Fera, bicho, anjo, mulher!

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Goiânia, sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

ESSÊNCIA Fera, bicho, anjo, mulher! Intenso e honesto, o documentário ‘Cássia Eller’, faz justiça às muitas facetas da cantora JÚNIOR BUENO

sacro ofício de cantar. A Cássia Eller que o filme procura captuocê pode achar que me conherar é uma artista para quem a música, em ce. Pode conviver comigo, ser sua essência, era a coisa mais importante. A meu amigo, pode até ir para a certa altura, um trecho da carta na voz de cama comigo, mas você não Malu Mader diz: “A música me comanda. É me conhece. Mas quando eu a minha maneira de extravasar. Me toca lá cantar, aí sim você vai me conhecer.” A carta dentro. Não existe mais nada para mim. Tede Cássia Eller lida por Malu Mader logo no nho medo de ficar alienada por isso”. Para o início do documentário que leva o nome da diretor, Cássia não conseguiu administrar a cantora dá a dimensão do desafio do diretor fama e o amor recebido pelos fãs. “A história Paulo Henrique Fontenelle. Ao retratar a vida que mais me impressionou no filme e o que de alguém que era conhecida pelas interprea resume como artista aconteceu no auge do tações marcantes das músicas que cantava, sucesso, quando estava estourando com O ele teve que revelar a artista por trás da múSegundo Sol e de saco cheio do show busisica, tão intensa nos palcos, mas tão tímida ao ness,” diz ele. Ela ia com os músicos para falar de si mesma em entrevistas. uma cidadezinha do interior se apresentar Em entrevista para a TV Cultura, Fonteem clubes pequenos. Cobrava R$ 10 o innelle disse que o desejo de fazer o filme veio ao gresso só para pagar o jantar e ter o prazer ouvir Relicário, faixa presente no último de tocar, de ter o contato com o público, sem álbum gravado por Cássia, Acústico MTV, de grandes aglomerações. 2001. “É um disco que eu acho maravilhoso e E essa visão um tanto romântica, de encaeu estava ouvindo, lembrando da minha vida. rar seu ofício também se refletia no terreno Eu cresci nos anos 90, acompanhava shows, os amoroso, como o episódio de como ela gerou discos, e quando ela morreu ficou aquele vazio seu filho, Francisco, o Chicão, e como optou muito grande na vida da gente. Ouvindo aquepor assumir sozinha a criança e criá-la ao lado la música eu fiquei com vontade de ouvir mais de Eugênia. Com esta, construiu uma relação sobre a Cássia e descobri que não tinha neamorosa duradoura que contrastava com seu nhum filme, documentário, programa de TV espírito libertário e seus ideais de amor livre, sobre ela como pessoa. Então foi na busca de uma relação que desafiava o padrão moral viconhecer a mulher Cássia Eller que eu resolvi gente. Contradições que constroem uma perfazer o filme”, conta ele. sonalidade absolutamente apaixonante. Ao todo foram quatro anos dedicados à O filme mostra também os bastidores de pesquisa e às mais de 40 entrevistas realizadas muitas das obras da cantora. Ângela Rô Rô, em ao longo da produção do documentário, tudo depoimento hilário, conta como Malandracom o aval de Maria Eugênia, com quem Cásgem, que foi escrita por Cazuza e Frejat para sia viveu por 14 anos. A viúva, porém, impôs a ela, foi estourar na voz de Cássia. A opção por condição de que nada fosse amenizado ou corcantar de forma mais suave após o pedido de tado. Queria que se falasse também das drogas, Chicão, fã de Marisa Monte. Os muitos erros dos casos de amor. Para ela, não havia porque de gravação do Acústico MTV. O álbum é o focar apenas no gênio artístico e acabar por canto do cisne de Cássia, que morreu de uma endeusar a cantora, mas também não podia se forma trágica em 29 de dezembro de 2001, no ater somente aos pontos mais polêmicos da melhor momento de sua carreira. vida de Cássia e soar moralista e apelativo. Na parte final do filme, duas importantes Fontenelle conseguiu atender às premissas de questões são abordadas de forma contundente. Eugênia com louvor, e é esse o maior mérito A primeira é a forma irresponsável como a imCassia Eller não santifica nem demoniza a cantora morta do filme: fazer justiça às muitas facetas de Cásprensa tratou de noticiar a morte da cantora, aos 39 anos; retrata fielmente a vida e a obra de Cássia sia Eller, sem recorrer a estereótipos. quando pairavam suspeitas de que fora por overO filme trata em ordem cronológica dos dose, o que depois se confirmaria como um fato principais momentos da vida da cantora, desinverídico. Ela morreu de infarto agudo do miode sua entrada na cena musical, em Brasília, a partir de trechos de entrevistas da cárdio, está no laudo, mas na capa da Veja teve um vergonhoso“Drogas, mais uma vícantora, depoimentos de pessoas que conviveram com ela, vídeos caseiros filmatima” estampado. Visto de hoje, o sensacionalismo de então choca. Neste ponto, o dos por amigos e familiares e cenas dela no palco. E todas as muitas camadas do filme serve como uma provocação à maneira que se consome notícias até hoje. ser Cássia Eller são desveladas aos olhos do público. Nas imagens caseiras, surge Outra questão registrada no filme foi a briga pela guarda de Chicão, uma uma mulher família, jogando bola com o filho, fazendo graça para a câmera, canvez que o pai de Cássia (figura ausente no resto do filme) entrou na justiça tando e tocando violão entre amigos. Nas memórias de familiares e amigos como para tirar a criança dos cuidados de Eugênia, como era o desejo de Cássia. Zélia Duncan e Nando Reis, ela surge como alguém à vontade entre os que ela Numa decisão inédita no País, a justiça concedeu à viúva da cantora os direiamava. Nas entrevistas, uma pessoa completos sobre o garoto, que a considerava como mãe. O fato gerou discussões tamente deslocada diante das câmesobre novas formações familiares e despertou novos olhares da lei para os ras, tomando uma goleada de filhos criados por casais do mesmo sexo. O depoimento de Chicão, hoje com sua timidez. No palco, um 21 anos, é emocionante, pela incrível semelhança com a mãe. demônio em frenesi, Tecnicamente, é um filme irrepreensível. A edição faz um mosaico empolem perforgante de imagens, sem soar repetitivo ou desnecessário. O mérito é de Fontemances de nelle, que já dirigiu outro documentário em 2008, o consagrado Lóki – Arnaldo grande enBaptista, sobre o cantor à frente do grupo Os Mutantes. Em Cássia Eller, ele trega ao confirma a tradição brasileira de fazer bons documentários sobre a música nacional, a exemplo dos filmes feitos sobre Wilson Simonal, Raul Seixas e Chacrinha, entre outros. O filme tem duas horas de duração, mas não é, em nenhum momento, arrastado. Pelo contrário: artisticamente, é uma obra tão honesta e intensa quanto Cássia Eller foi e o que a torna mais atraente é ser despudoradamente apaixonado por ela. O que se vê na tela é, como na música de Nando Reis, um relicário imenso desse amor.


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