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As imagens-sonho Bernardo Bäcker

As imagens-sonho

Bernardo Bäcker

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Numa passagem acerca da transformação dos seus métodos de análise dos sonhos, em seu artigo “Chegando ao Inconsciente”, Jung diz que “uma história narrada pelo nosso espírito consciente tem início, meio e fim; o mesmo não acontece com o sonho, suas dimensões de espaço e tempo são diferentes. Para entendê-lo é necessário examiná-lo sob todos os aspectos – exatamente como quando tomamos um objeto desconhecido nas mãos e o viramos e reviramos até nos familiarizarmos com cada detalhe1” . Tal trecho nos proporciona uma leitura interessante sobre In the Shadow of the Sun, como também deixa em aberto a possibilidade de que as imagens-sonho que nos são apresentadas no filme possam ser exatamente esse objeto descrito por Jung.

Neste filme de Derek Jarman, as imagens se dispõem em fragmentos de sonhos sobrepostos, em que não se destacam princípio nem fim. As paisagens do interior da Inglaterra, que são apresentadas no limiar do abstrato, juntam-se a elementos místicos, caros ao diretor, não somente para criar novos significados, mas também para que essas imagens formem uma unidade pictórica, trazendo características bastante parecidas com os trabalhos em pintura realizados por ele. Formado pela Slade School of Fine Art, Jarman teve uma carreira bastante prolífica como pintor, e, por isso, a interseção entre pintura e cinema – duas áreas de atuação desse artista que se dedicou a diversas formas de expressão de suas obsessões, da poesia à jardinagem – pode ser, se não resumida, notada claramente em In the Shadow of the Sun.

O filme se estrutura na sobreposição de imagens distintas no mesmo plano cinematográfico, e, em momento algum, essas diferentes camadas de imagens, apesar de bastante díspares, entram em conflito umas com as outras. Por terem sido filmadas separadamente e mescladas na mesa de edição, a potência das questões levantadas pelo filme é elevada ao mostrar que essas imagens só podem ser vistas de maneira conjugada. Assim, paisagens bucólicas, beirando à abstração, graças ao tom monocromático e a alteração da velocidade do filme, se juntam a outras imagens que evocam uma espiritualidade bastante particular, onde figuras humanas misteriosas, como que arquétipos de um baralho de tarô, praticam rituais místicos. Por toda a extensão do filme, esses dois elementos se confundem, invadindo o espaço do quadro do outro, sem que o espectador consiga identificar onde uma imagem tem seu começo ou fim.

1. JUNG, CARL G. Chegando ao inconsciente [1964]. In JUNG, CARL G. (org.) O homem e seus símbolos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 29.

As composições finais, oriundas da aglutinação de diferentes cores, texturas e elementos, atribuem um caráter pictórico a cada imagem, como se fossem, segundo a segundo, traçadas por um pincel, reinagurando-as e progressivamente trazendo uma nova experiência sensorial, que em alguns momentos ultrapassa ilusoriamente a barreira da bidimensionalidade. Em uma passagem o fogo reproduzido pela imagem se faz tão real que parece estar danificando o filme, fazendo com que o espectador tenha a impressão de que a película está realmente em chamas. Neste instante, mesmo que virtualmente, a força da imagem se torna mais forte do que o própio material que a exibe. Os sonhos, por um momento, são mais fortes do que quem os sonha.

A potência imagética que Jarman consegue alcançar é reiterada ao longo de todo o filme através da repetição de certas imagens: uma figura humana encapuçada gira em círculos um bastão sobre a areia; cartas de tarô são mostradas para a câmera; a poesia misteriosa das pedras do monumento neolítico de Averbury; a frontalidade de uma máquina de escrever em uso; o fogo sendo usado para formar símbolos no chão. Tais imagens se entrelaçam de uma maneira em que não nos é possível precisar sua duração e seus limites de começo e fim, e é essa aparente fluidez inconsciente conjugada à repetição dessas imagens que atribuem ao filme seu caráter onírico. Adjetivo comumente usado em poéticas mais puras, fantasiosas ou de um maneirismo complexo, mas presente aqui num filme no qual a literalidade de cada imagem é mais importante do que as inúmeras associações de ideias que se possa fazer a partir delas.

Para Jung os sonhos são expressões específicas do inconsciente e sobre eles não se devem fazer suposições prévias. Em um de seus livros autobiográficos, Dancing Ledge, Jarman cita que a leitura de Carl Gustav Jung foi essencial para a realização deste filme, que, por sua vez, serviu como inspiração-base para alguns outros filmes que se seguiram em sua carreira. O diretor ressalta a importância do contato com o pisiquiatra suíço dizendo que nele encontrou a confiança para permitir que suas “imagens-sonho pudessem correr e se colidir ao acaso”. In the Shadow of the Sun é como um mergulho de um pouco menos de uma hora no inconsciente de Derek Jarman onde cabe a nós, então, virarmos e revirarmos a obra para, a cada retorno, descobrirmos novas familiaridades

Bernardo Bäcker (1986) é bacharel em Cinema pela Universidade Estácio de Sá e atualmente cursa a especialização em Arte e Filosofia na PUC-RJ. Trabalhou na produção de arte da TV Globo entre 2009 e 2011. Participou dos núcleos de pesquisa “A imagem do Corpo e o corpo como imagem: A obra de Matthew Barney” e “O cinema expandido e o corpo feminino”. Trabalhou como diretor de arte nos curtas-metragens Toque (2006), dirigido por Renata Doné; Dora (2007), de Rodrigo Schulz; e Ondas (2013), de Pedro Modesto. Atualmente trabalha como roteirista independente e realiza trabalhos autorais na produção de vídeo.

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