso tempo e medida, mais intensamente vivemos o vigor das paisagens. Não se caminha para chegar logo. ‘Desabem limites sem amor dos horizontes! Apareçam distâncias verdadeiras!23. Caminhar pela cidade é também estar

19  Arthur Rimbaud apud GROS. Fréderic. Caminhar, uma filosofia. São Paulo: é realizações, 2010, p.54. 20  A poeta Geneviève Clancy escreve que uma consciência nuital seria “capaz de dar corpo ao elo carnal que nos faz parte do universo, e nos dá o mesmo sangue que as estrelas." Méditations sur La nuit in ESPINASSE, Catherine, GWIAZDZINSKI, Luc, HEURGON, Edith (coord.) La nuit en question – Colloque de Cerisy. Éditions de L’aube, 2005, p.161. 21   HOCQUARD, Emmanuel. Taches Blanches in Le Gam, 1997, p.11. 22   Rimbaud, Arthur. Aurora in Iluminações. http://www.ebooksbrasil.org/ eLibris/rimbaud.html 23  MILOSZ apud Bachelard, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.195. 73


sob um céu, desfrutar como escreve Thoreau24, a amizade das estações, ter por assim dizer sol, lua e estrelas próprias e um pequeno mundo para si. Caminhando sabemos que a paisagem não nos pertence, ao mesmo tempo em que a cada extensão percorrida ela se torna a nossa morada. Quanto mais avançamos no espaço, mais o espaço avança em nós. Nessa relação nem sempre dócil, a paisagem vai se constituindo para aquele que caminha. Caminhar na cidade é caminhar com a cidade, deixar-se atravessar por ela. Caminhando experimentamos uma sensação de universo, como escreve Kenneth White25, que começa com um corpo movendo-se no espaço numa relação precisa entre a experiência e as grandezas do mundo vivido. Dar espaço ao espaço, dar tempo para que o espaço apareça e revele outros elos, novas alianças que nos trariam de volta aos lugares, porque deles nos afastamos. Geografias que emergem porque encontramos outro ritmo do/no mundo, uma cadência que nos embala em seu movimento, intensificando a nossa capacidade de acolher os espaços que nos circundam. Diante de uma realidade urbana imperante, confrontar a cidade como espaço do corpo é também ato de desobediência cuja reivindicação seria a de permanecermos em movimento porque somos situados, sabemos onde estamos, topográficos, mas não imóveis. O desejo de errância, como nos lembra Maffesoli26, é um dos polos essenciais de qualquer estrutura social. É o desejo de rebelião contra a funcionalidade, contra a divisão do trabalho, contra uma descomunal especialização a transformar todo mundo numa simples peça da engrenagem na mecânica da indústria que seria a sociedade. “Talvez o nosso destino seja estar eternamente em caminho, sem parar de 24 THOREAU, Henri-David. Walden, a vida nos bosques. São Paulo: Global editora, 1985, p.127/128.   25  WHITE, Kenneth. Le poète cosmographe. Bordeaux: Presses Universitaires de Bordeaux, 1987. 26    MAFFESOLI, Michel. A pulsão da errância in Sobre nomadismos e vagabundagens pós-modernas. RJ/SP: Record, 2001, p .33. 74


lastimar e desejando com nostalgia, sempre ávidos de repouso e sempre errante”.27 O (des)enraizamento parece ser a nossa condição. Desejar sempre outros lugares, estar aqui e se sentir alhures, sedentariamente nômades. Nesse estado de viagem, a cidade é um vasto mundo para praticar o espaço-caseiro à maneira de um viajante, abrir passagens lá onde não esperamos, fixando a nossa atenção para além dos contornos, tantas vezes, experimentados, rompendo sempre as fronteiras do certo, do preciso, do dominado e do seguro. Seria como entrever na evidência, a possibilidade de (re)estruturar o (in)comum. Desejar o estranho no familiar para (des)conhecê-lo... engajar-se como um nômade que ainda guarda o sentido da viagem, o desejo de descobrir sempre novos pontos de vista, novos percursos para obter perspectivas singulares de seu entorno. Caminhando habitamos um singular longínquo, sentimonos em casa algures e, em casa nos sentimos alhures. Esse viajante no cotidiano engaja sua atenção nos itinerários, encontra a intimidade na distância e a distância na intimidade, vive os contornos sem, portanto, se deixar domesticar por eles, sabendo que a extensão que o circunda pode ser fabulosa. Viajante que atravessa o espaço ao seu bel prazer atento ao caminho que se percorre, que se vive com o corpo e medida, com os passos “que se contam ao ritmo de seu fôlego, passos familiares sobre uma terra que se descobre por conta própria [...]”28 Se nas cidades a figura do caminhante aponta outras possibilidades de se estar em sociedade, combinando seu olhar atento à disponibilidade incansável de se estar sempre a caminho, distraidamente a caminho; na natureza, a geografia impõe o seu tempo. Solitariamente contemplamos a paisagem,

27   Id.Ibid. p.35. 28    KESSLER, Mathieu. Le paysage et son ombre. Paris: PUF, 1999, p.24. 75


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solitariamente olhamos o mundo. Isso não significa afirmar que nos sintamos sós na paisagem. “Quem poderia sentir-se só quando tomou posse do mundo ?”29 Muitos de meus trabalhos em vídeo surgem então de uma intensa experimentação na paisagem do local filmado, são fruto de um tempo vivido em extensas geografias e sua realização inclui caminhar, observar e filmar. Na paisagem devemos ser vagarosos...vagamos sem precipitação nos familiarizando com um espaço que nos acompanha...na cidade não é diferente... Essa lentidão trazida pela experiência na paisagem não significa uma incapacidade de assumir passos mais rápidos ou uma cadência mais veloz no olhar, é perceber o próprio tempo, um tempo que não se deixa domesticar pelos hábitos da rotina: rompe-o. Na caminhada fazemos uso da lentidão porque há o desejo de não se deixar perturbar por um tempo que não nos pertence. Talvez porque ser lento em algumas geografias, o que inclui a cidade também, signifique, como nos lembra Pierre Sansot30, aumentar a nossa capacidade de acolher o mundo e de não esquecer o seu caminho. Dessa experimentação na paisagem pela caminhada alguns gestos se repetem quando decidimos31 filmar: observar o espaço e o seu movimento, espreitá-lo numa tentativa sempre vã de dar conta do que ali acontece; escolher onde colocar a câmera que delimitará o espaço a ser percorrido, câmera que se transforma no olho que me vê. Decisão que nunca é aleatória porque significa ocupar uma posição, instalar um ponto de vista, encontrar uma determinada posição secreta para ver, instalar-se no coração do presente32. A partir daí delimito o meu caminho frente à câmera 29   GROS, Frédéric. Op.cit., p.61. 30  SANSOT, Pierre. Du bon usage de la lenteur. Paris : Éditions Payot, 1998, p.12. 31   Todos os meus trabalhos são realizados em parceria com Albert Ambelakiotis. 32   PEGUY, Charles. Nas dobras do mundo. Paisagem e filosofia segundo Pegy in BESSE, Jean-Marc. Ver a terra: seis ensaios sobre paisagem e geografia. São 80


e começo a caminhar sempre longitudinalmente. Atravesso essa distância de um lado para outro, intercalando a minha presença com a do espaço, numa forma de ritornelo que tem em si ritmo e direção, que é repetição e diferença porque sempre inaugura outro meio, revela um lugar. Nesse gesto de ir e vir o território é um ato33. Corpo–medida que sente o terreno que pisa, o ar que respira e o vento que sopra. Corpo-sismógrafo que registra as alterações provocadas pela topografia percorrida. Corpo que acolhe e resiste ao espaço. Corpo que habita uma paisagem em meio da qual insiste em mover-se... há alguém no vento34. De um trabalho a outro, semelhanças e diferenças se completam e o método é sempre o mesmo: ser como aquele viajante que se espanta com o que vê, como se olhasse pela primeira vez, como se estivesse sempre chegando... aqui chegando à pé... Gérard Wajcman35 sugere: a paisagem é o olho que avança, é o traçado do olho na espessura do mundo. Caminhando avançamos lentamente rumo a essa paisagem que se faz sentir em uma sensação estranha de liberdade, pois compreendemos que o que de fato conta é estar a caminho sentindo, como escreve Perec36, a concretude do mundo, sua presença irredutível, imediata e tangível, uma evidência tão próxima de nós, o reencontro de um sentido, a percepção de uma escrita terrestre, de uma geografia da qual esquecemos que somos os autores. Caminho assim, à beira do lago em meio a uma cidade no planalto, como quem atravessa um pequeno litoral.

Paulo: Perspectiva, p.99. 33  DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mille Plateaux. Paris: Les éditions de minuit, 1980, p. 386. 34 GUILLEVIC, Eugène. Terraqué. Paris: Gallimard, 1942, p.71.   35  WAJCMAN, Gérard. Fenêtre, chronique du regard et de l’intime. Lagrasse: Éditions Verdier, 2004. 36 PEREC, Georges. Espèces d’espaces. Paris: Galilée, 2000, p.156.   81


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Referências Bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1998. DARDEL, Eric. O homem e a terra. São Paulo : Perspectiva, 2011. DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mille Plateaux. Paris: Les éditions de minuit, 1980. GROS, Frédéric. Caminhar, uma filosofia. São Paulo: é realizações, 2010. GUILLEVIC, Eugène. Terraqué. Paris: Gallimard, 1942. ESPINASSE, Catherine, GWIAZDZINSKI, Luc, HEURGON, Edith (coord.) La nuit en question – Colloque de Cerisy. Éditions de L’aube, 2005. HOCQUARD, Emmanuel. Taches Blanches in Le Gam, 1997. KESSLER, Mathieu. Le paysage et son ombre. Paris: PUF, 1999. LABBUCCI. Caminhar, uma revolução. São Paulo: Martins Fontes, 2013. MAFFESOLI, Michel. A pulsão da errância in Sobre nomadismos e vagabundagens pós-modernas. RJ/SP: Record, 2001. MARQUES, Martins Ana. O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. PEGUY, Charles. Nas dobras do mundo. Paisagem e filosofia segundo Pegy in BESSE, Jean-Marc. Ver a terra: seis ensaios sobre paisagem e geografia. São Paulo: Perspectiva, 2006. PEREC, Georges. Espèces d’espaces. Paris: Galilée, 2000.

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RIMBAUD, Arthur. Aurora in Iluminações. http://www. ebooksbrasil.org/eLibris/rimbaud.html SANSOT, Pierre. Du bon usage de la lenteur. Paris: Éditions Payot, 1998. THOREAU, Henri-David. Walden, a vida nos bosques. São Paulo: Global editora, 1985. WAJCMAN, Gérard. Fenêtre, chronique du regard et de l’intime. Lagrasse: Éditions Verdier, 2004. WHITE, Kenneth. Le poète cosmographe. Bordeaux: Presses Universitaires de Bordeaux, 1987


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* Leopoldo Wolf, artista plástico de Brasília com produção focada no desenho em série. Bacharelado em Artes Visuais na UnB, pós-graduação em Ilustração Aplicada no IDEP e mestrado em Estudos Comparados na UPF, ambas em Barcelona. Desde 1994, participa em várias exposições. Recentemente, destaca-se 100 anos de Athos Bulcão. itinerante entre Brasília, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. 86


Questiona o objeto de estudo Leopoldo Henrique Wolf* Ultimamente quando vou escrever a respeito da minha produção artística, sinto um e o mesmo impulso, fico dando voltas querendo contar a história da minha vida nas escolas onde estudei. Fui uma criança e logo um adolescente que frequentava escola. Frequentador, frequência, com isso não quero dizer nada especial, nem quero dizer nada além. Não há nenhuma estória que eu queira contar. Já passei da fase de querer criticar a escola. E pude perceber que eu sei que o problema é meu se acho que tudo está mal escrito. Assim mesmo, parece que os livros têm uma inteligência própria independente, que excede a da intenção autoral. Mas tenho um pensamento recorrente que corresponde a esse impulso de lembrar-me que eu ia para escola. É a ideia de que não fui eu quem fez as escolas, eu não inventei escola nenhuma. Entretanto, sinto muita vontade de estudar pelo exercício da concentração e gostaria de poder garantir que vou ser capaz de me manter com a disponibilidade que a leitura exige. Sendo que meu trabalho corresponde com o que estudei, com as decisões definidas durante minha graduação e com a complexidade direcionada pela pós-graduação. Minha decisão de trabalhar o desenho como conceito pela estética gráfica surgiu desde reflexões durante o andamento da graduação, também, pela experiência com exposições, observando a reação do público. Depois, meu desenho evoluiu devido a um sonho incrível no qual tive uma visão cósmica muito realista, impactante e encantadora. A tentativa de adaptar essa experiência onírica ao trabalho sobre papel é muito diferente da representação do sonho, mas o resultado foi o que trouxe 87


questões que conduziram a investida na minha pós-graduação. Isso se deve a que o exercício do traço gráfico é conexo ao desenho da letra. Ressalto quão importante foi fazer a pósgraduação, pois mudou a maneira como encarava meu trabalho e meu cotidiano, pelo contato com a dificuldade do estudo sobre metodologia da investigação. Posteriormente, meu estilo de desenhar sofreu transformações. Pude perceber a influência na complexidade das formas do que estudei focando na produção intelectual sobre a arte envolvida pela emergência da abstração. Pode ser curioso reflexionar como o parâmetro se estende pelos estudos. No período de minha disciplina de conclusão no mestrado, consegui compor as associações que precisava para meu projeto de introdução à investigação, definindo o enfoque em detalhes da obra do artista Paul Klee, que foi um maestro de destaque na escola Bauhaus em seus primórdios. No projeto de estudo da tese agreguei vários tópicos. Entre outros, envolvendo campos diversos como o Écrit Brut com o Jean Dubuffet e seus companheiros surrealistas que gostavam de colecionar imagens e o tema da escrita dos primórdios da civilização suméria. Ambos assuntos foram intrinsecamente pautados pelo pensamento peculiar de Klee. Menciono o cuneiforme apenas para observar uma maior estilização da escrita que ocorre quando os ideogramas são girados noventa graus. Em especial, minha pesquisa concentra-se na formação de um sistema de notação com paralelos em distintos alfabetos, conforme é concebido pelo artista Paul Klee, no que concerne ao desenvolvimento da imagem desde os elementos rudimentares. Confrontando detalhes da sua obra plástica, com passagens de sua Teoria da Forma que, curiosamente, privilegia o processo. O termo processo é uma noção importante para o vocabulário artístico contemporâneo. Pude verificar como está presente na teoria de Paul Klee, na qual o artista rejeita a definição de 88


uma forma finalizada, devido a sua busca por explicitar o que ele chama de formação. Observável em seu objetivo de deixar perceptível o processo de formação da imagem sobre o suporte pictórico. Foi maravilhoso poder conhecer bibliotecas. Entre tantas, preciso destacar a dos centros culturais, em Barcelona, de artistas como Joan Miró e Antoni Tàpies, artistas conexos ao surrealismo e ao informalismo material. Cujas bibliotecas continham livros de referência para a arte moderna, onde pude encontrar um material crucial para o desenvolvimento de minha investigação. Indiretamente, quero lembrar da importância de espaços como esses frente a crise internacional que replica no fechamento das instituições culturais. Também, estudei em uma das bibliotecas considerada entre as mais belas do mundo, o Dipòsit de les Aigües na Universidade Pompeu Fabra que contém a coleção doada pelo professor Alois M. Haas especializada na relação entre religião, ciência e artes, o que revela a particularidade do pensamento de disciplinas do curso que realizei nessa instituição. Em

consequência, fiquei

subliminarmente

inspirado

em trabalhar com geometria, o que parecia não haver me preocupado antes. Daí me dei conta que, sem perceber diretamente, já vinha me preocupando com a geometria. Aliás, elemento básico para o registro das letras. Na conjuntura das humanidades, fiquei curioso pelo conceito de natureza, por exemplo. O que exigiria esforço e desprendimento, que não deixa de ser relevante em consideração ao tópico da morfologia em sua justaposição com a filosofia. Estou comentando apenas para ressaltar a possibilidade de a abstração na pintura assumir abordagens distintas. Tenho a impressão de que é absurdo inventar uma conceituação sobre algo tão misterioso quanto a natureza, absurdo que a ciência moderna quiçá alcança. Queria analisar o vocabulário epistemológico para ficar meditativo para 89


fazer desenho geométrico. Eu tenho variado tanto em meus temas de leitura. Precisei deixar em aberto para saber como escutar minhas vontades a cada dia. Acaba que não fujo muito de um mesmo projeto. Estou estudando para elaborar um ritmo. Quero poder ler e confio que o estudo indique seu próprio caminho. Ainda quero respeitar a elaboração de um ritmo de leitura com intenção de corresponder à dedicação da pesquisa. Meu estudo é marcado pela transcrição de vocabulário. Fico querendo fazer algo mais consistente com as palavras. Por exemplo, anseio conceber distintos trabalhos de artes visuais com as palavras. Para tanto, espero escolher um livro que justifique a transcrição e prefiro que esteja sem copirraite. Entretanto, sigo magnetizado por priorizar o trabalho plástico com a percepção. Enquanto o livro é uma boa conversa. Compreendo que lembrar de estudar enfocando a prática artística é oscilatório. Até porque o método de desenhar apresenta novidades. O desenho carece de autonomia, pois corresponde com a autonomia da expressão verbal. O trabalho se transforma muito. Tanto durante o processo, quando foge ao objetivo, parecendo pensar sozinho; quanto depois de exposto. Aí que não o reconheço. Busco ter um envolvimento com o processo criativo. Parece que não sou eu. Noto sensações incríveis enquanto vou desenhando. Mas, há outros momentos emocionantes diferentes da feitura. Há coisas que não vejo, sou capaz de percebê-lo somente quando ocorrem descobertas surpreendentes num mesmo material que já havia observado durante bastante tempo. É muito intuitivo. Estou desenhando para ter intimidade com o processo de desenhar por meio do hábito. Tenho o objetivo de desenvolver o exercício da escrita para que sua composição da sequência de ideias indique um aprofundamento nos estudos, para combinar a leitura com o pensamento da escrita. Porém almejo 90


que as questões tenham como base a produção artística ou a expressão, ainda continuo arriscando trabalhar com os conceitos infundidos pela prática de desenhar. Posso gostar muito de pleonasmo e gostaria de estudar a ciência da ciência, a teoria da teoria, a historiografia da linguística, pela medida do prazer provocado por tais assuntos. É aquela frustração de sempre. Demonstro entusiasmo para certos assuntos que gostaria de conhecer melhor. Sempre é algo que não sei bem, que ainda não pude estudar profundamente. Contudo na hora de estudar preciso decidir contando que não dá tempo para muita coisa. Ainda mais se faço questão de ler o mais devagar possível, repetindo os parágrafos, fechando os olhos, respirando fundo, alongando. Tenho o habito de fazer exercícios de escrita para ser mais fluente. Escrever é mesmo muito difícil, continuo insistindo. Um dos motivos é enfrentar a problemática de discorrer a propósito da experiência da arte, pois considero que existe um aspecto fundamental que escapa às palavras, tanto pelo processo criativo, quanto pela fruição, e que não se resumiria à descrição. Assim mesmo, gostaria de explicar como a escrita pode auxiliar na construção de um pensamento que esteja condicionado por sua estruturação e pelo registro da memória indicando o desenvolvimento do texto. Sem deixar de indagar que o processo textual difere muito do raciocínio humano em sua diversidade própria, evitando preocupações excessivas entre a fidelidade da linguagem e o ajuste da realidade. Outrossim, o que venho fazendo de exercício de escrita está mais próximo da intenção de dar ouvidos ao fluxo da consciência, observando a voz subconsciente e anotando como se fosse um ditado, em um tempo de escuta sem rebater com questionamentos para não interferir muito, mas sucedendo à anotação. Contudo, não estou promovendo a eliminação do 91


mecanismo de autocensura. Meu empenho maior é ultrapassar as frases mais triviais que ocupam minha mente, de modo a concentrar-me e contatar com ideias mais objetivas. Busco ressaltar a impressão do ritmo que ocorre pelo registro do fluxo das palavras em sua sequência. Estou pensando no aspecto da naturalidade do ritmo, em menção aos ritmos da natureza, na pulsação vital. Sendo assim, avalio uma potencial espontaneidade deste fenômeno que consiste na rítmica da poética. Para mim, o ritmo é o mais importante em consideração aos desenhos, apreciando a pulsação que ocorre pela tensão visual entre os planos cobertos de tinta e o vazio. O ritmo não é, necessariamente, uma questão que ocupa o momento da concepção quando começo um desenho, mas é uma questão que está presente na avaliação depois que retrabalhei versões dos desenhos, quando identifico qual imagem estimo. Todavia, o momento inicial do desenho está envolvido pela atitude serial de um repertório de construção de linguagem, que acaba assumindo um curso de autorreflexão. Considero que a espontaneidade possa ser um tópico relevante para questionar como surgem os desenhos. Sendo que nenhum modo de elaboração narrativa bastaria para entender nem a criatividade, nem como surgem as ideias. Essa questão se deve a que, às vezes, o desenho aparece sem pensar. Será que essa impressão se dá por ser muito rápida? Ou será possível diferenciar quando ocorre um planejamento extenso avançando através de rascunhos e diagramas ou quando, espontaneamente, sai um rabisco curioso? A coisa da expressão enfrenta uma dificuldade muito ruim. Em toda sua fragilidade e expurgação, na equalização entre a liberdade necessária da criatividade artística e a condição da exposição pública, ambas encontra-se em risco de extinção. As pessoas precisam cuidar da possibilidade de recepção, sem desconsiderar que ajudar, não-necessariamente-ajuda. 92


Lembrando que o sentido da linguagem é uma construção social. Por acaso a arte foge a isso? Seus significados também são construídos socialmente. Incluindo a habitual reclamação do público da suposta falta de conteúdo que recai sobre a informação. Eu preferia repudiar o discurso da exigência de didática nos conteúdos por entender que a arte seria um modo artístico de educação. Na real arte é antiarte e educação é mal educação. Seria preciso desviar todo o interesse e atravancar na inaplicabilidade da reforma educacional, ou na arrogância da revolução estudantil, ou na oposição ao trabalho intelectual, resumindo. Que preconceito supor que o conhecimento exista, separado, em um arquivo apartado das pessoas, não funciona. A língua está condicionada pelo fato de ser compartilhada. Lembrando do prefixo comum da comunicação da comunidade. Por isso mesmo, é recheada de problemas. Há problemas de comunicação tanto na luta pelo acesso à informação, quanto no fato de qualquer modelo formativo ser inadmissível. Isso se reflete na aversão pela arte existir e ocupar os meios. A reclamação comum da falta de contato da arte com a realidade parece uma chamada para não desistir de arriscar um contato com a realidade por intermédio da experiência artística. A dedicação ao desenho me ajuda a suportar a minha sensibilidade irritante e a dificuldade de lidar com as emoções. Mesmo assim, não poderia admitir que a imersão na arte de desenhar seja devido a qualquer oposição à comunicação. É bem verdade que fico insatisfeito com a elaboração teórica das noções de nãoverbal e não-visual. Bem como desconfio que o senso comum em respeito ao funcionamento da linguagem seja profundamente equivocado. Não tenho condições de aportar nada em relação a este assunto, genericamente, nem ao problema cultural dos usos, nem dos costumes. Existe uma confusão conceitual na definição das coisas. A 93


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educação serve como exemplo para contrastar com a arte em sua característica transdisciplinar. Enlaçando pelo problema educacional que, além de precisar de suas reformas, seu drama primordial ainda é o financiamento, a arte não se resume a enfeitar a informação para ilustrar, para ficar bonito, para facilitar o entendimento do material educativo. Não é para isso que serve. Logicamente, estou entrando numa discussão que foge muito ao meu propósito. Restringido pela habilidade de repetir tracinhos, não sirvo como exemplo. Fico excluído do próprio conceito hegemônico da arte definido pela política de intervenção nas atualidades. A isso respondo que sou perfeitamente incapaz de explicar quando faço um trabalho explicitamente político. Entendendo a irrelevância de tolerar a produção poética. Talvez eu devesse ter parado, mas considero que fui perspicaz de ter escolhido o desenho como modo de envolvimento com um meio expressivo, sem precisar entrar em grandes discussões. Não bastaria descrever o trabalho, o objeto, ou o processo. O mundo é uma brabeza. Vale a pena contrastar com a conjetura de que tem muito trabalho para resolver. Inclusive cuidar pela possibilidade de abertura da fala e do esforço pela recuperação da habilidade de articulação da linguagem, sem relaxar com os padrões gramaticais de correção. Mas isso não implica numa descontextualização. A coisa é bem mais simples que isso. Sinto necessidade de defender uma coisa tão simples. E talvez seja incapaz. Confio que a arte, propriamente, questiona a linguagem e, por causa disso, questiona a percepção e vivência da realidade. E eu com isso? É claro que isso não basta. Só que sou bitolado em espalhar a tinta preta. A questão da linha... é que é a questão. Que seja tão maravilhosa quanto a mera existência do próprio traço gráfico. Entendo que a definição do desenho é um trabalho com linha sem cor. Tento apenas dar continuidade às diferentes séries 96


as quais venho me dedicando. Tenho como objetivo manter o hábito de desenhar e espero simplificar seu desenvolvimento. Em geral, a proposta de um texto é a de que desperte perguntas, ao invés de concluir respostas. Eu gosto de pensar muito em termos de linguagem. Nesse período da exposição o que mais marcou-me foram os momentos de conversa com o público nas datas designadas para visita com os artistas. Uma dessas conversas inspirou o ressurgimento de uma ideia que me deixou mais empolgado por um bom tempo, foi a de que o código é novo. A ideia ocorreu por pensar que os significados das palavras são determinados no momento de seu uso, quando seus acordos são renovados no impulso. Costumo protestar que seria retrógrado identificar os significados como se fossem determinados num tempo passado e estruturados por problemas históricos. Bem pode ser que mereça críticas pela inocência característica da própria modernidade. Acabei mentalizando a opinião de que a humanidade tenha surgido faz pouco tempo na face da Terra. Em detrimento da imagem, minha compreensão tende a privilegiar a meditação sobre a frase. Identifico a frase com o conceito de imagem como uma unidade evidente. Insisto em visualizar a definição do que é a imagem pelo exemplo dos fonemas como exemplo de imagem sonora. Sendo assim, a definição de evidência permanece fragmentária. O sentido de frase pode ser aplicado a uma palavra isolada com um sentido completo, bem como a um parágrafo inteiro composto por inúmeras frases. Quero deixar claro, com isso de evocar a ideia da frase, que valorizo a reflexão focada no objeto. Sendo esse, no caso, o objeto da criação de imagens, conjecturando um sentido criado pela repetição das imagens. Estou remexendo no texto do catálogo da exposição Rumor faz meses. Desde que foi anunciado sua data limite de entrega, o objetivo não mudou muito, não. Fundamentalmente, decidi 97


falar um pouco sobre a questão do estudo, na relação entre leituras, desenho e escrita. Isso está justificado porque a seleção de desenhos que expus na ocasião é uma espécie de método de estudo. Método pelo qual os desenhos foram traçados nas pausas da leitura entre cada paragrafo, ao mesmo tempo, estava lendo livros ou PDF. Demorou por volta de quatro anos para realizar a concepção do conjunto. Precisei de muito mais tempo do que o previsto para desenvolver os desenhos. Depois, um ano guardando numa pasta. Demorei muitos meses para enganchar e perceber que tinha começado uma série posterior. Sobre a qual ainda precisarei de distanciamento para analisar o extenso material reservado numa caixa. Por enquanto já estou envolvido pelas fabulações mais recentes, com um método muito distinto do anterior, inclusive, desvencilhado do acompanhamento pelo momento de leitura. Tenho a sensação de haver me encontrado pelo amadurecimento das minhas buscas. O problema metodológico é idêntico ao objeto do estudo.


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* Levi Orthof (1987-?) é doutorando em Artes (2017) pelo departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Artes (2016), UnB. Desenvolve seu trabalho principalmente em vídeo, onde levanta questões sobre: imensidade, navegação, distâncias imaginárias e medidas impossíveis. Integra o grupo de artistas-pesquisadores Vaga-Mundo: Poéticas Nômades. Participou de mostras coletivas e individual em espaços como Espaço Piloto na Universidade de Brasília, Alfinete Galeria, Museu Nacional do Conjunto da República e a Grosvenor Gallery (Manchester, Inglaterra). Seus trabalhos foram selecionados em salões de arte como: 20º Salão Anapolino de Arte (2014), Transborda Brasília (2015) e o 1º Prêmio Vera Brant de Arte Contemporânea (2016). Vive em Brasília entre o lago que não existia e a cidade inventada. 100


Caminhada Espacial Levi Aprigliano Orthof*

Além-noite

"O mundo noturno dissolve os limites e as distâncias, aumenta a montanha e preenche a planície. Ela é repouso, paz do entardecer, porém também mistério e devaneio. Sombra e luz. O espaço aéreo se encerra no feérico, no mágico."1

Deserto do Atacama. Valle de la Muerte, aproximadamente 19 horas e 39 minutos. Saímos para ver a Terra rotacionar. Enquanto nos afastávamos dos raios solares, vulcões na distância cambiavam cores na mesma velocidade da asa da mariposa suspensa no ar. Esse é um momento de inquietação na paisagem, é precioso estar desperto, pois, ao redor, miúdas avalanches desmontam o dia e o transmutam em noite. Após os dedos dos pés, na borda emborrachada da sola da bota, vestígios de um oceano pré histórico espalham-se no Valle à perder de vista. Agora um local seco e quente sob o sol, frio sob a lua. A linha do horizonte, agora uma fresta, permite a passagem do azul profundo seguido da escuridão que se derrama, encharcando a paisagem. Nota-se que o azul não é um detalhe no cenário descrito. Não será discutido aprofundadamente neste artigo, entretanto, vale destacá-lo: o azul terrestre como local de passagem para a escuridão. Antes do escuro no espaço sideral, é necessário atravessar a abóbada

1 DARDEL, Eric. O Homem e a Terra: Natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2011. p.24. 101


celeste e azul e, igualmente, para alcançar o escuro abissal do dos mares, o degradê azulado é perpassado. O azul como portal para a escuridão cósmica (ORTHOF, 2016)2. Em entrevista3 no Museu Guggenheim, James Turrel considera o olho como a parte mais exposta do cérebro e, na luz baixa, quando a pupila se alarga, o olho sensível pode tatear a luz. Diante da imensa escuridão no Valle de La Muerte, as pupilas abriram e os olhos foram alagados pela noite e, como todo afogamento, por um instante, escapa o ar. Aqui podemos observar o encontro entre a medida humana e a imensidão cósmica. O astrônomo Johannes Kepler (1571-1630) imprime sua percepção de ser cósmico no poema4 abaixo:

Mensus eram coelos, Nunc terrae metior umbras. Mens coelistis erat, Corporis umbra jacet. Eu costumava medir os céus, mas agora meço as sombras da terra. Embora minha alma fosse dos céus, a sombra do meu corpo aqui jaz.

2  ORTHOF, Levi. COSMOS: NAVEGAR. Dissertação (Mestrado em Artes) Instituto de Artes, Universidade de Brasília. Brasília. 2016. 3  Artist Talk: James Turrell with Michael Govan, no Guggenheim Museum, 12 de julho de 2013, em:https://www.youtube.com/watch?v=ox00pFnKS7g 4  CONNOR, James A. A bruxa de Kepler: A descoberta da ordem cósmica por um astrônomo em meio a guerras religiosas, intrigas políticas e o julgamento por heresia de sua mãe. 1a Edição. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 2005.p.351. 102


Galileu Galilei (1564-1642), crítico e contestador do geocentrismo foi condenado à prisão domiciliar e perpétua por seus textos científicos que colaboraram para o desenvolvimento da teoria do heliocentrismo, modelo estrutural cosmológico que situa o sol como centro do universo em oposição à cosmologia dominante na segunda metade do século XVI, que considerava a Terra como centro do universo. Ainda hoje, nos referimos às movimentações dos corpos celestes como cenas que ocorrem ao redor da Terra. Diz-se “sair para ver o sol nascer”, ao invés de, “sair para ver a Terra girar”. A visão geocêntrica sobre o cosmos, infelizmente, ainda prevalece em nossa relação cotidiana, poética e simbólica com os corpos de ordem cósmica mesmo após a ciência já ter superado o próprio heliocentrismo. Galileu segue na torre.

"Não há necessidade de instrumentos para medir o tempo porque já não se sabe o que ele essencialmente é, basta observar o céu, a lua, o sol e a extensão das sombras, para encontrar seu lugar no cosmos."5

Noções sobre distâncias, medidas e outras aferições são incorporadas e deslocadas do plano concreto para o âmbito subjetivo. Cria-se, dessa forma, a possibilidade de tatear a imensidão a partir de outras mensurações como, por exemplo, as "medidas impossíveis" e as "distâncias imaginárias", conceitos cunhados durante a dissertação do Mestrado em Artes6 na busca de nomear aferições cósmicas, oceânicas e outras imensidões que ultrapassam a linha do horizonte, a lua e os últimos satélites visíveis ao olho nu. 5 ONFRAY, Michel. COSMOS: Uma ontologia materialista. São Paulo: Martins Fontes, 2015. p. 318 6  ORTHOF, Levi. COSMOS : NAVEGAR. Dissertação (Mestrado em Artes) Instituto de Artes, Universidade de Brasília. Brasília. 2016.  103


Caminhada espacial "No reino do imaginário, não é impossível que o moinho faça girar os ventos."7

A caminhada espacial (spacewalk) é uma expressão atribuída a uma ação física realizada fora da nave ou estação espacial. Em 1965, o cosmonauta Alexey Leonov foi o primeiro a realizar essa ação e, assim, houve o início dos registros de cenas capturadas fora da nave ou estação espacial. A partir desse momento, há o inicio da documentação em filme, vídeos e fotografias de uma nova gestualidade humana fora do campo gravitacional. Desde então, há um repertório de imagens, gestos, procedimentos, códigos, dados e histórias que se acumulam e auxiliam no vocabulário e nas pistas para navegar poeticamente junto aos nautas do ponto de vista de um deslocamento terrestre. Como um método-ação para preparar um spacewalk na Terra, o trabalho intitulado Caminhada Espacial surgiu em 2019 durante o projeto Coordenadas Cadentes8 na Universidade de Brasília. O trabalho não é uma mimesis da caminhada espacial realizada por astronautas, mas é a partir de sua partitura visual e sonora que ferramentas e ações são desenvolvidas, sempre imbuídas de um sentimento de emancipação geocêntrica em busca da possibilidade de sair ao entardecer para ver a Terra girar, experimentando, assim, a visão do Geonauta. Durante a exposição Rumor9, a Caminhada Espacial 7 BACHELARD, Gaston. O Ar e os Sonhos - Ensaios sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 232. 8   Coordenadas Cadentes foi uma ação coletiva desenvolvida por 23 artistas pesquisadores (mestrandos e doutorandos) do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade de Brasília que cursaram a disciplina Métodos e Processos em Arte Contemporânea da linha de pesquisa Deslocamentos e Espacialidades, ministrada pela professora doutora Karina e Silva Dias, durante o segundo semestre de 2019. A ação, que teve duração de três dias, foi composta de intervenções artísticas pela cidade de Brasília. 9 Exposição coletiva realizada na Caixa Cultural de Brasília em janeiro de 2020. Reuniu 29 artistas do Distrito Federal. Organizado coletivamente junto à 104


aconteceu da seguinte forma: o artista caminhou pela galeria uniformizado de macacão azul com grandes protetores amarelos circum auriculares que remetiam à indumentária de trabalhadores que operam o taxiamento de aeronaves; sondou a galeria até encontrar o local adequado e começou uma organização sistêmica dos materiais que seriam utilizados, caixinhas quadradas com cada uma contendo protetores amarelos intra auricular e um cabo de aproximadamente 15 metros de comprimento. Houve, então, o convite verbal e gestual à Caminhada Espacial a partir da apresentação dos protocolos de embarque: modo de manuseio dos equipamentos, similar às orientações de segurança realizados em aviões comerciais, e indicação da distância mínima de um metro entre cada participante a fim de evitar colisões durante o percurso. Outro nauta, o russo Evgeny Alexandrovich Gvozdev que circunavegou o globo em um pequeno veleiro, sem bússolas ou mapas, disse em uma entrevista10: “barco grande, grandes problemas, barco pequeno, pequenos problemas”. Para essa ação, quanto maior o número de participantes caminhantes espaciais, maior a dificuldade de comunicação e realização da ação, tornando a caminhada mais complexa. Como a ação da Caminhada Espacial foi realizada durante a abertura da exposição Rumor, acrescentou-se uma série de desafios como o grande número de participantes e o nível de ruído (comum ao primeiro dia de exposições), que ultrapassou a capacidade de abafamento sonoro dos protetores intra auriculares. Os spacewalks são momentos de atenção e escuta profunda, mas devido às circunstâncias supracitadas não foi possível completar a ação de maneira integral. curadora Yana Tamayo.  10  http://franciscopaganini.blogspot.com/2009/01/evgeniy-alexandrovichgvosdev.html (Acesso em 11 de outubro de 2020). 105


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Geonauta "Geonauta: 1. designa àquele que percorre a superfície da Terra; 2. Que está em relação às profundezas e ao cosmos; 3. Desenvolve conhecimentos sobre a navegação na superfície da Terra; 4. Viajante terrestre; 5. Não necessita de mapa ou gps para seu percurso, vale-se de observações e devaneios para entrar em movimento, preguiça ou ambos.."11

Onde estão os navegantes da Terra? Que caminhos tomam os astro\cosmo\taiko-nautas quando dizem viajar ao cosmos? O cosmos é “tudo aquilo que é ou foi ou ainda será."12 Consideremos a nossa experiência terrestre como algo indissociável da noção de ser terrestre. Para auxiliar esse pensamento, pode-se imaginar o planeta como Terra-Ilha, Terra-Barco ou ainda, Terra-Nave. O conceito desenvolvido pela professora doutora Karina e Silva Dias, ao definir seu conceito de paisagem, provoca o ato de desacostumar-se da inércia de um cotidiano desatento para tornar-se caminhante desperto e apto para deslocar-se desmedidamente.

"Paisagem: k.k. Medida do olhar que silencia o ruído. Onde a terra e o céu se tocam. Movimento mínimo, revolução máxima. Quando os olhos tracejam. Parcial porque é parte. O instante em que o muro se transforma em nuvem. Estar aqui e se sentir ali. Repetição do mesmo que já é outro. Ter o horizonte no olhar. Um como-ver-se."13

O cosmos está aqui, no fogo, na noite, no farfalhar das árvores, nos sonhos, na pedra, na semente dentro da maçã. Mia Couto (2003) nos revela essa relação antiga e pagã entre 11 ORTHOF, 2016, p.122. 12 SAGAN, Carl. Cosmos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.   13 DIAS, 2010, p. 113. 107


o ser humano e o cosmos através do seguinte trecho: Olhamos a estrela como olhamos o fogo, sabendo que são uma mesma substância, apenas diferindo na distância em que a si mesmos se consomem14.

Considerações finais "Mortal como sou, sei que nasci para viver apenas um dia; mas, quando sigo a densa multidão de estrelas no seu movimento circular, os meus pés deixam de tocar na Terra ."15

Caminhada Espacial e outros trabalhos19 tratam da possibilidade de reorganizar o cotidiano ao criar ferramentas poéticas para navegar entre as medidas humanas e as (des) medidas cósmicas. Experiências sensíveis do espaço do mundo visível e invisível ao alcance das mãos, da destemida sonda Voyager I20, do interior da Terra às bordas do cosmos sendo Geonauta um termo que designa precisamente a intencionalidade na relação entre o ser humano e o universo. O olhar Geonauta considera o planeta como casa e o cosmos, jardim. O poeta William Blake apresenta essa visão do cosmos em um continuum durante um diálogo sobre o tema das distâncias extraordinárias entre corpos celestes, na época (século XIX), recém descobertos e a superfície da Terra:

"Some persons of a scientific turn were once discoursing pompously and, to him, distastefully, about the incredible distance of the planets, the length of time light takes to travel to the earth, &c., when he burst out, ''Tis false! I was walking down a lane the other day, and 14  COUTO, Mia. Um Rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 15 Cláudio Ptolomeu de Alexandria, c. 100-170 d.C. 108


at the end of it I touched the sky with my stick'16"17

DIAS (2010) traz o seguinte conceito de paisagem "(...) estar aqui e sentir ali. Repetição do mesmo que já é outro. Ter o horizonte no olhar. Um como-ver-se."18 Sensibilizar a percepção para a paisagemcósmica e redescobri-la no cotidiano. Dissociar os termos cosmos, universo e cometas de complexos telescópios como o Hubble, de naves espaciais milionárias e, por fim, resgatar o cosmos da NASA. A proposta dos trabalhos mencionados no presente artigo e dos projetos que irão seguir nessa linha de pensamento se alinham ao viajantes de diversas épocas e qualidades de viagem. Desde os que circumnavegaram o mundo sem pisar para fora de casa, como fez Fra Mauro19 em seu Mapa Mundi de viagens escutadas atentamente, passando pelos que o fizeram sem bússolas até os que criam mapas astronômicos a partir de notícias das sondas Voyager.

16 Certa vez, algumas pessoas com tendências científicas discorriam pomposamente e, para ele, de forma desagradável, sobre a incrível distância dos planetas, o tempo que a luz leva para viajar até a Terra etc., quando ele explodiu: ''Isso é falso! Eu estava andando por uma pista outro dia, e no final dela toquei o céu com minha bengala." 17  GILCHRIST, Alexander. Life of William Blake. Hesperides Press, 2013. p.371. 18  DIAS, Karina. Entre visão e invisão: Paisagem [por uma experiência da paisagem no cotidiano]. Paisagem: (...) Estar aqui e sentir ali. Repetição do mesmo que já é outro. Ter o horizonte no olhar. Um como-ver-se. 19  COWAN, James. O Sonho do Cartógrafo – Meditações de Fra Mauro na corte de Veneza do século XVI. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. 109


Referências Bibliográficas

BACHELARD, Gaston. O Ar e os Sonhos - Ensaios sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 2001. CONNOR, James A. A bruxa de Kepler: A descoberta da ordem cósmica por um astrônomo em meio a guerras religiosas, intrigas políticas e o julgamento por heresia de sua mãe. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. COUTO, Mia. Um Rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. COWAN, James. O Sonho do Cartógrafo – Meditações de Fra Mauro na corte de Veneza do século XVI. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. DARDEL, Eric. O Homem e a Terra: Natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2011. DIAS, Karina. Entre visão e invisão: paisagem (por uma experiência da paisagem no cotidiano). Brasília : Ed. Programa de Pós-graduação em Arte, 2010. GILCHRIST, Alexander. Life of William Blake. Hesperides Press, 2013. ONFRAY, Michel. COSMOS: Uma ontologia materialista. São Paulo: Martins Fontes, 2015. ORTHOF, Levi. COSMOS: NAVEGAR. Dissertação (Mestrado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade de Brasília. Brasília. 2016. SAGAN, Carl. COSMOS. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.


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*(João Pessoa, 1977). Professora-artista-pesquisadora do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília, editora-chefe do periódico Metagraphias. Para qualquer outra curiosidade, dá um Google. 112


da estima de compor um dueto com a outra de si: heterônimos, pseudônimos e (des)alteridades Luisa Günther*

Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isto, tenho em mim todos os sonhos do mundo Álvaro de Campos

Inicio esta escrita com o receio de que, talvez, a escolha das palavras seja mais custosa que o necessário. Isso porque aqui, palavras escritas substituem a possibilidade de uma conversa, na qual o ato de falar poderia dissipar, na atmosfera, impressões misturadas com outras sensações quaisquer: um olhar; um gesto; um respiro; um aconchego; um desassossego. Paciência: fazer o quê?! Hoje, mais que nunca, a presença olhos nos olhos, sem mediação tecnológica, é luxo. Para compensar, confesso: escrevo com sinceridade, do fundo do

🖤 e na melhor

das intenções, para compor o insuspeito. Em meio a isto, uma

única advertência: não serei apenas minha própria ortônima. Serei também solitária. Serei também outra. Serei também dupla. Para deixar isto evidente, peço licença para fazer uso de variações tipográficas1 e alternâncias entre palavras e imagens. 1 As variações tipográficas têm por intuito marcar variações no discurso já que faço uma escolha deliberada de escrever em primeira pessoa, como quem 113


Desde já confirmo que componho em minhas entranhas, tantas de mim quanto necessárias. Afinal, ser apenas uma única identidade constante a um eu abstrato, não me é suficiente. Entretanto, quem seriam estes tantos outros que me ocupam?! Acontece contigo também, leitor?! Somos tantos assim?! Sim. Particularmente, carrego comigo possibilidades de existência que, por vezes, assusto-me (prefiro assim). Sou também nada disso. Sou também quem já esqueci. Sou também herdeira da insistência dos mortos. Dou continuidade a coisas que poderiam já não existir. Escrevo estas palavras, desejando que fossem outras. Impossível não desejar. Impraticável persistência. As implicações sutis de ser testemunha do desmonte moral das consciências não me poupa de mim. Aqui, pandemia é apenas metonímia de uma cadeia de coisas que acumulam ausências. Talvez, por isso, já esteja acostumada. Mentira. Impossível acostumar-se. Insensibilizar-se, talvez. Só sei que agora, já não dói tanto assim. Já sei ser revolta suave. Por aqui, a morte cotidiana retumba no solene “e daí?”. Disparate do afeto. A morte é flerte constante. A morte é capricho da matéria. Em mim, a morte é apenas um fato, responsável pela continuidade de um dueto solitário com minha outra.

confessa. Sei que isto não é costumeiro em uma escrita acadêmica que deve ser rigorosa quanto ao teor e a validade do que torna público. No entanto, não compartilho da aparente condição de oposição mútua entre rigor e humor. As marcas de oralidade desta escrita provocam uma situação contínua de quase ruptura com a ordem do discurso estabelecida como legítima. Neste percurso, tanto as variações tipográficas, quanto a diagramação; a relação entre estruturas verbais e visualidades de outra natureza; os neologismos; os parênteses de pensamento; a circularidade da prosa; as ironias coloquiais inesperadas e as aparentes redundâncias conceituais, cada um destes detalhes confluem para particularidades na narrativa: seja para chamar a sua atenção; causar estranhamento; provocar eufonia; indicar a autoreferencialidade da autoria; explicitar o pensamento no momento mesmo da escrita; ou, simplesmente, suscitar a desconfiança de tudo ser tão somente uma blague. 114


Luisa Günther, #imagemcomosefossenarrativa, 2020. captura de tela de http://duplaplus.com

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Após o desencarne de Ary Coelho (1972-2017), as ações de foto-proposição em dança e performance do coletivo @ duplaPLUS continuaram a ser acolhidas como uma urgência do meu corpo. Aquilo havia sido nosso, mas também era meu. Continuava em mim. Convocava meu íntimo. Desdobrou-se como o mesmo, mesmo sendo outra coisa. Claro que em um primeiro momento, havia certa desconfiança: será necessário renomear? como ser dupla-solo? Depois, o óbvio me acometeu: a dupla existe por causa do outro. O outro são todos, até mesmo eu ou você. Minha dupla, seria o outro fotográfico: seja alguém do outro lado do dispositivo de captura, seja aquele que se faz sentir diante da imagem. Assim, em muitos momentos, é a cumplicidade com as filhas, que faz a imagem vir-a-ser. Justo elas, minhas-outras. Ver-se com os olhos de fora, sendo parte e aparte de existências gestadas em mim, fez resgatar questões para além da maternagem. Se-sou, com quantas estou? Deixo o devaneio me ocupar, como se pudesse ser o melhor de mim. Assim, percebo que cada uma de mim acontece como possibilidade-possível efetivada a cada escolha (ou ausência dela): seja de uma roupa diante do espelho; de leitura em uma tarde nublada; de desenho quando busco uma caneta nanquim ao invés de um pote de aquarela; ou, etc. Cada escolha confirma ou dissipa outras tantas eus de mim em mim mesma, que desconfio sobre a pertinência disto tudo. Faz sentido?! Tomara. Espero que sim. Estas reflexões, para além de indicar especificidades de minha prática artística, advém de um contexto teórico alicerçado pela leitura de um livro muito específico: A Representação do Eu na Vida Cotidiana (1959) de Erving Goffman, livro clássico do Interacionismo Simbólico2. 2   O Interacionismo Simbólico é um enfoque teórico historicamente associado a George Herbert Mead (1863-1931), W.I. Thomas (1863-1947), Robert E. Park (18641944), Herbert Blumer (1900-1987) e Erving Goffman (1922-1982). Sistematizado por Blumer (1986), parte de três premissas: a. o ser humano orienta seus atos em função do que significam para ele; b. o significado é consequência da 116


Este livro apresenta considerações sobre o significado emblemático da existência social e nos provoca com a epígrafe “as máscaras são o nosso verdadeiro eu pois, representam aquilo que gostaríamos de ser”. Li e levei um tombo. Desde então, também por causa das circunstâncias, passei a questionar como compreender meus personagens; minhas máscaras; meus disfarces, como se fosse possível conviver de forma pacata com distintos papéis sociais assumidos simultaneamente e, deste modo, ser um constante outro dentro de si. Claro que, diante tal ocasião, a referência também é Fernando Pessoa (1888-1935) e seus vários: Álvaro de Campos (1890-1935), alter-ego declarado, poeta de distintas fases (decadentista; futurista; e, pessimista) e autor dos poemas mais conhecidos: Lisbon Revisited (1923); Tabacaria (1928); Aniversário (1930); Poema em Linha Reta (1933); Alberto Caeiro (1889-1915), mestre ingênuo de todos, inclusive do próprio Fernando Pessoa, anti-metafísico que recusa a compreensão mística já que pensar é estar doente dos olhos; Ricardo Reis (1887-1936), poeta estóico-monarquista auto-exilado no Brasil que, segundo José Saramago, retornou à Lisboa após a morte interação social; e, c. os significados podem ser manipulados e modificados em processos interpretativos no decorrer do tempo sendo que os significados não emanam da estrutura intrínseca das coisas e nem são consequência de características psicológicas pessoais, mas resultam da interação. Em contrapartida às proposições teóricas que buscam conhecer a realidade social (exterior e anterior aos indivíduos) mediante um conhecimento objetivo e unívoco, de ambiguidades inexistentes, o Interacionismo Simbólico propõe um enfoque subjetivo das relações sociais a partir de analogias com sistemas de comunicação, interação e ajuste simbólico entre indivíduos. Assim, endereça a responsabilidade pelo conhecimento a estes indivíduos em sua habilidade de criarem suas próprias realidades em processos contínuos de ação e interpretação individual e coletiva. O Interacionismo está para além de um Solipsismo (que instaura uma dúvida metodológica sobre tudo que está além do si mesmo e das próprias experiências criando um conhecimento quase cético/niilista). Também não comunga do Behaviorismo (em que a realidade não depende da interpretação de situações espontâneas, mas explica o comportamento a partir de padrões experimentais de estímulo-resposta). Em contrapartida, a estas duas vertentes teóricas, realidade existe enquanto realidades sociais que no contexto da interação possibilitam diferentes interpretações que por sua vez sustentam inúmeras realidades. Assim, se cada realidade é passível de interpretação, a questão não é necessariamente, qual destas realidades é a verdadeira, mas em qual delas significamos e interpretamos nossa própria existência. 117


de Fernando Pessoa; Bernardo Soares, autor e personagem do Livro do Desassossego, semi-heterônimo já que, segundo o próprio Fernando Pessoa não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu, menos o raciocínio e a afetividade; Charles James Search e seu irmão, Alexander Search, que mandavam correspondência para Fernando Pessoa quando este ainda residia em África do Sul. A questão é que, em Fernando Pessoa, cada um destes heterônimos possui não apenas uma personalidade, mas uma estilística própria: seja no nível fônico; no nível morfo-sintático; na semântica. Isto porque, em Fernando Pessoa, cada heterônimo atua como outros de um eu que possui diferentes modulações expressivas de si. Como se fosse permitido simplesmente ser nossos vários: ter opiniões contraditórias simultâneas; ou temperamentos distintos para as mesmas situações; ou percepções excêntricas para acontecimentos corriqueiros. Como se fosse possível ser uma aporia ambulante. Como se não fosse esquisito ser um estrangeiro residente nas entranhas de si. Agora, mesmo que não seja usual, por qual motivo não seria permitido, não é mesmo?!

Luisa Günther, 2006. Xerografia de Nanquim impresso em papel sulfite. Panfleto da série “Pangrafismos”. Tamanhos variados.

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Com isto, talvez seja necessário indicar que os contornos do cotidiano, com suas demandas e exigências, geralmente não permitem que sejamos simultaneamente tantos. Muito pelo contrário. É preciso manter a coerência interna amalgamada a uma estrutura de identidade constante, por mais que sejamos diversos. Continuo supondo que a percepção que temos de nós mesmos como sendo indivíduos independentes, como se cada um fosse um invólucro autônomo de personalidade diferenciada, é falsa. Quer se queira ou não, um indivíduo é sempre membro de grupos, sendo que em cada um destes grupos assumimos diferentes posturas e possibilidades. Portanto se somos conjuntamente responsáveis pelas ações do grupo e considerando que somos membro simultâneo de diferentes grupos, como seria possível exigir uma responsabilidade coletiva pelas ações simultâneas?! Como seria endossar a expectativa de tantos contextos diferentes em uma mesma identidade?! (... mas afinal, que tipo de problematização é esta?! Não é justamente isto que fazemos o tempo todo: somos família; parente; vizinho; desafeto; exafeto; cúmplices; traíras; invejosos; torcedores; e etc. em tantos contextos distintos e mesmo assim, tudo isto sob a chancela de um único e mesmo cadastro de pessoa física, não é?!). Somos quase como se fossemos uma metonímia que contém outras metáforas dentro de si. Com isto, talvez seja justamente este processo contínuo de criação e reinvenção de si que faz com que a identidade (enquanto categoria social de existência historicamente referida) e o artístico (enquanto categoria estética de atribuição de qualidades sensoriais) sejam próximos e aproximados. Ou seja: para além de uma interpretação nãoteleológica de sua intencionalidade, tanto a identidade, quanto o fazer artístico, acumulam versões destes que os compõem e são compostos. Será que Pessoa poderia ser tantos se não fosse poeta? Seria apenas Fernando. Talvez um surtado ou um 119


medicado qualquer. Tantas vezes é possível definir o artístico como uma ação de escolhas simbólicas em termos de formas, conteúdos, sentidos e significados. Estas escolhas acomodam densidades formais/materiais/ conceituais de mediação social de conteúdos/ideias/desejos que reverberam como pessoas sentem, agem e pensam em um sistema de interação social. Com isto, é inevitável considerar que o trabalho do fazer artístico não é apenas uma relação técnica de produção, mas sim, e principalmente, uma forma de inscrição social. Nossas identidades, não seriam a mesma coisa? Sei lá. Só sei que para além de qualquer forma de devaneio que desvie o raciocínio, vale salientar que até mesmo ações que têm por intenção o sem sentido, podem configurar estes mundos: Arte sem sentido (meaningless work) é obviamente a forma artística mais importante e significativa da atualidade. O sentimento estético dado pela arte sem sentido não pode ser descrito com precisão porque varia de acordo com cada indivíduo que produz o trabalho. Arte sem sentido é honesta. Arte sem sentido será apreciada e odiada por intelectuais – apesar que eles deveriam entendê-la. Arte sem sentido não pode ser vendida em uma galeria, nem ganhar prêmios em museus. (...) Por arte sem sentido quero especificar tão somente aquilo que não te dá dinheiro ou permite que realize intenções convencionais (...) Arte sem sentido é potencialmente a mais abstrata, concreta, individual, patética, indeterminada, exatamente determinada, variável e importante arte-ação-experiência que se pode ter atualmente. Este conceito não é uma piada. Tente fazer uma arte sem sentido na privacidade de seu próprio quarto. Na verdade, para ser entendida em sua totalidade, arte sem sentido deve ser feita na solidão, senão vira entretenimento para os outros e a reação ou a falta de reação dos diletantes não pode honestamente ser sentida (...) Se a arte sem sentido é sem sentido no sentido ordinário do termo, depende é claro do indivíduo. Arte sem sentido é a nova forma de determinar quem é careta. Humpf! Trabalhe (DE MARIA, 2012, p. 629-30).3 3 “Meaningless work is obviously the most important and significant art form 120


Por vezes o sem sentido é apenas um dêitico, uma qualidade referencial, uma condição temporária, uma possibilidade entre outras. Ainda mais se aquilo que é sem sentido “varia de acordo com cada indivíduo que produz o trabalho” (op. cit.). Assim, apoio uma compreensão do artístico enquanto mundo de práticas em diferentes circuitos de ação, sendo que “as práticas artísticas são “maneiras de fazer” que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade” (RANCIÈRE, 2009, p.17). Em tantas palavras, o fazer artístico é (APENAS) mais uma das maneiras de fazer por entre as possibilidades do ser. Ou: o fazer artístico é apenas uma instância da criação, sendo a criatividade também exercida em outras, diferentes e diversas atividades cotidianas (CERTEAU, 1990; JOAS, 1999), não apenas nas consideradas artísticas. Sem maiores delongas, ou problematizações, a questão é que, muitas vezes, o fazer artístico não se encerra com a criação de um objeto ou a proposição de uma experiência-ação. O fazer artístico transpõe as fronteiras do sensível e da cognição engendrando circuitos concêntricos e excêntricos de acúmulos. Algo que fica tanto mais evidente em um momento no qual desdobramos existências múltiplas, em circuitos delicados do existir, sejam estes circuitos espaços reais, virtuais ou apenas simulações de coisas fortuitas.

today. The aesthetic feeling given by meaningless work cannot be describe exactly because it varies with each individual doing the work. Meaningless work is honest. Meaningless work will be enjoyed and hated by intellectuals – though they should understand it. Meaningless work cannot be sold in art galleries or win prizes in museums (…) By meaningless work I simply mean work which does not make you money or accomplish a conventional purpose (…) Meaningless work is potentially the most abstract, concrete, individual, foolish, indeterminate, exactly determined, varied, important art-action-experience one can undertake today. This concept is not a joke. Try some meaningless work in the privacy of your own room. In fact, to be fully understood, meaningless work should be done alone or else it becomes entertainment for others and the reaction or lack of reaction of the art lover to the meaningless work cannot honestly be felt (…) Whether the meaningless work, as an art form, is meaningless, in the ordinary sense of that term, is of course up to the individual. Meaningless work is the new way to tell who is square. Grunt. Go to work.” 121


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Luisa Günther, #imagemcomosefossenarrativa, 2020. Captura de tela do stories do Instagram.


Enquanto isso, seguimos. Por entre as possibilidades que nos sustentam e fazem existir. Confesso que uma vez me dei conta de que não fotografava ninguém além de mim. Mesmo que o lugar do outro, já estivesse ocupado por alguém. Foi um espanto, como não?! Que susto! Como os heterônimos poderiam fotografar-se como outros de si, de modo ontologicamente diferente e distinto?! Seria possível esta representação imagética de si para além de uma visualidade encenada? Heterônimos como personagens?! Não sei responder... talvez ainda não haja resposta. Fica para outra escrita. Por hora, esta escrita me permitiu refletir sobre a distinção entre ser e existir; entre estar e permanecer. Nem sempre, a vida pública e a vida íntima coincidem. Talvez, não haja espaço para que isso aconteça. Talvez, apenas sucumbimos a nossas próprias vontades e desejos em função de uma imagem ligada ao prestígio e ao status que outros demandam. Fazer parecer que está tudo bem, quando, de fato, não está. Ter de criar um outro de si para que o mundo não se sinta incomodado com nossas mazelas. Lembro também que o espelho é minha ilusão: imagem que se apresenta no dispositivo como uma antecipação do domínio de si, como se eu mesma pudesse ser minha própria identificação como uma outra. Afinal, é o espelho (ou o Outro) que nos atualiza sobre a experiência de nós mesmos e que nos ajuda a desenhar um esboço de nosso próprio Ego. Estas referências cifradas ficam aqui como possiblidades. Sugestões. Quem sabe uma conversa?! Quem sabe...

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Luisa Günther, #imagemcomosefossenarrativa, 2020. Sequência de imagens sobre como as coisas tornam-se outras de si.

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Referências Bibliográficas

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Tradução: Ephraim Ferreira Alves. Rio de Janeiro: Vozes, 1990. DE MARIA, Walter. (2012/1960). Meaningless work. In: K. Stiles & P. Selz (Eds.), Theories and documents of contemporary art. A sourcebook of artist’s writings. Berkeley: University of California Press. (pp.629-30), 2012. GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Tradução: Maria Célia Santos. São Paulo: Vozes, 1996. JOAS, Hans. (1999). The creativity of social action. Chicago: University of Chicago Press. RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível. Estética e Política. São Paulo: Editora 34, 2009.


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* Luiz Olivieri é artista sonoro-visual, compositor musical, pesquisador e professor. Bacharel em Artes Visuais, Mestre em Poéticas Contemporâneas e doutorando em Deslocamentos e Espacialidades pelo PPG Arte-UnB. Artista-pesquisador integrante do grupo de pesquisa vaga-mundo: poéticas nômades. Trabalha com arte sonora, videoarte e escultura. É também professor de Artes da Sedf, atualmente no Centro de Ensino Médio 03 de Taguatinga. 128


Notas sobre o Espaço Ressonante

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Luiz Olivieri*

Deslocamentos de ondas

Foi imaginando o deslocamento das ondas sonoras no espaço que construí as obras da série Espaço Ressonante (2017). Esses trabalhos se baseiam no princípio do som que envolve todo o espaço e se expande materialmente para criar novas paisagens sonoras e novas possibilidades de percepção do espaço-tempo. Essas obras são microarquiteturas sonoras, pequenos mundos ressonantes criados pelo deslocamento e o bate-rebate de ondas. O propósito dessas obras é que o público possa ter uma experiência imersiva e sensorial do som, “experiência de um “choque” indiferenciado, instantâneo e pontual” (MERLEAUPONTY, 1996: 23). Após a construção desses Espaços Ressonantes, pude perceber as micro-variações da escuta. Cada mínimo movimento corporal influencia na percepção sonora. No interior desses trabalhos, esses mínimos gestos são potencializados: girar o pescoço, deitar ou levantar o tronco, fechar ou abrir os olhos, tocar nas paredes do trabalho, tudo isso altera a percepção sonora e a compreensão espacial. 1 Neste artigo reflito sobre a escuta a partir da obra Espaço Ressonante (2017), de minha autoria. O texto se estrutura com relatos do processo de produção dessa obra e com relatos do público relacionando a ação de escutar com o conceito de estrangeiro. Reflito ainda sobre a possibilidade de se transpor escutas. Esses temas fazem parte da minha pesquisa de doutorado, em andamento, na Universidade de Brasília. 129


Inicialmente, esses trabalhos fizeram parte da exposição individual Espaço Ressonante (2017)2. A exposição foi composta de três estações de escuta, nas quais o público poderia adentrálas corporalmente. Tratava-se, à primeira vista, de se criar experiências sensoriais dentro desses espaços em que o corpo estava imerso. Um espaço-corpo-som3 muito inspirado nas minhas experiências relata- das anteriormente. O alto-falante de cada obra reproduz ondas eletromagnéticas captadas por mim em expedições pela cidade. Ao perguntar para cada visitante o que havia escutado dentro daquelas obras, fui surpreendido pelos mais diversos relatos. Ou seja, o público se submeteu às mesmas frequências sonoras, dentro dos mesmos ambientes acústicos, porém as experiências eram extremamente pessoais4. Percebi que um mesmo espaço sonoro pode provocar sensações antagônicas e a experiência de se acomodar corporalmente em um ambiente acústico pode ser algo extremamente prazeroso para alguns e “o pior lugar do mundo!”5, para outros. Alguns visitantes relataram que esses trabalhos os ensinaram a ouvir. Por exemplo, uma ouvinte me procurou dias depois de visitar à exposição pois passou a escutar ruídos, antes inaudíveis, em sua casa, o que para ela se mostrou uma sensação extremamente incômoda. Ou seja, ouvir nos coloca em uma situação de reconhecimento e desconhecimento do dos espaços, mesmo os mais cotidianos, o que nos obriga a criar 2   A mostra individual de Luiz Olivieri, Espaço Ressonante, ocorreu durante os dias 28 de outubro e 18 de novembro na Alfinete Galeria, em BrasíliaDF. 3 Alguns dançarinos que visitaram a exposição me relataram sobre a percepção da vibração sonora nos espaços internos do corpo. 4 Mesmo a percepção de qualidades fundamentais das ondas sonoras (altura, intensidade, timbre) demonstraram grande divergência. Alguns visitantes ouviram “frequências agudas e irritantes”, enquanto essas frequências rebatidas nos mesmo limites espaciais, soou como “normais “ para outros. Também houve relatos de sons concretos como trens e palmas que não existiam no áudio reproduzido. 5 Segundo relatos do público da exposição. 130


novas linguagens para compreende-los. A segunda exibição desse trabalho foi na Exposição Rumor, realizada no Caixa Cultural em Brasília, em 2019. O formato coletivo de exibição, com diversas linguagens ao longo do espaço expositivo, além da própria acústica da galeria eram um desafio para a obra sonora: tratou-se da primeira vez que o Espaço Ressonante estaria inserido e dividindo o espaço sonoro com outros trabalhos. Nesse sentido, essa exibição foi muito importante para minha pesquisa pois pude confirmar que a maioria das frequências sonoras permaneceram no interior da obra e se amplificaram com a imersão do público no trabalho. As frequências graves que ressoavam em espaços externos à obra, no interior da galeria não chegavam a se sobressair sobre a paisagem sonora da exposição, mas fazer parte de sua composição. Outro ponto importante foi o de escutar, mais uma vez, as invenções da escuta realizadas pelo público. Esses relatos do público, evidenciam os diversos territórios sonoros: uma ouvinte me relatou a experiência de ouvir os sons do interior de um útero, outra contou-me sobre novos lugares que a obra lhe provocou.

O espaço estrangeiro

A obra Espaço Ressonante coloca o público em um espaço de escuta, um espaço estrangeiro. Essa situação se dá por etapas. Existe uma transição que vai de uma escuta despretensiosa para uma ação mais ampla de notações individuais dos espaços, quando os ouvidos redesenham os traçados cotidianos dos lugares e lhes dão outras perspectivas. O ouvinte se posiciona em um novo espaço, se faz estrangeiro. Talvez, só seja possível ouvir enquanto estrangeiro. O 131


estrangeiro que busca decifrar os sons que se desvelam em seu ouvido ainda sem linguagem, que ouve sutilezas e tenta criar seus primeiros significados. O estrangeiro não consegue distinguir os sons “importantes” dos “ruídos”, elenca-los por ordem de apreço. Esse estrangeirismo lembra o artigo de Gilmar Rocha quando analisa a canção Estrangeiro (1989), de Caetano Veloso. Rocha comenta a transformação do exótico em familiar e o familiar como uma narrativa do olhar (ROCHA, 2001). O estrangeiro é atento, por uma questão de sobrevivência. Essa particularidade do ouvinte também é apontada por Murray Schaefer, criador do termo paisagem sonora, quando afirma que “o hábito que adquirimos de identificar tão facilmente tanto as fontes sonoras como os sons diversos que elas emitem, mascara nossa aprendizagem” (SCHAEFFER, 1966: 336). Um outro exemplo desse espaço estrangeiro que se constitui pela escuta é o vídeo da artista Aline Mota, intitulado Varal do meu vizinho (2014). Um vertiginoso trabalho com trilha sonora da própria artista e de Bruno Elisabetsky dá dimensão estranha ao cotidiano. A trilha sonora, composta por sussurros e paisagens sonoras urbanas, mistura-se às imagens, cria uma espécie de não-linguagem. Ouvir os sons cotidianos pode ser algo demasiado estranho, principalmente sons ambientes quando sobrepostos a sussurros e imagens de um varal de roupas sob um ângulo não usual. Em nossa sociedade, só se escuta com um ouvido estrangeiro. Retomo aqui, o exemplo já citado anteriormente, da ouvinte que após imersão na obra Espaço Ressonante (2017) se torna estrangeira de sua própria casa, no seu mais conhecido e domesticado espaço. O estrangeiro entende o espaço como vivo.

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Transpor escutas Como já dito, no interior da obra Espaço Ressonante é reproduzido o áudio de ondas eletromagnéticas capturadas por mim na cidade. Essas ondas silenciosas estão presentes em todos os ambientes, mas só podem ser ouvidas com a amplificação por receptores. O espaço imersivo provocado pela obra é, portanto, uma síntese da amplificação dessas ondas e da vibração delas no espaço. O formato imersivo e móvel da obra, com a possibilidade de transporte do espaço acústico para outros lugares, vem do desejo de transpor escutas. Tenho percebido que é recorrente na minha produção um caminho-método em que algumas etapas se repetem. A trajetória inicia-se com a escuta, quando resido nos sons de determinado espaço. Depois, busco transpor esses espaços multitemporais, ação que muitas vezes se mostra extremamente complexa! Transpor uma escuta não significa transportar frequências sonoras. Quem tem um aplicativo de músicas no celular, como o Spotify, transporta frequências sonoras, mas não a sua escuta. Transpor uma escuta significa provocar novos espaços de escuta, campos vastos para especulações e subversões. O filósofo francês Peter Szendy radicaliza no sentido inventivo se transpor uma escuta ao dedicar um livro para analisar os direitos de propriedade do ouvinte. A pergunta central no livro Listen: A history of our ears (2001), de Szendy, é: a quem pertence o direito da escuta realizada? O autor medita sobre sua maneira de ouvir algumas de suas músicas preferidas, percebendo o que lhe chama a atenção em cada trecho musical (às vezes ele foca em uma respiração do músico, em outras no timbre da voz do tenor). O grau subjetivo da escuta lhe faz pensar que deveria existir uma história da escuta, paralela a historiografia da música. Segundo Szendy, em consonância com 134


Barthes, o ouvinte tem a possibilidade de ser completamente irresponsável, pois não existe um contrato de escuta entre o compositor de uma música e o ouvinte, por exemplo (SZANDY, 2008). Transpor uma escuta, deve ser mesmo impossível. Mas, os extrapolamentos que todos nós realizamos ao escutar são repletos de subjetividade e podem se tornar uma espécie de provocação para iniciarmos a materialização de experiências. Imagino que compositores também busquem transpor suas escutas em determinadas obras, quando realizam versões de outras músicas, por exemplo. Se transpor uma escuta é algo praticamente impossível, as possibilidades de materialidade que podem surgir a partir dessa tentativa são infinitas. A maioria dos meus trabalhos surgem desse desejo. Enfim, podemos pensar que escutar é residir paisagens sonoras e transpor escutas é uma possibilidade de produção de obras ou outras formas de se tentar registrar esse processo. Certamente, a tentativa de se transpor escutas é uma possibilidade metodológica no processo de um trabalho sonoro. Uma vez que, transpor paisagens é o ofício do poeta. Em O que Alécio Vê?, Carlos Durmmond de Andrade (2018) escreve sobre a possibilidade de transpor experiências corporalmente: conversas, sonhos utópicos, a passagem das pessoas pelas ruas. O poema inicia-se assim:

A voz lhe disse (uma secreta voz) - Vai, Alécio, ver. Vê e reflete o visto, e todos captem por seu olhar o sentimento das formas.6

6 DRUMMOND, 2018: p.34. 135


A secreta voz pede a Alécio que vá ver o mundo, e depois, que ele passe a refleti-lo. A ponto de quem o encontrar, consiga trazer para si não só as imagens (sonoras-visuais-existenciais) que ele viu, mas o sentido que elas lhe despertaram. Ou seja, mesmo quando tratamos de ondas quase silenciosas, ou mesmo sons que não escutamos sem o uso de equipamentos eletrônicos, em última instância, o artista sonoro se relaciona com a ideia, de alguma forma, de realizar uma transposição do que ouviu.

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Carlos Drummond de. 1902-1987. Amar se aprende amando: poesia de convívio e de humor / Carlos Drummond de An- drade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018 MERLEAU-PONTY, Maurice. A Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1996. ROCHA, Gilmar. ETNOPOÉTICA DO OLHAR. Sociedade E Cultura, 4, 2007. Dis- ponível em: <https://www.revistas.ufg.br/ fcs/article/view/2229/2184>. Acesso em: 20 ago. 2020. SCHAFER, Murray. The tuning of the world. Toronto: The Canadian Publishers, 1977. SZENDY, Peter. Listen: A history of our ears. New York: Fordham University Press, 2008.


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* Maria Eugênia Matricardi é artista visual, doutoranda da linha de Poéticas Tranversais na Universidade de Brasília com pesquisa em ações, performance e políticas estéticas na América Latina. 138


Jenipapo: ou como transpor fronteiras afetivas Maria Eugênia Matricardi*

Fecho os olhos. Escuto o som de um rio... Um emaranhado de vozes se aproxima. Não entendo o que dizem. Falam uma língua que desconheço. Se me entrego ao silêncio, uma ou outra palavra se torna inteligível. Mas o que fica dessa conversa é a visível incapacidade de escutar com a alma, como se por mais esforço que eu pudesse fazer escutar fosse um impedimento. Davi Kopenawa fala em A queda do céu da branca incapacidade de sonhar e de escutar, constatação de nossa patologia cognitiva espiritual: “São as palavras do tempo dos sonhos que preferimos. Os brancos não sonham tão longe quanto nós.” (KOPENAWA, 2015,p.390). Ficamos assim, com a cabeça “cheia de esquecimento” (idem ibid) no desespero de fixar nosso vulnerável conhecimento em peles de papel, pois nosso pensamento confuso nos impede de escutar. Em alguns momentos me sentei em silêncio, sentindo a chuva; ruidosa, goteja sua fala tranquila. O caminho da canoa flutua, risca n’água, perfurando terceira-margem do rio. A voz do sonho leva para longe o entendimento, para a vaga do não-sabido. Um ser arara vermelha se aproxima, corporificando sua presença, as penas nascem da pele dos braços, das costas, alça voo pairando sobre a floresta. Na resistência do vento, asas percorrem sobre 139


rio suas curvas, se elevando até o alto de uma pedra jorrosa na qual flui a cachoeira. A lealdade da arara lança seu olhar para todos os seres árvores, serpentes, onças e animais, que fogem sufocados da fumaça asfixiante. Queima a floresta. Não é permitido ver apenas a beleza e exuberância de cada ser que habita esse bioma, é preciso sentir também o seu sofrimento, fuga e re-existência do trepidar das chamas criminosas fazendo arder a mata, a cultura e a vida. O jenipapo, ser-lugar, xamã, paisagem densamente povoada, conecta o centro cardíaco com a agência desses seres. O que me é dado ver não traduz um grama de todas essas culturas. Os sentidos ecosóficos, conversas para além do devir humano no trânsito entre mundos, convivem, desvelam e ressoam em todos os maus tratos que sofrem esses espíritos, e, em toda a beleza que nos podem ensinar. Eu havia, em 2014, ralado, trinta e quatro jenipapos verdes, tirado o sumo com um pano e me banhado com essa nódoa sem saber sua sofisticada medicina. Me propus a inventar corpo e sair por aí acolhendo o desconhecido. Abandonar autoimagem por um tempo, determinado pelo próprio jenipapo, pois a tinta não é lavável, a assumir esse corpo dentro e fora de casa. Permaneci azul por quinze dias, vivendo um espectro de relações de encontro que cambiavam de acordo com o desbotamento da cor, como uma paleta de afetos que por algum tempo gestaram outro modo de produção de vida e forma de habitar o mundo. A perturbação de acharem que aquela cor indicava algum tipo de doença rara sendo a distância tomada por aquele estado de cor parecer para muitas pessoas algo desconhecido ou abjeto. Não havia sonhado, não compreendi naquele momento a política das relações e a responsabilidade com os seres espirituais 140


que se manifestam por via do jenipapo. Me deparei com esse fora, com pessoas me perguntando na fila do mercado, nas feiras, na rua e na universidade se naquela cor azul escuro que assumi por alguns dias habitava alguma deformação congênita, uma pesquisa antropológica ou uma superfície de medo e afastamento: qualquer diferença encarnada. Pensei, dado momento, que pudesse ser linchada. Me aventurei a visitar minha avó no entorno, pequena cidade do Goiás a aproximadamente 60km de Brasília. Fui para Santo Antônio do Descoberto de ônibus. Descendo na rodoviária encardida, uma mulher me apontou, riu sarcástica e cutucou os moto taxistas estacionados ali perto para que eles pudessem compartilhar a crueldade. A hostilidade se fazia presente nas entranhas da cidade. Para o medo, que não se dilui e nem se nega, um antídoto: coragem. Para a hostilidade, à qual nem sempre reagir é uma possibilidade: acolhimento. Para todas as manifestações que surgiram no mundo em direção a esse outramento de si, ora agradáveis, ora desagradáveis, uma suspensão e surpreensão do gesto, acolhendo vulneravelmente a diferença de suas formas. Alguns passos à frente nesse percurso-viagem, deslocamento de nossa própria subjetividade, uma quadra de futsal com cerca de vinte homens suados e sem camisa jogando. Os meus passos se detiveram quando eles, olhando o reflexo azul daquele corpo ao sol da tarde, pararam o jogo e começaram a urrar: mulher do Hulk! Mulher do Hulk! Batiam na grade metálica da quadra com a energia de uma torcida de futebol raivosa. Faltavam cerca de quinhentos metros para chegar ao meu destino. Me perguntei se sobreviveria até lá. Os gritos se acalmaram com o olhar, com presença: estou aqui, vejo vocês. Com firmeza, sem raiva, sem ressentimento. Segui caminho. Um corpo perturbador, uma pele com outro poder de afecção, 141


uma imagem viva caminhando, gerando fraturas no tempo. Decantando o perigo, sinto que, se desterritorializada do conjunto, uma imagem de jenipapo: ou como transpor fronteiras afetivas, poderia ser comparada a um black face. Esta aproximação, se feita de forma leviana, não dialoga com a complexidade das relações de encontro que este trabalho evoca. Um corpo azul habita a diferença como um corpo escuro, colorido, mas não se aproxima à cor humana. Vive a diferença e a hostilidade na rua, como quem por alguns dias perdeu alguns privilégios de trânsito da pele reconhecida como branca. Certa vez, almoçando em uma mesa de restaurante universitário, me sentei com um amigo negro. Comendo em silêncio, um grupo de estudantes de ciências sociais saindo da reunião de mobilização política de questões raciais se sentou ao meu redor. Conversavam sobre as pautas da reunião, e, um incômodo silencioso foi quebrado quando um deles, com bastante raiva me olhou e disse: você nunca vai conseguir. Calmamente, perguntei: eu nunca vou conseguir o quê? Respondeu: ser negra. Olha os seus traços caucasianos, seus lábios finos, seu cabelo liso. Você nunca vai conseguir... Eu disse: claro que não, eu estou azul! Nesse momento rimos junto, eu, ele e todo o grupo, a tensão se diluiu e começamos a conversar sobre aquele estado de cor. Falei para ele que em nada minha experiência de cor tinha a ver com os shows de menestréis do século XIX onde corpos negros eram ridicularizados, e que, muitas vezes eu era apontada na rua aos gritos como mutante, não humana, smurf, mística dos x-man, ou infectocontagiosa. O que esta ação duracional redimensiona são as relações de encontro, que, somente por via das imagens fica difícil traduzir. Esse tempo espiralado, com o qual convive a ancestralidade, indiferenciando passado e presente, em sístole e diástole com 142


cada fragmento de futuro que os pulmões engolem ao inalar oxigênio, reconectam a prosa honesta tida com a mulher indígena: “Você viveu os preconceitos que uma pessoa indígena vive quando vai visitar a cidade". Pausa para apreciar outro momento de sua fala, e, por apontamento significativo, seu anonimato é preservado: “Eu não estou disposta a me tornar objeto de pesquisa de gente branca." Por si só fica mais difícil se conhecer. Algo em si se desconhece e passa a se perceber a partir de outres. Como pálpebras que se tocam brevemente, esses fragmentos de segundos podem revelar outro olhar no descolar dos cílios. Ela disse: lembra que te passei a receita da tinta, né? O esquecimento foi uma vertigem. Não lembra? Não, não lembrava. Essa pergunta desvela uma violência profunda que compôs esse processo, onde o esquecimento trouxe à memória episódios de epistemicídio, de línguas que foram caladas, da matriz do tempo e do imaginário sequestrado, do racismo que estrutura a espinha dorsal do colonialismo, e, por consequência, compõe nossa subjetividade, da apropriação de tecnologias alimentares, espirituais, estéticas, da espoliação territorial e tudo mais... Náusea. A nossa memória histórica se constitui, em boa parte, a partir do esquecimento, essa matéria frágil que escapa entre os dedos. A força da retomada dos territórios subjetivos ressurge dessa matéria que esquecemos, precisando de um esforço sobre humano para seguir em seu movimento de transitoriedade, se renovando, se ressignificando, re-existindo. Tropeço na ferida colonial. A ferida aberta como encontro sussurra a pausa necessária para reparar. Rastro de certeza nenhuma, 143


desarrazoada com impacto do fracasso, o tropeço gera desequilíbrio, medo da queda, quase algo prenho de incertezas que suspende o tempo em direção à morte. Esse lembrar-se de quem me ensinou a fazer a tinta ecoa em todos os sentidos. Foi ela quem me ensinou, depois de anos, a olhar para o jenipapo de outra forma. Uma mulher indígena do meu convívio acadêmico e afetivo, que, seja por via do encontro-conversa, seja por via do seu lugar de fala, me explicou sobre a presença viva do jenipapo, e, como essa agência está para além da extração de um pigmento natural. Para aumentar a falta de chão, nem mesmo o lugar de identidade indígena dela era tão visível há anos atrás, pois esse lugar foi construído e depois visibilizado de outra forma, tampouco eu havia elaborado meu letramento racial como o tenho atualmente. As palavras dela me geraram uma implosão psíquica. Reconheci a violência simbólica que havia cometido. Honestamente, não sinto que a culpa seja útil, apesar de nos fazer mergulhar profundamente em todo o emaranhado desagradável que precisamos acolher para nos mobilizarmos depois ao reparo e à responsabilidade, se é que isso seja possível. Os trabalhos de arte são públicos, somos responsáveis pelas imagens que produzimos, pois elas constituem outras narrativas no mundo, por isso sinto ser importante reavaliar os movimentos que eles produzem com o passar dos anos. E, ao mesmo tempo, depois que produzimos essas imagens elas são do mundo e a relação com sua recepção habita o incontrolável. O lugar de fala dela não se constitui como identidade aplicada em um lugar individual, tampouco um lugar fixo, mas como uma multidão de vozes, humanas e não humanas, o som da floresta ressoando como coletividades impactadas por atravessamentos complexos de poderes, dentro da estrutura social que 144


interseccionam classes, raças, gêneros, espiritualidades e etnias... Esses povos seguem falando, e nós, na dificuldade de escuta, em uma surdez ao mesmo tempo dolorida e violenta. Respirando fundo para escutar o rio sem afogar no medo do afogamento. O jenipapo enquanto pigmento, pintura corporal, se configura como tecnologia indígena, abundantemente usado por etnias ameríndias. O uso ancestral dessa tinta ocupa lugares rituais, e seria mais adequado analisar como o jenipapo e as pinturas corporais se estruturam em cada etnia, pois ele pode adquirir uma construção diferente de sentidos. Na perspectiva do trabalho debatido, o mínimo seria indicar que uma mulher indígena havia me ensinado a fazer a tinta, mas isso não foi colocado na pesquisa naquele momento, e, o meu esquecimento gerou apagamento. Algumas coisas podemos desaprender: conhecimento acadêmico não é somente pesquisa escrita, referência de livros. Conhecimento oral, conversas informais e vida vivida são informações preciosas que abarcam a oralitura da memória de povos que não repousam seu conhecimento sobre uma base escrita. A conversa com ela não foi e não é somente um dado, mas motor ativador, informação essencial que gerou e continua transformando a ação jenipapo: ou como transpor fronteiras afetivas. Mesmo a partir de alguns cuidados que poderiam ser utilizados, pergunto-me se, para além de uso dos grafismos: usar o jenipapo e o urucum como pintura corporal e matéria poética não seria uma forma de adentrar em território sagrado desconhecido? O espaço de duvidas segue em aberto. Observando a partir do tempo presente, esse gesto me parece fragmentado. Essas supostas aproximações correm o risco de capitalizar prestígio e 145


até mesmo recursos econômicos que não retornam para esses corpos que são agentes dessas culturas, que não por acaso estão constantemente em risco de vida, lutando para manter seu território físico e subjetivo. Tinta para alguns. Conexão cosmológica, espiritual e identitária para outres. Tinta para alguns. Cura de doenças, mergulho na consciência, arquitetura sagrada de conexão com camadas invisíveis para outres. Coisas importantes nas quais eu não havia pensado, e que, não haveria como pensar sozinha por mais que eu me debruçasse sobre uma infinidade de livros sobre o que não indígenas chamam de grafismos corporais. Não foi utilizado nenhum grafismo no trabalho citado, no entanto: o jenipapo não é apenas um pigmento, ele compõe universos cosmológicos, se constitui como território sagrado, arquitetura de sentidos, medicina e mais uma infinidade de agências sensíveis que nem sempre estarão disponíveis em livros e tratados de antropologia sobre pintura corporal. Grafismo, inclusive, soa como um conceito raso e superficial diante de toda complexidade que os kenes para povos Huni Kuin ou hori para os povos Tukano mobilizam em suas geometrias sagradas. Podem haver coisas que sequer foram catalogadas, e que, por segurança, não são compartilháveis com povos napë. Os napë, categoria yanomami que ora designa estrangeiro inimigo, ora designa branco, são comparados aos porcosqueixada que fuçam a terra da floresta destruindo-a e transformando tudo em lama. O canibalismo é assim associado à relação predatória do garimpo, fome do ouro canibal, que retira do fundo da terra os metais que constituem a ossatura do céu para que ele seja sustentado, à disseminação de epidemias, à morte da floresta, bem como a morte da culturalidade que constitui a floresta por parte de seus habitantes não humanos. 146


Esta categoria etnopolítica é instável, e, ao mesmo tempo uma estratégia para contrastar as relações entre hospitalidade/ hostilidade. Eu havia, anteriormente, pesquisado sobre pintura corporal, na tentativa de me distanciar do uso do jenipapo da mesma forma que os povos originários o utilizam. Em nenhum livro pesquisado constava uma pintura de corpo inteiro. Fui me deparar com essa imagem anos depois por via das mídias sociais. Com o aumento do fluxo comunicacional e a circulação de imagens, a elaboração de narrativas próprias, a produção de arte indígena contemporânea em circuitos institucionais, informações culturais de povos originários sem mediação da antropologia, o aumento de indígenas na academia, todos esses fatores contribuem para uma reelaboração do imaginário social, para repensarmos a nossa subjetividade, a produção epistêmica e a produção de arte. Ao passo que toda cultura pode ser questionada, algumas catalisações discursivas mediadas por não indígenas dificultam o trânsito entre mundos, pois em alguma medida esse olhar externo parte de uma interpretação sensível repleta de limitações, certas traduções, que, por assim serem, são elaborações de narrativas ficcionais acerca de uma produção de realidade interpretada, que se voltam à representação. Não sinto que isso seja necessariamente um problema, as traduções são mais que necessárias, poderiam ser um lugar de outramento do olhar, no entanto, torna-la fonte única de pesquisa pode vir a ser limitado.

Por esse limiar, como se apropriar de algo desconhecido? De uma imagem nunca vista? Outro apontamento que não torna a equação tão simples me parece ser que algumas matérias são agenciadas como potências espirituais e sagradas dentro 147


do contexto de território às quais elas pertencem. Território simbólico, cultural, físico, subjetivo, afetivo e cosmológico. Fora desses contextos elas tomam outras agências e outros significados. O jenipapo desterritorializado do universo ritual de povos originários talvez não tenha a mesma agência quando usado por uma pessoa não indígena. Ao mesmo tempo em que o jenipapo vive e age de tantas outras formas quando dentro de seu contexto se conecta com forças inexplicáveis. Podemos dizer que certa agência dessas matérias requer licenças espirituais e pessoas orientadas para manusear cuidadosamente esse campo invisível. Nem todo mundo é xamã. No entanto cuidado... Pois se em algum momento essas forças resolverem agir mesmo fora do contexto elas poderão fazê-lo... Nada resolvido. Acolho a insignificância de perceber o óbvio: há territórios sensíveis que precisam ser pensados junto. Como pensar um trabalho de arte como este sozinha? Cabe até mesmo perguntar: se houvesse escuta anterior ele chegaria a existir? Caberia negar que ele existe depois de sua circulação? Me parece haver várias camadas de sedimentação de produção de sentidos, que envolvem uma rede emaranhada de coisas, revendo inclusive lugares de violência que foram instaurados e que se misturam depois com tentativas de reparo, escuta e cuidado. Seria mais correto tirar o trabalho de circulação, como perspectiva de reparo por ter adentrado em território sagrado sem saber, ou trazer à tona toda essa rede de contradições? O jenipapo segue sendo sagrado fora do contexto ritual de povos originários ou se transforma em pigmento? Para que a potência mágica do jenipapo seja acionada ele precisa ser rezado, carregado de intencionalidade em um campo de forças invisíveis para depois ser ritualizado. Outra questão: há pinturas feitas fora da aldeia e indígenas as 148


fazem em pessoas não indígenas a partir de modificações nos grafismos. Em corpos não indígenas fora das aldeias, as pinturas não apresentam a mesma carga ritual, mas um compartilhamento cultural, um lugar estético e até troca econômica. Essa carga ritual, mágica e semântica me parece ser um lugar de diferença fundamental em relação ao seu uso fora das aldeias. Quais poderiam ser as discussões e questionamentos por parte de indígenas e não indígenas sobre essa fricção entre uma tentativa de aproximação e os incômodos desses dispositivos em meios institucionais de arte? Lançar as dúvidas para o circuito das contradições para ativar aberturas e porosidades que possam se acoplar na implosão, ou, seria melhor entender como alargamento de outras fronteiras afetivas? Uma delas: os limites da branquitude que permeiam esse trabalho. Outra: o deslimite sensível, relacional e ecosófico que o mesmo proporciona. Ao mesmo tempo em que abandonar o trabalho poderia parecer respeitoso, ou até mesmo egóico (como ela mesma havia me dito), porque me liberaria de sustentar diálogos desconfortáveis, mantê-lo em circulação poderia abri-lo e me abrir também para certa vulnerabilidade. Ela disse: “não mate seu trabalho, talvez ele esteja nascendo agora”. Eu recebo as palavras que mobilizam tudo o que não sei, entendendo também que o fato de uma mulher indígena ter me dito isso não me isenta de nenhuma contradição, responsabilização e receio do desconhecido. Ao mesmo tempo vale ressaltar que ela, como artista, disse também: “eu não colocaria nenhum trabalho meu ao lado desse trabalho”. A partir de um olhar autocrítico, apontamentos de estruturas de poder e privilégio me levam a um dado perturbador: em momento algum a circulação desse trabalho em instituições causou algum tipo de questionamento sobre a possibilidade 149


de apropriação cultural. Reconheço minhas limitações, acolho as dúvidas e questiono essa ideia frágil de legitimidade que parece me haver sido concedida. O fato de não haver grafismos estampados na pele das imagens parecia distanciar a relação de uso do jenipapo como pigmento de um lugar ritual. As perguntas passavam por outros lugares, tais como violência doméstica, pois as marcas que transitavam entre azul e roxo pareciam hematomas; a inadaptação desse corpo pintado como lugar de circulação de diferença por não se assemelhar a uma cor de pele comum, mas ao mesmo tempo, não ser um pigmento que sai de acordo com a escolha, mas sim uma determinação de um tempo próprio. O que me leva a pensar que se eu não fosse dialogar com uma mulher indígena, em que momento tudo isso seria trazido à tona para discussão? Há certa blindagem em habitar espaços privilegiados, que precisamos questionar, sob o risco ainda mais perigoso de permanecermos na cegueira ignorante. O que fazer com o privilégio da visibilidade? Digo mais: esse chamado à reorganização do olhar sobre esse trabalho não seria uma das camadas de agência do próprio jenipapo?


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* Silvino Mendonça é artista-pesquisador e designer gráfico. Sua obra aborda as diferentes tipologias visuais do espaço público e seus atravessamentos sociais, políticos e culturais por meio de fotografias, vídeos e instalações. É mestrando em Artes Visuais pela Universidade de Brasília. Realizou exposições individuais em Brasília e participou de coletivas em São Paulo, Los Angeles, Berlim e Tóquio, entre outras cidades. Em 2012, fundou a editora independente Savant, que produz e distribui publicações impressas de baixa tiragem, como zines e fotolivros. Atualmente, reside e trabalha em Brasília. 152


Projeções de uma Brasília Cinematográfica Silvino Mendonça*

[ Dirijo até o local. Compro um ingresso para a sessão. ]

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Brasília, outubro de 2020. Devido à pandemia provocada pelo coronavírus, as salas de cinema estão inoperantes desde março. É perigoso se aglomerar em espaços fechados sem ventilação natural, afirma a Organização Mundial de Saúde (OMS). Embora um decreto publicado no mês passado no Diário Oficial do Distrito Federal tenha autorizado a reabertura das salas, o parque exibidor brasiliense segue em processo de adaptação aos novos protocolos sanitários, que aumentam os custos de operação e diminuem a capacidade de espectadores/ as por sessão. De todo modo, a expectativa de público é baixa. Quase não há lançamentos previstos para este ano. Todas as grandes promessas de bilheteria foram adiadas para o ano que vem. Desde o começo da quarentena, passo a maior parte do tempo em casa. É onde trabalho, almoço e durmo. Nas noites em que os meus olhos ainda dão conta de olhar para telas luminosas, assisto a algum filme na televisão, no computador ou no celular. Em seguida, faço breves anotações sobre a experiência em uma planilha virtual. Quem dirigiu, de que ano é, onde vi, uma nota de zero a cinco. Tenho esse hábito há anos. No meu quarto, um par de cadeiras de madeira dos anos 1950 me faz pensar em tempos que não vivi. Elas pertenciam a um cinema mineiro, reformado na virada do século. Especulo sobre quantas pessoas sentaram ali antes de mim e a quais filmes elas assistiram. Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), talvez. Titanic (1997), muito provavelmente. Comprei as cadeiras em uma feira de antiquários. Na ocasião, o vendedor me disse de qual cidade elas eram originalmente, mas já não me lembro mais. Quando saio de carro para resolver alguma coisa na rua, leio as notícias do dia em meio a propagandas publicitárias no maior painel de LED da América Latina, disposto na fachada do Conic. Seu formato retangular, de horizonte amplo, remete à razão 154


de aspecto do CinemaScope, técnica de filmagem e projeção widescreen inventada pelo presidente da Twentieth Century Fox, em 1953. Às vezes, quando tenho tempo livre, paro o carro no estacionamento em frente à tela e assisto ao seu conteúdo com mais atenção do que de costume. Isso poderia ser um cinema ao ar livre. Já não é? Um sentimento semelhante toma conta de mim quando passo em frente às empenas cegas dos prédios residenciais do Plano Piloto. Pintura branca uniforme, nenhuma janela... Aqui seria um bom lugar para projetar um filme. Fincadas nos gramados das superquadras, estacas de madeira com faixas amarelas anunciam a venda de “apartamentos cinematográficos”. Imagino imóveis com duzentos metros quadrados ou mais. Janelas enormes, suíte, banheira e porcelanato sobre o piso original de madeira. Espaços tão amplos e vazios quanto as salas de cinema em 2020. Alguns dias depois, as faixas desaparecem ou surgem rasgadas. Elas são proibidas por lei. No começo da W3 Norte, uma loja Americanas ocupa a edificação que um dia pertenceu à videolocadora Blockbuster. Entre os vestígios de tempos passados estão alguns limitadores de estacionamento adesivados com nomes de atores e atrizes célebres dos anos 1990. Jennifer Love Hewitt, Alicia Silverstone, David Duchovny. Uma seleção de astros que já não brilham tanto assim em 2020. No Setor de Clubes Esportivos Sul, o que sobrou do Cine Academia de Tênis, complexo de cinemas fechado abruptamente em 2010 após um incêndio acidental, está coberto por poeira e mofo. Em suas ruínas é possível encontrar cartazes de filmes, trailers em 35mm e documentos de gestão do espaço. Nas antigas salas de exibição, não há mais telas e poltronas vermelhas, só restos de pipoca e alguns ingressos esquecidos no chão.

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[ Aguardo o horário da sessão. Passo os olhos pelos pôsteres dos filmes que chegarão “em breve”. ]

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O último filme que vi no cinema foi Você não estava aqui (2019), do diretor inglês Ken Loach. A sessão aconteceu às 21h do dia 7 de março de 2020, na sala 7 do Espaço Itaú. Sei a data, o horário e o local exatos porque guardei o ingresso na carteira. Desde a adolescência, coleciono ingressos de cinema. Devo ter uns seiscentos ou mais, amassados um contra o outro dentro de uma lata de tinta reaproveitada. Alguns deles indicam sessões promovidas por cinemas que já não existem mais. Onde era o Cine Márcia, no Conjunto Nacional, hoje tem uma loja Zara. Onde era o Severiano Ribeiro, no Brasília Shopping, hoje fica o Coco Bambu. Nos ingressos de sessões realizadas entre 2004 a 2006, geralmente há anotações minhas sobre os filmes feitas com caneta esferográfica. Em alguns papéis, a impressão térmica já se apagou há anos, mas meus escritos permanecem lá. Diante da impossibilidade de ir ao cinema no dia de hoje, revisito sessões do passado a partir da leitura de ingressos que guardei.

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[ Entro na sala. Procuro o assento indicado no ingresso. As luzes se apagam. ]

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O Homem Invisível (2020) Espaço Itaú de Cinema, sala 7. 4 de março de 2020, 21h.

Compareci à sessão do filme com Sílvia – minha irmã –, Igor – meu cunhado – e Artur – meu namorado. O cinema estava relativamente vazio. Sentado na ponta direita da fileira em frente à nossa, um senhor bem vestido portava uma maleta retangular, de aparência executiva. Lá pela metade do filme, ele se levantou e saiu da sala. Não o vi carregando nada. Por que ele não levou a maleta? Será que ele foi rapidamente ao banheiro e esqueceu? Os minutos foram se passando e aquele pensamento me consumiu. O senhor não voltou para a sala. Não consegui mais prestar atenção no filme. Será que esse cinema vai explodir a qualquer momento? Para piorar, um outro homem, que eu não havia visto até então, entrou na sala, olhou para o público por alguns segundos e depois foi embora. Nessa hora, avisei minha irmã sobre a minha angústia. Levantamos juntos e fomos procurar a tal maleta explosiva. Não havia nada lá. Minha irmã me acalmou. Você não deve tê-lo visto carregar a maleta, ela disse. De volta ao meu lugar, aos poucos voltei a atenção ao filme. Não acredite em tudo o que você vê, pensei.

Violência em Família (2006) Cine Academia de Tênis, sala 4. 9 de agosto de 2008, 19h20.

Assisti a dois filmes no cinema neste dia. O primeiro foi Lua de Cristal (1990), da Tizuka Yamasaki, em uma retrospectiva da diretora nipo-brasileira promovida pelo Centro Cultural Banco 161


do Brasil (CCBB). Cópia em 35mm, sábado à tarde, sessão lotada. Na cena em que Xuxa toma banho de leite sob o luar em uma banheira a céu aberto, o público gargalhou. Após a sessão, eu e Marina, uma amiga que me acompanhava, saímos caminhando pelo estacionamento. Topa ver mais um filme? Podemos ir caminhando para o Cine Academia, ela sugeriu. O sol estava forte. Hesitei na resposta, mas topei. Já na saída do CCBB, Marina fez com as mãos o gesto de quem pede carona para um carro que também estava de saída. Era para ser uma brincadeira, mas o carro realmente parou. Rimos de nervoso. Lá dentro estava um casal. Vocês dariam uma carona pra gente até o Cine Academia?, Marina disse. Sim, claro, entrem aí, o motorista respondeu. A distância entre os dois lugares era de aproximadamente três quilômetros e meio. Ficamos em silêncio durante toda o trajeto, que deve ter durado uns cinco minutos, no máximo. Chegando lá, agradecemos pela gentileza e seguimos para a bilheteria. Compramos ingressos para a primeira sessão noturna de Violência em Família, um filme australiano sobre o qual eu não sabia muita coisa. Enquanto o horário da sessão não chegava, conversamos sobre a vida sentados em umas poltronas azuis confortáveis que ficavam no hall do cinema. Sobre o filme, não guardo muitas recordações. Só me lembro que não gostei. Inteligência Artificial (2001) Cinemark Pier 21, sala 2. 07 de setembro de 2001, 16h20.

Lembro bem da minha empolgação, aos catorze anos de idade, quando entrei na sala de cinema com minha mãe para assistir à nova superprodução do Spielberg. À época, Jurassic Park (1993), Tubarão (1975) e ET (1982) eram alguns dos meus 162


filmes favoritos. Eu estava inquieto na cadeira, a expectativa era enorme. Eu havia assistido ao trailer do filme pela primeira vez há alguns meses, no colégio onde eu estudava, durante uma aula livre de informática. Lembro que foi preciso carregar o vídeo por mais de meia hora no Quicktime para poder assisti-lo completo. Não existia YouTube naquela época. Quando finalmente vi o filme no cinema, saí encantado. Escrevi no ingresso: “Muuuuito bom!! Spielberg é o cara!”. Quatro dias depois, passei a tarde em frente à televisão acompanhando notícias sobre os atentados terroristas de onze de setembro. Será que a guerra vai chegar aqui no Brasil? Alguns dias após os atentados, revi o filme no Liberty Mall com minha tia Cida. Lembro que gostei ainda mais dele na revisão, embora tenha me incomodado a inclusão de um intervalo de quinze minutos no meio da projeção para que o público pudesse descansar, ir ao banheiro e fazer compras na bombonière. Serbis (2006) CCBB Brasília. 13 de julho de 2010, 20h30.

Vi Serbis (2006) acompanhado de Sílvia em uma mostra de cinema filipino do CCBB de Brasília. Lembro que, na época, gostei um bocado do filme. Hoje, a única lembrança que tenho dele é uma cena em que uma mulher espreme um furúnculo na pele de seu namorado, amigo ou irmão – não me lembro muito bem qual era o vínculo entre os personagens. Pareceu real, ou tão real quanto em um documentário. Sob uma luz natural intensa, a mulher massageia a infecção cutânea sem pressa, até que todo o pus é expelido. Eu nunca havia visto uma cena como aquela no cinema. Até hoje, nunca vi novamente.

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Elefante (2003) Cine Academia Aeroporto, sala 4. 05 de agosto de 2004, 16h. Comemorei meu aniversário de dezessete anos no cinema com Gus Van Sant. Eu havia assistido ao filme anteriormente por meio de uma cópia pirata em DVD. Quando ele estreou nos cinemas brasileiros, um ano após ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, eu já o tinha como um dos meus favoritos. Por esse motivo, fiz questão de revê-lo com melhor qualidade. Escolhi uma sessão no Cine Academia Aeroporto, onde eu nunca tinha ido antes. Estava bem vazia, devia ter umas dez pessoas no máximo, incluindo eu e alguns poucos amigos. A sala era confortável e maior do que eu imaginava, embora a acústica não fosse das melhores. Na saída, tirei algumas fotos no pátio do aeroporto para postar mais tarde em meu fotolog. Alguns anos depois, o Cine Academia Aeroporto encerrou de vez suas atividades. Nunca entendi se foi por falta de público ou alvará de funcionamento.

Colateral (2004) Cinemark Pier 21, sala 13. 28 de agosto de 2004, 21h15.

Antes de assistir ao filme, li na SET, uma extinta revista mensal sobre cinema, que o diretor, Michael Mann, havia optado por utilizar uma técnica ainda pouco popular em Hollywood: a gravação digital. A projeção à qual tive acesso, porém, foi em película de 35mm; não havia projetores digitais no circuito comercial de cinema de Brasília naquela época. Hoje, todo o circuito é digital. Do filme, me lembro especialmente de uma 164


cena em que os personagens de Tom Cruise e Jamie Foxx, do interior de um táxi em movimento, se deparam com um coiote atravessando a pista no meio da madrugada. Após a sessão, escrevi no ingresso: “Perfeito! Cinema digital é foda!”.

O Amante da Rainha (2012) Espaço Itaú de Cinema, sala 3. 15 de fevereiro de 2013, 17h20.

Após a sessão do filme, segui caminhando para a praça de alimentação. Fazia horas desde que eu havia me alimentado pela última vez e minha barriga roncava alto. Entrei na fila de uma lanchonete e esperei ser atendido. Alguns minutos depois, me dei conta de que a minha carteira não estava comigo. Corri de volta ao cinema. Perguntei na bilheteria se alguém havia encontrado, mas não souberam me informar. Autorizado por um funcionário, entrei novamente na sala e explorei o piso sob as poltronas com a lanterna do celular. Não tinha nada lá, a sala já estava limpa. Enquanto descia os degraus em direção à saída, recebi uma mensagem no instagram de um contato desconhecido, uma mulher com foto preto e branca no avatar. Oi, Silvino, encontrei sua carteira no cinema. Respondi imediatamente e combinamos de nos encontrar no estacionamento. Ela estava acompanhada de uma outra mulher, que aparentava ser sua irmã. Peguei a carteira e agradeci. Você gostou do filme?, ela me perguntou. Respondi que eu não saberia dizer, que ainda estava processando o que vi. Então ela disse: Pois eu gostei muito. Raramente venho ao cinema, prefiro ver filme em casa. Ainda bem que dessa vez eu dei sorte. Nos despedimos e nunca mais nos vimos. Alguns anos depois, perdi novamente a mesma carteira e nunca a encontrei.


[ Os créditos sobem e as luzes se acendem. Saio da sala a passos lentos. ]



*1 Yana Tamayo [Brasília, 1978] é artista, educadora e curadora independente. É sócia-fundadora da Nave, espaço autônomo de arte onde desenvolveu projetos de pesquisa e formação em arte, curadoria e execução de exposições [2015-2019]. Doutora em Arte na linha de pesquisa Poéticas Contemporâneas pela Universidade de Brasília - UnB [2015], é mestre pela mesma instituição e linha de pesquisa [2009] e especialista pela Universidad Complutense de Madrid [2006] com o Máster de Teoría y Práctica en Artes Plásticas Contemporáneas. Graduou-se em Artes Plásticas pela Escola de Belas Artes da UFMG [2003]. Desde 2000 trabalha em diferentes frentes no campo da arte: foi assistente da artista Rivane Neuenschwander [20012002], produtora e assistente curatorial de Adriano Pedrosa e Rodrigo Moura no Museu de Arte da Pampulha [2002-2004], desenvolveu suas pesquisas de mestrado e doutorado como artista-pesquisadora e, desde 2010, sua prática como artista se associa de maneira cada vez mais intrínseca às práticas educativas e curatoriais. Expõe como artista regularmente desde 2003. Coordenou na Nave um grupo de estudos por ano fazendo acompanhamento crítico de projetos artísticos, o Laboratório de Processo Criativo [2015-2019]. Coordenou, sob gestão do Ja.Ca – Centro de Arte e Tecnologia, o Programa CCBB Educativo – Arte e Educação no CCBB Brasília [2018-2020]. Coordenou as ações educativas do projeto BsB Plano das Artes sob curadoria e direção de Cinara Barbosa [2018-2019]. Realizou a curadoria da exposição coletiva Rumor, na Caixa Cultural Brasília [2020]. Integrou do júri de seleção e faz parte da equipe curatorial de SACO 09 Festival de Arte Contemporáneo, Antofagasta, Chile [2020]. Vive e trabalha em Brasília.


Curadoria: escuta, cuidado, mediação e criação Yana Tamayo* Este texto foi redigido durante o sétimo mês da quarentena imposta pela pandemia do novo coronavírus no mundo. Certamente, uma estranha observação a se fazer para iniciar a escrita sobre uma exposição e toda a complexidade que envolve processos e trocas proporcionadas por ela. Desafortunadamente, seu encerramento no início de março deste ano ocorreu pouco antes do fechamento dos espaços culturais em virtude da emergência sanitária que ocasionou a quarentena. Uma espécie de duplo encerramento que, de alguma maneira, anunciava o grande impacto do isolamento e da proibição das atividades culturais presenciais para o campo da Cultura. A partir de um exercício de rememoração de ações que culminaram na realização da exposição coletiva Rumor, desejamos aqui assinalar processos, diálogos e relações importantes, agenciamentos que consolidam a produção de um campo em artes visuais e seus atravessamentos no presente. Rumor foi uma mostra coletiva de artes visuais idealizada pela artista, professora do Instituto de Artes da UnB e pesquisadora Cecilia Mori e contou com a participação de 29 artistas de Brasília e do Distrito Federal. A exposição, com curadoria desta que escreve, teve lugar na Caixa Cultural Brasília entre os dias 14 de janeiro e 1o de março de 2020 onde foram reunidos os trabalhos de Alina Duchrow, Cecília Bona, Cecilia Mori, Clarice Gonçalves, Débora Mazloum, Débora Passos, Gabi, Gê Orthof, Gisel Carriconde, Gustavo Silvamaral, Íris Helena, João Teófilo, Júlia Godoy, Júlia Milward, Karina Dias, Levi Orthof, LHWOLF, Lua Cavalcante, Luciana Ferreira, Luisa Günther/duplaPLUS, 169


Luiz Olivieri, Maria Eugênia Matricardi, Mauricio Chades, Nina Maia, Raquel Nava, Rômulo Barros, Silvino Mendonça, Tatiana Duarte e Thalita Perfeito. Fruto de diálogos entre o Departamento de Artes da Universidade de Brasília e a gestão local da Caixa Cultural, Rumor tratou-se de uma ação coletiva que buscava ocupar com programação local o espaço, tornando públicas as pesquisas em artes visuais num recorte da produção artística local em sua interface com a Universidade de Brasília e espaços independentes de pesquisa experimental como o deCurators1. Nesse sentido, foi uma mostra que aproximou artistas de diferentes gerações e circuitos sinalizando a importância dos espaços de acolhimento, produção, circulação e formação para o desenvolvimento da prática artística, sua projeção profissional no campo, e o fortalecimento de diálogos entre as diversas redes, circuitos e instituições. Se, por uma lado, esta possibilidade de ocupação mostravase importante para nós, por outro revelava-se como uma encruzilhada ética no momento em que víamos cortes de orçamento para a cultura, a extinção de importantes editais de fomento para a área, fechamentos de espaços e galerias, além de uma virada conservadora expressa numa nova espécie de dirigismo cultural que se delineava em novas convocatórias públicas de baixíssimos orçamentos. Um cenário de devastação e a chance de ocupar, sem patrocínio, a grande galeria e as galerias piccolas da Caixa Cultural Brasília. A decisão por aceitar a cessão do espaço consolidouse coletivamente a partir da compreensão de que ocupá-lo 1 A deCurators é uma galeria não comercial com sede em Brasília, gerida por artistas: Gisel Carriconde e Phill Jones. Desde 2014 o espaço se caracteriza, como eles mesmos definem, um “espaço de microcuradorias — formação de público, experimentação e arte contemporânea”. Tornou-se um generoso espaço de pesquisa e experimentação em diversas linguagens, bem como para que jovens artistas e curadores pudessem realizar livremente experiências de intercâmbio e criação coletiva. Site: https://decurators.org/. 170


afirmava-se como uma decisão política pela valorização da produção artística local, do trabalho de seus agentes para a área e da importância histórica daquele espaço no contexto cultural da cidade. Portanto, seria uma oportunidade de evidenciar a importância dos espaços expositivos para a aproximação dos públicos, para criar possibilidades de encontros e experiências em torno da arte, bem como sinalizar que a produção da arte se constitui também como um campo de observação e produção de experiência, de pesquisa e, assim, de conhecimento sensível e complexo sobre o mundo. Nesse sentido, gostaria de abordar os processos que acredito estarem relacionados a uma certa prática e entendimento da curadoria. Alguns contornos se acentuam ainda mais com a presença da pandemia, do isolamento, da ameaça real da morte e me levam a pensar que algumas noções como cuidado e escuta tornam-se premissas fundamentais quando pensamos no papel mediador da curadoria. Há alguns anos venho realizando profissionalmente o acompanhamento crítico de artistas em Brasília, rota escolhida ao final de um longo processo de formação acadêmica e a partir da constatação da existência de uma expressiva demanda por alternativas de formação e interlocução fora do ambiente universitário. Como artista, desde minha graduação compreendi que a relação entre a arte e públicos passava por uma complexa teia de instâncias, instituições, circunstâncias políticas, agentes, pessoas, profissões. O que de certa forma produzia em mim certa inquietação, visto o curto alcance social que as instituições de arte todavia possuíam naquele momento no País2 tornando-a ainda mais distante de sua vocação pública. 2 Me formei Bacharel em Artes Plásticas em 2003 pela Escola de Belas Artes da UFMG. Importante ressaltar que este ano pode ser considerado um marco de virada para as artes e a área da Cultura, de maneira geral, com a chegada do ministro Gilberto Gil ao então Ministério da Cultura. O panorama geral 171


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Abertura da exposição Rumor na Caixa Cultural Brasília.


Visitas mediadas para o público com artistas e curadora.

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Não por acaso, minha prática como artista se desenvolveu em paralelo a outras ações ligadas à arte, especialmente nos campos curatorial e educacional. O que inicialmente em minha formação identificava como uma espécie de “falta de foco” e quase uma desvantagem cognitiva em relação a maioria dos meus pares que se dedicavam com afinco a um único segmento, passado certo tempo, percebi como uma habilidade forjada pelo desejo de compreender e atuar em diferentes esferas de mediação através da arte. Não costumo fazer digressões pessoais na escrita, contudo, quiçá essas lembranças tão recentes que me conectam ao campo da Cultura no contexto brasileiro possam ser úteis como forma de perceber algumas familiaridades entre situações e questões existenciais que muitas vezes rondam o lugar social do artista nas conjunturas socioculturais nas quais nos inserimos. Assinalo, com isto, o trabalho incalculável destas práticas e sua relevância na constituição das redes e circuitos de arte locais e que, todavia, permanecem invisíveis aos públicos. Chamo de ações invisíveis e fundamentais aquelas que, em geral, não possuem protagonismos e autorias visíveis, estão nos bastidores criando as condições para que algo venha à superfície. São elas as que preparam e formam pessoas (educação), as que possibilitam condições físicas de realização pública de ações culturais (museus, espaços culturais, galerias), além das práticas que visam conectar pessoas, públicos e instituições (produção/ curadoria). Dito isto, quando em 2015, junto a outras duas artistas, Dani Estrella e Cecília Bona, fundamos a Nave3, partimos de dos museus, espaços culturais e editais de fomento era bastante limitado até então e passa por uma mudança radical de acesso a orçamentos, criação de programas, políticas e novas instituições dedicadas exclusivamente ao fomento das artes visuais. 3 A Nave arte | projeto | pesquisa funcionou entre 2015 e 2019 em Brasília como um espaço independente de formação, intercâmbio, pesquisa e execução de projetos em curadoria, artes e educação. Fundado por Yana Tamayo, Dani Estrella 174


uma necessidade manifesta inclusive por artistas de nossa geração que não se viam mais conectados à universidade nem encontravam outros espaços de troca e partilha de suas pesquisas poéticas, como podem funcionar também os ateliês coletivos. A abertura da Nave buscava ampliar espaços de escuta e interlocução crítica, criar possibilidades de ação a partir de estudos coletivos além de funcionar como um lugar para o intercâmbio de pesquisas e educação não-formal. Escrevo isto sinalizando não uma insuficiência da Academia, pelo contrário; as universidades públicas seguem desempenhando o papel de oásis que abrigam pesquisa, experimentação, partilha e pensamento crítico a despeito dos constantes ataques, cortes e sucateamento. Indica, talvez, uma limitação característica de cidades em que, distantes do centro econômico do Brasil, não há uma presença efetiva de mercado para circulação de obras nem muitas alternativas profissionais para artistas, educadores, curadores e produtores culturais. Portanto, falar em formação implica abordar um processo contínuo de diálogo com os diversos públicos em distintas esferas, bem como reivindicar uma valorização simbólica da arte que possa garantir políticas de manutenção para estes ecossistemas. Logo, ressaltamos com isto a importância de formação de artistas em diversas linguagens, educadores, produtores, curadores, colecionadores, galeristas, gestores e políticos. Já a mediação, se vista como um processo que torna possível a produção de encontros, diálogos e a criação coletiva e Cecília Bona, abrigou, entre outros projetos e ações formativas, quatro edições do Laboratório de Processo Criativo, um grupo de estudos e acompanhamento crítico de artistas em grupos de até treze pessoas. O Laboratório foi conduzido no primeiro ano por Yana e Cecília e nos anos seguintes, apenas por Yana Tamayo. Ao final de cada ciclo, que poderia durar de 3 a 6 meses, uma exposição com os trabalhos dos participantes era realizada. Nas duas primeiras edições, as exposições ocorreram na deCurators e na terceira, no Elefante Centro Cultural. Apenas a quarta e última edição ocorreu na Nave, em sua segunda sede, na ASCEB. 175


de sentidos, está presente em todas essas esferas. A meu ver, não seria possível enunciar palavras que ecoam para além de si mesmo sem que seus sentidos sejam produzidos em escuta, em diálogo, se a produção de discursos não envolve nenhum tipo de negociação coletiva do dissenso e da diferença. Estarmos abertos à escuta implica muitas vezes acolher a diferença, o conflito, o desconforto, perceber interesses divergentes e, ainda assim, tentar encontrar zonas de contato que mantenham a possibilidade do diálogo e da co-existência. A expansão de uma compreensão da curadoria como forma de agenciamento em meio a processos colaborativos e de escuta se acentuou de maneira bastante expressiva nos últimos dois anos em minha trajetória quando tive a grata oportunidade de coordenar um programa educacional numa instituição cultural de grande porte4. Sem dúvida, a mudança de escala numa experiência como esta traz outras dimensões ao que compreendemos por “fazer junto” e para os sentidos que passam relacionar-se com a ideia de “públicos”. Se construímos sistemas mais horizontais de trabalho, como o fizemos nessa situação em questão, cada pesquisa, intenção, protótipo e gesto público são necessariamente compartilhados e avaliados coletivamente. Experiências ganham sentidos múltiplos sob o olhar de outros e criam caminhos próprios quando ganham corpo na esfera pública. A partir dessa

sobreposição

de

experiências

que

4 Refiro-me ao trabalho de coordenação local do Programa CCBB Educativo realizado entre abril de 2018 e março de 2020, um projeto implementado e gerido pelo JA.CA – Centro de Arte e Tecnologia nos quatro Centros Culturais do Banco do Brasil no mesmo período. O trabalho de coordenação envolvia a gestão da equipe local, relação institucional, gestão executiva do projeto e a realização de uma programação mensal complexa e transversal, uma curadoria educativa como muitos chamam. Nesse sentido, a curadoria se construía mediante um olhar crítico e criativo sobre a programação do centro cultural. A partir de um pensamento transversal, inclusivo e crítico, a programação buscava configurarse como um campo complementar de experiências e formação dentro do centro cultural. Durante esses dois anos foi possível mapear ações diversas no DF ligadas à arte, pesquisas ligadas ao campo da cultura, infância, patrimônio material e imaterial para receber os diversos públicos e faixas etárias. 176


embaralham as práticas curatoriais, educacionais e de gestão, algumas palavras parecem ganhar contornos cada vez mais coletivo – criação, escuta, cuidado e mediação tornaram-se indissociáveis quando penso no agenciamento entre arte e política na curadoria. Se a curadoria implica a disponibilidade da escuta, necessariamente abre espaço para muitos outros pares e espaços, afetos e memórias. Amplia vocabulários, encontra maneira de conviver alfabetos e universos que por vezes não se encontram na produção do cotidiano. A partir dessas explanações, desde o princípio de sua articulação coletiva, passando pela abertura pública da exposição com mais de 600 visitantes aos encontros mediados com artistas e curadora, pode-se afirmar que Rumor consolidou-se como um espaço de colaboração, solidariedade e partilha. Pudemos constatar que uma exposição com 29 artistas da cidade tem o poder de mobilizar muitos afetos e olhares ávidos pela arte contemporânea, ao contrário do que muitas vezes atestam alguns: o recorde de visitantes no dia da abertura e a presença um grande número de pessoas em cada ação pública desenvolvida na galeria durante o período de exposição trouxeram-nos a possibilidade de dialogar em pelo menos cinco ocasiões diferentes, com públicos distintos e perceber o interesse expressivo pelo diálogo franco e aberto com artistas sobre como e por quê desenvolvem suas pesquisas. Além da abertura da exposição, foram realizadas duas conversas mediadas com artistas e curadora, uma ação performática sonora organizada pelo deCurators e executada pelo músico Phil Jones e o Nômade Lab5, além de uma visita com alunos de ensino médio da rede 5 O Nômade Lab é um um coletivo de arte sonoro-visual com foco em improvisação ao vivo mesclando sons e imagens criados através de computadores (utilizando linguagens de programação para live coding como TidalCycles, SuperCollider, Sonic Pi, Pure Data e Hydra, e ferramentas como VCV Rack, LMMS, Sound Vox, Ableton Live, FL Studio, Reaktor e efeitos+Synths da NI e Glitchmachines, VDMX, Magic Music Visuals, Processing, projectM e Hydra), instrumentos elétricos-eletrônicos construídos pelos participantes utilizando 177


Performance Sonora realizada pela Nômade Lab na exposição Rumor.

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Performance Sonora realizada pela Nômade Lab na exposição Rumor.


pública de ensino do DF coordenada pela artista e professora Maria Eugênia Matricardi e outros artistas da exposição. Ao contar com trabalhos de 29 artistas , linguagens diversas e questões conceituais que apontam para uma heterogeneidade de temas e urgências, a exposição nos aponta alguns caminhos de aproximação. Como o título já nos insinua, um Rumor, ruído ou murmúrio, pode nos indicar maneiras de perceber materialmente a possibilidade da convivência espaço-temporal de múltiplos desejos, forças e narrativas. Ao mesmo tempo em que promove a experiência sensível presencial no contato com as obras, uma exposição aponta também para fora das galerias, para o que produz atritos e aderências entre nossa existência e o mundo, a sociedade. A experiência de uma ocupação artística com tamanho apelo na cena local e com expressiva aderência de diversos públicos em todas as propostas de ação nos faz pensar que talvez precisemos escutar e observar mais como nossos circuitos vêm construindo suas relações com seus públicos. O que visitas as mediadas à exposição com duração de mais de 2h e quórum significativo de pessoas presentes têm a nos dizer? O que a receptividade espontânea dos veículos de imprensa locais para divulgar e discutir a realização dessa mostra pode nos dizer sobre programação, curadoria e as práticas correntes nesses grandes espaços culturais? Sabemos da dificuldade de muitos centros culturais em manter um número considerado satisfatório de visitantes, na avaliação de seus patrocinadores, para que sigam com Arduino e outros recursos eletrônicos, bem como instrumentos tradicionais, como guitarra, baixo elétrico, e outros, juntando experimentação vocal também. O grupo é formado por músicos, artistas e pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, de natureza multidisciplinar, diversa e inclusiva. Tendo relações estreitas com os laboratórios MediaLab UnB, Lappis UnB e Calango Hacker Clube, com o grupo BSBLOrk (Orquestra de Laptops de Brasília) e com as galerias de arte deCurators e MixMídia. Os participantes constantes são Joenio Costa (BR), Lorena Ferreira (BR), Thales Grilo (BR), Phillip Jones (UK), Jackson Marinho (BR) e Leandro Muñoz (COL). Fonte: https://nomadelab.gitlab.io/ 180


os mesmos tetos orçamentários no incentivo aos diferentes segmentos culturais. Considerando as diferenças que separam uma ação institucional, que deve seguir inúmeros protocolos legais e etapas que ocorrem em setores independentes, sabemos agora do potencial de capilaridade que uma ação colaborativa na qual todos os seus agentes estão integrados fazendo parte de um mesmo processo possui. Estaríamos também falando de uma relação entre colaboração e condições de visibilidade? O que a curadoria de Rumor vem me conduzindo a pensar é que talvez estejamos falando da urgência em escutar e cuidar de um campo como um organismo vivo, suas diferentes instâncias e agentes. De evidenciar existências e circunstâncias múltiplas criadas em torno da arte num determinado lugar. Assim, naturalmente, protagonismos e autorias se dissolvem na presença e na disponibilidade em colaborar com tudo o que nos exige a produção de uma mostra – desde a escrita de um release, a produção gráfica de um convite, a furar paredes, escrever o texto curatorial dentro da montagem ou a segurar uma escada gigantesca de forma coordenada entre quatro pessoas. Sem nenhuma intenção de produzir qualquer tipo de apologia à precariedade que vivenciamos hoje e tantas outras vezes com o desmonte do setor cultural, interessa-me, sobretudo, abordar a potência que um processo horizontal e colaborativo de criação pode vir a ter diante do espaço público como um acontecimento de diálogo em aberto. As diferentes instâncias de trabalho e a maneira como promovem seus agenciamentos coletivamente tornam-se visíveis, entram no espaço público e podem modificá-lo durante seu tempo de permanência ativa. Isto não é pouca coisa, estejamos atentos. Contudo, sabemos que exposições de arte, espetáculos e mostras de cinema são experiências efêmeras. Possuem uma duração específica no tempo-espaço. Assim, e sem poder imaginar quando estaremos novamente uns na presença dos 181


outros, talvez precisemos imaginar maneiras de criar um espaço permanente de visibilidade na esfera pública e, mais importante, juntos como partes de um campo. Nesse sentido, e como forma de atrapalhar as forças estruturais que produzem silenciamentos e apagamentos da linguagem, este catálogo/livro aspira ser um espaço de produção de memória: que possa se configurar como um registro acessível da exposição e um espaço de ampliação das zonas de contato entre públicos, artistas e as pesquisas que motivaram a produção de tantos encontros provocados por Rumor. Que possamos seguir produzindo ruídos ou outros sons que apontem para a convivialidade das diversas formas de vida e à possibilidade complexa dos encontros.


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Produção executiva: Cecilia Mori e Yana Tamayo Assessoria de Imprensa: Yana Tamayo Projeto gráfico: Silvino Mendonça Revisão texto e diagramação: Júlia Milward Comissão Organizadora da edição: Cecilia Mori, Júlia Milward, Karina Dias, Silvino Mendonça e Yana Tamayo Fotografia e Registros: Débora Passos e Leopoldo Wolf Nesta edição, foi respeitado o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

R937

Rumor [recurso eletrônico] / organização, Cecilia Mori … [et al.] ; curadoria: Yana Tamayo. — Brasília : Universidade de Brasília, Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, 2020. 2 t. : il. Conteúdo: t. 1. Catálogo — t. 2. Escritos. Modo de acesso: World Wide Web: <www.ppgav.unb.br>. ISBN 978-65-86503-27-2 (t. 1 digital) ISBN 978-65-86503-26-5 (t. 2 digital)

1. Arte. 2. Exposição. I. Mori, Cecilia (org.)

CDU 7(817.4)

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