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Juliano P. Fagundes e CĂŠlia
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Goi창nia, 2015
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Juliano P. Fagundes e Célia
A Hora do Espelho Copyright ©2015 by: FEEGO 1ª Edição
Autoria: Célia, Espírito / Juliano Pimenta Fagundes, Médium Coordenação editorial e revisão: Ivana Raisky e Fátima Salvo Criação e produção visual: Juliano Pimenta Fagundes Fotos: Oleg Gekman (www.shutterstock.com) Modelo: Alexandra Foto do autor: Daniela Alves Direitos autorais gentilmente cedidos à Federação Espírita do Estado de Goiás.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP C387h
Célia (Espírito) A hora do Espelho / Juliano Pimenta Fagundes; pelo espírito Célia. - Goiânia : FEEGO, 2015 240p. ISBN: 978 85 60182 39 8
1. Religião. 2. Reencarnação. 3. Espiritismo. I. Fagundes, Juliano Pimenta II. Título.
CDU: 133.9
DIREITOS RESERVADOS - É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio sem a autorização prévia e por escrito do autor. A violação dos Direitos Autorais (Lei N° 610/98) é crime estabelecido pelo Artigo 48 do Código Penal. Impresso no Brasil Printed in Brazil 2015
FEDERAÇÃO ESPÍRITA DO ESTADO DE GOIÁS Rua 1133 nº 40 esq. c/ Al. Ricardo Paranhos Setor Marista - Goiânia - GO - CEP: 74.180-120 www.feego.com.br
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“O tique-taque dos relógios marca o tempo do despertar. Acordemos, meus irmãos, acordemos, pois o Evangelho já raiou em nossas vidas!” Irmã Scheilla
Mensagem recebida por Juliano P. Fagundes,
em reunião realizada no dia 28 de abril de 2014,
no Centro Educacional Nosso Lar.
Juliano, nascido em 1977, é designer gráfico e coordenador de marketing em uma indústria multinacional de produtos para saúde. Casado com Eliane Gonzaga Fagundes e com um casal de filhos, é natural de Goiânia e desde pequeno acostumou-se às experiências espirituais, pois seu pai era médium e trabalhador da Umbanda, religião que frequentou por mais de vinte anos. Em 2001, conhece Eliane, sua futura esposa, que o apresenta ao Espiritismo, do qual se torna adepto. Intérprete em LIBRAS, traduz para conferencistas de renome como Divaldo Franco e Haroldo Dutra. É palestrante espírita, evangelizador de jovens e adolescentes, médium psicógrafo e psicofônico.
Célia foi criada por uma família católica e quando desencarnou, em 1972, com apenas 16 anos de idade, deixou para trás um pai, uma mãe e dois irmãos. Acabou encontrando, no Mundo Espiritual, uma nova família que a recebeu com muita alegria. Na época de sua desencarnação não sabia como era o Mundo Espiritual, mas identificando-se com os trabalhos realizados pelas casas espíritas, passou a atuar nas tarefas de desobsessão e vem auxiliando, há várias décadas, entidades em processo de recuperação e esclarecimento. Célia ainda mantém muitas de suas características físicas da época de sua desencarnação e seu sonho é poder, um dia, escrever à sua família. No entanto, como professam uma fé diferente da Doutrina Espírita, esse sonho ainda não pode ser realizado.
Ao meu pai, Eurípedes Fagundes, que buscou aperfeiçoar seu trabalho mediúnico, enfrentando fatalidades em sua vida. Pai, nossos poucos encontros após sua partida para o Mundo Espiritual trazem a certeza de que está acompanhando tudo que acontece por aqui; À minha mãe, Nerilda Aparecida Fagundes, por sua dedicação a mim e sua crença em meu trabalho;
Ao meu avô, Joaquim Pimenta Faleiros, desencarnado em 2013, que na década de 1940 trouxe a Doutrina Espírita para o seio de nossa família, tendo vivido cada minuto sob os preceitos do Evangelho.
Agradeço a Deus pelas faculdades mediúnicas que me
permitiram a concretização deste maravilhoso trabalho.
Obrigado a Lídia Diniz. Quando eu nem sonhava em ser
médium, foi a primeira pessoa a perceber que um dia eu poderia escrever com o auxílio dos Espíritos.
Obrigado a Ângela de Melo Franco pela amizade e
pela espetacular vidência, que um dia sugeriu: “Traga
papel e lápis às reuniões!” o que me permitiu descobrir a mediunidade.
Obrigado ao amigo Paulo Lincoln Novato que leu cada
página desta obra na medida em que ia sendo escrita, com olhar crítico e sempre atento às questões doutrinárias.
Obrigado a Bosco Carvalho, da QI Editorial, pela revisão
ortográfica que fez apontando-nos erros grosseiros e melhores formas de construir certas frases. Célia assinou embaixo de seus apontamentos.
Obrigado a Antônio Luís Arantes, o Toninho, pela paci-
ência e pelos bons conselhos.
Obrigado a Carlos Roberto Pimentel, o Betinho, pela
confiança e amizade, sem os quais essa obra não teria sido possível.
Obrigado ao Irmão César pelas orientações doutrinárias, pela confiança, pela amizade e por sempre estar ao meu lado no intercâmbio com o Mundo Maior. Obrigado a todos aqueles que acreditaram na possibilidade deste trabalho. Obrigado a Eliane Gonzaga Fagundes, minha esposa, por seu amor, o carinho, a dedicação e, principalmente, por acreditar! Finalmente, um grande obrigado a Célia pela confiança que depositou em mim e pela paciência que demonstrou durante os meses em que escrevemos juntos.
Célia veio tão sutil, que não percebi sua presença, até que começasse a escrever. Foi trazida por meu Espírito familiar e mentor de nossas reuniões, Irmão César. Linha após linha fui absorvendo o conteúdo de sua primeira carta, entendendo que ali começava algo novo para mim. Estava sendo chamado a um novo tipo de trabalho. Mesmo acostumado a receber cartas de Espíritos variados, irmãos infelizes em busca de desabafo e consolo, queridos amigos e familiares desencarnados, além de nobres e elevadas entidades, a primeira carta de Célia causou-me viva impressão. E logo em seguida veio uma surpreendente mensagem de César: “Começaste um novo trabalho hoje. Leve ao mundo as doces palavras de Célia. Ela estará junto a ti nos próximos dias, contando sua história com mais detalhes. Mantenha a boa sintonia, buscando presenças agradáveis em sua vida e lembrando-se de Jesus sempre”. Sim, Célia tornar-se-ia uma escritora desencarnada, operando a favor da divulgação da Doutrina Espírita e trazendo ao mundo mais novidades a respeito do Plano Espiritual se, claro, eu fosse capaz de manter a boa sintonia com ela. E, como Deus é grandioso em nossas vidas, tendo um
plano bem elaborado para cada um de nós, os “dias” em que Célia ficaria ao meu lado transformaram-se em meses, em que, religiosamente, nos encontramos no Centro
Educacional Nosso Lar, duas vezes por semana, sempre no mesmo horário, escrevendo por volta de uma hora em cada encontro. Após as cartas iniciais, nossa sintonia se tornou tão perfeita, que bastava apenas escutá-la ao meu ouvido enquanto ia colocando seus pensamentos no papel. Quando alguma situação se apresentava mais complexa, Célia, ao invés de ditar, me mostrava a cena referida, deixando ao meu encargo a melhor maneira de expressar o que queria dizer. Com o passar do tempo, me deu um voto de confiança, deixando que eu vislumbrasse os futuros capítulos de sua história e então passei a escrever, compreendendo de maneira mais ampla aonde seu raciocínio iria nos levar. Empolguei-me ainda mais e, paradoxalmente, meus anseios foram tranquilizados. Aquela história, que no início parecia singela e fácil, foi se transformando em uma saga emocionante sobre uma adolescente que, filiando-se à Doutrina Espírita, lutava para desvendar seu tenebroso passado. Célia abria seu coração ao mundo, revelando não só sua história, mas sua intimidade também, sem medo do julgamento dos mais conservadores. Houve, durante o tempo em que trabalhamos juntos, muita cumplicidade, mas Célia sempre foi muito disciplinada em seus pensamentos e em seus sentimentos, nunca deixando que esses me afetassem ou me desequilibrassem.
Quando Célia escreveu FIM, após sua última narrativa emocionada, nosso Irmão César tomou o lápis e me escreveu: “Célia foi uma pequenina luz que encontramos em nos-
so caminho. Extremamente doce e ao mesmo tempo forte e corajosa, essa alma determinada nos fez um incrédulo pedido: queria escrever ao mundo. Mas será que o mundo estaria apto a recebê-la? Será que iria dar valor à sua narrativa? Por que o mundo se interessaria por suas histórias? Enfim, têm em mãos suas tenras palavras. Começa agora uma nova etapa na história de Célia e cabe a você, nobre irmão, escrever esse fim”. Tinha em mãos uma grande responsabilidade. Roguei que a Espiritualidade Maior abrisse caminhos para mais essa conquista, me auxiliando a levar a narrativa dessa nobre garota às prateleiras das livrarias. Como estudantes e praticantes do Espiritismo, um dos grandes desafios é validar a enorme quantidade de mensagens que chegam semanalmente e as de Célia deveriam seguir este critério. Seriam suas palavras fiéis aos aspectos doutrinários das obras básicas de Allan Kardec e de médiuns de expressão, como Francisco Cândido Xavier ou Divaldo Pereira Franco? Essa pergunta ressoou em minha mente por vários meses. Após o envio dos originais para análises de diversos grupos doutrinários no país, ficamos aliviados ao saber que nada os desabona em relação ao Espiritismo. A intenção de Célia é escrever sua própria história sob uma perspectiva doutrinária como se espera de uma obra espírita genuína.
O projeto gráfico do livro é uma história a parte. Após a criação de várias ilustrações, sem obter o sucesso desejado, fui sendo direcionado pela autora na busca pelas imagens que ilustrassem melhor ela mesma e sua narrativa. Apesar do texto ser bastante claro na descrição dos acontecimentos, buscamos o recurso das notas de rodapé para complementar ou esclarecer algumas passagens, sempre usando como referência as obras consagradas da Doutrina Espírita. Pedimos perdão se deixamos escapar algum detalhe. Célia foi, acima de tudo, uma grande professora. Graças a ela compreendi os vários desafios que esperam a todos que desencarnam ainda jovens e a força que esses Espíritos possuem no Mundo Espiritual. Célia me mostrou a importância das aulas de evangelização, tanto para os encarnados quanto para os desencarnados, me ensinando grandes lições sobre disciplina, paciência, perseverança e boa vontade no trabalho mediúnico, revelando que, na prática, não existem limites para aquele que crê. Juliano Pimenta Fagundes
1 - O Retorno 23
2 - O Despertar 35
3 - A Adaptação 65
4 - O Aprendizado 99
5 - A Transformação 141
6 - O Trabalho 179
7 - O Desfecho 217
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“Assim, pois, os que pregam que a Terra é a única morada do homem, e que somente nela, e numa única existência, lhe é permitido alcançar o mais elevado grau de felicidade que a sua natureza comporta, iludem-se e enganam aqueles que os ouvem”.
Allan Kardec, O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. 5, Instruções dos Espíritos, item 3.
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O Retorno
Eu me lembro até hoje. Recordo-me com todas as cores. Era janeiro de 1972 e eu acordara muito radiante aquele dia. Eram oito horas e quarenta e três minutos da manhã de um sábado lindo. O sol batia à minha janela, estava quente, muito quente, e eu não dormira muito bem por causa dos pesadelos. Foi uma longa noite, mas ao acordar, sentia-me leve, renovada, pronta para mais um dia. Eu tinha dezesseis anos na época. Nunca sabemos o que vai nos acontecer. Deus não nos deu esse dom. O futuro para nós é uma incógnita. Eu sempre acordava disposta, mas naquele dia, apesar dos pesadelos (que deveriam, talvez, me entristecer) acordei mais radiante do que nunca. Hoje penso que, talvez, durante a madrugada, eu tivesse sido avisada sobre “algo”, um acontecimento que iria mudar o meu destino, mas na época, naquele dia em especial, não havia como eu saber que iria desencarnar. Faço minhas as palavras de inúmeros desencarnados,
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quando digo que queremos deixar no mundo o nosso testamento eterno, para todas as pessoas no futuro poderem pensar e refletir um pouco melhor sobre suas vidas. O pro-
gresso não para. Somos todos agentes de transformação neste orbe tão sofrido e, fatalmente, chegaremos à nossa reta final. Não sofri em demasia ao desencarnar, não obstante o fato de não ter tido educação religiosa. Uma pena ter demorado a descobrir os valores cristãos, embora nunca seja tarde. No meu caso, tive que encarar a saudade e a distância. Tenho ainda na Terra uma mãe e dois irmãos. Meu pai já está por aqui. Os que estavam encarnados em minha família à época, ainda estão por aí hoje. Deixei saudades, e todos deixamos saudades mil, pois todos somos importantes para alguém. É difícil organizar as palavras quando falamos por intermédio de um encarnado, mas a emoção que expresso é a mesma que sinto. Vivemos momentos tão preciosos ao lado das pessoas, quando encarnados, que é sempre uma pena precisar partir. Mas é inevitável partirmos, porque o nosso lugar, a nossa casa verdadeira, nos espera. Em algum momento da desencarnação eu me perdi, porque quando partimos algo se quebra em nós, se rompe. É um turbilhão de sensações tão intensas que me sinto comovida até hoje! Há muito tempo estou aqui, mas ainda não anseio por retornar. Voltando agora, até aquele dia fatídico, aquele sábado de 1972, contarei como foi o acidente que me vitimou.
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Como sempre fazia ao acordar, abri a janela do quarto e olhei o céu. Apesar de estarmos em uma época de chuvas, aquele dia em especial amanheceu limpo, fresco e quente. “Está ótimo para sair”, pensei. E foi com muita alegria que saí da cama. Ao olhar no espelho, fiquei admirada comigo mesma. Eu tinha lindos olhos, grandes, profundos e muito brilhantes. Havia muita vida em mim. Que observação infeliz! Ainda há muita vida em mim hoje e posso garantir que meus olhos, hoje, são muito mais bonitos e brilhantes. Faço uma pausa em minha história para dizer apenas que o que nos acontece faz parte de um plano, na maioria das vezes, arquitetado por nós mesmos. A minha vontade é de escrever para minha mãezinha. Mas, no momento é impossível, ela não acreditaria que sou eu. Quem sabe, um dia, essas palavras cheguem às mãos dela? Todo sonho é possível. Como será bom dar a ela essa certeza, de que estou viva, estou bem e, aliás, muito bem conservada, nos meus “eternos” dezesseis anos. Papai, sempre que tem um tempo sobrando, vem me ver e até hoje me conta histórias engraçadas, como fazia quando eu estava na Terra. Damos longas risadas e, no fim, ainda temos aquele olhar melancólico ao lembrarmo-nos de nossa família que ficou. Naquela manhã, tomei um banho, nada rápido. Como estávamos em época de calor, demorei-me lavando meus longos cabelos. Gostava de me refrescar, era a melhor forma de se começar um dia. O corpo material exige tanto de
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nós! A higiene, os cuidados para que evitemos doenças, a alimentação... E a felicidade é o melhor alimento para todos
nós! Sem alegria e sorrisos que energizam espírito e corpo somos seres sem vida, inertes, que apenas sobrevivem.
Hoje penso que talvez isso tenha me ajudado em meu
processo de desligamento do corpo físico. Lembro-me que o acidente foi muito comum, nada diferente do que vemos
todos os dias no noticiário: “Garota morre atropelada”. Pelo
menos tive o prazer de ver todos em casa uma última vez
antes de desencarnar. Todos estavam lá: minha mãe, meus
dois irmãos e meu pai. Agora, como ele desencarnou um tempo depois de mim, o vejo por aqui de vez em quando. Está prestes a reencarnar e temos conversado muito.
Ainda conservo os aspectos físicos da época de meus
dezesseis anos. Era muito bonita e não quis modificar isso. Tive medo, quando acordei aqui, de estar desfigurada ou algo assim. Tolices de recém-desencarnados.
Eu frequentava aulas de inglês, todos os sábados pela
manhã. Era bem comum na minha idade e as turmas eram lotadas! A caminhada era boa, o curso ficava a cinco quarteirões de casa. O caminho era todo arborizado, morava em
um bairro muito tranquilo. Após o café com pão, que adora-
va, me despedi de todos pela última vez, peguei meus livros e iniciei minha última caminhada até o curso.
Naquela manhã de sábado não assistiria nenhuma aula.
Então, naquela manhã, de um modo estranho eu “ouvia”
o tique-taque de um relógio interior. Ponteiros se movendo,
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como se em câmera lenta, marcando a hora do meu retorno ao lar maior.
Por alguns momentos, ouvindo o farfalhar das folhas
movidas pelo vento, caminhei por uma avenida muito movi-
mentada em direção à minha escola de inglês. Nesta época não havia tanta preocupação com o trânsito, como hoje, e faixas de pedestre não significavam muita coisa.
Ah, eu era uma jovem ansiosa como tantas na minha
idade!
Não percebi quando um carro veio em minha direção.
Eu estava entretida com o movimento da cidade, da rua, das
pessoas e, quando fui atingida, não senti nada. Foi como se
estivesse caindo, mas não me lembro de ter havido nenhum choque. Eu andava e foi como ser empurrada, minhas pernas enfraqueceram e “perdi” o chão. Minha cabeça atingiu o
meio-fio com força. Recordo-me de todos os detalhes mas são percepções sublimes, sem drama ou dor. O choque no
chão foi como um estalo com eco. Mas não senti dor, Deus me deu essa dádiva. Hoje, essa lembrança chega a ser poética...
A partir daí, mal me recordo do magnífico processo de
transição pelo qual passei. Hoje sei que, por conhecer pouco
a respeito da vida após a morte à época, não entendi bem e não absorvi aquele acontecimento. Para mim, tudo passou
como se fossem pesadelos, sonhos estranhos. Meu corpo foi desligado sem que eu entendesse claramente o que acontecera.
No momento em que levaram meu corpo para o hospital
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já estava desencarnada, mas lembro-me de ser colocada na maca e de ir de ambulância até o pronto-socorro. Eu ainda achava que estava entre os vivos1 e acompanhei meu corpo
com naturalidade. Estava muito fraca, quase sem voz. Não havia dor, mas uma fraqueza, uma incapacidade de me mover. Confusa, divagava: “Teria ficado tetraplégica? Era possível, afinal, existem tantas pessoas que ficam nestas condições após um acidente...” Mas, não era nada demais. Felizmente, embora não compreendesse bem naquele momento, apenas havia desencarnado, não ficariam sequelas do acidente! Eu estava em pânico. “Será que irei andar novamente?” - pensava. Em vão tentava falar. Tentei gritar, mas estava muda, acho que nem eu me ouvi. Tentaram me reanimar. “Mas eu estou viva! Devem estar fazendo procedimentos para alguma outra coisa, devem estar conferindo meu estado geral ou fazendo testes.” A fraqueza era muita e no caminho para o hospital perdi os sentidos. Acordei com uma forte luz em meu rosto. Estava deitada em uma cama dura e fria. Fazia silêncio, mas eu ouvia o barulho de um relógio. Seu tique-taque estava longe, mas naquele silêncio, era quase ensurdecedor. Tentei levantar, mas não consegui. Ao meu redor tudo era enevoa1 “[...]O último alento quase nunca é doloroso, uma vez que ordinariamente ocorre em momento de inconsciência, mas a alma sofre antes dele a desagregação da matéria, nos estertores da agonia, e, depois, as angústias da perturbação. Demo-nos pressa em afirmar que esse estado não é geral, porquanto a intensidade e duração do sofrimento estão na razão direta da afinidade existente entre corpo e perispírito”. Livro Céu e Inferno, de Allan Kardec, segunda parte, cap. 1, itens 4 e 5.
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do, apenas o foco da luz destacava-se muito forte. Ao fundo comecei a ouvir vozes. Não discerni de quem poderia ser, se de homem ou de mulher, se de algum conhecido... Pensei imediatamente em minha mãe. Fui tomada por um pânico repentino. “Será que sabem o que houve comigo? Sem poder falar como poderei explicar quem sou, onde moro? Meu pai vai notar que não voltei do curso na hora do almoço e irá me procurar, pois sou o tipo de pessoa que volta para casa no horário correto”, pensei. Ainda confusa, eu estava longe de entender o que se passava. Deitada junto ao meu corpo tentava me expressar por meio da carne. Adormeci e tive um pesadelo. Vi-me morta em uma mesa, em uma sala que parecia um hospital. Olhei-me com piedade, eu estava muito branca, mais do que o normal e meu rosto parecia feito de gesso. Meus cabelos estavam desgrenhados, embaraçados e se espalhavam pela mesa. Tive vergonha porque estava nua, meu corpo estava com algumas marcas arroxeadas, hematomas nos braços e nas pernas. Olhei-me mais de perto, estava fascinada por essa visão sombria, essa infeliz versão de mim mesma. Notei algo em minha cabeça, entre o olho direito e minha orelha. Uma ferida que há pouco estancara, retornara. Seria este meu real estado ou fruto de minha imaginação? Um pesadelo louco dentro de outro pesadelo? Quando iria acordar daquela insanidade? “Meu Deus! Meu Deus! Eu não sei orar, mas sei que Você, Senhor, pode me ouvir! Alguém me ajude! Alguém me ajude, por favor! Por Deus, alguém me ajude!”
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E novamente adormeci, mas foi como um desmaio, um apagão, e fui do pesadelo para o sono profundo. — Célia... Célia... Acorde, Célia, já descansou bastante.
Está tudo bem agora. Parecia ser noite, me sentia dopada. Meus olhos estavam fechados e eu, em semiconsciência, com tudo escuro à minha volta, ouvia essa voz suave me chamando. Sentia-me muito pesada, cansada, parecia que tinha dormido um longo tempo sob efeito de fortes medicamentos. Aos poucos fui retomando a consciência. Abri os olhos devagar, pareciam pesados, me mexi um pouco... E que susto! “Posso me mover, nem acredito! Não sou uma tetraplégica!” Levantei da cama “de supetão”, como dizem, mas fiquei tonta antes de pôr os pés no chão. A cama em que estava era muito macia, extremamente confortável. Minha visão ainda estava um pouco enevoada. Com o tempo eu iria descobrir que nossos sentidos e percepções após a desencarnação precisam se adaptar, são como o recém-nascido que tem que abandonar o cordão umbilical para aprender a usar os pulmões. Como havia sentado na cama com muita rapidez, voltei então a deitar-me, após é claro, movimentar todos os dedos das mãos e dos pés. Respirei fundo e senti um cheiro de rosas. Sim, havia algumas no quarto, em um vaso no canto, mas nunca pensei que seu perfume pudesse chegar tão longe. — Célia, acorde. Concentre-se, parece meio perdida ainda.
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E, realmente, estava imersa em uma torrente de pensamentos sem fim. Por fim, percebi que alguém estava tentando me fazer despertar de um sono muito profundo.
— Oi, tudo bem? Minha mãe ou meu pai está aqui? perguntei, muito envergonhada. — Não. Eles aguardam você em outro lugar. Logo irá vê-los. — E quem é você? Médica? — Estou cuidado do seu caso em particular. Você teve um forte traumatismo. Como se sente? — Tonta. Fraca, ainda. “Quem seria essa moça?” - pensei, tentando entender o que estava acontecendo. Logo saberia.