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Anacronia e desejo em The Tempest de Derek Jarman Tales Frey

Anacronia e desejo em The Tempest de Derek Jarman

Tales Frey

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Normalmente vemos, no gênero artístico do cinema, desde a sua origem, o poder falocêntrico e o vigor de uma sociedade amparada pela lógica patriarcal e heteronormativa, na qual tão somente há lugar para os papéis dicotômicos rigidamente rotulados. Sim, há exceções, mas não em âmbito do modelar enredo hollywoodiano que reforça tal ideia ao expor, de um lado, homens viris, destemidos, valentes, musculosos, guerreiros e, do outro, as mulheres sonhadoras, frágeis, sensíveis, românticas.

Desobedecer essa “regra”, quebrar esses preceitos, é propor alternativas para desestabilizar um mundo ainda situado em torno de códigos já manjados, preestabelecidos. Com humor, Derek Jarman sacode esses princípios engessados através de uma releitura do clássico texto A tempestade de Shakespeare, expondo sexualidades mais variáveis na sua versão cinematográfica, autorizando as diferenças e não as diversidades, criando, assim, uma narrativa ideológica que suprime a norma, rejeita o instituído, satiriza uma ordem fundada e debocha do senso comum em representações que aludem à política/cultura queer.

A partir de um “comentário” do clássico, há uma construção anacrônica na releitura de Jarman que, apesar de fazer alusão ao século XVII, expõe contornos punks, post-punks e new waves em construções teatralizadas que só podem ser concretizadas por meio do cinema. Talvez não houvesse solução em um palco italiano ou alternativo tal roteiro visual, o qual transforma a Grã-Bretanha contemporânea num espaço atemporal onírico e distópico, onde os tempos se sobrepõem, onde, por exemplo, a celebridade Toyah Willcox do universo pop-rock assume a personagem shakespeariana Miranda sob uma nova roupagem, aludindo à melancolia gótica dos anos de 1970 e 1980.

Sob uma conjuntura cênica de cores vibrantes, há uma transgressão com relação ao enredo de Shakespeare, conectando uma alegoria de outrora à contracultura britânica dos anos 70 e 80. Derek Jarman institui uma fissura no que muitos encenadores e cineastas veem como um rigorismo que não pode ser dissuadido.

Nesta variante pós-moderna da peça, vemos a fixação de uma visão queer oferecida a quem aprecia a obra, desconstruindo e achincalhando o olhar heteronormativo para a poética construída. O casamento de Miranda e Ferdinand conclui a obra com extraordinário escárnio sobre a noção de

fidelidade e de amor de matriz judaico-cristã, expondo marinheiros do sexo masculino que dançam livres, mas também colados, ao mesmo tempo que exibe a promessa de fidelidade heterossexual nos votos matrimoniais, o que representa propositalmente uma enorme contradição com o contexto carnal que envolve grande parte do filme repleto de personagens crossdressers, subjetividades imprecisas dentro de uma construção social normativa, ambíguas com relação aos categóricos letreiros “masculinos” e “femininos”.

Ao contrário de grande parte dos filmes e vídeos realizados no ano de 1979 e seus arredores, Jarman ousa por não se utilizar dos efeitos especiais mais sofisticados disponíveis na sua época, dando ênfase à teatralidade de The Tempest, abusando do “claro e escuro” da pintura barroca. Parafraseando Giorgio Agamben, é nesse jogo entre claro e escuro que Derek Jarman assegura a sua contemporaneidade, fixando o seu olhar no seu próprio tempo, percebendo não as luzes existentes, mas justamente a escuridão.

Tales Frey é artista e pesquisador com formação em Artes Cênicas e Visuais. Membro fundador da revista Performatus e da Cia. Excessos.

The Tempest - 1979 Hollywood Classics Ltd.

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