A torto e a direito

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DIREITO


Orientação

Profª Drª Angelita Pereira de Lima Projeto gráfico e diagramação

Vinicius de Morais Pontes

BUENO, Júnior. A torto e a direito. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2015.

(144 páginas) 20cm X 14cm

1. Jornalismo Literário, 2. Livroreportagem, 3. Viagem, 4. Urbanidade, 5. Etnografia; 6. Imersão


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torto EA

DIREITO JÚNIOR BUENO



Para a Dona Vitรณria, que um dia reclamou que eu ficava demais dentro de casa. Deu no que deu.



“O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente so-nhar, a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os cami-nhos, para nos fazerem parentes do futuro.” Mia Couto, Terra Sonâmbula



ÍNDICE PREFÁCIO 11

APRESENTAÇÃO 17

A RUA 27

O CENTRO 53

O VALE 79

A ALDEIA 107



PREFÁCIO Quando fui surpreendentemente convidado a escrever o prefácio deste livro, duas sensações diferentes tomaram conta de mim. A primeira, claro, foi a honra pelo convite. A segunda, e mais improvável, que só se revelaria após o “sim” ao pedido de Júnior Bueno, foi o peso da responsabilidade a mim confiada. Afinal, tecer comentários sobre textos tão habilmente escritos por um jornalista nato – e agora oficialmente graduado – é tarefa hercúlea e inglória. Hercúlea porque é praticamente impossível sintetizar em tão poucas linhas a grandiosidade e a força das palavras que compõem os quatro textos que integram esta obra. Inglória porque é muito difícil fazer jus ao poder devastador com que Júnior Bueno expõe a realidade visível de situações que cotidianamente saltam aos olhos da sociedade, mas que permanecem invisíveis, de propósito, à mesma sociedade que prefere dar as costas a esses “submundos” que se formaram exatamente a partir do desprezo, da ignorância e dos estigmas já enraizados em uma sociedade ocidental, urbana, capitalista, cristã, excludente e cada vez mais egoísta como a brasileira. O que se tem nesta obra são fieis retratos derivados de um célebre jornalismo gonzo, que passeiam por quatro 11


recortes de uma mesma sociedade, distribuídas em uma cidade, três unidades da Federação, uma região (Centro-Oeste) e um mesmo país. São fotografias sócio-antropológicas de pontos fora da curva que deveriam ser mais valorizados pelo “jornalismo” preguiçoso que se faz hoje, que privilegia não os fatos e suas causas, mas suas consequências e características, que prevêem os mais desastrosos resultados, como se fora este “jornalismo” o senhor do futuro e do destino dos mais desavisados. Ao lançar um olhar particular, peculiar e sem medo de revolver as entranhas de uma sociedade acomodada, individualista e de seus efeitos sobre as minorias, o autor revela curiosos fatos que permanecem incógnitos aos que preferem o lugar-comum, a “informação” que lhes é empurrada já mastigada e digerida, sem a preocupação do receptor em pensar sobre o que lhe é apresentado pelo emissor como o “jornalismo” que é feito hoje em dia. No primeiro capítulo, Júnior Bueno traça um perfil dos trabalhadores das ruas. Dos acróbatas aos pratistas (ou compradores de ouro e prata), dos entregadores de panfletos aos garotos de programa. Gente que mostra sua arte nos sinaleiros, que passa desapercebida pelos motoristas que fingem não vê-los, ou quando os vêem lhes legam apenas alguns 12


centavos de real. Gente que complementa seus minguados caraminguás previdenciários com seus ganhos revendendo objetos de estimação de famílias financeiramente endividadas, não importando a origem das joias em prata e ouro, ou a representação simbólico-afetiva dessas peças. Pessoas como o pequeno Mateus, que precisa entregar 1.000 panfletos para amealhar clientes para um suposto vidente em troca de dois lanches devorados duas vezes ao dia. Rapazes como Henrique, que se esgueira pelos becos e ruas fétidas do decadente Centro de Goiânia para levar prazer a outros homens sedentos por sexo rápido e barato nas sombras das noites goianienses. No segundo capítulo, a jornada de Júnior Bueno passa pelos cinemas pornôs da cidade. Um ambiente propício às mais variadas formas de manifestação do que a carência, a falta de amor e, às vezes, o vício em sexo podem fazer a homens de todas as idades estados civis, níveis de instrução e classes sociais que exercem, despudoradamente, seus mais primitivos instintos animais. Usando uma linguagem tão contundente quanto apropriada para a categoria social escolhida como objeto de estudo, o texto é um primor de rara contundência, mas sem perder a ternura – e a compostura – jamais. 13


No terceiro texto, Bueno viaja ao Vale do Amanhecer, um recôndito espiritual encravado no Cerrado do Distrito Federal. Alvo da intolerância de membros de religiões (e seitas) ditas “cristãs” que não enxergam um palmo além das páginas da Bíblia, Júnior, aparentemente, lança mão de sua indignação frente à ignorância que guia certas denominações religiosas e traça um belo panorama do que é o legado da mítica Tia Neiva, explica o propósito da doutrina, traz depoimentos dos seus membros e frequentadores e, sem fazer nenhum juízo de valor, cumpre seu papel de jornalista investigativo ao apresentar o Vale como ele é. Lá, Júnior certamente conversou com o seu carma e descobriu que “seu sucesso é do tamanho da sua ambição”. No último capítulo, o autor brinda os leitores com um acurado senso de apuração ao escancarar o descaso, os desmandos, a negligência e o desprezo com que os agentes públicos tratam os povos indígenas, neste caso personificados pelos xavante, de Mato Grosso. Antes donos de todo este imenso país, de mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, hoje estão segregados em pouco mais de 188 mil hectares. Essa parcela da população indígena vê seu irrisório patrimônio avidamente cobiçado por insaciáveis agricultores, outros aproveitadores e religiosos de todos 14


os matizes. Os A’uwe uptabi (gente de verdade) veem seus direitos sociais confiscados por agiotas, seus recursos naturais lhes sendo negados, e sua identidade perdida pela ação nefasta dos waradzú (homens brancos). Por fim, o que reporta este livro é um dadivoso caleidoscópio que reflete as nuances da urbe e da selva, dos interiores escuros e do exterior ensolarado da cidade, do profano e do sagrado, dos invisíveis, dos inválidos, dos segregados, dos “improdutivos”, dos excluídos, dos afetivamente carentes, dos intelectualmente prejudicados, dos inocentes. Genis que dão para qualquer um, que comem qualquer um, que são feitos pra apanhar, que são bons de cuspir. Malditos Genis! E, claro, aqui se revela ao mundo, sobretudo, o talento de um jornalista nato, sensível, curioso, ousado e corajoso. Seu nome é Júnior Bueno e sua história no Jornalismo (com J maiúsculo), de verdade, está apenas começando. Quem viver verá! Adalberto Borges, Jornalista

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APRESENTAÇÃO “Esse daí comeu pé de cachorro, só pode.” Cresci ouvindo minha mãe, Dona Luzimar, dizer esta frase, sempre que sabe de alguém que não para quieto em um lugar só, vive andando pelo mundo. Eles mesmos, meus pais devem ter comido pé de cachorro, só isso explicaria a quantidade de vezes que nos mudamos para outras casas, vizinhanças, bairros. Bairros, não, quebradas. Desde que me lembro, nós vivemos em periferias. Nova Esperança, Finsocial, Santo Hilário, Morada do Morro. Minha mãe foi merendeira, meu pai, mestre de obras. Foram muitas as escolas em que eu e meus irmãos estudamos, muitas as obras onde fomos levar marmita para o meu pai. Muitos lugares e pessoas diferentes. Foi daí que eu tomei gosto por conhecer pessoas e lugares, deve ser nesta época que Dona Luzimar me serviu pé de cachorro nas refeições, já que a mistura era escassa em casa. Como já disse, eu sempre fui de quebradas, apesar da total falta de jeito para ser mundano, rueiro, bicho solto. Até à adolescência eu fui um garoto de livros, mais do que de 17


bolinhas de gude ou pipas. Mas o meu local de origem é este, bairros pobres de casas pequenas. Sou negro, sou gay, sou pobre e periférico. E é este o local de onde escrevo e é por um jornalismo que contemple diversas vozes, vindas de diferentes locais que eu trabalho. Talvez por isso tenha escolhido escrever sobre lugares que me provocaram inquietações como jornalista e me tocaram, em um segundo momento, como ser humano. Outra expressão que minha mãe costuma usar é “a torto e a direito”, para se se referir a algo feito sem muito método. É uma expressão carregada de goianidade que eu tomo aqui emprestada para descrever meu fazer jornalístico. Foi a torto e a direito que eu escrevi este livro, imbuído de um tanto de faro jornalístico, outro tanto de sorte e um tanto desmedido de cara de pau. Quatro reportagens que me chegaram ao acaso, foram vividas em um golpe de sorte e escritas, cada uma, em seu tempo específico e gestadas à sua maneira. O primeiro capítulo deste livro se dedica às ruas da cidade, através da relação que cinco personagens possuem com este ambiente de trabalho. Esta matéria foi a última das quatro a ser escrita e nasceu do mais puro desespero, já que 18


uma pauta anterior caiu e eu precisava de mais um relato para concluir meu trabalho. Em quatro dias eu percorri as ruas de Goiânia abordando as pessoas em pleno exercício de suas atividades. Por sorte, acabei conhecendo pessoas incríveis que habitaram e enriqueceram não somente o meu relato, mas também a minha experiência como jornalista. Pessoas que passam a margem do ideal capitalista de sucesso, gente que tem que dar seus pulos, esbarra na ilegalidade, mas não esmorece. Foi um texto escrito com um olhar otimista, de fé no trabalhador brasileiro, por mais piegas que isso possa soar. O segundo capítulo é sobre os cinemas pornôs do Centro de Goiânia, que recebem todos os dias uma horda anônima de pessoas, ávidas por resolverem questões de ordem sexual no meio do dia, em salas abafadas. São lugares que seguem anos a fio invisibilizados ou ignorados pela população que transita atarefada pelo coração de Goiânia. Durante uma tarde, me dediquei a conhecer melhor esses recônditos do sexo clandestino. A proposta era fazer uma reportagem gonzo para uma disciplina de jornalismo de revista, cuja revista acabou não vingando. E foi esta reportagem que originou a ideia deste livro, que nasce para concluir minha graduação. 19


São relatos sobre lugares, com um viés não turístico, lugares que estão aí, mas que precisa de um olhar mais demorado e sem filtros para serem melhor decifrados. Passei um domingo visitando os cinemas, tentando entender o que leva alguém a estes lugares, para encontrar, por alguns instantes um pouco de calor humano disfarçado de sexo rápido e casual. Cheguei à noite em casa e tive um dissabor. Uma discussão com um tio sobre minha sexualidade e meus afetos acabou por me fazer um quase sem-teto, mesmo que por uma noite. Expulso da casa em que morava com minha mãe, com a conivência silenciosa da mesma, escrevi esta matéria num fôlego só, em uma varanda, na casa de outro tio, que me abrigou naquela noite. Para este livro, poucas alterações foram feitas, porque eu acredito que aquelas condições acabaram por dar àquele texto um jeito só dele. Embora isto não esteja expresso em suas linhas, é um texto feito à base da falta de amor. O Vale do Amanhecer, tema do terceiro texto, é um local que sempre habitou meu imaginário, desde criança. Na minha família, toda evangélica e provinciana, se falava sobre o local como quem descreve o inferno. Me lembro bem de ouvir 20


relatos na igreja, de pastores que iam ao local evangelizar e “enfrentar o diabo.” Carreguei esta impressão da energia ruim que poderia haver ali. Adulto, li algumas reportagens e assisti a alguns vídeos que desmentiam o meu construto interno do Vale. Quando meu namorado passou a frequentar a doutrina, me vi diante de um universo rico, diverso, infinito de histórias. Conhecer o Vale do Amanhecer e, por três dias ter acesso às pessoas, aos lugares e às histórias que permeiam aquele lugar recolocou em mim, algumas coisas em seus devidos lugares. Um reajuste cármico, como dizem por lá. Apesar de estar em primeira pessoa, não consegui imprimir nele a irreverência que me propus a princípio. Não consegui não me afetar pelas histórias daquelas pessoas, as que ainda vivem neste plano e as que já fizeram a passagem. É um texto feito à base de uma energia do amor que encontrei ali. O último capítulo deste livro narra a jornada de um jornalista ainda em formação em busca do que acreditava ser “a matéria da minha vida.” Um golpe de sorte me lançou até uma aldeia indígena no meio do Mato Grosso, local que eu desconhecia e onde qualquer coisa poderia acontecer, inclusive nada. Cheguei com a bagagem cheia de suposições, 21


calcadas em estereótipos, preconceitos e ignorâncias. Tomei um banho de humanidade e em três dias aprendi muito sobre a existência do outro. Aparei arestas de mais de trinta anos em minhas convicções. Cheguei achando que iria ser o porta-voz daquela nação, que compraria a confiança daqueles índios com meia dúzia de palavras difíceis, que eles dependiam de mim. Qual nada! Eles sabem contar a própria história, me ofereceram ajuda para coisas simples, como atravessar um rio sem morrer afogado e me deram de graça um apreço e uma amizade que carrego comigo até hoje. A este capítulo adicionei a reportagem que fiz sobre a Aldeia São Marcos para o Jornal O Hoje (edição de 17 de abril de 2015). Porque é um tema importante demais para mim e duas versões sobre a mesma história podem dar ao leitor a dimensão do que é publicado e a história real por trás desta produção. Minha jornada nasceu do meu etnocentrismo (um eufemismo para umbiguismo), mas desaguou em um dos trabalhos mais lindos que já saíram dos meus dedos. Não pela forma ou pelo conteúdo, mas pelo que me agregou como ser humano. Foi um texto difícil de ser escrito, pois foi feito à base do amor mais profundo que já senti por um lugar. 22


Para este livro-reportagem, me muni do que aprendi no campo do Jornalismo Literário, uma das formas mais emocionantes de se professar o bom jornalismo, na minha opinião. A ideia inicial era emular, em forma e linguagem, o jornalismo gonzo, este filho bastardo do jornalismo literário, em que o repórter embarca na reportagem como parte dela, com a missão de relatar tudo que ocorre, por mais bizarro que seja. O inesperado dá a tônica e quanto mais radical esse mergulho for, melhor. Gostaria muito de dizer que este livro foi escrito impregnado pelo jornalismo sedicioso de Hunter S. Thompson, pai do jornalismo gonzo, e guru máximo de gerações de jornalistas porras-loca dispostos a beber para contar. Seria verdade, mas não toda a verdade. O objetivo é, de fato, escrever relatos gonzo, com reportagens irreverentes, cheia de interferências de quem estava lá e pode contar melhor o que ocorre, sem a pretensa neutralidade, sem o jornalismo bege que se lê nos meios tradicionais. Mas há um oceano me separando de Hunther S. Thompson, e nem me refiro à distância temporal ou continental. Depois de Thompson, eu descobri Gabriel Garcia Marquez 23


e bem depois eu conheci Eliane Brum. E de nascença há em mim, as histórias de um contador de causos chamado Geraldinho Nogueira. E eu fico à deriva, nesse mar de referências. O resultado final briga com a proposta inicial, mas há entre eles uma relação amorosa, de altos e baixos. O que me salva, nesse mar de não saber ao certo onde há de se ancorar o escritor/jornalista que eu me pretendo é o filósofo e sociólogo judeu alemão Walter Benjamim. Expoente da Escola de Frankfurt, no ensaio O Narrador (2012) ele descreve o que se espera de um contador de histórias: “Entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de múltiplas maneiras. Á figura do narrador só se torna plenamente tangíveis e se temos presentes esses dois grupos.” Junto com o Benjamim, me fio também na etnóloga Jeanne Favret-Saada (1990) no trabalho Ser Afetado. Para uma melhor compreensão da feitiçaria no Bocage francês, em vez de fazer uma etnografia por meio de uma observação participante, ela se deixou entrar em transe nos ritos de seu ob24


jeto de estudo, abandonando o papel de quem relata a partir do que vê, para ocupar o lugar de quem vive a experiência de ser afetado. Passa se então a uma participação observante, onde há uma troca equivalente entre o estudioso e o objeto de estudo. Em jornalismo, isso resulta em trabalhos como o que você tem em mãos neste momento, modéstia às favas. O que você vai ler nas próximas páginas é um jornalismo gonzo que foi sem nunca ter sido. Há a tentativa, há o método, ou a falta dele. Mas existe, sobretudo a franqueza da minha fé nas histórias, ouvidas por quem comeu pé de cachorro, andou muito e conheceu gente. E gente é a matéria-prima essencial para se fazer jornalismo.

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A RUA

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“...nem todo mundo pega o papel da minha mão. Aliás, quase ninguém. Ao meu lado, um rapaz toca um violão e canta rock brasileiro dos anos 80. Começo a fazer uma relação entre as moedas que caem no chapéu dele com os panfletos que consigo distribuir.”


São cinco peças de plástico. Cada uma pesa cerca de meio quilo e tem a forma aproximada de um pino de boliche, mais alongado. Uma ponta arredondada como que parece uma cabeça, um pequeno afinamento que lhe confere um pescoço e logo toma uma forma mais grossa, como que um corpo arredondado. Cada um de uma cor, vermelho, branco, preto, azul e amarelo. O homem pega os cinco com uma das mãos. Com a outra mão, se ajeita no banco alto de um monociclo sem o guidão. Enquanto se equilibra indo ora para frente, ora para trás, suas mãos começam a jogar esses malabares para o alto. Um átimo de segundo separa um movimento do movimento seguinte, do que sucede este, e mais um, e mais outro. Dois pinos para o alto, três nas mãos, se alternando, dançando no ar ao som de uma música que só o homem escuta em seus fones de ouvido. Metade de cima do homem obedece à dinâmica do jogo de malabares, metade de baixo é uma só com o monociclo. O espetáculo dura longos quatro minutos, tempo exato para o homem se apresentar, receber a ovação da plateia (quando há) e passar um chapéu, uma ajuda, de alguém que porventura achar que aquele show merece um cachê. Este elaborado número que zomba da gravidade e brinca com leis da física tem como paga quatro reais e vinte e cinco centavos. 29


O público é uma das muitas avenidas de Goiânia, com um trânsito cada vez mais apinhado de carros. Os motoristas que aguardam o sinal verde no cruzamento das Avenidas D e Portugal, não esboçam sequer um sorriso. O homem passa entre os carros, segundos antes do sinal abrir, rápido como uma lebre, tentando adivinhar em qual janela de carro é preciso se demorar um segundo e qual carro ele pode passar batido. Quando ele chega na calçada, as mãos à frente do corpo, o chapéu na ponta dos dedos, a primeira fileira de carros já vai longe. Ele toma um pouco de água de uma garrafa pet, dá um longo suspiro cansado e só então me nota, a poucos metros, olhando para ele como quem olha um ator em seu camarim. É o primeiro dia dos quatro que separei para conhecer alguns dos milhares de trabalhadores das ruas de Goiânia. Meu objetivo é passar algum tempo com eles, em seu ambiente de trabalho e aprender o máximo possível sobre aquele ofício. Minha motivação é tão somente a vontade de dar nome e rosto às pessoas que habitam este não-lugar chamado rua. Contar algumas histórias, tornar públicas essas vivências. São cinco os personagens deste relato. Dois artistas de rua. Um prateiro. Um entregador de panfletos. Um garoto 30


de programa. Não sei explicar o que há por trás do fato de que só homens habitem esta matéria, também assinada por um homem. Curiosamente há muitas mulheres trabalhando nas ruas, vendedoras, entregadoras de panfleto, malabaristas, estátuas-vivas, profissionais do sexo. Mas pelo meu itinerário, só cruzaram homens, que pouco têm em comum, além de cavarem nas ruas o seu sustento e serem cidadãos goianienses, tendo ou não nascido aqui. Tirando isso, o que os une é algo que eles nem desconfiam: esta reportagem. A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER

O homem diz que se chama Chino. Deve ser por seus olhos levemente puxados nos cantos. Ele veste uma bermuda, suspensórios e uma camisa de manga comprida, xadrez em verde e vermelho, fechada até o pescoço. Uma gravata borboleta completa o conjunto, além de meias até o joelho. Não é o dia mais quente do ano, mas a temperatura não é exatamente amena. Seu sotaque denuncia uma origem hispano-americana. Venezuela, ele me confirma. Entrou no País de bicicleta, em um comboio, ao lado da mulher e mais um tanto de artistas circences, vindos de toda parte do Sul da América. Chegou por Rondônia, atravessou a Amazônia, conheceu o Pará, viu Palmas de perto e veio para Goiânia. 31


Ficou por aqui um tempo apresentando sua arte em sinaleiros. (A partir de agora só vou usar a palavra sinaleiro, como se fala em Goiás. Se você está em outro estado, por favor, substitua pelo correspondente: sinal, semáforo, farol, ou coisa que o valha.) Então Chino saiu de Goiânia, rodou o litoral carioca, o sertão mineiro e voltou para cá. O motivo: sua mulher está grávida e ele quer que seu filho nasça aqui. Durante a tarde que passei com ele, foram 21 as vezes que Chino fez seus malabares voarem a bordo de seu monociclo. Nem todas foram bem remuneradas. Algumas não renderam nem uma moeda. Outras, um ajuntado de níqueis e notas rendem quantias várias, cinco, dez, vinte reais. “É a crise. Em janeiro é sempre mais difícil,”. Não há uma quantia específica para seus ganhos mensais. A mulher, até os primeiros meses de gravidez também trabalhava nos sinaleiros, se equilibrando em uma corda. Eles moram em uma casa no Setor Sul, com um filho, de nove anos e outros dois artistas de sinaleiro, vindos da Argentina. Ao fim do dia, percebo que não tenho bateria na câmera para tirar um retrato do artista quando astro. Pergunto se posso voltar no dia seguinte. “Mas não vou estar aqui. Não posso ficar todo dia no mesmo sinaleiro. Porque são os mesmos motoristas, então não vão me dar dinheiro de novo.” Combino de encontrá-lo em um sinaleiro da Praça Cívica, no dia seguinte, no mesmo bat-local e no mesmo bat-horário. 32


No segundo dia, estou no local combinado e... o Chino não aparece. Vou a outros sinaleiros e nada do venezuelano. Encontro um argentino fazendo um número de mágica em frente ao Bosque dos Buritis e resolvo perguntar se ele conhece o Chino. Por sorte, este é um dos que vivem com ele e a família. O argentino, baixo e bigodudo não me dá muita bola, mas me conta que o amigo teve que ir ao hospital, pois sua mulher havia passado mal na noite anterior. Será que entrou em trabalho de parto? Chino, se você estiver lendo, espero que esteja tudo bem com você e com sua família. E que seu filho tenha nascido bem. No ônibus do Eixo, voltando para casa, ainda estou desolado por não ter encontrado minha fonte. De repente, para um rapaz, ao lado do banco onde estou sentado. Um tipo normal, um garoto comum, desses das baladinhas modernas de Goiânia. Mas algo chama minha atenção: em cada uma de suas panturrilhas há uma tatuagem. Na perna esquerda, um sinaleiro, com a luz vermelha brilhando, enquanto as outras duas estão opacas. Na outra perna, o desenho de um palhaço, sobre um monociclo, jogando três bolinhas para o alto. Se isso não é um sinal divino, não sei mais o que seria. Puxo assunto, me apresento, conto o drama de precisar fechar esta reportagem e ele topa ser meu personagem. Mais tarde, eu o encontro na Avenida 84, entre as praças 33


Cívica e do Cruzeiro, acima do Centro de Goiânia. Gabriel, assim se chama o malabarista, de 23 anos. Malabarista e músico. Sua performance consiste em: tocar, com uma mão e a boca, um pequeno trompete enquanto equilibra, na outra mão, três esferas de vidro. Uma vermelha, uma transparente e uma âmbar. Ao fim da música, ele pendura o trompete no cós da calça, retira mais uma bola – verde – do bolso e faz manobras mais elaboradas. Lança as bolas para o alto; equilibra uma delas na testa; faz outra rolar de uma mão à outra, passando pelos ombros e pela nuca. Finge que ela levita num campo de força invisível entre suas mãos. Tudo isso em inacreditáveis três minutos. A plateia parece um pouco mais empolgada do que a do Chino e mais disposta a colaborar com o artista de rua. Ao todo, Gabriel arrecada no intervalo entre as 17 e as 20 horas, cerca de 60 reais. Não é sempre assim. Às vezes tem mais do que isso, na maior parte dos dias, menos. Para quem está dentro do carro, o trabalho de Gabriel é só um detalhe compondo a paisagem, alguém que fez algum número em um dos muitos sinaleiros que existem no caminho de casa, ou do trabalho. Para quem observa de fora, como eu, é um trabalho monótono, apesar do valor artístico envolvido. Chega uma hora que não é mais tão mágico escutar Bandeira Branca, pela vigésima vez, em um instrumental de trompete. 34


Mas para Gabriel, é mais que um meio de vida. É a maneira como ele se conecta com o mundo. A arte circense, que entrou em sua vida por acaso, em um curso de férias, se tornou uma filosofia de vida. “A maneira com que eu me relaciono com o dinheiro, com as pessoas, com a cidade, com o trânsito, com tudo, passa pela beleza que eu enxergo na arte que eu faço,” ele explica, já se preparando para entrar em cena, quando o sinal fechar. TRAGO A PESSOA AMADA EM TRÊS DIAS

O rapaz franzino parece ter menos que os 20 anos de nascença. Tudo nele é timidez, a voz baixa, a postura um tanto curvada. Não diz muita coisa, pelo menos não com palavras. O olhar é um pedido de desculpas por algum erro que ainda nem cometeu, mas sabe que pode vir. O sorriso é algo entre o indeciso e o arrependido, como se não tivesse certeza de que é daquele jeito que se sorri. A mão esquerda segura um maço de papéis com mais de mil panfletos. A outra, estendida, oferece um papel a quem passa, esperando que alguém pegue. Estamos na Avenida Anhanguera, perto da Avenida Goiás, o cruzamento mais importante da cidade. No meio do cruzamento, o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva está de costas para nós. Mateus está em sua primeira semana de 35


trabalho, como entregador de panfletos. Quando me viro e demonstro estar interessado não no papel em si, mas no ofício de distribuir panfletos, ele toma um pequeno susto. Não parece normal para ele que alguém interrompa seu trajeto e pare para fazer perguntas. Então ele começa a falar. Baixo e devagar. Aos poucos, se acostuma e conta como foi parar ali. O rapaz foi contratado pelo médium Professor Sousa, que presta trabalhos espirituais para abrir caminhos e fechar corpos, em todas as áreas, pelo menos é o que está na propaganda. Há erros de ortografia e de concordância verbal por todo o panfleto. Mas o conteúdo é muito interessante. O Professor Sousa pode revelar: se você é vítima de invejoso, do olho gordo ou do falso amigo; se tem obras de feitiçaria, macumba, bruxaria ou maldição em sua vida ou família. Pode também “tirar vícios de droga ou álcool” (sic) e tratar frieza sexual, amarrar ou desamarrar a pessoa amada, bem como trazê-la em três dias. O texto, demasiado longo é ilustrado por duas singelas pombas voando em um fundo rosa e azul. Mateus ainda não sabe ao certo quanto vai ganhar, mas imagina algo em torno de 200 reais por semana. Ele ainda não combinou direitinho esse detalhe com o Professor Sousa. Tudo depende da quantidade de pessoas que vão procurar o consultório esotérico. Próximo ao Pathernon Center, na rua de trás de onde Mateus faz panfletagem, o consultó36


rio do Professor é uma sala pequena, com poucos adornos, uma mesa, dessas de escritório e duas cadeiras. Na fachada, a imagem de Iemanjá, com os dizeres “Amor – Negócio – Vício – Inveja – Fazemos qualquer tipo de trabalho espirituais (sic).” Ele joga cartas, tarô e búzios e após a consulta ao além, indica a melhor forma de reverter a ziquizira com algum trabalho, amarração ou simpatia. O valor da consulta é de 200 reais, e os trabalhos feitos a partir daí custam de 600 a 1000 reais. Um único cliente paga o salário do Mateus e ainda sobra para as modestas refeições do garoto: um salgado e um suco duas vezes por dia. “Eu não sou muito de almoçar,” explica ele, que chega às 9 e vai embora às 17. “Então eu como um salgado perto da hora do almoço e depois como outro ali pelas três horas.” Mateus não tem uma meta de panfletos para distribuir por dia. Pega um novo pacote com mil, divididos em cinco pacotes com 200, cada vez que o anterior acaba. Peço a ele para distribuir alguns. Me coloco do outro lado da Anhanguera, na calçada do Itaú e começo a panfletar. Em cinco minutos já estou achando aquele o trabalho mais desinteressante do mundo. Não é fácil como parece, pois nem todo mundo pega o papel da minha mão. Aliás, quase ninguém. Ao meu lado, um rapaz toca um violão e canta rock brasileiro dos anos 80. Começo a fazer uma relação entre as 37


moedas que caem no chapéu dele com os panfletos que consigo distribuir. Não está fácil para nenhum dos dois. Ele tem uma das pernas amputadas, e tocar violão é a única coisa que ele pode fazer para fechar bem o mês, já que a aposentadoria não dá pra muita coisa. Ele canta doze músicas em uma hora, eu distribuo uma centena de panfletos. Ninguém fala comigo, nem me olha direito nos micro segundos que se leva para decidir entre pegar um papel ou ignorar o ser humano em seu caminho. Uma senhora tem a bondade de me dizer por que nega minha mão estendida: ela é evangélica. Mas não me olha no rosto. Mateus diz não se importar com isso: “é uma coisa que faz parte, ninguém é obrigado a pegar o papel da mão da gente.” Eu não sinto o mesmo. É um trabalho digno, dos que pagam as contas e sobra pra um chope no fim de semana, mas não recomendo para quem tem problemas de autoestima como eu. GARIMPEIROS DO ASFALTO

Os homens-placa não existem mais. Ou melhor, os homens ainda estão lá, mas as pesadas placas de propaganda que vestiam o torso deles foram há tempos substituídas por coletes de tecido. A grossura do brim, na pele dos homens, sob o cimento das marquises de concreto, sufocadas por fachadas de alumínio que ardem sob o sol inclemente do meio 38


da tarde, no meio do Centro de Goiânia, é uma porção de vezes menos desconfortável que o peso de duas placas de madeira unidas por duas tiras de tecido que pesavam sobre os ombros. Tirando isso, tudo continua igual. A cor é a mesma, amarelo-ovo. O reclame é o mesmo, COMPRO OURO, em letras garrafais, mas agora eles têm um nome profissional de que se orgulham mais do que ser homem-placa. Eles são prateiros. Mas poderiam ser oureiros. Ou bronzeiros. José Simão tem 62 anos e é prateiro há três. Antes disso foi guarda, servente, auxiliar de limpeza. Agora complementa a aposentadoria com o salário mínimo que ganha para ser um garimpeiro do asfalto. Viúvo, o homem anda bastante arrumado. Por baixo do colete amarelo, ele usa uma camisa abotoada até o colarinho, preta, bem alinhada. Uma corrente no pescoço, pesada, em ouro – “é ouro mesmo, 18 quilates,” garante – pelo menos um anel em cada mão, relógio e óculos escuros, para dar a ele uma pinta de galã. Seu porte e seu jeito comunicativo contrastam com os outros prateiros das redondezas, velhos com caras tristes, sentados e amuados em seus tamboretes. “Eu gosto de ser prateiro porque eu vejo muita gente, converso. Não consigo ficar dentro de casa, sozinho, gosto mesmo é da rua,” diz ele, sorrindo. Ese jeito simpático do cearense – que mais de 40 anos de goianidade não fizeram perder o sotaque – deve ajudar a 39


encontrar ouro nas calçadas. Seu trabalho funciona assim: a pessoa tem uma joia de família, uma aliança que resistiu ao fim de um casamento, qualquer coisa de ouro ou prata e precisa de dinheiro rápido para sair de um sufoco financeiro. Aí ela procura um dos senhores do colete amarelo e eles encaminham-na para um escritório (ou joalheria) nas proximidades, onde um ourives avalia o valor da peça e paga em cash o valor. Além de José Simão, são mais outras duas dezenas de homens que ocupam as calçadas da Avenida Anhanguera, no Centro, num espaço que vai da Rua 24 até a Avenida Goiás, nos dois sentidos. Quatro quarteirões. São sempre homens, quase sempre velhos, já aposentados, que somam ao parco benefício o salário de prateiro. Alguns fazem outros biscates, como distribuir panfletos ou guardar carros. Cada um tem o seu lugar fixo, seu ponto na calçada. Seu banquinho próprio. É um acordo tácito, cada um fica em seu espaço. Seu José Simão fica na calçada da Ricardo Eletro, no meio da quadra. Na esquina, a pouco mais de 200m fica outro senhor, negro de barbas muito brancas que trabalha para outro patrão. José Simão me garante que também recebe uma comissão sobre o valor negociado com os clientes. Mas não especifica quanto. “Anteontem eu consegui um negócio de mais de 1700 reais”, ele me diz animado. Eu devo ser o maior pé frio, pois passo um dia inteiro com ele, das 9 às 17, e não 40


presencio um cliente sequer oferecendo algo para vender. São os ossos do ofício: “É assim mesmo, um dia a gente tem muito, no outro não tem nada. Sem querer, José Simão deixa escapar que aceita produtos vindos de forma ilícita, fruto de roubo. “Não tem como eu saber, também eu não fico perguntando demais,” ele diz. O trabalho de prateiro, pelo menos em Goiânia, não é regulamentado na CLT, alguns sequer trabalham de carteira assinada. Os homens recebem duas refeições diárias, um marmitex no almoço e um lanche à tarde. Também não é permitido sair do posto de trabalho, a não ser para levar um cliente até o patrão. Já houve um caso de um assaltante fingir que tinha joias para vender e render o prateiro e seu chefe no escritório, com uma arma. Distrações também não são bem vindas, como um repórter curioso querendo acompanhar o trabalho dos prateiros. “O chefe não vê com bons olhos gente perguntando demais,” diz José Simão, após receber um telefonema do patrão. Percebo que há uma ameaça ao emprego do homem. Já é quase fim do dia. Decido ir embora. VENDE-SE PRAZER

Já é noite oficialmente há mais de duas horas, quando desço do ônibus à Praça do Bandeirante, coração em forma de estátua no cruzamento das artérias mais importantes do Centro 41


da cidade, as avenidas Goiás e Anhanguera. Com o horário de verão, passa das oito horas quando finalmente se pode dizer que é noite de fato, se considerarmos que noite é escuridão. O barulho e a desordem que davam o tom do dia já se foram, deram lugar ao silêncio em que trabalham, sete dias por semana os garotos de aluguel. O espaço é restrito: uma quadra, entre as ruas 2 e 3, a maioria nas esquinas do Bradesco e do Banco do Brasil. As transações financeiras do dia talvez nem sonhem que à noite se negociem naquelas marquises alguns bocados de prazer em troco de notas de 20 reais. Os carros descem a Avenida Goiás, sentido Anhanguera, viram na Rua 3, sobem a Rua 7 e voltam pela Rua 2. De longe dá para sacar quem está a caça de um boy: os carros andam mais devagar, o motorista com o rosto virado para a direita, o olho fixo na calçada. Os rapazes sinalizam estar disponíveis encarando de volta, ou apalpando o pênis sobre a calça. Após encontrarem o que procuram, o destino geralmente é um dos motéis do Baixo-Centro, próximos à Rodoviária. Demora muito pra ir até os motéis da BR, na saída para São Paulo, há de se ter pressa. Um prédio em frangalhos na Rua do Lazer também costuma ser freqüentado. Quartos sem piso, lençóis sebosos e canos sem chuveiros, 10 reais por uma hora. Bom negócio para quem tem pressa. 42


Encontro meu guia da noite na Rua 3, na calçada do Grande Hotel. Já havíamos combinado o tour antes, por telefone. Henrique, nome inventado para o ofício, me diz que é cedo para começar os trabalhos. Me convida a ir até o Bate Papo, bar na mesma rua, frequentado majoritariamente pela população LGBT do Centro. Aceito, primeiro porque não tenho planos de andar por aí sem a ajuda dele e segundo, porque estou com muita fome. Já no bar, um autêntico “pé sujo,” ele me apresenta alguns de seus amigos e pede uma cerveja, enquanto eu escolho um petisco gorduroso de linguiça de porco. “Eu preciso dar uma relaxada antes de começar.” Então me começa a contar pormenores da noite. Henrique tem 22 anos e desde os 18 faz programas. Sua aparência é bem comum, nada do que se imagina quando se pensa em um garoto de programa. Magro, sem músculos, estatura mediana, pele morena, cabelos pretos raspados bem baixinho. Não é feio. Mas não é lindo. Ele me explica que esses tipos – caras malhados, cabelos sedosos e olhos claros não fazem ponto nas ruas. “Eles estão na internet, são outro padrão, oferecem outros serviços e cobram mais caro por serem bonitos. Pra ficar na Goiás não precisa (ser bonito), precisa ter um pinto e nem precisa ser muito grande, médio já dá pro gasto.” É que, segundo ele, quem procura pelos serviços dele e dos outros rapazes não são pessoas muito exigentes em relação a padrões de beleza. 43


Ele me conta que não faz disso sua profissão. “Aqui é só uma diversão, eu frequento os bares do Centro, as boates e de vez em quando passo aqui para transar e ganhar um dinheirinho. Mas tenho outro emprego, estudo. Aqui é só farra,” ele me diz. Pergunto se ele atende homens e mulheres, mas ele é rápido na resposta: “mulher, nem por 5000 reais. Não é que eu não queira, já até tentei, mas não dá, não sobe.” Uma travesti se aproxima da nossa mesa, ele me apresenta a ela, Carla, que começa a brincar comigo: “nossa, que delícia, vamos lá pra casa?”. Eu brinco de volta e a convido para se sentar conosco. Tomamos outra cerveja e eu cometo a maior gafe da minha vida. Pergunto a Carla se ela me levaria onde as travestis fazem ponto no Centro. Ela, sorridente e polida me responde, sem alterar o tom da voz: “Elas eu não sei onde fazem programa, mas eu bato ponto às 7 da manhã na cozinha da minha patroa, faço almoço e jantar e volto pra casa, pra tomar uma cervejinha. Sexo, só de graça, meu bem.” Lívido e sem saber onde enfiar a cara, eu peço um monte de desculpas, mas acho que todas são insuficientes perto da bobagem que eu cometi. “Relaxa,” ela me diz, “É comum as pessoas confundirem.” Mas nada justifica minha atitude. Henrique me salva do desconforto pedindo a conta. E então vamos para o local de trabalho dele, na Avenida Goiás. 44


São uns dez ou 12 rapazes, dispostos nas calçadas usando roupas normais, calças jeans, camisetas, bermudas. Nenhum parece ter mais de 30, eu pareço um tio deles. Mas nenhum é menor de idade, pelo menos é o que dizem. Logo, eu não pareço ser tão velho assim perto deles. Alguns vêm todos os dias, porque precisam de dinheiro, para estudar, pagar as contas, comer. Outros, como o Henrique, usam o dinheiro para sair, comprar roupas melhores, então não aparecem sempre, só quando pinta vontade. Alguns precisam de dinheiro para comprar drogas, e esses casos são tristes, porque, segundo Henrique, eles sequer gostam de se relacionar com homens, mas o fazem pela facilidade de conseguir clientes. E há ainda, espalhados pelas ruas ao redor os que nem cobram, estão ali pelo prazer da pegação. E há espaço para todos eles, que parecem coabitar em harmonia. A rotatividade é relativamente grande, ninguém espera muito pra atender um cliente. Carros passam sem parar. “A grande maioria é de homens casados,” me diz Henrique, “normalmente dizem que vão atrasar no trabalho e passam aqui, pra dar uma rapidinha.” Rapidinha mesmo: pelas regras dos rapazes, a transa dura até o cliente gozar. Não passa de uns 40 minutos. “Gozou, acabou, se o cliente quiser mais, tem que pagar por outro programa” diz o pragmático rapaz. 45


O preço varia, mas a maioria faz uma completa (sexo oral e anal) por 60 reais. Alguns são versáteis (ativo e passivo), mas a maioria diz ser apenas ativo. Mas se o cliente pagar a mais, pode-se negociar. Um ponto que gera celeuma entre eles é quando ao bareback (sexo sem camisinha). Todos dizem que não fazem, jamais fariam. Mas todos conhecem um amigo que já fez, quando o cliente pagou mais pra transar sem proteção. Perto das 11 da noite, um carro branco para e chama Henrique. Eles conversam um pouco e de repente apontam pra mim. Henrique vem até mim, com um sorriso no rosto. – Ele ta perguntando se você não tá a fim de vir junto. – Junto como, tipo uma suruba? – É, ele gosta de fazer a três, e quer saber se você topa. – Ele vai pagar o dobro? – É, mas aí você me dá uma parte do seu, porque eu que tô arrumando o cliente, né? Penso por três segundos. Até que seria uma história legal pra se contar pros netos: “o dia em que me prostituí para fazer uma reportagem.” Mas, por outro lado, a matéria não depende disso e – razão determinante – o cliente não me atrai nem um pouco. Resolvo que não, fica para a próxima. Henrique chama um colega para o trabalho e eu vou embora, levemente encabulado pela ideia de que alguém pagaria 46


para transar comigo. Metade de mim está ofendida, mas a outra metade se sente lisonjeada. Mateus distribui promessas de magia durante o dia, na mesma rua em que Henrique reina à noite, mas eles nunca se viram; Henrique talvez tenha visto os malabares de Chino deslizando pelo ar, em algum cruzamento das ruas do Centro, mas eles não se conhecem; Chino é colega de profissão de Gabriel, mas nunca trocaram uma ideia; Se José Simão ouvir a música que Gabriel toca em seu trompete, talvez se lembre de Dalva de Oliveira cantando no rádio, mas nunca o ouviu de verdade; E é possível, provável e certo que José Simão passe todos os dias por Mateus, seu vizinho de lida, talvez pegue ou talvez recuse o panfleto das mãos do garoto.

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Matheus

Henrique

Chino


Sr. José Simão

s

Gabriel

Google Maps





O CENTRO

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“...um homem de meia idade está com as calças arriadas e a camiseta levantada, se exibindo pra quem conseguir enxergar algo na sala escura. Sentado numa das últimas fileiras, um homem recebe um boquete de outro, ajoelhado no chão.”


São homens diferentes, de diferentes idades. Às vezes travestis, quase nunca mulheres. Quase sempre homens: Velhos, moços, com emprego, sem emprego, sóbrios, bêbados, que vivem por perto, que vêm de longe. Homens que podiam ser o pai, o irmão, o namorado, o filho de qualquer um de nós. Chegam à porta do cinema, dão uma olhadinha em volta, pra ver se não tem ninguém reparando. E entram. Durante uma tarde de domingo eu sou um desses homens e vou conhecer três dos mais freqüentados cinemas eróticos do Centro de Goiânia. Durante décadas, até meados dos anos 90, os cinemas de rua eram destino certo da diversão da família goianiense. Cine Santa Maria, Ritz, Astor, Frida e Ouro reinaram até o advento das salas multiplex dos shoppings, que brotaram como praga na cidade. Com exceção do Ritz que segue firme e forte com medalhões de Hollywood em versões dubladas, os cinemas de rua de Goiânia se dividiram em dois pólos. Ou viraram igrejas evangélicas ou atendem o público extremo oposto, como templos do sexo, recebendo infiéis de todas as hordas a preços bem acessíveis. Num domingo, no meio da tarde, começo a minha peregrinação pelo caminho dos cinemas eróticos do centro da cidade, pra saber bem ao certo o que acontece nesses lugares 55


(bem, há como imaginar). E também para descobrir como, em tempos de pornografia de graça na internet, esses “mercadinhos da punheta” sobrevivem. A missão é clara: entrar, ver tudo, interagir apenas o quanto for necessário e relatar, tentando não julgar, o que seria ouvido e visto. Para isso tenho que estar à paisana, nada de me identificar com um “oi, eu sou repórter e queria te entrevistar”. Decido que meu nome vai ser Bruno, caso precise me apresentar. Mas antes de prosseguirmos por esse arremedo de jornalismo gonzo precisamos deixar um ponto acertado. Eu sei o que rezam as boas cartilhas do ramo, está em qualquer manual de redação, sobre quão condenável é o uso de palavras vulgares nos textos escritos. Mas me responda, como contar histórias de sexo clandestino em recônditos abafados usando termos técnicos como pênis, vagina, coito, felação? Desculpe-me se esse texto de alguma forma ferir as suscetibilidades de vocês, nobres leitores, e se for o caso, o aconselho a passar direto pras próximas matérias deste livro, tão melhores que esta em forma e conteúdo. Mas se ficar – e eu espero que fique – saiba que aqui é pau, é boceta, é o fim do caminho. Dito isso, passemos às preliminares, digo, ao início da saga da sacanagem em três atos.

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CINE SANTA MARIA

O primeiro cinema de Goiânia foi inaugurado em 1939, a cidade ainda era um canteiro de obras, quase nada a não ser poeira e umas poucas casas espalhadas pelo Centro. Com poucos recursos, cadeiras improvisadas e sem declive, quem chegava primeiro se sentava na frente e quem ficava atrás que se virasse pra tentar assistir ao filme. O cinema era então a novidade do século e com o passar do tempo, este cinema em particular foi ganhando ares luxuosos. Ao longo dos anos, o pioneiro Cine Goiano virou Cine Popular depois Cine Santa Maria. E é exatamente este nome que me motivou a conhecer o rendez-vous que acontece lá dentro. Não há como não se perguntar por que diabos um cinema pornô tem nome de Santa. Então é domingo, o Centro está vazio e as lojas estão fechadas. Na Rua 24, logo abaixo da Avenida Anhanguera, a fachada é discreta, num prédio antigo que dá claros sinais de já ter visto dias melhores. Outrora o cinema xará da mãe de Jesus já foi um dos símbolos da era de ouro da Capital de Goiás. Por ali passaram as mais ricas famílias da época em seus melhores trajes, suspirando por galãs como Cary Grant e torcendo por mocinhos como John Wayne. Mas quem brilha na tela hoje são estrelas do quilate de Carlos Bazuca e Márcia Imperator, da onipresente produtora de filmes adultos Brasileirinhas. 57


Logo que chego sou saudado pelo segurança, um tipo de meia idade, baixo, mas corpulento. “E aí, fera?”, ele manda, de forma nada intimidadora, apesar da postura de leão-dechácara. Olho para o cartaz, um título tão sutil quanto misterioso: Ela Leva Dois. Chego à bilheteria e ouço o segurança dizer: “Peraí que eu tô indo aí”. Pelo visto ele também leva dois (empregos). O ingresso é dez reais, mas como cinema é cultura e cultura no Brasil é coisa séria, estudantes podem pagar meia-entrada. Pago as cinco dilmas e passo pela catraca, esperando encontrar um pandemônio, um oba-oba, um ninguém é de ninguém. Um banho de água fria: encontro um saguão quase vazio, exceto por uma travesti visivelmente entediada que examina demoradamente suas unhas e dois senhores que ouvem rock dos anos 80 num celular. No antigo Cine Santa Maria havia um baleiro que era a tentação de crianças de todas as idades, com doces, balas, tudo que fazia o paraíso prometido a quem sucumbia ao prazer da gula antes dos filmes. Hoje em dia, não há mais baleiro e o pecado da carne se dá de outras formas. Mas há um freezer com cerveja gelada, conhaques de qualidade duvidosa, vinhos em garrafa de plástico e a indefectível catuaba selvagem. Não é por falta de incentivo alcoólico que alguém deixa de se divertir aqui. No canto oposto do freezer há uma 58


escada, que dá para uma galeria superior e a porta de um único banheiro coletivo para todas e todos. Decido ir ao banheiro, preciso fazer o número um e dou de cara com um funcionário terminando de limpar o recinto. E olha, é dos mais caprichosos. Arrisco a dizer que é mais limpinho que muito banheiro de casa de família por aí. Entro numa das quatro cabines e percebo que o funcionário terminou o serviço e saiu. Percebo também que alguém entrou em seguida e me assusto ao perceber que um homem me vigia pela fresta da porta. Termino o xixi, abro a porta e dou de cara com um homem gordo me encarando. Tento passar por ele o mais rápido que consigo, mas não sou bem sucedido: ele sussurra “quero mamar” e eu saio sem nem olhar pra trás. Não tinha pensado em como reagir se alguém me abordasse com alguma proposta indecorosa. E agora, José? Decido que, caso aconteça de novo, responderei que não, de uma forma cortês, porém firme. Entro na sala escura finalmente, uma pesada cortina de veludo separa o de dentro do de fora. Resquício do velho Santa Maria, eu suponho. Logo colado na parede próxima ao portal, um homem de meia idade está com as calças arriadas e a camiseta levantada, se exibindo pra quem conseguir enxergar algo na sala escura. Sentado numa das últimas fileiras, um homem recebe um boquete de 59


outro, ajoelhado no chão. Logo mais à frente, uma travesti realiza um trabalho manual num outro senhor. Um rapaz é abordado por um homem mais velho e responde “eu tô de boa.” Entendo que é a senha pra ser deixado em paz. Anoto mentalmente pra usar, caso precise. O filme em exibição no telão gigantesco, Ela Leva Dois, deixa parte da sala numa penumbra, todo gato aqui é pardo. Na tela uma loira de cabelo curto, muito bronzeada masturba dois caras, cada um mais cabeludo que o outro. Há pelos em todas as regiões possíveis. Eles estão num sofá e ela usa uma sandália dourada com um salto tão fino que a qualquer momento pode perfurar têmporas. Isso não me desperta tesão, me dá agonia. No fundo da sala há uma salinha menor, onde alguns homens assistem, numa TV de 20 polegadas a um filme gay. Quer dizer, supõe-se que era um filme gay, pois o conflito todo do filme era uma pessoa sodomizando outra, porque o corte da imagem não permite ver nada além de um pau e um cu em close e numa sequêcia interminável. Ao lado há outra salinha, só que sem nada e num breu total. É o dark room, uma sala onde é possível fazer de tudo com todo mundo e jamais se saber quem fez o quê com quem, como, quando, onde e por quê. Mas a julgar pela pouca quantidade de gente circulando, não haverá de ser muito 60


usada. O ar abafado e o cheiro de cueca suja me expulsam de lá. O filme da sala maior está há dez minutos no mesmo ramerrame da loira tocar uma pros caras então eu resolvo dar uma volta. Na galeria superior fica o que já foi um dia um camarote exclusivo da mais fina flor da sociedade. Hoje é impossível andar sem esbarrar em alguma poltrona fora do lugar. Há aqui e ali uma interação entre homens e ao fundo uma travesti atende com bastante vigor um senhor de meia idade. (Digressão: como o nobre leitor pode reparar, quase todos os homens aqui são de meia idade, então vou abandonar esta epígrafe cafona.) Quase não dá pra ver a tela então eu saio. Não sem antes tropeçar num buraco no assoalho e quase me estabacar no chão. No saguão, o celular do moço agora toca Roberto Carlos, Eu te amo, te amo, te amo. Vou dar mais uma conferida no banheiro. Um homem lava o pau na pia com a maior sem-cerimônia. Ele sai e eu entro num reservado quando duas travestis, a entediada do saguão e outra que parece ter chegado agora começam o papo mais surreal do mundo: “Bicha, a travesti quase matou uma bicha gay lá na Total Flex ontem.” “Bicha, que bicha perigosa essa, quem era?” 61


“A bicha travesti é a Deise, bicha, agora a bicha gay é que eu não sei. Certeza que é uma bicha maconheira.” “Bicha, mas as travesti tão (sic) perigosa mesmo, matando até as bicha gay” Quase interrompo a conversa para pedir mais detalhes desse caso, tamanha a curiosidade. Volto pra sala de exibição e a loira do filme agora está sendo duplamente penetrada pelos dois caras cabeludos os três em pé, uma posição que deve ser tão desconfortável quanto o intercurso sexual em si. O salto da sandália continua lá, podendo perfurar a carne de algum deles a qualquer momento. Ainda em pé, sou abordado pela mesma travesti que antes atendia na galeria superior. “Oi meu bem” ela diz com uma voz maviosa. Começo a dizer um oi e pretendo emendar com um tudo bem, mas ela é mais rápida e já leva a mão certeira no meu pau, antes de eu terminar a frase. “Vamos brincar?”, ela diz. “Não, eu tô de boa.” Funciona mesmo. Resolvo ir embora e na bilheteria dou mais uma conferida nos cartazes dos filmes. “Não gostou do cinema?” 62


Era o segurança. Ao ver que eu me assusto ele continua: “entrou no cinema errado, né?” Deve acontecer muito. Respondo que “não, tô de boa” e aproveito pra perguntar algumas coisas sobre o cinema. Parece a deixa pra ele me contar tudo que eu sempre quis saber sobre o Cine Santa Maria, mas não tinha a quem perguntar. Jackson é apenas a fonte dos sonhos de qualquer jornalista. Do começo: o cinema está quase vazio porque neste domingo ocorre a Parada Gay de Senador Canedo (cuja existência eu desconhecia). Ele trabalha no cinema há mais de 10 anos e garante: nunca fica vazio, principalmente durante a semana. Se for hora de almoço então, nem se fala. Ele diz que quem mais freqüenta são “os bêbados que vem pra foder com os travesti (sic).” Evito fazer qualquer referência à piada do “cú de bêbado”, tudo tem um limite. Segundo ele, é um local seguro pra elas fazerem programas. Ele garante que o cinema não leva nada do que elas ganham com isso, elas só pagam o ingresso. Quanto à história do lugar, resumidamente é: o dono do Cine Santa Maria, Luis Mendes, deixou o cinema para que o filho tomasse conta. O cinema sobreviveu como pode à invasão dos shoppings até 1995, quando fechou as portas e voltou um ano depois com o mesmo nome, mas já com peladezas e sacanagens, conquistando o público que na época 63


só tinha umas revistas e fitas cassete pra se consolar. Hoje ele repassou o ponto para um “empresário do Norte”, conforme me garantiu o Jackson, que não quis me dar o contato nem dizer o nome do dito cujo. E finalmente, porque o cinema se chama Santa Maria, afinal? Não se trata de um sacrilégio contra os bons valores cristãos, guardem aí seus terços. Acontece que Santa é o primeiro e Maria o segundo nome da mãe de Luís, Santa Maria Mendes. Onde reside a maior heresia, bater uma punheta vendo pornografia em um lugar com nome de uma santa ou com o nome da mãe de alguém? Pense um momento na seguinte cena: gente se pegando em um lugar que tivesse o nome da sua mãe. Não é moralismo, juro. Só é meio, sei lá, estranho. Enfim, vou trabalhar isso na análise e parar de encher vocês. O cinema padroeiro dos pecadores, que roga por nós na hora do orgasmo pode desaparecer: o prédio está à venda e fora problemas estruturais como um esgoto que jorra na calçada, há ainda a possibilidade do novo dono não querer ali um estabelecimento tão sui generis. Mas com certeza o “Santa”, como é conhecido entre as flores do bas fond, entrou para a história, pela porta da frente e pela porta de trás. Afinal,é como disse o Jackson: “De santa aqui é só o nome.” 64


CINE APOLLO

Ando cerca de 200 metros até Avenida Anhanguera e preciso refazer meu roteiro. O próximo cinema seria o Cine Astor, também seria um cinema de marcação homem a homem. Mas como a Parada Gay de Senador Canedo deve ter atrapalhado o movimento por lá também, prefiro deixar pra mais tarde. Me dirijo ao paraíso sexual do homem heterossexual liberado: o Cine Apollo, ali bem pertinho, na Anhanguera mesmo, no sentido Praça do Botafogo. Com uma fachada que anuncia de cara todas as atrações, o cinema tem um toldo e as paredes externas pintados de vermelho. Sugestivo. Ao contrário dos demais cinemas, que começaram exibindo filmes para a família e depois entraram no ramo do pornô, o Cine Apollo já começou com esta proposta lá pelos anos 80 e desde então, de domingo a domingo exibe além de filmes, strip tease e shows eróticos com participação da platéia. Seu maior rival é o Cine Fênix, no final da Avenida Goiás, com atrações similares. Na bilheteria a meia-entrada é seis reais e além de cartazes com os filmes do dia há um pôster em tamanho real da atração da noite. Neste dia a estrela é Muriel Lima, uma morena tatuada, com cara de hippie, muito sensual. Há ainda cartazes informando que é proibido filmar ou tirar fotos dos shows. Ou seja, o que acontece em 65


Las Vegas, fica em Las Vegas. Ao passar a catraca, uma escadinha e mais uma plaquinha: “permitida a entrada somente de casais”. Isso significa que além de shows públicos existem também o exercício da profissão mais antiga do mundo pelas estrelas da casa. Entro na sala principal e, se não me falha a memória não mudou quase nada. Nunca contei isso para ninguém, mas já conhecia este cinema de uma visita feita há uma década na companhia de um amigo. Foi ali que vi, completamente hipnotizado as irmãs Rubi e Esmeralda (parentesco tão fajuto quanto os nomes maravilhosos, desconfio) evoluírem no palco ao som de Total Eclipse of the Heart e foi ali também que vi um filme onde um anão seviciava uma loira com um objeto cônico de acrílico que eu jamais saberei do que se tratava. Esse tipo de coisa marca a memória de um homem tanto quanto a saga Emanuelle nas madrugadas de sábado com a TV quase no mudo pra não acordar os pais. Mas o filme que eu vejo está longe de ser lúdico como o do anão com o dildo de acrílico. O filme disputa atenção com o som de um arrocha (ou tecnobrega, sei lá) que sai do fundo do estabelecimento. Vou conferir e encontro um bar pequeno, com luzes piscando sem parar (são quatro horas da tarde, precisa mesmo dessas luzes?). Há uma jukebox num canto que emenda arrocha com 66


sertanejo, com tecnobrega, com Amado Batista e culmina no Roupa Nova. Ecletismo, seu nome é Cine Apollo. Numa mesa perto da porta um senhor com pelo menos sete décadas e meia na cara apalpa uma loira gordota com batom no dente. Ela o chama de tio e grita com ele, em parte pelo volume da música, em parte pela aparente surdez do velhinho. Pego uma cerveja, volto pra sala e me sento na primeira fileira. Olho pra trás e conto mentalmente uns 25, 30 homens, meio alheios ao filme, esperando o show começar. Ao contrário do Santa, aqui homem nenhum encara outro homem, é tipo terra de Malboro, homem com H, essas coisas. Tento prestar atenção no filme, Lucas Voyeur 19 (franquia pornô tem vida longa, né?). É daqueles filmes feitos pra parecer que são amadores, e a ruindade da edição e da filmagem até enganam, mas a falta de espontaneidade do elenco não deixa dúvidas. Uma mulher chupa o pau de um cara barrigudo, possivelmente o Lucas, por uns nove minutos seguidos. Tempo demais pra eu perceber que aquele close não favorece a pele dela. E que sua maquiagem é medonha. E que ela está visivelmente se sentindo mal por isso. Então eu me lembro de repente de como a indústria da pornografia explora, objetifica e tira da mulher o poder sobre seu próprio corpo. E que eu estou ali compactuando 67


com tudo isso. Financiando inclusive. Me sinto culpado por isso, mas a culpa é interrompida pelo gozo do Lucas na boca da moça, e é visível o constrangimento dela nesse momento. O episódio seguinte do filme se chama Rapidinha na Garagem e, se eu entendo de rapidinha esse filme tem o nome errado: 25 minutos de boca naquilo, aquilo na boca, aquilo na mão, mão naquilo e nada de aquilo naquilo. O próximo tem o didático título de Coroa Gostosa Dá Cu No Pelo para o Ficante. Meu comentário: a senhora está com um corpo bem em cima para a idade, inclusive gostei dos piercings. De todos os oito. O anal profundo é interrompido pelo anuncio do show. Agora sim, a manada de machos no cio se apruma nas cadeiras. Agora devem ter uns 40. Então uma voz mais melosa que locutora de aeroporto anuncia que logo veremos “as gatas mais quente (sic) de Goiânia.” A homarada agora baba e quase uiva, ela anuncia o nome da moça que vai fazer o show: “Cárita Neves, sensualííííííííssssssima” É assim com todas as garotas que sobem no palco: Nara Rúbia, a loira com um uniforme de colegial feito com o mínimo de material possível; Yasmim Novaes, a corpulenta, que dá cambalhotas e faz acrobacias no palco; Ellen Caroline, a de franjinha. É muito detalhe pra guardar e muita coisa pra reparar ao mesmo tempo. Todas elas têm o tempo de uma música 68


pra dançar no palco, se roçar no chão como gatas no cio, tentar algum movimento num pole dance e ainda descer pra platéia e sorrir enquanto são apalpadas por homens febris e virulentos. A todo momento algum engraçadinho tenta subir no palco, mas o segurança está ali por perto para evitar. A última a se apresentar é a estrela do cartaz, Muriel Lima. Um corpo espetacular, e um rosto angelical. Sandálias de acrílico com tiras trançadas até o joelho. Uma rosa negra tatuada em toda a coxa direita. Olho pra ela e me apaixono na hora. Uma vida educada em cinema americano me faz imaginar que ela vai descobrir que eu sou repórter e que estou ali pra investigar algo perigoso, ela tenta me proteger, eu enfrento o cafetão dela e apanho muito, no fim conseguimos fugir. Eu Vou Tirar Você Desse Lugar, cantaria Odair José em nosso casamento. Ainda estou em êxtase quando ela rodopia pelo pole dance como uma acrobata, nua em pelo, só de sandálias. De repente, a luz se acende, um homem reclama que o Apollo já foi melhor, “como assim, só cinco shows?”. A moça da voz macilenta anuncia um show de sexo com participação da platéia para logo mais às sete e meia da noite. Olho no relógio, ainda são cinco horas. O filme do Lucas Voyeur volta pro começo e decido que duas horas e meia de filme ruim é muito tempo pra esperar. Decido ir embora 69


e na saída pergunto pro moço da bilheteria se a Rubi e a Esmeralda ainda faziam shows por lá. Ele puxa na memória e depois de um tempo diz que não tem o paradeiro delas, mas que devem estar na Europa, provavelmente dançando. Imagino-as numa boate sofisticada de Ibiza, ao som de Total Eclipse of the Heart, sensualíssimas. CINE ASTOR

O terceiro ponto da minha rota fica na Rua 9, a segunda rua depois da Anhanguera. As ruas do Centro ignoram que haja assim, no meio da tarde tanta gente transando deliberadamente na frente de outras pessoas em salas escuras ali, tão perto. O Cine Astor faz parte da minha memória cinematográfica, foi onde eu vi Titanic. E Star Wars. E alguns dos filmes dos Trapalhões. Lamentei muito quando o cinema sucumbiu em 2004. Mas me consolei quando soube que não havia se transformado em uma igreja qualquer. Não só voltou à ativa um ano depois como havia importado de São Paulo o novíssimo conceito de cinema para adultos exibindo, em uma seqüência ininterrupta, de manhã até à noite vários filmes eróticos em duas salas, sendo uma exclusivamente para filmes gays. Não demorou muito para a mocidade alegre de Goiânia adotar e batizar o Astor de Cinemão. 70


Cheguei a ir ao Cinemão algumas vezes , mas em 2011 o Astor fechou as portas para uma reforma que parecia durar para sempre. Desde a volta, em 2013, eu nunca mais tinha voltado lá, até este dia, mas pouca coisa mudou. A fachada agora é toda preta, com adesivos pretos nos vidros da porta, com anúncios das vantagens do local: duas salas, ar condicionado, poltronas confortáveis. Pelo menos é o que dizem os anúncios. O ingresso é 12 reais e aqui não tem choro. Já é o valor da meia-entrada. Quando entro na sala escura (mais escura que a do Santa), meus olhos demoram a se acostumar com o breu. Na tela uma loira e uma asiática simulam um sexo lésbico, sem muita convicção enquanto um cara de bigode meio que dirige as duas. Elas apertam cada uma a boceta da outra, mas as unhas postiças delas são grandes demais para uma manobra tão delicada, deve machucar. Como a sala principal do Astor é maior, o público totalmente masculino pode se sentar ao longo das fileiras com um pouco mais de privacidade. Mas metade das pessoas não costuma se sentar para apreciar o filme, geralmente ficam zanzando entre as duas salas de filmes, o banheiro e o dark room, acima da bilheteria. Aqui o clima é de caça, sempre alguém a espreita, pronto pra apalpar, pegar na bunda, passar a mão no pau, tentar tirar a roupa. E depois, quem sabe perguntar o nome. Mas como é um meio social específico, 71


há também um código próprio de etiqueta. Se um homem encara outro homem e este sustenta o olhar, fatalmente um deles, ou os dois, vão dar uma patoladinha marota no próprio pau. É um ritual de acasalamentos. Na linguagem dos pavões equivale a abrir a cauda. Na dos chipanzés seria como jogar bosta um no outro. Na sala de cima, o filme é de sexo grupal, um trio de atores fantasiados de operários se revezam em quem chupa quem. Nas poltronas um homem dá uma mão amiga ao colega. Outro sobe as escadas, se empolga e se junta ao bonde. No Astor é assim, quem quer deixar as coisas só a dois deve ir para um dos banheiros. Mas eles estão tão sujos e malcheirosos que é melhor tentar um “tô de boa aqui, obrigado”. Vou ao banheiro e apesar do estado deplorável, as cabines estão cheias, e pelo barulho a coisa ta é animada. Uso o mictório mesmo e do meu lado surge um rapaz que me encara pelo espelho e com gestos de cabeça tenta me fazer olhar para o pau dele. (confesso que olho, pelo rabo de olho) Se o amor é cego eu não sei, mas que o tesão fala libras é certeza. E ele nem é feio, do tipo que eu observaria melhor, se encontrasse em qualquer lugar. Sorrio e saio do banheiro. Ele me segue e puxa o papo. Não devia ter feito isso. Uma hora depois e já conversamos sobre todos os assuntos possíveis, o danado é bem articulado, tem bom papo. Pergunto por que 72


ele freqüenta o cinemão e ele dá uma resposta ótima: “sexo vicia, e isso aqui é a cracolândia do sexo”. Eu até daria uns bons beijos ali, mas o deadline gritando me impede. Isso e a falta de privacidade. Prefiro ir embora sem ganhar o pão, nem comer a carne, aliás, chega de carne por hoje. Uma pausa para um debatinho à toa de gênero. O Apollo tem um público certo, homens heterossexuais e oferece shows e filmes para que essa masculinidade não fique vulnerável, ou seja, ninguém ali vai ver nada que não seja sexo entre homens e mulheres. No máximo uma transa entre mulheres, pra satisfazer o fetiche de alguns homens que pensam que foi pra isso que o sexo lésbico foi inventado.Mas tanto o Astor quanto o Santa Maria exibem filmes de sexo heterossexual nas salas principais, embora a maior parte do público seja composta por homens gays e travestis. É curioso, mas o Jackson, lá do Santa, meio que me dá a dica: “É porque vem muito homem casado, pai de família, se passar só filme gay ele vai passar recibo de viado.” Outra curiosidade: os dois cinemas rivalizam entre si. Quem frequenta o Astor diz que no Santa Maria “só tem gente velha e feia”. No Santa Maria por sua vez, ouvi que no Astor só tem novinho metido. Eu que fui aos dois devo ser um velho metido ou um novinho muito do feio. Depois dessa, quero ir pra casa, ver pornografia na internet. 73


Cine Astor


Cine Santa Maria Cine Apollo

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O VALE

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“A fila era razoavelmente grande e todos que esperavam pareciam ter realmente perguntas sĂŠrias e decisivas pra fazer, todos esperavam um conselho que talvez naquele instante fosse fundamental pra resolver um problema graveâ€?


Se a Amazônia é o pulmão do mundo, o Planalto Central é o terceiro olho. No meio do Brasil, em matéria de esoterismo, há de tudo, para todos os gostos. Da profecia de Dom Bosco em 1830, prevendo a construção da Capital, até a figura folclórica de Inri Cristo, passando por Alto Paraíso e suas comunidades ufológicas e pelas cirurgias espirituais de João de Deus em Abadiânia, as diversas manifestações de fé na região confirmam a vocação da região para abrigar gente afim de um contato imediato com o lado de lá. E no meio desse mosaico de crenças se localiza o Vale do Amanhecer, cuja descrição carece de um olhar mais demorado para desvelar o que num primeiro relance parece apenas surreal e exótico. O Vale do Amanhecer é uma doutrina espiritualista cristã fundada em 1959, pela médium clarividente Neiva Chaves Zelaya, mais conhecida como Tia Neiva, falecida em 1985. Pelo menos é assim que a doutrina é definida no inventário realizado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e artístico Nacional (IPHAN), que elegeu a doutrina como um patrimônio imaterial por sua contribuição cultural. Mas essa definição ainda é vaga pra quem se vê pela primeira vez diante destes homens e mulheres com suas vestimentas e rituais tão diferentes do que se habitua a pensar como sendo o padrão. 81


E foi no afã de tentar desvendar o que leva essa gente a se reunir sistematicamente em torno de um templo de pedra no meio do cerrado que eu aportei em Brasília e de lá segui 45 km Distrito Federal adentro pra chegar ao templo-mãe da doutrina. Durante os três dias de pesquisa no Vale do Amanhecer para a feitura deste relato, foram contabilizados: - Noivas radiantes seguindo com seu cortejo entre médiuns incorporando pretos velhos: uma; - Ex-freiras octogenárias distribuindo balinhas e vendendo rifas: uma; - Médiuns com caderninhos na mão colhendo assinaturas para serem libertos de questões cármicas: algumas dezenas; - Homens com corrente de cadeado no pescoço e moedas tapando os ouvidos dançando em círculos e pedindo cigarro: um; - Crianças com vestes ritualísticas brincando de pique no meio do pátio: duas; - Velhinhos roqueiros que servem comida e abrigo a quem não tem onde ficar: um; - Painéis de madeira com um Jesus Cristo sereno de quatro metros de altura: um; - Exorcismo: nenhum; 82


- Sacrifício com animais: nenhum; - Cruzes de cabeça pra baixo pegando fogo: nenhuma. A primeira coisa do Vale que se vê é um morro ao longe, com a frase SALVE DEUS escrito em pedra. A segunda primeira coisa que se vê ao chegar ao templo, é a imagem de Jesus. Ou a versão renascentista/hollywoodiana que se tem do Messias, louro e cabeludo, num painel ao lado do templo. Tem cerca de quatro metros de altura e possui uma feição calma, a mão esquerda no peito e a outra estendida como quem oferece algo. Seria inspirador, se também não desse a impressão de estar prestes a fazer o gesto do tô-nem-aí, onde uma mão bate nas costas da outra. Mas o Cristo louro gigante vira só um detalhe perto da visão seguinte. A segunda coisa que se vê é uma profusão de cores em todos os lados, nas paredes templárias, nos símbolos e, sobretudo nas vestes das pessoas circulando em volta de um templo de pedra. É como entrar num universo paralelo, onde carros e celulares assessoram pessoas vindas diretamente da corte do Rei Artur na Idade Média. Nem Marion Zimmer Bradley, autora de As brumas de Avalon seria capaz de imaginar um cenário assim. Sobretudo por não se tratar de um parque temático ou uma gincana. Aquelas pessoas estão usando roupas extravagantes para os padrões do mundo extra-Vale, para o que consideram um dever do espírito. 83


As mulheres, conhecidas como ninfas, usam vestidos de todas as cores, todos com bordados em lantejoulas de figuras como sol, lua e estrelas. Os cabelos são adornados com tiaras, grinaldas, véus e flores. Cada grupo, denominado falange missionária tem uma roupa de uma cor, amarelo canário, azul-turquesa, verde-limão, roxo-hematoma. Os homens se vestem com camisas de manga comprida, calça, colete adornado com brasões e capa. Em plenos 36 graus de uma tarde típica no cerrado, onde a temperatura varia entre quente e quente pra caramba. Nenhum penteado se desmancha, nenhuma maquiagem derrete, ninguém parece se importar com a temperatura. O primeiro grande mistério do Vale do Amanhecer certamente é esse: como é possível não desmaiar se vestindo assim sob esse Sol? O segundo seria sobre o porquê de tantas cores e signos. Cada cor e símbolo têm um significado: as vestes brancas são usadas pelos neófitos, em fase de desenvolvimento da mediunidade; parte de cima preta e parte de baixo marrom, para os já é mestre, nos mistérios do Vale; vestes coloridas para ritos especiais, cada cor e símbolo representando um clã diferente, um trabalho ou uma entidade específicos. São inúmeras as combinações entre esses símbolos divididas entre os milhares de fiéis. Quem vê de fora acha toda a movimen84


tação caótica, como um formigueiro. Quem participa parece nunca se confundir, afinal poucas coisas são tão organizadas quanto um formigueiro. PRETOS, CABOCLOS, CIGANOS

Logo ao chegar ao templo sou chamado a passar nos tronos como paciente. Apesar do pouco sentido que essa frase possa ter fora deste contexto, no Vale do Amanhecer ela é corriqueira. Um trono é onde fica o médium que incorpora uma entidade. Geralmente são espíritos de pretos velhos, caboclos, índios e ciganos. Curiosamente, são etnias que no lado de cá, o dos vivos, sofreram toda sorte de opressão e preconceitos. Após desencarnarem, ao que parece, esse sofrimento os torna mais iluminados. Os tronos ficam na parte interna do templo e todos os dias centenas de pacientes passam pra se consultar sobre problemas pessoais, financeiros, físicos e espirituais. O Vale do Amanhecer funciona como um pronto-socorro. Os médiuns, que dizem incorporar espíritos são como médicos, dando conselhos, passes energéticos e afastando o que chamam de espíritos obsessores. Antes de me decidir entre conversar ou não com um espírito ancestral, um cortejo nupcial surge quase que por encanto na porta do templo: 85


uma noiva e seu pai, pajem e dama de honra e uma fila infindável de casais de padrinhos. Decido me consultar com um médium, mas não sem antes acompanhar aquele casamento. Um matrimônio no Vale do Amanhecer parece um misto de procissão com desfile cívico e casamento de quermesse. O templo tem a forma de uma elipse com uma entrada que desemboca em dois caminhos diferentes e no meio deles ficam os espaços rituais. Por um lado segue o cortejo da noiva e uma fila de ninfas com seus vestidos ritualísticos, portando lanças e entoando mantras. Pelo outro lado vem o cortejo do noivo, com seus padrinhos e suas ninfas. As duas comitivas se encontram na ponta da nave em frente a uma escultura colossal de um índio vestido de branco e adornado com um grande cocar. A figura é uma representação de Pai Seta Branca, mentor maior da doutrina. O curioso é que o templo não interrompe suas funções durante a celebração da boda. Noiva e convidados em traje de gala passam em meio a médiuns falando a língua dos caboclos, outros ministrando passes, a coisa mais natural do mundo, uma família se formando ao lado de espíritos iluminados aconselhando peregrinos. Após o encontro dos noivos eles se juntam e seguem a uma mulher no meio do templo chamada de Profetisa, que realiza a cerimônia e oficializa 86


os votos. Ela possui um véu e em determinado momento ela cobre a cabeça da noiva e ali diz qual será o sortilégio para aquele casal, que destino aquele casamento pode ter. Ao que parece o casamento daquele dia recebeu um agouro benfazejo. Márcia Cristina está radiante, como toda noiva e explica o porquê: “Eu faço parte dessa doutrina há 18 anos e sempre sonhei com esse momento, é único.” Quando ela diz que o momento é único não é apenas força de expressão: pelos preceitos do Vale do Amanhecer, uma pessoa só pode realizar um rito de casamento. Caso se separe e encontre um novo amor, o casal recebe uma bênção simbólica, mas sem a pompa anterior. Casamentos entre pessoas do mesmo sexo também não são celebrados ali, é uma questão dogmática. Não pode porque não pode. E vice-versa. Existem outros preceitos entre os fiéis como a proibição de ingerir bebidas alcoólicas ou usar drogas. Isso se dá, segundo Nélio Benedito, frequentador da doutrina há 37 anos, por causa da energia que é manipulada pelos médiuns em trabalhos espirituais. “Se você toma um remédio tarja preta, forte, sabe que não pode beber. É a mesma coisa quando se incorpora uma entidade, não dá pra misturar, tem que ter consciência”, compara. Um detalhe relevante sobre essa incorporação é que segundo contam, ela é imanente, ou seja, o 87


médium tem total controle do que fala e consciência de tudo que se passa, apesar de um espírito desencarnado soprar ao seu ouvido as mensagens que ele transmite. Normalmente o médium incorporado, chamado de Apará, fala com um linguajar de um ancião sem grande instrução, como um velho que passou a vida na roça falaria, instruído apenas com o saber da natureza. Palavras como mizsifí são comuns nesses transes. Ao lado de cada médium fica um Doutrinador. Assim é denominado aquele que observa a incorporação pra que não haja interferências, mensagens duvidosas nem que um espírito desencarnado se manifeste. O nome Doutrinador vem daí, da doutrinação que esse espírito recebe para que possa ascender a planos mais elevados. Entre esses espíritos superiores há o Pai Seta Branca, uma figura recorrente. Oriundo de outras dimensões (ou planetas, como preferir) em encarnações anteriores, o índio atende também pelo título de Simiromba, que significa “raízes do céu” e é considerado um espírito de luz. Conta-se que em uma de suas encarnações ele foi São Francisco de Assis. A cosmogonia do Vale do Amanhecer é bem sui-generis e nela convivem harmonicamente faraós do antigo Egito e Iemanjá, passando por deuses pré-colombianos e pelos guerreiros de Esparta, além de entidades superiores vindas de 88


outros espaços astrais, isso sem contar a presença de Cristo, outra figura constantemente citada. Eis outro grande mistério: como tantas correntes religiosas e filosóficas de tantas eras diferentes foram acessadas e decodificadas por uma mulher que mal completou a terceira série do primário. MÃE, CAMINHONEIRA, CLARIVIDENTE

Quem buscou as divindades e acessou no plano superior o papel de cada uma neste panteão que ultrapassa as barreiras do sincretismo foi a fundadora da doutrina do Vale do Amanhecer: Neiva Chaves Zelaya. Por se recusar ser vista como uma mãe por seus seguidores ganhou a carinhosa epígrafe de tia, a Tia Neiva. Não fosse ter criado uma denominação espiritualista hoje seguida por mais de 120 mil pessoas, ainda sim a história dessa mulher seria por si só um relato fascinante. Nascida na pequena cidade de Propriá, Sergipe, em 1925, Neiva era uma menina que tinha visões. Fora isso, parecia destinada a cumprir a mesma missão das mulheres do Sertão: se casar, procriar, enviuvar, morrer. Mas decidiu o destino que na terceira etapa sua vida teria uma enorme virada. Ficou viúva cedo, aos 22 anos, com quatro filhos pra criar e encaminhar na vida. Chegou a Goiás pela cidade de Ceres, 89


onde abriu um estúdio fotográfico, mas teve que desistir da profissão por recomendação médica. De personalidade forte ela não se deixou abater. Comprou um caminhão e tirou habilitação – a primeira da categoria concedida a uma mulher no Brasil – e começou a transportar cargas pelo País. Enquanto cruzava o Brasil, Neiva ainda lidava com os pais, que não aceitavam aquela profissão, incomum para uma mulher na década de 40, os sogros que insistiam em querer tirar a guarda dos filhos mais novos e a educação dos filhos. Em 1957 chegou a morar em Goiânia, dirigindo ônibus, mas com as notícias da construção da nova Capital do Brasil, colocou seu caminhão na estrada e foi com os filhos ajudar a construir Brasília, o eldorado brasileiro de então. Foi então que ela provou novamente a capacidade de seu destino em dar guinadas e embicar para outros rumos: aos 32 anos, a mediunidade daquela mulher aflorou. Com o dom da clarividência, Neiva podia ver e ouvir espíritos, prever o futuro e revelar o passado. Veio primeiro o desespero por confrontar dentro de si o dom recém-desenvolvido de ter com o sobrenatural e sua rígida formação católica. Depois veio a penosa fase de aceitação do que ela descreveria como uma missão. Em 1959 criaria a União Espiritualista Seta Branca e em 1969, já tendo um séquito 90


de seguidores a acompanhando, estabeleceu em Planaltina o atual templo Vale do amanhecer. Desde o começo, paralelo ao trabalho espiritual houve uma preocupação em manter um trabalho social. Nos tempos primeiros de desbravamento do coração do Brasil, havia pouco ou nenhum atendimento público de saúde. Com o crescimento da doutrina e a fama da mulher que falava com espíritos correndo mundo, pessoas vinham dos rincões mais próximos para sanarem suas dores. Daí o uso do termo pacientes. Também é dessa época a criação de um orfanato onde a clarividente acolhia crianças abandonadas, que foram chamados de pajezinhos, nome que até hoje as crianças da doutrina recebem. Pelas leis do Vale, uma criança já nasce médium, então é comum ver pequenos magos e ninfas mirins paramentados e sérios quando no dever espiritual, correrem livres pelo pátio brincando de pique. As pessoas que conviveram com ela sempre recordam como Neiva se preocupava com crianças, velhos e doentes. “Era uma mulher muito generosa, capaz de receber uma joia com a mão direita e passar pra quem estivesse com dificuldades com a esquerda, ajudou muita gente, tanto espiritualmente quanto com ajuda em dinheiro pra comprar remédios”, conta José Cardoso da Silva, o Mestre Cardoso. 91


Cardoso estava no Vale do Amanhecer quando no início dos anos 80 o Governo Federal resolveu desapropriar aquelas pra terras para fazer uma grande represa. Segundo ele, apesar de apreensiva, Neiva declarou que ficariam em meditação e prece, se não houvesse outro jeito, deixariam o local e procurariam outro. As preces funcionaram, pois milagrosamente o projeto da represa foi abandonado e não se falou mais no assunto. Segundo ele, Neiva estava em constante comunicação com outros planos. Em suas fotos duas coisas chamam a atenção, a primeira é o visual, adornada de jóias, impecavelmente maquiada e penteada, como uma cigana em dia de festa. A outra coisa é que ela parece sempre ausente nas fotos, com um olhar vago, como se não estivesse ali naquele momento. Neiva morreu em 1985, consagrada como uma líder espiritual de grande carisma cuja importância religiosa talvez se iguale à de Chico Xavier. Em sua homenagem existe uma espécie de museu na antiga casa onde morava no Vale do Amanhecer. Há inclusive uma estátua em tamanho real, reproduzindo fielmente suas roupas, seu penteado e suas joias. Ao longo de sua jornada espiritual Neiva viu seu legado tomar forma, atrair fiéis e expandir as fronteiras do templo. Aos poucos, adeptos da doutrina foram construindo suas casas ao redor do templo e com o passar do tempo uma 92


comunidade se formou naquele vale. Hoje apenas parte dos cerca de 20 mil moradores ao redor da área templária faz parte da doutrina. Além do templo, o Vale do Amanhecer possui um campo anexo que engloba um lago (ladeado de figuras em madeira de Iemanjá e outras entidades das águas), uma pirâmide, e uma construção em forma de estrela de seis pontas. Fora da área templária, tudo mais é como as outras periferias do Brasil: alto índice de criminalidade, desigualdade social, subemprego, violência policial e uma profusão de antenas parabólicas. Muitos comerciantes vêem no Vale do Amanhecer um filão a ser explorado, existem muitas lojas de aviamentos, artesanatos, artigos religiosos. E é curiosa a quantidade de igrejas evangélicas naquela cercania. Paulo Roberto está no Vale do amanhecer há mais de 20 anos. Sua função é, em suas palavras, “receber a imprensa e os gringos”. Além de receber repórteres, gringos e repórteres gringos, Paulo Roberto recebe também as caravanas de evangélicos que de tempos em tempos vão ao Vale do Amanhecer para conhecer como “o inimigo age”. Eu, que em criança tive uma formação evangélica, sempre ouvi em família e nas igrejas que o Vale do Amanhecer era um lugar demoníaco. Dias antes de eu passar por lá, uma equipe de pastores batistas do Paraná visitou o local. Conheceram o 93


templo por dentro, viram o trabalho dos médiuns e na semana seguinte postaram um vídeo no YouTube mostrando “a casa do diabo” e retratando o Vale como uma seita que precisava ser repreendida e exterminada, praticamente o inferno na Terra. Apesar de saber que esses pastores e obreiros vão ao Vale do Amanhecer para demonizá-lo depois, Paulo diz que sua missão é guiá-los ao conhecimento do que é a doutrina: “Ninguém vem aqui por acaso, ele vai entrar aqui e ouvir uma mensagem de amor, se vai levar isso eu não sei, mas a minha missão eu cumpri”. Paulo Roberto em sua vida civil é advogado. Pela lei dos homens, sabe que poderia acionar judicialmente estes pastores. Mas ele explica que não se pode entrar em conflito com a fé alheia, pois cada um tem seu carma pra cumprir nesta vida. FESTA, AMOR, DEVOÇÃO

A palavra carma, muito difundida na doutrina, vem do sânscrito e significa destino. É através do carma que se explica tudo que acontece na vida de cada um. Quando se resolve uma questão de uma vida anterior, acontece o que chamam de reajuste. Durante os trabalhos no templo é comum encontrar na Aruanda (o pátio externo) muitas pessoas cami94


nham com um caderno na mão colhendo assinaturas, que eles chamam de bônus. Poucas coisas neste lugar possuem o mesmo nome mundano a que estamos habituados. Essas pessoas são prisioneiras e foram aconselhados por seus mentores a fazer algum reajuste. Como tudo na doutrina, existe uma veste e indumentárias próprias pra “cumprir prisão”. Só podem sair da prisão após colherem os tais bônus, ou seja, cada assinatura tem uma carga energética e quem ajuda um prisioneiro doa um pouco de energia e recebe de volta alguma ajuda energética. “Cada assinatura é uma como uma centelha de amor. Você pode assinar seu nome e colocar o nome de pessoas da sua família também. É essa energia de amor que vai ajudar a libertar o prisioneiro de um espírito cobrador”, diz o médium Augusto Rocha, frequentador do Vale no amanhecer. Como tudo no Vale do Amanhecer, parece complicado na teoria, mas na prática é bem simples. No primeiro dia, sou abordado por uma senhora muito simpática me pedindo um bônus. Cícera é aposentada, mas passou a vida trabalhando “em casa de família”. Não sabe ao certo quantos anos tem: “Mestre, minha idade tá lá no documento, mas eu não lembro bem não”. Durante a nossa breve conversa, sou chamado de mestre algumas vezes ainda. Aqui todos os homens são chamados assim. Cícera frequenta o 95


Vale há 30 anos e se sente feliz na doutrina: “Mestre, eu encontrei aqui o mesmo Cristianismo que eu fazia na Igreja Católica, tudo que tem lá, tem aqui. A diferença é que aqui você fala com o seu carma.” Ela talvez não tenha percepção disso, mas nas suas palavras simples, ela conseguiu fazer uma descrição do Vale do Amanhecer mais bonita e verdadeira que a do inventário do IPHAN. Além de prisioneiros, circulam pela Aruanda alguns mendigos pedindo moedas, um prato de comida ou cigarros. Um deles chama a atenção por nunca falar com ninguém a não ser quando quer um cigarro: “Ou, jovem, me arruma um cigarro desse seu aí!”. Conseguido o seu fumo, volta ao silêncio de seu mundo. A maior parte do tempo ele dança em círculos, tira o chinelo do pé, dá alguns passos, calça o chinelo novamente e dá mais um giro. Se houvesse música no ambiente, poderia ser a coreografia de um grupo de dança contemporânea. Seu nome é Marlon, mas a maioria das pessoas o chama de Jovem. Chama a atenção a maneira com que sua figura se mostra ao mundo: uma corrente grossa, dessas de cadeado presa ao pescoço; uma garrafa pet cheia de água pendurada no tronco por um barbante; Uma moeda de 25 centavos tapando o ouvido. Jovem é morador das calçadas do Vale e conta com a ajuda das pessoas que vivem naquele espaço 96


para conseguir comer e tomar banho. Ninguém conhece a sua vida de antes, sabe-se apenas que ele frequenta a Casa Transitória Povo Ypuena para fazer refeições e que não pôde se internar ali para se livrar do vício em drogas, pois não parece interessado em se recuperar. A Casa Ypuena é chefiada por Mestre Lacerda, o Adjunto Ypuena, título que, dentro do sistema de castas da doutrina significa que ele chefia um clã. Quem chega ao Vale do Amanhecer sem ter onde pousar ou como se alimentar pode procurar o lar de Mestre Lacerda, um homem de idade avançada cuja aparência frágil pode bem enganar quem não o conhece. Lacerda é rock’n’roll. “Cheguei aqui no Vale há 43 anos e quem me colocou aqui foi a heroína na veia”, diz ele sorrindo. E prossegue: “Dou graças a deus por esse líquido aí, porque se não fosse isso eu teria partido há 43 anos.” Pela sua lógica, a droga o levou ao fundo do poço e o fundo do poço o trouxe pro Vale do Amanhecer: “Tudo tem uma razão de ser, nada acontece por acaso na vida da gente.” Olha o carma aí de novo. Lacerda entrou para a doutrina com 30 anos e segundo ele, sua vida sofreu uma mudança muito grande após isso. Mas o rabo de cavalo e o hábito de ouvir Metálica e Iron Maiden quando os afazeres do espírito dão uma folga ainda 97


existem. Ele costuma ter internos na Casa de Ypuena, mas apenas os que se comprometem a abandonar o vício. Segundo ele o livre-arbítrio é uma lei suprema: “Quando alguém não quer ser ajudado, nem Deus pode ajudar. Então alguém que vai ficar aqui, mas ao mesmo tempo sem querer de fato largar a droga não interessa pra casa.” Todo mundo no Vale do Amanhecer começa suas histórias do mesmo jeito, de como chegou por acaso, movido pela curiosidade, foi ficando e quando se deu conta já era um médium. Mas cada final é mais surpreendente que o outro. Com Koraly Aredes Lordja foi assim, mas esse nome com certeza causaria estranheza se pronunciado na Aruanda. Porque ali ela é a Dona Cora, que distribui balinhas pras crianças que passaram pela imunização, um abençoamento coletivo. Cora nasceu no Rio Grande do Sul, filha pais russos, judia de nascença. Mas aos 12, estudando em um colégio católico se “apaixonou por Jesus Cristo”. Essa paixão acabou dando em casamento, ou seja, ela resolveu virar freira. E se dedicou a essa causa durante 60 anos. Levaria esse tempo pra sua próxima transgressão: se tornar ateia. Foi durante as missões pela África que ela passou a questionar suas convicções: “Nesse percurso eu vi tanta coisa errada, tanto sofrimento que eu deixei de acreditar em 98


Deus.” Com a perda da fé, ela abandonou o hábito. “Foi horrível pra mim, um conflito muito grande na minha vida. O vazio de não acreditar é muito grande, a falta de fé é muito difícil. Mas eu não queria outra religião.” Ainda no convento ela se formou engenheira agrônoma, e aos 64 anos ela foi pedir um emprego na EMBRAPA. Foi trabalhar em Minas Gerais e acabou hospedada na casa da irmã de Chico Xavier. “Foi ali que eu conheci o espiritismo, eu achei ótimo. Eu falava pro Chico ‘Ô Chico, me prepara pra ser um médium’ e ele falava ‘Não tem que preparar, médium nasce pronto, só que você não é daqui’” Segundo ela, Chico garantiu que ela ainda encontraria seu caminho. Mas no meio dessa história tem um parêntese aqui. Uma vez, durante um Concílio em Brasília, a ainda freira Cora enfartou e foi parar no Hospital Santa Lúcia. Ao acordar na UTI, ainda sem saber onde estava, ela deu de cara com uma mulher na cama ao lado, penteada e bem maquiada, adornada de jóias. A mulher deu uma sonora risada e disse “Ê, freirinha, quase desencarnou, hein?”. Era Tia Neiva, que estava internada em tratamento de efizema pulmonar. As duas trocaram experiências no hospital e a clarividente deu a Cora o endereço do seu templo. Quase 20 anos depois, a ex-freira e ex-judia, e ex-atéia e quase kardecista chegou ao Vale do Amanhecer. Era dia primeiro de Maio. 99


O feriado do dia trabalhador é comemorado no Vale do Amanhecer como o Dia do Doutrinador. Nessa data, fiéis de todos os cantos do país – mais de 120 mil, nas contas de Paulo Roberto – se reúnem na área do templo-mãe. Quando Cora chegou e se deparou com aquela multidão em trajes extravagantes, exclamou: “Eu procurava uma religião, e não uma escola de samba!” Passado o susto inicial, ela resolveu ingressar na doutrina. Chico Xavier tinha razão, ela encontrou seu caminho: quando Cora fez o teste mediúnico, já se mostrou uma médium pronta. Hoje ela é uma instrutora do Vale do Amanhecer e ainda ajuda em tarefas diversas, como distribuir balinhas para crianças benzidas e vender rifas pra ajudar na obra do templo. “Não fui uma criança feliz, nem uma jovem feliz, mas hoje eu posso dizer que sou uma velha feliz”, conta ela, do alto dos seus 87 anos. Mestre Cardoso chegou ao Vale do Amanhecer levando a esposa, doente; Paulo Roberto achou tudo uma grande viagem até que um amigo mostrou na Bíblia evidências da reencarnação; Lacerda decidiu abandonar um vício e achou um meio de recomeçar; Após tanto buscar, Cora vive hoje a plenitude da paixão por Jesus que ela sentiu ainda criança; Márcia começa uma nova família na doutrina em que foi criada. Um estudioso das gentes veria nessa sociedade alternativa extemporânea o que no jargão da antropologia é 100


chamado de jogo absorvente: pessoas que se encontram. Há um encontro entre eles e um encontro deles com seus mentores, ou como bem definiu a risonha Cícera, uma conversa com o carma. Restava eu saber se o meu carma tinha algo a me dizer. Fui passar nos tronos. “O que é que zifí quer saber?” Para bem da verdade eu não queria perguntar nada, estava ali pra saber o que aconteciam nessas consultas. Mas por incrível que pareça, não tinha um conselho a pedir ou pergunta pra fazer. Ao meu lado, uma senhora falante me contou que estava ali pra perguntar pra entidade se ela poderia desenvolver sua mediunidade. Ou seja, estava ali pra saber se poderia ingressar na doutrina. Pelo que eu entendi não há uma conversão ali, ninguém do Vale do Amanhecer sai pelo mundo pregando o evangelho de porta em porta, perguntando às pessoas se elas aceitam Pai Seta Branca em seus corações. Na minha frente, um senhor de muletas também aguardava atendimento. Ele se encontrava enfermo e estava ali pra que lhe indicassem um tratamento espiritual, uma cura energética, um passe, algo que desse uma ajuda pra medicina praticada por doutores com diploma, os médicos do mundo de cá. A fila era razoavelmente grande e todos que esperavam pareciam ter realmente perguntas sérias e decisivas pra fazer, todos esperavam um conselho que talvez naquele instante 101


fosse fundamental pra resolver um problema grave. E eu, que naquele exato momento me perguntava se valia a pena fazer um espírito de luz sair de onde quer que os espíritos de luz habitem, pra conversar com quem não tinha sequer uma pergunta decente pra fazer. Numa mistura de fascínio e medo, eu cheguei aos tronos, que pra minha surpresa são bancos normais, como os dos antigos grupos escolares em que alunos sentavam em duplas. Me sentei ao lado de um médium gordo e de meia idade, que segura minhas duas mãos. Atrás dele o doutrinador me informou que eu ia conversar com Pai João de Aruanda, um preto velho. Resolvi perguntar o que me afligia naquele momento: eu conseguirei escrever esta reportagem? Antes da resposta, uma linha cruzada no além. O médium soltou minha mão, cerrou os punhos e cruzou os pulsos, com esgares de dor e sofrimento. O doutrinador me pediu pra ficar calmo e disse em voz alta palavras de ordem, pedindo praquele espírito ir em direção à luz, mas nos jargões próprios dos doutrinadores. O ímpeto de sair correndo e não olhar pra trás até que chegou, mas ele não tinha um décimo do tamanho da minha curiosidade de ver tudo aquilo de perto. Passado o susto, Pai João de Aruanda se apresentou novamente e eu de novo perguntei se esta reportagem sai ou não sai. 102


“Zifí sabe que cada um dá o melhor que tem, cada um faz o que sabe”, ele responde. Sei não, achei muito genérico. Resolvi me aprofundar, dessa vez perguntando se eu saberia contar aquela história de uma maneira bonita. Ele me disse que se eu colocar amor no que eu fizer, sim. “Tudo que zifí faz com amor, zifí tem bom resultado”. Sem querer abusar muito, mas já abusando, eu perguntei se eu escolhi a profissão certa, se serei bem sucedido, a entidade me responde naquele misto de afeto e impaciência que só os pais conseguem: “Depende do tamanho da sua ambição”. Estranhamente eu sinto que ninguém nunca me deu uma resposta tão boa quanto ao meu futuro. Fiz ainda mais algumas perguntas, agora de caráter íntimo, me dei por satisfeito e ele se despediu de mim, me mandou tomar uns passes, tomar uma água fluidificada e seguir em paz. Não sei por que, mas eu me apeguei a esse espírito velhinho. As palavras e frases ditas pelo médium de olhos fechados talvez não tenham trazido a resposta necessária ou o que eu queria escutar. Mas a forma com que ele falava, carregado de sentimento me trouxe um sentimento de paz e conforto. Talvez seja essa a tal centelha de amor que me disseram. Mas eu sou muito facilmente impressionável, então sugiro que conversem aí com seus respectivos carmas.

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A ALDEIA

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As crianças adoram abraçar. Se dependuram. O professor José Uratsi me diz que eu preciso me arrumar para o ritual. Alguém surge com um calção vermelho. Vou com ele e todos os homens da aldeia para o meio do mato.”


“Não tem muita diferença entre o que a gente faz aqui na mata e o que o padre ensina lá na igreja, a gente acredita em Deus da mesma forma” José Uratsi, que eu havia conhecido um dia antes como um professor do grupo escolar da aldeia, me explica como funciona a fé de seu povo, os Xavante, enquanto trança pulseiras de palha em torno dos meus pulsos. Assim que termina o artesanato, pede para eu me sentar em um tronco próximo. Eu ainda estou refletindo sobre toda a metafísica envolvida naquela frase, quando uma tesoura muito afiada se fecha no topo da minha cabeça. Em menos de dois minutos eu tenho uma área do tamanho de um pires sem nenhum pelo, no meio do cocuruto e uma franja cortada no pouco cabelo que cobria a testa. Antes de qualquer tentativa de protesto da minha parte, um dos velhos da aldeia diz: “Se quer participar ritual índio tem que ficar igual índio.” E assim eu passo a metade de um sábado: um índio escalpelado como eles, mas com o cabelo muito mais encaracolado; a pele preta até pode me mimetizar entre eles, mas eu estou longe de ter a forma física daqueles homens, esculpidos a futebol e corridas de tora; com o corpo pintado de urucum e carvão, vestindo um calção vermelho e com penas coladas nos braços e no peito, mas sem entender uma 109


única palavra do rito que eles me convidaram para participar. Mas por dentro, eu sou um xavante naquele momento. Eles dizem precisar de mim para contar a história deles, mas não mais que eu preciso deles, para comer, para dormir. Para aprender a simplificar a vida. Exausto, sob o sol inclemente do Mato Grosso, eu danço e corro, sem entender o porquê. Mas por dentro eu estou bem, eu sou um anarowa. ROAD MOVIE

“Vou para a aldeia depois de amanhã, você podia ir comigo,” me diz o dentista que trabalha na Aldeia São Marcos, no distrito de Barra do Garças. “Lá você pode ver de perto como os índios vivem, falar com eles. Porque eu não posso comprometer meu trabalho te falando tudo isso que eu te falei, entendeu? Meu nome nem pode aparecer.” Ele passara duas horas inteiras falando sobre como são as condições de trabalho no posto de saúde da aldeia, como os índios estão negligenciados em seus direitos mais básicos e algumas noções de como é a organização social dos índios. O que a princípio seria uma entrevista acaba por me fisgar. Sabe aquela sensação de que você precisa ir a fundo em algo? Eu sinto que tenho que estar lá, nem que seja um dia e quando ele me diz que eu posso conhecer de perto o que ele me mostrou nas fotos, eu digo sim, sem nem calcular bem os riscos. 110


Levo um dia para me organizar – leia-se apanhar um par de roupas, comprar um repelente e pedir algum dinheiro pro chefe de redação, prometendo uma grande matéria para o Dia do Índio, que seria na semana seguinte. Na quinta-feira à noite eu vou de carona com o Chico, como chamarei meu guia, que trabalha há mais de dez anos como dentista pela Sesai (Secretaria de Saúde dos Povos Indígenas). O Chico, à primeira vista, é a encarnação de um personagem de comercial de desodorante. Bonitão, atlético, brnzeado e com os cabelos grisalhos e sedosos, tudo nele evoca a companhia ideal para se aventurar no meio da Selva. Pense numa viagem longa. Pelo menos para mim, que nunca havia cruzado as fronteiras de Goiás de carro. Viajar de Goiânia até Aragarças, cruzar a ponte do Araguaia, que delimita o que é goiano o que é mato-grossense, e depois embrenhar 200 km Mato Groso adentro, é uma longa jornada noite afora. Aragarças é uma cidade bem feia, diga-se de passagem. Já Barra do Garças, sua irmã de lá da ponte, é bem atrativa. Depois de percorrer meio Centro Oeste, ainda é preciso entrar na área de proteção ambiental (onde eu ainda não tinha permissão para entrar, ou seja, era um forasteiro). Mais 40 km da estrada de chão mais acidentada em que meu corpo já sacolejou e chegamos à aldeia São Marcos. Às 111


duas horas da manhã. No mais completo breu. Mas vamos com calma, falta muito para chegar lá. Durante o caminho, Chico me conta ainda muito mais histórias sobre a aldeia São Marcos. Segundo ele, há muita exploração da boa fé dos índios. Um exemplo são os agiotas que cobram 100% a mais do dinheiro que os índios recebem em programas como o Bolsa-família. Má gestão da prefeitura de Barra do Garças em construções superfaturadas e interferências diretas da FUNAI na escolha dos caciques também são reclamações constantes de alguns dos habitantes de São Marcos. Por isso, para todos os efeitos, eu não posso ficar abrigado no posto de saúde onde Chico mora, pois isso pode complicar a vida dele na aldeia. Também não posso chegar de cara já fazendo perguntas demais, sem obter a confiança deles. E não posso ser notado pelo cacique, que talvez esteja na aldeia durante minha visita. Ou seja, eu tenho que passar quase invisível às autoridades, às lideranças indígenas, aos padres que cuidam da igreja e da escola da aldeia e dos funcionários do posto de saúde. Com os índios eu tenho liberdade para falar, desde que desperte a confiança deles e quando – e se isso acontecer, ainda há um detalhe: grande parte não fala muito bem o português e eu não tenho ideia sequer de qual é o nome do idioma 112


dele (akwén, como fico sabendo depois). Fácil, não? Chico decide que eu vou ficar na casa de Clarêncio, que é aluno da UFG (existe um curso de férias freqüentado pelos Xavante, em Goiânia). Então, abrigado com ele, eu posso passar por “um amigo da faculdade que veio conhecer a aldeia.” Esbarro no primeiro problema ainda em Barra do Garças. Clarêncio não vai estar na aldeia no dia seguinte. Vou dormir ao relento. Mas aí surge a melhor ideia de todas. Ao chegar à aldeia, passamos na casa de Robson, o vice-cacique (que é do bem, tem apoio dos demais índios e é contra os desmandos da FUNAI), e contamos a história do “amigo do Clarêncio, da UFG”. Uma meia-verdade, pois eu estudo jornalismo lá e conheço o Clarêncio das mensagens que trocamos pelo Facebook um dia antes. E aí eu vou dormir na Casa dos Adolescentes, mais conhecida como Hö. Funciona assim: na etnia Xavante, os garotos são separados do convívio do resto da aldeia assim que atingem a puberdade e só passam a reintegrar a comunidade quando atinge compleição física de um homem adulto, cerca de cinco anos depois. Durante este período, eles vivem todos juntos, em um barracão à margem da aldeia e não convivem com seus familiares, exceto a mãe ou algum irmão que vai até lá para levar água e alimentos, duas vezes por dia. Até mes113


mo na igreja e na escola, os adolescentes do sexo masculino são apartados dos demais. Pelas leis sociais vigentes, eles não podem olhar para nenhuma mulher, é um exílio completo. E só podem voltar para a aldeia após passar por testes que comprovem que são homens adultos, como correr com toras e furar as orelhas. Isso ocorre porque mesmo que tenham atingido maturidade sexual, eles ainda não possuem responsabilidades de adultos e é uma maneira de evitar que as meninas na mesma idade sejam estupradas e tenham filhos sem se casar. Para os Xavante, mesmo que as meninas de 12, 13 anos estejam prontas para o casamento, os rapazes ainda não estão. Então, junto destes garotos afastados do resto da aldeia, eu me encontro seguro para observar, perguntar e escrever minhas impressões. Logo que chego, no meio da madrugada, o Chico acorda o Willer, um dos garotos, que, por falar melhor o portugês, é incubido de ser meu guia. Ele me ajuda a achar um lugar para estender meu colchão e acomodar minha mochila e a garrafa térmica gigante com água que o Chico me emprestou. Chico vai embora para seu acampamento e eu fico ali, deitado no meio do breu, com mais uns tantos garotos que não vejo, mas ouço o barulho que fazem dormindo. O cheiro é de poeira e cueca de adolescente. O quarto, de alvenaria é aba114


fado e as janelas estão fechadas. Sou interrogado pelo Willer, a quem eu vi tão pouco, mas de quem agora dependo tanto. Ele explica para os outros que o waradzú (gente não-índia, como eu, é chamada assim) vai ficar com eles esse fim de semana, e isso parece razoável para eles. Viro para o lado e durmo, cansado. FUTEBOL, DROGAS E ROCK N’ROLL

O total silêncio e a completa muvuca estão separados por um alarme de celular. São 6:30 da manhã. Abro os olhos e vejo uma dezena e meia de garotos morenos de todos os tamanhos, com cabelos muito lisos e pretos (não há como descrever com exatidão a lisura e o pretume daqueles cabelos) em vários comprimentos, vestindo shorts e camisetas. Eles se levantam de maneira barulhenta e apanham toalhas, cuecas e escovas de dentes. Willer me diz para seguir o comboio. Do lado de fora, eles escovam os dentes segurando canecas e garrafas pet com água. Ao fim, entram em fila indiana e se embrenhem no meio do mato. Eu colo no fim da fila e tento me comunicar com eles, com o Willer fazendo as vezes de intérprete. Chegamos à beira de um córrego. Chovera no dia anterior, logo a aparência da água é algo entre suja e muito suja. 115


Mas todos se despem sem cerimônia e entram na água. Logo me olham com curiosidade. Eu tiro a roupa e fico de cueca. Entro aos poucos e a água está mais fria que eu achei que estivesse. Tremo até a alma, mas não reclamo. Não sei nadar, então fico próximo da margem, olhando os garotos maiores pularem de uma árvore dentro d’água. Willer me pergunta por que não fiquei totalmente pelado. Respondo que tenho vergonha e ele ri. Eles estão à vontade com seus corpos, eu não. Eles são adolescentes, eu sou um homem adulto. Não sei quais as implicações em ficar nu no meio de menores de idade em um território afastado da minha realidade. E não quero saber. Após o banho, todos se trocam e vão para a escola da aldeia. Eu como algumas bolachas que trouxe na mochila e dou um rolê na aldeia. Na casa do vice-cacique Robson, ouço alguns dos problemas que Chico tinha me falado, sobre o descaso da FUNAI com a aldeia. E outros novos. Insumos para plantação de arroz estavam atrasados, logo a colheita tinha sido fraca. Na casa de Robson, conheço o professor José Uratsi, formado na UFG, que me convida a conhecer a escola. Vou com ele, a tempo de ver meus companheiros de abrigo fazendo um canto de mãos dadas. Não entendo muito, mas acho bonito. Em seguida, Robson me chama de novo para conhecer os velhos da aldeia. Todos usam cocares, 116


todos possuem marcas da corrida de toras nas costas, todos fabricam arcos e apetrechos. Eles me dizem que estão preocupados com a PEC 215. Sorrio amarelo, pois não faço a mais puta ideia do que se trata. Robson me explica que na semana do índio vai ser votado na Câmara dos deputados um projeto de lei que tira da FUNAI e passa para o Congresso as decisões sobre as demarcações de terras indígenas. E que eles vão para Brasília para protestarem por direitos. Sim, eles estão mais informados dos pormenores da lei do que eu. Sim eles sabem que a bancada do agronegócio é muito influente. Sim eles sabem muito bem quem é a ministra do Meio Ambiente, Kátia Abreu. E sim, eles leram, sabe-se lá como, uma entrevista dela na Folha dizendo que “índio já tem terra demais.” Esse é só o primeiro soco no ego que este pretenso jornalista toma. Onze horas já é hora de almoço na aldeia e eu estou morrendo de fome. Aos poucos, crianças vão se aproximando do Hö, com panelas de comida. Cada um recebe uma parca porção de arroz, alguns ganham um pedaço de carne, outros um pouco de feijão. A maioria come arroz puro. Willer me oferece sua comida. Aceito comer junto com ele e para minha surpresa não há talheres. Comemos com a mão, um arroz bem cozido e quase sem sal. Ainda assim é delicioso. 117


Não como muito, pois meu amigo só vai comer de novo dali a seis horas. Divido com ele um pacote de bolacha de sal. Depois do almoço os garotos fazem a lição. Eles me perguntam o nome das coisas em português, apontando. Porta. Mato. Nariz. Boca. Cabelo. Pergunto o nome de cada um e ouço os nomes mais brasileiros possíveis. Michel, Wilker, Dorneles, Cristian, Aírton, Leonel e é claro Willer. Willer Tseredzé é a personificação do bom selvagem do imaginário brasileiro cheio de estereótipos. Educado e gentil, tem 16 anos e passou um tempo estudando entre os padres salesianos em Cuiabá. Conheceu de perto os waradzú e tem observações sempre pertinentes sobre nossos hábitos: “Waradzu não respeita mais velhos.” “Waradzu fica muito gordo quando fica mais velho.” “Por que waradzu fala pra outro ‘vai tomar no cu?’” Falamos também sobre um assunto que costuma unir garotos em qualquer rincão do planeta: futebol. Perguntam qual meu time e eu respondo um tanto sem convicção: “Corinthians”. Três garotos comemoram, os outros, mesmo sem falar português fazem sinais de que é um péssimo time. Pergunto a cada um seus times. Alguns são Flamengo, outros são Santos. Um é sãopaulino, um palmeirense, um 118


Real Madrid. Um deles diz que torce pelo Neymar e outro diz que o time dele é Cristiano Ronaldo. Pergunto se eles acompanham os jogos e eles dizem que não, nem pelo rádio. Todos torcem pela seleção. Mas ignoram que o Brasil tenha perdido de 7 a 1 da Alemanha. Estou de fato intrigado. Uma moto surge do nada. É um índio com uma mensagem pra mim: “Robson quer falar com você” O vice-cacique me recebe com cerimônia, quer saber se estou sendo bem tratado. E tem um convite a me fazer. O ancião sonhou e, segundo os sonhos dele, um ritual de purificação e abençoamento deve ser feito no dia seguinte. Ele quer saber se eu quero participar. “Claro que sim”, eu respondo. Ali é tudo na base do sonho. Se tem decisão importante para tomar, é melhor ver com o que sonhará os velhos. Ou então pode ser o contrário. Os velhos sonham, e em seguida resolvem tomar alguma decisão. Passo o resto da tarde ouvindo histórias sobre os círculos migratórios do povo Xavante, o último a ter contato com os waradzú. Também me falou sobre como se dá o contato com os salesianos, que ajudaram a fixar a aldeia São Marcos ali e construíram uma igreja. Na parede da igreja chama a atenção a figura de um índio crucificado. Mas ao mesmo 119


tempo em que cantam preces em akwén a Deus e a Dom Bosco, eles não abrem mão de seus rituais secretos. Além de São Marcos, existem outras 40 aldeias ao longo dos mais de 188 mil hectares de terra da reserva. Todas com nomes católicos, como Nossa Senhora Aparecida e Nova Jerusalém. No caminho de volta para o Hö, uma chuva forte me pega de surpresa. Dentro da casa, os garotos estão deitados com uniformes de futebol, aguardando a chuva passar. Foram surpreendidos no meio da partida. Imaginem o cheiro de 15 adolescentes suados deitados em um quarto abafado. Então. Quando a chuva passa, o futebol continua. Sou chamado para a partida, mas recuso. Meu estilo de futebol (que é nenhum) não combina com craques tão raçudos. Ali, do pescoço pra baixo, tudo é canela. O chão batido não amortece as constantes quedas. A partida termina em 15 a 14. Acaba o jogo e é a deixa para a chuva cair de novo. No fim da tarde os garotos se preparam para um novo banho. Eu prefiro evitar outro banho gelado, na água que deve estar mais suja por causa da chuva. Então, eis que surge o Chico, a bordo de uma caminhonete, dirigida por um índio que presta serviços para o posto de saúde. Ele me chama para ir a uma outra aldeia, onde diz ter água quente. “Oba, um chuveiro,” eu penso. A bordo da caminhonete 120


embrenhamos nas estradas acidentadas que levam à aldeia Nova Jerusalém. E de repente o carro para. No escuro, Chico saca um cachimbo feito de uma semente gigante e de algum lugar surge um pacote com a erva que passarinho não fuma. “Essa é orgânica, coisa fina”, ele me garante. O cachimbo passa de mão em mão e logo o carro está lotado de fumaça. Depois de limpar os vestígios, chegamos à aldeia. Sem energia, pegamos lanternas e vamos até o local onde tem o tal chuveiro. Mas não há chuveiro nenhum, a água quente é de um riachinho no fim de uma trilha. Chapado e exausto, tiro a roupa e me entrego àquelas águas, mornas. Acima de mim, o infinito estrelado. Eu e a natureza somos um só. Ouço um coro celestial. Estou muito chapado. Chico me chama para jantar no posto de saúde. Como é fim de semana, os funcionários foram embora para Barra do Garças. Como o macarrão maravilhoso que ele faz e volto para o Hö. Aproveito para carregar meu celular, já que o posto é um dos poucos lugares com energia elétrica, vinda de um gerador. Na volta para o Hö, enxergo ao longe umas luzinhas piscando. Podem ser vaga-lumes. Pode ser extraterrestres. Mas ao me aproximar ouço música. E vejo alguns dos garotos dançando em volta de uma caixinha de som que pisca luzes coloridas. Com seus cartões de memória cheios 121


de músicas que eu nunca tinha ouvido. São músicas em espanhol. E em japonês. E em Akwén. E Led Zeppelin, Queen, Bon Jovi. Eles criaram coreografias para todas as músicas. Eu colo no bonde e participo de uma das melhores baladas da minha vida. Mais tarde, ensino a eles o nome de algumas constelações no céu, tão limpo e o mais estrelado que já vi. E é a vez deles me ensinarem algumas palavras em Akwén. Pequi: abare; Nariz: danhisi’re; Estrela: wasi Galinha: si’a; E uma que coisa que não esqueci, pois fiz questão de anotar, a elogiosa frase “waradzú hâi pese di” que em tradução aproximada quer dizer que o waradzú, no caso eu, está gordo. CUSPE, PENAS E URUCUM

No outro dia, todos acordam mais tarde, é sábado. Oito da manhã alguns meninos pequenos trazem bolo ou pão para seus irmãos tomarem café da manhã. Willer não recebe nada. Divido com ele outro pacote de bolacha. Dou uma volta na aldeia e todos me param para saber quem eu sou. As crianças adoram abraçar. Se dependuram. O professor José 122


Uratsi me diz que eu preciso me arrumar para o ritual. Alguém surge com um calção vermelho. Vou com ele e todos os homens da aldeia para o meio do mato. Pulseiras de palha são trançadas em meus pulsos e nos tornozelos. Uma gravata de algodão e pena de galo envolve meu pescoço. Meu cabelo é convidado por uma tesoura afiada a se separar do couro cabeludo. Todos eles fazem esses preparos uns nos outros. José Uratsi coloca uma castanha na boca e mastiga. Em seguida cospe na mão e a esfrega em uma grande pedra de pó de urucum. A mão vermelha e gosmenta é esfregada em mim. Meu corpo todo é pintado na base da saliva e do urucum. Minhas pernas são pintadas de preto, com carvão. E sou instruído sobre minha participação no rito, como me movimentar, o que fazer. “Não pode rir, tem que fazer cara séria!”, me diz o ancião. E isso é tudo que posso dizer sobre o rito. Por ser um rito só de homens – as mulheres ficam trancadas dentro das casas – nenhuma mulher pode saber dos detalhes do que acontece. Eu até poderia contar, mas: 1- Um dos velhos pajés me assegura que assim que eu abrir a boca para contar o que rola, ele vai ouvir e me rogar uma praga; 2- Mesmo que eu quisesse, eu não entendo uma única palavra do que foi dito, de modo que mesmo estando lá e prestando atenção, eu boiei na maior parte do rito. 123


Aliás, eu entendo uma coisa: muitos deles dizem “waradzú” e riam muito. Óbvio que minha falta de jeito para a dança e minha pança são motivo de piada para eles. Correr no sol com eles também é um desafio. Em menos de dez minutos eu estou exausto. No fim do rito, que movimenta toda a aldeia, eu vou me lavar no rio. E o tal do urucum não sai nem com reza brava. Fico mais de hora mergulhado na água e ainda tem tinta. Já é noite e eu me preparo para me despedir dos meus amigos. Tiramos fotos, ouvimos música. Toco algumas músicas do meu celular para eles ouvirem. Funk, rock, arrocha. Willer me mostra fotos da família e conta sua história. Ele é órfão e tem dois irmãos e uma irmã. Adora ver os filmes dos missionários na igreja. Sabe de cor a história de Dom Bosco. É a minha vez de perguntar como chama cada coisa em akwén. É um mundo fascinante e novo. Eles me perguntam se eu quero ser o padrinho deles. É que cada turma tem um nome e alguns padrinhos dentro do sistema etário Xavante. E alguns padrinhos não oficiais, simbólicos. O nome desta turma, que só vai sair do Hö em 2017 é anarowa. Tem essa palavra escrita na porta. Fico feliz em ser um anarowa e quero saber o que significa. “Estrume,” respondem. 124


E é verdade. Cada grupo tem um nome. Estrume é uma coisa útil, vital para a agricultura, eles se orgulham disto. Devo me orgulhar também. Ao fim de dois dias, eu desaprendo a articular as palavras. Pois não é necessário um vocabulário extenso, nem conjugar todos os verbos. Me comunico em um português tacanho e eles me entendem. Não penso mais na ideia de que eles precisam de mim, para o que quer que seja. Eles podem contar a história de seu povo. São a’uwe uptabi, gente de verdade, como eles dizem. No dia seguinte, vamos todos para a missa. Ouço os cânticos, me despeço de Robson, de José Uratsi e das crianças. Mas, como os garotos do Hö estão separados, não digo adeus. É melhor assim. Na casa, deixo um recado de agradecimento. Deixo meu colchão para Willer, que dormia em cima de um tapete dobrado. Deixo ainda uma camiseta para ele e uma bermuda para outro garoto. O chinelo fica com o menino que me emprestou o calção e que andava descalço. Chico me espera no carro para me levar para Barra do Garças. Na saída, vou olhando o caminho, a aldeia ficando para trás e meu coração diminuindo junto com a imagem dela.

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Reportagem publicada no caderno Essência, do Jornal O Hoje de 17 de Abril de 2015

TI AHÃ WANHORÕWA1 Com exclusividade, repórter do Essência passa três dias ao lado de índios Xavante, na Reserva São Marcos, onde conheceu a realidade da aldeia Júnior Bueno Enviado especial à Aldeia São Marcos (de Barra do Garças - MT)

Há um Brasil que o Brasil desconhece. Um Brasil que já conhece telefonia celular, mas passa meses sem energia elétrica e sinal de telefonia. Um Brasil que não fala totalmente o Português, mas adora futebol, torce pelo Flamengo e sabe quem é Cristiano Ronaldo. Um Brasil que vai à missa aos domingos e participa, nos dias propícios, de ritos secretos de purificação e de abençoamento. Um Brasil que vota, mas não tem acesso aos programas de governo dos candidatos; que dirige, mas não tem carteira de motorista; que não vê TV, mas está por dentro de projetos de lei que falam sobre remarcação de terras indígenas. Este repórter viu de perto este Brasil, o do povo A’uwe Xavante, e, durante três dias, conversou com alguns dos habitantes da Reserva Indígena São Marcos, a 200 km de Barra do Garças, em Mato Grosso. 1

A Terra é a nossa casa 129


Os Xavante têm um histórico muito recente de contato com o homem branco, chamado por eles de waradzu. No início do século 18, depois da descoberta do ouro na então província de Goiás, a chegada de mineradores, bandeirantes, colonos e missionários pressionou as populações indígenas locais, provocando conflitos entre elas e os novos habitantes. Na segunda metade daquele século, vários grupos, incluindo alguns identificados como xavante, estiveram assentados em aldeamentos patrocinados pelo governo, onde sofreram os efeitos devastadores de doenças epidêmicas. Em meados do século 19, os antepassados dos Xavante cruzaram o rio Araguaia. Este deslocamento rumo a oeste separou definitivamente os Xavante dos Xerente, os que ficaram. E só há cerca de 60 anos, é que esse contato foi retomado. Desde então, a relação desta etnia – e demais povos indígenas em geral – com os waradzu tem passado por altos e baixos. O vice-cacique Robson Tsuba Tsereura conta que seu povo tratou de evitar o quanto pôde o contato com o homem branco. “Nossos antepassados andaram da região do mar sempre fugindo dos lugares onde waradzú estava,” conta. A população Xavante soma, atualmente, mais 15 mil cidadãos distribuídos em 12 áreas de demarcação indígenas, todas localizadas no leste do estado de Mato Grosso, e em 130


São Paulo. Na região de São Marcos, são mais de 40 aldeias espalhadas por um território de mais de 188 mil hectares de terra. Por influência da Igreja Católica (por meio da Congregação Salesiana), as aldeias têm nomes como São Marcos, Nossa Senhora Aparecida e Nova Jerusalém. Os salesianos construíram uma igreja e uma escola em São Marcos. As aulas e as missas são ministradas em Português e Akwén, a língua xavante. A parede da Igreja chama a atenção pela figura de um Cristo com feições indígenas e pinturas corporais próprias dos Xavante. Os salesianos representam uma ordem waradzú, pontual na vida da aldeia. Os índios estão acostumados aos cantos que louvam Dom Bosco, nos dois idiomas, e frequentam a missa com rigor sem, no entanto, abrir mão de rituais específicos próprios de suas crenças ancestrais. José Uratsi, professor na escola da aldeia, explica que, para eles, as figuras divinas das diferentes religiões correspondem a um mesmo deus. O Deus da igreja é o mesmo deus daqui da mata, diz ele, enquanto se prepara para um ritual que ocorreu durante a minha visita a São Marcos. A convite dos homens da aldeia, eu participei desta festa sagrada, mas, por seu caráter secreto, não posso descrever os pormenores da cerimônia. 131


A comunidade de São Marcos, principal aldeia da demarcação pertencente ao município de Barra do Garças, se prepara para festejar, neste mês, o aniversário da aldeia, fundada em 1970. Nesses 45 anos, a presença dos salesianos e a convivência com os waradzú de Barra do Garças mudou pouco a configuração do povoado de casas de palha e chão de terra batida. Alguns carros, postes, dois orelhões e um posto de saúde complementam a paisagem. E antenas, muitas antenas parabólicas. Mas, na maior parte do tempo, há falta de energia elétrica. O posto de saúde, que também presta atendimento odontológico, não funciona quando não há energia. Esse é apenas um dos problemas que o posto enfrenta. A estrutura física que o local possui é uma casa emprestada pelos salesianos, apesar de o atendimento ser de responsabilidade da Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai), ligada ao governo federal. Outra reclamação constante é a falta de água. Em um flagrante, caso de má gestão, a Prefeitura de Barra, com verba do Ministério da Saúde, aprovou a construção de caixas -d’água nas aldeias, em 2008, em um valor que ultrapassa R$ 100 mil, com previsão de entrega em 180 dias. A obra levou anos para ficar pronta e a estrutura (uma armação de concreto com galões de plástico em cima) não funciona cor132


retamente. Dos três compartimentos, apenas um é cheio de água, o que é insuficiente para abastecer a aldeia. Na maior parte do dia, os índios ficam sem água até mesmo para beber. Outra reclamação - desta vez pesando sobre a Fundação Nacional do Índio (Funai) - é a dos constantes atrasos na entrega de insumos agrícolas para a plantação de arroz que a comunidade cultiva. Não raro, as sementes e os materiais para o plantio chegam com atraso, o que para a plantação, que deve obedecer rigorosamente o tempo certo de plantar e colher, é um prejuízo grande. HÁ O QUE COMEMORAR?

A condição dos povos indígenas, que vive na pele as consequências do irreversível contato com os waradzú, se torna uma questão contundente quando nos aproximamos de mais um Dia do Índio, no próximo domingo. Há o que comemorar? Nos 515 anos de fundação do Brasil, a população indígena passou por incontáveis massacres, físicos e culturais. Alguns povos foram dizimados e alguns idiomas foram extintos. Em 1967, foi criada a Funai, e, em 1973, o Estatuto do Índio. Em tese, a letra da lei deveria proteger o cidadão indígena. Em tese, já que, há menos de dois anos a etnia Guarani Kaiowá, se viu diante de um iminente despejo por 133


ordem judicial das terras que ocu­pavam. Em comunicado, eles responderam: Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de des­pejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui. Há 17 anos, o cacique pataxó Hã-hã-hãe, Galdino dos Santos, morreu queimado por uma turma de garotos ricos em Brasília. Nem é preciso ir tão longe: a cidade de Barra do Garças, que convive diariamente com índios que precisam sair da aldeia para resolver questões, como ir ao banco, homenageia, em suas praças, um garimpeiro e um fazendeiro. Aos índios, sobra o descaso de comerciantes e a sanha de agiotas. Uma fonte que não quis ser identificada contou que, em troca de empréstimo, os agiotas confiscam dos índios o cartão e a senha de programas como o Bolsa Família. Mas a questão que mais preocupa a população indígena, no momento, atende pelo nome de PEC 215. Enquanto esta reportagem é redigida, várias lideranças indígenas estão em Brasília protestando contra o projeto. A PEC pretende, em termos gerais, transferir do Executivo para o Congresso o poder de demarcar terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação. Existem garantias constitucionais, firmadas em 1988, que vão para o ralo caso a PEC seja aprovada. Ou seja: a demarcação de terras indígenas, que é 134


competência da Funai, passaria para as mãos dos parlamentares. Os mesmos que não podem atender às demandas indígenas, uma vez que estão mais interessados na atual legislatura, em políticas que beneficiem a trinca boi, bala e Bíblia. A ministra da Agricultura, Kátia Abreu, renomada defensora dos interesses ruralistas, em entrevista, afirmou que índios ocupam terras que serviriam para a produção agrícola como se a lógica de produção fosse mais importante que um chamado ancestral e uma ligação muito mais forte e intangível de um povo com a sua terra. O jovem Willer Tseredze, aluno do oitavo ano da escola da aldeia, resume: “Waradzú não respeita a terra do índio, não entende que a terra é a nossa casa.” GENTE DE VERDADE

Seis horas da manhã. A aldeia acorda ao som dos galos. À margem do grande círculo de casas de palha, está um barracão, onde um grupo de garotos se encaminha de forma organizada, mas não silenciosa, em direção ao córrego mais próximo. Um mergulho na água gelada é o primeiro banho do dia. Nenhum deles pode ter contato com as demais pessoas da aldeia, sobretudo as meninas. Até as refeições, parcas porções de arroz e feijão, são enviadas por meninos menores. Na cultura Xavante, os rapazes ficam separados, por 135


anos, até atingirem a idade adulta, que é quando provam sua força e têm as orelhas furadas para poderem ser reconhecidos como adultos. Enquanto isso, os garotos do Hö, como é conhecido esse exílio, dividem o dia em nadar, ir à escola, à missa aos domingos e jogar futebol. Se há um assunto que é unanimidade entre os homens da aldeia, este é o futebol. Apesar de não acompanharem os jogos pela TV ou pelo rádio, todos torcem por algum time. A maioria é Flamengo ou Corinthians, mas há um que diga que é Real Madrid; outro, Santos. Houve até quem me dissesse que torcia pelo Cristiano Ronaldo. E, no campo, eles não fazem feio. O campinho de chão batido mal amortece os pés sem chuteiras desses craques, capazes de realizar partidas que terminam em 15 gols para um lado, 14 para o outro. As mulheres da aldeia são muito reservadas, entretidas em seus afazeres, mas são muito cooperativas umas com as outras. A despeito do posto de saúde, elas ainda dão à luz com ajuda de parteiras. “Mas não tem mais novas querendo aprender a fazer parto”, diz José Uratsi. As crianças são ensinadas a ser independentes o quanto antes, e não raro, os filhos mais novos ficam a cargo do cuidado dos irmãos mais velhos. Os velhos da aldeia têm o respeito de todos, são conselheiros, e possuem papeis de 136


destaque nas cerimônias religiosas da aldeia. Sonho é coisa séria para este povo. Decisões importantes tomadas pelos anciãos de uma aldeia levam em consideração o que foi trazido por meio dos sonhos. É nos sonhos que recebem conselhos, conhecimentos e informações, seja de antepassados, de mensageiros espirituais ou dos seres criadores. Ali, podem antecipar situações no estado onírico para basear suas decisões. Assim, pode-se inverter também e afirmar que decisões importantes tomadas pelos anciãos de uma aldeia costumam ser levadas para consulta nos sonhos. Há, no idioma Akwén, uma expressão que eles usam frequentemente para se designar: A’uwe Uptabi, que significa gente mesmo, gente de verdade, e é uma afirmação deles enquanto indivíduos dentro de seu espaço. É também um alerta a um País que os trata, muitas vezes, como animais, sendo que esta Nação não respeita sequer os animais. Os índios são gente. São gente também. São gente de verdade

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AGRADECIMENTOS

Quero deixar aqui registrado o reconhecimento ao apreço, paciência, incentivo e parceria de algumas pessoas que foram fundamentais para que este livro existisse. Meu amor, Guto, por tudo que alguém pode fazer para ajudar outra pessoa a crescer; Meus pais, Luzimar e Wilson, que com exemplos e palavras formaram minha estrutura de vida; Minha orientadora, Angelita Lima, que com carinho me espremeu até que saísse um texto bom de ler; A professora Luciene Dias, que me encorajou em escolhas fundamentais para o jornalista e ser humano que sou; Adalberto Borges, que um dia gostou do que eu escrevia, se tornou meu amigo e depois meu chefe; Ameliana, por insistir que eu deveria ser jornalista; Meus amigos e companheiros de graduação, Amanda, Mariana, Kaito, Luana, Jéssica Chiarelli, Jéssica Adriani, Vinícius de Morais, Vinícius Marques, Marina, Larissa, Nicole, Marco e Elis, esse núcleo de apoio e afeto que quero levar comigo para sempre; Carmem , por dividir comigo a dor e a delícia de gestar um livro-reportagem; E todas as pessoas, nas ruas, nos cinemas, no Vale do Amanhecer, na Aldeia São Marcos e no Jornal O Hoje, que me deram verdadeiras aulas práticas de jornalismo e de vida.


Este livro foi composto em Garamond, corpo 12; com títulos em Elsie, corpo 13. Impresso em papel pólen soft 75g, na Gráfica Kelps, em Goiânia, em fevereiro de 2016.




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