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Goiânia, quinta-feira, 17 de setembro de 2015
ESSÊNCIA RESENHA
Da cozinha pra lá ‘Que Horas Ela Volta’ faz sucesso ao desnudar a intricada relação entre casa grande e senzala no Brasil do século 21
JÚNIOR BUENO
or incrível que pareça, o filme brasileiro mais comentado e alardeado do ano não traz nenhuma novidade ao público em seu enredo central. A história de mulheres que deixam seus filhos a cargo de outros para ganhar a vida, cuidando de crianças que não são suas, é muito comum em todos os lugares. Babás e domésticas – de uniforme branco ou não – que fazem parte da vida de seus patrões até são consideradas ‘como se fossem da família’, desde que conheçam seu lugar, da porta da cozinha para fora, no menor aposento da casa, sem conforto. A novidade em Que Horas Ela Volta é essa relação culturalmente naturalizada entre patrões e empregados domésticos ter seus vícios e virtudes tão escancarados em cenas que não resvalam no denuncismo nem apelam para o sentimentalismo. A diretora Anna Muylaert, expert em filmar cenas sutis, consegue com maestria mostrar como patrões começam a achar que a empregada é um aparelho doméstico. Várias situações em que o casal de classe média paulista e seu filho adolescente se recusam a se levantar para realizar algo simples, como pegar um copo de água, grita pela empregada: “Val, me traz um copo de água”, “Val, você pode colocar a mesa?”, “Val, você pode tirar a mesa?, “Val, você pode trazer um sorvete para a gente?” Val (Regina Casé) vai e vem em cena para atender todas as demandas dos patrões – mesmo as demandas mais folgadas – e tem um prazer, no íntimo de se sentir parte daquela família, mesmo a troco de dormir em um quartinho de empregada, e abrir mão de grande parte do salário, enviando dinheiro para a criação da filha no Pernambuco. O afeto que ela não pode dar para a filha, distante, ela dispensa ao filho da patroa, de quem se torna uma espécie de segunda mão. Não à toa o filme foi batizado de Second Mother, no exterior, onde vem fazendo bastante sucesso. A ordem, até então estabelecida, vem abaixo com a chegada de Jéssica (Camila Márdila), a filha ressentida de Val, que viaja a São Paulo para prestar vestibular na mesma faculdade que o filho dos patrões de Val. Jéssica se recusa a ser servil e não vê problemas em questionar o sistema de castas vigente na casa. Quer saber por que existe o sorvete dos patrões e dos empregados, por que o quartinho da empregada é tão quente e apertado, por que não pode nadar na piscina da casa. Val tenta a todo custo incucar certas regras na filha como: “quando eles te oferecerem alguma coisa, você tem que dizer que não. Eles oferecem por educação,
porque sabem que a gente o grau de identificação da não vai aceitar.” personagem com o público. É dentro deste conflito E, por fim, deve-se resque entram as novas faces saltar o talento da diretora do País que tem mais acesso Anna Muylaert. A ideia do à universidade, que frefilme surgiu depois que ela quenta aeroportos e que não teve de contratar uma babá quer ser tratado como “cidapara cuidar de seu filho, e o dão de segunda classe”. E é roteiro foi trabalhado por esse o maior mérito do filme: mais de duas décadas. Desde ser no microcosmo um reentão, o País passou por mutrato do Brasil moderno que danças que interferiram no ainda não aboliu certos cosprocesso de criação da histumes, como o quartinho de tória. Diretora dos elogiados empregada, essa aberração Durval Discos e É Proibido arquitetônica que só existe Fumar, Anna chegou à mano Brasil. Um País que só turidade em Que Horas Ela agora está aprendendo a liVolta, considerado seu medar com direitos trabalhislhor trabalho até aqui. O tas para empregados dofilme recebeu premiações mésticos e que ainda chia em festivais importantes, por causa da quantidade de como o de Berlim e o de SunAnna Muylaert experimenta reconhecimento internapessoas tendo acesso à dance, e é o candidato brasicional com Que Horas Ela Volta; No alto, Regina Casé educação superior graças leiro a disputar uma vaga no às leis de cotas. Oscar do ano que vem. E a (Val) e Michael Joelsas (Fabinho), em cena do filme. Que Horas Ela Volta é, crítica especializada tampor excelência, um filme sobre mulheres, e o sucesso que o bém aposta numa possível indicação de Regina Casé como filme vem alcançando no Brasil e no exterior reflete e resaMelhor Atriz. A última vez que um filme dirigido por uma salta o desempenho de quatro mulheres. A primeira, obviamulher entrou na disputa (e nem foi indicado) foi em 1986, mente, é Regina Casé, força motriz do filme. Para quem tem com A Hora da Estrela, de Susana Amaral. E a única vez que na mente apenas a festiva apresentadora do Esquenta, o pauma atriz brasileira foi indicada foi em 1999, quando Fernanda pel de Regina é uma surpresa. Suas cenas, mesmo as que Montenegro brilhou em Central do Brasil. Que Horas Ela Volta faz parte de uma leva de filmes que possuem um teor cômico – e parte delas improvisadas – resexploram as relações sociais no Brasil do século 21, junto com guardam em um ou outro detalhe a tristeza da personagem. O Som ao Redor e Casa Grande, dentre outros. Mesmo que inA atriz recebeu em Sundance, nos Estados Unidos, o Prêmio conscientemente, diretores resolveram trazer, ao mesmo Especial do Júri pela atuação como a personagem Val. tempo, temas que refletem o quão intricadas são essas relações Ela dividiu a homenagem com Camila Márdila, outra entre a casa grande e a senzala. Não há mais a empregada figugrata surpresa do elenco. Em seu segundo longa, a atriz de rante, que entra muda e sai calada, ou a empregada fetiche, 26 anos já conquistou reconhecimento internacional. Sua que serve aos caprichos sexuais dos patrões. Some-se a isto o atuação como a questionadora Jéssica é algo entre a geniaclipe de Boa Esperança, do rapper Emicida, que fez barulho ao lidade e o instinto. A terceira mulher a brilhar é Karine Teles, mostrar um grupo de trabalhadores explorados que insurgem atriz da nova geração de cinema que chega agora ao recocontra os patrões, donos de uma mansão. São pequenas obrasnhecimento do grande público. Ela brilha no filme como a primas que ajudam a trazer para o debate o quanto somos fria patroa Bárbara, alguém que mesmo capaz de cometer ainda separatistas em alguns certames. É a hora de sair do atos condenáveis, é capaz de ter a empatia da platéia, dado quarto da empregada e ocupar as telas de cinema.