Eucarístico | Matheus de Simone

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Há pessoas-lugares que nascem com vocação para rupturas. Solos e consciências sacras continuamente profanadas e purificadas pelos afazeres daqueles que ali circulam. Narrativas que inicialmente se ensaiam, circunscrevem-se nos didatismos sociais [esses modos de ser e ver] que encarceram a criança-artista. Entre os contos quiméricos que modulam e modelam o humano, o ethos de uma suposta religiosidade – aqui primordialmente cristã – talvez seja o elemento mais castrador, encorpado de um acriticismo potencialmente avassalador, que promete os céus mas nega os hedonismos da terra. Tudo é acúmulo. Há na pessoa-lugar, nessa existência simultânea, uma certa transitividade. Ao encontrar-se inquieto nas metafóricas coordenadas sociais que lhe foram imputadas, se transcreve, desvia-se do mandamento cristão e busca a confortabilidade de um novo poder ser. É ser [temporariamente] crisálida, confrontado e submetido às prisões queratinosas da consciência adestrada no pecado e na culpa que advém do desejo; para posteriormente ser ação. Libert(ação). Amar. Desejar. Foder: Somos verbo, desde aquele momento mítico em que o verbo fez-se carne. Nesta consciência atingida, a pessoa-lugar abraça o seu querer, é o homem que barganha seu prazer com outro homem, que transubstancia o ato digno de punição [Quando um homem se deitar com outro homem, como mulher, ambos fizeram abominação; certamente morrerão, o seu sangue será sobre eles – Levíticos 20:13] em um matar-se a si próprio, facetando os anacronismos que lhe foram ensinados para ser outra vida, ser lugar-pessoa que transita no seu próprio desejo. É um morrer acriticamente para renascer criticamente. Matheus de Simone produz a peculiar condição de um ciúme construtivo, negociando [de forma plástica] aquilo que deseja com aquilo que não se pode abrir mão; é a criação de um lugar estético através de um ato litúrgico: mastiga a matéria amorfa de sua tradição religiosa para esculpi-la como deseja – e não à imagem e semelhança de um Deus punitivo e emasculador. Ao desenhar-se como um novo homem cria paisagens cartográficas de um caminhante sem pressa e sem destino. Ao confessar-se [entredentes] ao seu observador, livra-se da inerente condição humana do “mea culpa”, do diminuir-se e assumir-se fracassado diante do divino, e nos convida em um ato derradeiro e apócrifo: tomai todos e comei. Este é o verdadeiro rito eucarístico, sermos antropófagos de nós mesmos, dilacerar vigorosamente nosso eu-Valentim, digerindo o molde, e encontrarmos novas coordenadas dentro de nossas pessoalidades. Mapear-se [visualmente] apenas para constatar que nos encontramos [felizmente] perdidos. Henrique Grimaldi Figueredo Curador







































EUCARÍSTICO Esperava que aquele domingo não estivesse tão quente, nem tão bonito, pois afinal era domingo e as manhãs deveriam ser aproveitadas. Mas não aquele, não vinha a outro fim que não o que tinha planejado durante a semana. Tomei banho, passei da hora, os olhos no computador pedindo para que eu mudasse de ideia, e então resolvi que às 11:00 eu sairia de casa, sem mais atrasos. Antes de subir as escadas da catedral, decidi comprar qualquer coisa para tomar café. Peguei uma coca, dois pães de requeijão e um Kitkat, que acabei guardando para mais tarde. Só depois percebi que não havia lugares por perto onde eu pudesse me sentar e comer tranquilamente, a tempo de entrar para a procissão. Sentei no ponto de táxi e fiquei olhando as pessoas chegarem aos poucos, com seus carros, para a missa. Fiquei pensando de repente no que meus pais me diziam. “Já tomaram café? Não pode comer uma hora antes da comunhão, então tomem café logo”. Uma hora e quinze minutos, uma hora e cinco minutos. Cinquenta e nove minutos, certamente não. Alguma coisa daria errado, talvez a eucaristia não fizesse efeito, sempre foi melhor não arriscar. Cheguei a comer escondido algumas vezes, e talvez aqueles dois pães, e o refrigerante, e o chocolate partissem da vontade de comungar com meu corpo bem preparado para a cerimônia, sem espaço para qualquer outro corpo que venha a querer me preencher, eu já tratara de fazê-lo. Pingava de suor, pelo calor, mas principalmente pela roupa inteiramente preta que escolhi usar, me veriam de luto

por algo, mas na verdade estava trajado como para um baile, só não me lembrava mais como dançar, que música me esperava, mas sabia que era preciso me arrumar, como sempre fizera aos domingos pela manhã, a contragosto. Agora que estava só, teria todo o tempo do mundo para passar meu perfume, pentear meu cabelo, passar o ferro na calça e ir do melhor jeito ao meu alcance para retomar a festa. Acontece é que se acordo às 6h para me preparar para as 11h, às 8h estou me perfumando no corpo de algum homem, e ele passa o sabão em meu corpo, tira toda a sujeira que me infligiu para besuntar uma camada fina, com as mãos ensaboadas, de uma espécie de veneno cujo cheiro era o meu favorito — o cheiro para festividades. Não era meu aroma que remontava ao mar, não era o doce dos perfumes que minha mãe me dá. É o cheiro do invisível, que combina tão bem com toda a dissimulação que me aguardava. A verdade é que não tenho muito tempo, a preparação é outra. O padre já se punha ao final da procissão, pronto para entrar. Peguei o folheto para acompanhar a missa, procurei um lugar para me sentar, e fiz questão de me colocar no meio de um banco vazio, pois não queria dar a paz de Cristo a ninguém. E nem queria que me passassem a cesta do ofertório, pois eu só tinha meu Kitkat a dar, e não faria isso, precisava dele para mais tarde. Atrás de mim, duas senhoras conversaram sem parar, durante o que foi a minha passagem inteira por aquela missa. Não me contive e virei a cabeça a uma delas e instantaneamente captei seu


olhar, que também captou o meu, mas tinha nele um deboche, uma indiferença, que se eu me impusesse o desafio de fazer o mesmo com os olhares de todos ali, notaria o mesmo tom de superioridade. E isso me atingiu mais do que minha vontade de atingi-la. E a quem aquele padre falava? Não sei bem a que aquelas pessoas estavam, o que procuravam, já que olhava para elas e não pareciam procurar absolutamente nada. Eu tentava descobrir alguma fissura naquele invisível, olhava para cima, para as representações de anjos, todo aquele mármore… Era o cenário perfeito para uma festa, para um ritual. Mas o que se festejava? O que se esperava? Não esperavam por nada. Ou apenas que o corpo ali presente se garantisse em algum lugar futuro, apenas por estar ali, sem qualquer outro compromisso  —  consigo mesmo ou com o outro. Leitura do Livro do Profeta Isaías. Assim diz o Senhor: Reparte o pão com o faminto, acolhe em casa os pobres e peregrinos. Quando encontrares um nu, cobre-o, e não desprezes a tua carne. Então brilhará tua luz como a aurora e tua saúde há de recuperar-se mais depressa… Eis-me aqui. Eis-me aqui, Senhor. Era bom ouvir isso, pois só o Senhor sabe da minha dedicação em não desprezar a carne de um nu, de cobri-lo com toda minha intenção, em repartir meu pão, acolher em minha casa, todos que peregrinarem até lá, não importa o dia, a hora. Sempre soube que era o certo, agora o Senhor me diz e já sinto essa luz da aurora.

A mesma língua que se demorava nos cantos dos homens que chamava até a mim nas madrugadas agora apontaria para as mãos daquele padre. Havia que me preparar para aquilo, e fui empenhado. Lavei a boca no suor dos peitos de um homem que poderia ser meu pai, e, somente então, estaria pronto para receber a graça. Minha tia dizia: a língua é o chicote do rabo, e levei isso tão a sério que não havia prazer maior que castigar todos aqueles homens com o meu silêncio, chicoteava o espaço entre seus ouvidos e entre suas pernas.. Não havia eloquência maior, em idioma algum, que as voltas que meu mundo dava naqueles submundos. A língua é uma espada. “Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal se tornar insosso, com que salga­ remos? Ele não servirá para mais nada, senão para ser jogado fora e ser pisado pelos homens. Vós sois a luz do mundo. Não pode ficar escondida uma cidade construída sobre um monte. Ninguém acende uma lâmpada e a coloca debaixo de uma vasilha, mas sim, num candeeiro, onde brilha para todos, que estão na casa. Assim também brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e louvem o vosso Pai que está nos céus.” Não entendia nada daquilo. Fui batizado apenas aos doze anos de idade. E nunca tive a consciência de que até então era considerado um pagão. Lembro que depois da água benta derramada sobre minha testa, esperei que magicamente alguma coisa mudasse, meus desejos sexuais tão fortes e tão precoces diminuíssem. Mas acho que já era tarde demais. Sentia-me como um sal insosso.


Não era fértil, e não conservava nada, salgava aquele banco e nada mais crescia ao meu redor. Nada mais crescia sob a madeira em que me sentava. Um sal insosso. Àquele ponto, entendia apenas palavras cortadas. Misericórdia… Sal… Culpa.. Crianças… Dai-nos a paz… Digo sem exageros. Não é como se alguém me dissesse coisas em português claro, ou em inglês, espanhol, qualquer língua latina que eu pudesse minimamente identificar. O vocabulário era outro, e eu não conseguia conectar as palavras. Entrava por um ouvido e saía pelo outro. Já não sei se era um som estrangeiro pelo tempo afastado, ou pelo diabo tatuado no braço que cantava no meu ouvido — mais alto que qualquer evangelho. Dias antes um cara que nunca vi na vida, e que de repente estava numa sala bebendo comigo e outros caras que também nunca havia visto, olhou para mim e disse muito sério: “Você tem uma aura verde. E não vejo isso em qualquer um”. Quando pedi para que me explicasse, o assunto já havia sido encerrado. E agora não sei se o verde é o cheiro do veneno, ou a cor do mar que acalanta. Talvez os dois. E nunca vou saber, mas tenho que trabalhar com isso. Verde é a cor do hálito neon do diabo que fala no meu pescoço. É o gosto dos olhos do demônio quando pincela minha boca com o dedos embebidos em um pecado tão primitivo, tão antigo, que desco­ nheço como faço com a língua do padre quando me diz de um evangelho que sou incapaz de discernir. Aquela liturgia toda escrita em letras verdes. Canto das oferendas, procissão de fé… Verde é meu

desespero. Tive que me levantar dali, nada fazia mais sentido, não ouvia nada além das minhas vontades, das minhas inseguranças. Mas não fui embora sem antes ouvir entrecortadas as palavras: “O lugar da criança é em casa… É na escola… E na comunidade…”. Tentei abafar meus ouvidos sem levar as mãos à cabeça. Falava sem parar, era torturante. “… culpa. Tenha misericórdia de nós”. Desci as escadas com pressa, pus meus óculos e queria me fazer invisível. Parei diante de um espaço em que se punha velas para derreter e fazer preces. Assistia a aquela cera derreter, aquele líquido translúcido escorrer por baixo da grelha, o fogo queimar aquelas vontades ali incubidas. Para onde vão as coisas quando elas acabam? Na rua de casa, agora já não sei pelo torpor da festa, pela desatenção diária, notei pela primeira vez uma pichação que dizia “Nem tudo é culpa do diabo”. Fiquei olhando para aquilo, e, claro, fazia todo sentido. E claro que não era, afinal a culpa sempre foi toda minha.




















ÍNDICE DOS TRABALHOS Tomai todos e comei ••••••••••••••••p.02-15 vídeo | 09’37” | 2015 Cosme e Damião ••••••••••••••••••••p.20-33 vídeo | 11’12” | 2014 Opera I ••••••••••••••••••••••••••••••••p. 36-39 escultura | caramelos e lâmpada | dimensões variadas | 2017 Valentim (Narciso) ••••••••••••••••••p. 42-55 vídeo | 04’58” | 2015 Eucarístico •••••••••••••••••••••••••••p. 57-61 texto | impressão jato de tinta | 2017 Mea culpa ••••••••••••••••••••••••••••p. 63 fotografia digital | 90x60 cm | 2015 Confissões entredentes •••••••••••••p.65-67 vídeo | 04’23’’ | 2017 fotografia digital | 30x20 cm | 2017 Fôlego II ••••••••••••••••••••••••••••••p.69-73 instalação | bananas, preservativos, nylon | dimensões variadas | 2017 Baile de gala •••••••••••••••••••••••••• p.75-77 performance | terços | dimensões variadas | 2017 Diário de trabalho •••••••••••••••••• p.16-18 | p.34-35 | p.40-41 | p.56 | p.62 | p.64 | p.68 | p.74 | p.79



EUCARÍSTICO Simone, Matheus de. 1a. edição Juiz de Fora, MG | 2017 500 Exemplares ISBN 978-85-922840-0-8 PROJETO GRÁFICO | PRODUÇÃO GRÁFICA Júlia Milward FOTOGRAFIA Washington da Silva (Ton) AUTOR DO TEXTO DE ABERTURA

Henrique Grimaldi Figueredo

AUTOR DO TEXTO “EUCARÍSTICO” Matheus de Simone CURADORIA DA EXPOSIÇÃO

Henrique Grimaldi Figueredo TIPOGRAFIA DTL VandenKeere PAPEL CAPA Kraft 240 g/m2 PAPEL MIOLO Pólen 90 g/m2 IMPRESSÃO Juizforana Gráfica e Editora PATROCÍNIO

©Funalfa / Matheus de Simone 2017. Todos os direitos reservados.



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