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Eu morei por 15 anos no Jd. das Flores, Jd. Ângela, num condomínio. Durante a infância, estudei numa EMEI e caminhava para lá todo dia com a Tia Nata (quem cuidava de mim enquanto meus pais trabalhavam) e sua filha Bianca.
O condomínio fica na M’ Boi Mirim, então saíamos na avenida e atravessávamos o sinal demorado de mãos dadas, cada criança de um lado. Coincidia com o horário de saída da escola estadual quando os alunos enormes do ensino médio se acumulavam na calçada da ladeira. Sempre passava o caminhão de gás tocando aquela musiquinha e avisando para a gente sair da frente.
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Ainda subindo, a próxima quadra quase não tinha calçada, mas brincávamos de pular das escadas que ajustam o nível da rua com o da edificação. O sol forte do meio dia “torrando o coco”, como dizia Natália, nos fazia acelerar o passo. Já na rua da escola, quem se acumulavam eram os adultos, para fora do portão, na calçada sombreada.
Depois das quatro horas de aula, na saída, às vezes passávamos na casa de uma senhora que vendia produtos de limpeza em garrafas pet, extremamente coloridos, com cores que iam do rosa chiclete ao verde neon. Às sextas, tinha feira na rua de trás, então saíamos antes de casa e o almoço era pastel.
No ensino fundamental, passei para uma escola particular no Capão Redondo. Ia de transporte escolar, era a primeira a entrar e a última a sair da van, e sabia onde todo mundo morava. Depois de alguns anos já tinha o caminho todo mais que gravado na mente: Capão, Lídia, Mazza, Thomas. Com o tempo as referências passaram de “perto da casa da Rebeca” para “do lado do Satmo”, “subindo a Sabin”, “virando na Coimbra”.
Lembro das crianças do condomínio que nessa época iam para a escola pública que ficava ao lado. Existe um portão exclusivo para pedestres que só é aberto nos horários de entrada e saída da aula. Caso contrário, o aluno era obrigado a sair pela avenida, descer um escadão e subir uma ladeira (extremamente íngreme e em paralelepípedos). Dava para ouvir de casa o sinal tocando, alertando a hora que a Bianca saía da escola e voltava do período da manhã, e me lembrando de me preparar para pegar a perua.
No sétimo ano, meu pai me levava junto com meu irmão para a escola, íamos de carro e voltávamos de transporte escolar. Um dia de falha da perua, descobri que conseguia voltar para casa sozinha com o transporte público, convenci meus pais de era mais rápido e passei a voltar com meu irmão. Pegávamos o ônibus próximo ao metrô Capão e em torno de 30 a 40 minutos estávamos em casa.
Nos últimos anos do ensino médio, ainda na mesma escola, mudamos de casa e passei a pegar o metrô, baldeação em Santo Amaro, trem até Jurubatuba e um último ônibus: mais de uma hora no trajeto.
As distâncias cresceram conforme eu ficava mais velha e só quando entrei na faculdade experenciei de verdade as dificuldades do transporte que sempre observei de longe quando criança.
Só então comecei a localizar o Jd. das Flores tendo como referência o centro e o transporte público (apesar de ter feito poucas vezes esse trajeto completo, por não morar mais no bairro): partindo da estação Mackenzie (linha 4-Amarela) pegava o sentido São Paulo-Morumbi, descia na Estação Pinheiros e pegava o trem (linha 9-Esmeralda) sentido Grajaú. Descia na estação Socorro e caminhava até o ponto de ônibus, onde pegava o Terminal Jd. Ângela ou o Nakamura. E então, finalmente, descia na Estrada do M’ Boi Mirim. Esse é o mesmo trajeto para chegar ao Jd. Figueira Grande, bairro escolhido como área de estudo desse trabalho.
rua
O Jardim Figueira Grande foi formado a partir da década de 1950, quando as indústrias se deslocaram das antigas zonas fabris (Brás, Mooca, Ipiranga) para áreas onde o preço da terra era menor, mas ainda com acessos para o escoamento dos produtos. Tendo como eixo a indústria automobilística, as fábricas se espalharam pelo vale do Rio Pinheiros, em direção oeste, e depois ao sul e ao longo das rodovias Anchieta, Dutra e Anhanguera (SADER,1995). Com o surto industrial, as metalúrgicas se instalaram na região de Santo Amaro e Jurubatuba, o que atraiu pessoas devido a oferta de emprego. Com o tempo, a região recebeu imigrantes e a população cresceu. Junto disso, a busca por moradia de baixo custo em áreas mais afastadas (ainda próximas das fábricas) fez com que loteamentos surgissem em áreas sem nenhuma urbanização, assim como habitações autoconstruídas. A infraestrutura de esgoto, transporte e equipamentos foram depois instalados conforme a reivindicação da população.
03 - Fotografia Aérea, 1954 04 - Fotografia Aérea, 2000
1954
2000
Atualmente, segundo a Pesquisa Origem Destino (2017), 46% dos trajetos iniciados a partir da região do Jd. Figueira Grande são feitos a pé, com duração média de 9 minutos, a maioria com o destino no mesmo bairro ou bairro vizinho. Dentro dessa porcentagem, está o caminhar das crianças que moram mais perto das escolas, e experienciam e interagem mais diretamente com a cidade.
Apesar disso, o que se observa num contexto maior, é que cada vez menos crianças caminham para a escola. A rua passou a ser associada a um local perigoso e violento, do qual os transportes veiculares servem como meio de “proteção”. Um dos fatores que mais causa medo nos responsáveis é o trânsito, entretanto não são colocadas restrições aos veículos, mas sim às crianças, que passam a ser cercadas por barreiras. Esse controle constante pode ocasionar consequências para o desenvolvimento infantil, como a diminuição da autonomia, a sensação de insegurança constante na cidade e a falta de interações sociais em espaços livres. (SABBAG; KUHNEN; VIEIRA, 2015)
Quando a pé, a velocidade permite a percepção de diversos fatores, cada obstáculo pode se tornar uma brincadeira (como não pisar nas divisões da calçada). As oportunidades de interações sociais com pessoas diferentes são maiores e cada vez mais a criança tem liberdade de decisão sobre utilizar os espaços da cidade. A partir dessas experiências as crianças criam um mapa mental de referências para se orientar no território urbano, organizando o espaço de acordo com o seu cotidiano e aprendendo a partir disso. (SABBAG; KUHNEN; VIEIRA, 2015)
05 - Comércio na Estrada M’Boi Mirim 06 - Entrada da escada, Est. M’ Boi Mirim
Segundo Trilla (1997) a cidade oferece três dimensões de aprendizado para as crianças: aprender na cidade (como contexto); aprender da cidade (como fonte geradora de conteúdo) e aprender a cidade (como o conteúdo).
Na primeira dimensão, a cidade é o contexto de acontecimentos educativos, onde os agentes e instituições educadoras se articulam entre si, e com o território em que estão inseridos. A interação entre os equipamentos cria um sistema de aprendizados e trocas fora do currículo formal da educação.
Aprender da cidade quer dizer perceber e entender as comunicações diversas entre pessoas, o que só é possível pela densidade de trocas humanas e culturais dentro do espaço urbano. Na prática, é ler os sinais diversos, principalmente nas ruas, os símbolos do trânsito, as mensagens dos grafites e pichações, as vitrines e panfletos com imagens e informações cotidianas e culturais.
Por último, aprender a cidade é aprender a se locomover, a utilizar o transporte público, as referências visuais de localização, mas também é construir uma visão crítica da cidade, as características dos bairros e de seus moradores, a história, as desigualdades e as necessidades.
Na periferia, a ausência de custo quando o trajeto é feito a pé e a proximidade com a escola são fatores importantes na escolha entre modais. As vantagens disso para as crianças são as relações mais fortes com o local e com a comunidade e o desenvolvimento de sua autonomia para se locomover. Para incentivar uma cidade receptiva para as crianças, a Fundação Bernard van Leer (2019) possui o programa Urban95, que tem como premissa vivenciar a cidade a 95cm, como uma criança de 3 anos. Com essa altura, as distâncias e obstáculos se tornam maiores, mas pequenos elementos podem ser convites para brincar e explorar. Como sugestão, o programa propõe cidades com desenhos que possibilitem maior segurança, menor velocidade dos automóveis, facilidades para chegar aos destinos considerando os responsáveis pelas crianças, com rotas seguras, espaços públicos de qualidade e áreas verdes.
caminha na cidade 07 e 08 - O olhar da criança que
Em São Paulo, em uma ação conjunta com a prefeitura, a fundação fez um projeto piloto no Campo Limpo, projetando uma transição para as políticas públicas através do programa Territórios Educadores. O plano propôs melhorias em espaços públicos no entorno de unidades de educação infantil, compondo trajetos que conectam os pontos. (ANTP, 2019) Entendendo a importância e a influência do entorno na vida das pessoas e a cidade como local de aprendizado, foram feitas pesquisas qualitativas, socioeconômicas e de mobilidade no Campo Limpo. Levando em conta o cotidiano das mães e crianças, reuniram dados sobre os espaços e as dificuldades, que foram utilizados como base para o Plano de Ação do programa que está inserido no Plano Municipal Primeira Infância de São Paulo (2018).
As intervenções foram desde pintura e instalação de equipamentos nas calçadas e muros; sinalização do trajeto e adaptações de trânsito feitas pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET, 2018); revitalização da Praça do Campo Limpo com área exclusiva para as crianças, revisão dos brinquedos e paisagismo.
09 e 10 - Intervenções do projeto nas calçadas
escada
De volta a região do Jd. Figueira Grande, escadarias foram utilizadas com função de drenagem, em consequência da urbanização na topografia acentuada. Com o tempo, se tornaram passagens que diminuem o trajeto para pedestres de uma cota a outra. Muitas delas fazem parte do caminho das crianças para a escola. A solução das escadarias também foi adotada em outras regiões da cidade, assim como as vielas, becos e traçados, indícios do sistema de drenagem escondido pelo sistema viário, que existem no Pacaembu, Vila Madalena, no Jd. Ângela, entre outros.
Em São Paulo, a prática de sobrepor o sistema viário às áreas de várzeas dos rios e córregos vem sendo aplicadas desde o Plano de Avenidas, idealizado por Prestes Maia e Ulhôa Cintra em 1929. O plano propunha um sistema de vias radiais e concêntricas a fim de solucionar os problemas de circulação do centro e sua articulação com a periferia dispersa. As marginais Tietê e Pinheiros e as radiais 9 de julho, Tiradentes e 23 de maio foram implantadas junto aos vales dos rios, associando as avenidas ao paradigma rodoviário e uma visão funcional. Bartalini (2004) ao seguir as pistas do córrego da Água Preta no bairro da Pompéia, ou seja, as vielas, travessas, largos e áreas verdes remanescentes encontra todos esses espaços sem vida, nos fundos dos lotes e sem nenhuma memória do córrego que passa escondido por baixo das ruas. Ao ver o potencial de transformação desses espaços em áreas livres e públicas, ele propõe um sistema de espaços conectados, que não recupera os córregos, mas faz memória ao caminho da água, incentivando o uso e visando à integração desses espaços à vida urbana.
As escadarias estão em situação hostil, para onde a maioria dos lotes não têm aberturas. São descartados lixos, entulhos e até esgoto. A drenagem na calha lateral nem sempre funciona e a iluminação não é suficiente. Elas também poderiam fazer parte dos eixos de espaços públicos e do mapa de referências afetivas das crianças, estimulando o aprendizado e consciência sobre o caminho das águas até os rios, principalmente nas periferias onde a oferta de espaços públicos e de lazer é escassa.
11 e 12 - Vistas da escadaria
No Jardim Ângela, a equipe Cidade Ativa junto ao programa Passagens, do Instituto Cidade em Movimento (IVM, 2016) realizaram uma ação nas escadarias do bairro. Primeiro fazendo um diagnóstico e uma avaliação por meio de levantamentos, entrevistas com os moradores, oficinas e eventos com as crianças (buscando compreender as dinâmicas de uso dentro das conexões da cidade e na escala da própria escada) e o que era desejado pela comunidade. A partir dos dados coletados, foi feita uma proposta de projeto que atendia às necessidades colocadas com soluções possíveis. A proposta conta com mobiliário urbano, plantas, iluminação, grafites nas paredes, lixeiras, estruturas para projeção e programas de atividades culturais e educacionais em parceria com a escola e grupos do bairro, incentivando o sentimento de pertencimento. Depois da intervenção, foram feitas novamente pesquisas e os resultados foram positivos: a percepção “agradável” sobre a escadaria passou de 13% das respostas para 63%; a resposta “sensação de insegurança” passou de 53% para 31%. Envolver a população e as crianças num processo participativo aumenta a atenção sobre a intervenção, fazendo com que mais pessoas cuidem e observem o espaço que ajudaram a transformar, garantindo a manutenção do local. (CIDADE ATIVA, 2016)
13 - Pesquisa com a comunidade sobre as escadarias 14 - Intervenções com as crianças