O capa branca

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Walter Farias Daniel Navarro Sonim

o capa-branca de funcionรกrio a paciente de um dos maiores hospitais psiquiรกtricos do Brasil



o capa-branca




Direção Mary Lou Paris Edição e Assessoria de Imprensa Mariana Kühl Leme Daniel Navarro Sonim Preparação Fábio Bonillo Revisão Luiz Fukushiro Projeto gráfico Jussara Fino ilustração da capa Studio DelRey Administração e Vendas Dominique Ruprecht Scaravaglioni Douglas Bianchi Nathália Braz Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) F224c

Farias, Walter. O capa-branca: de funcionário a paciente de um dos maiores hospitais psiquiátricos do Brasil / Walter Farias, Daniel Navarro Sonim. – São Paulo: Terceiro Nome, 2014. 192 p.: il.; 21 cm. Inclui apêndice. ISBN 978-85-7816-144-6 1. Farias, Walter – Biografia. 2. Hospitais psiquiátricos – Brasil. 3. Doenças mentais. 4. Juquery – São Paulo. I. Sonim, Daniel Navarro. II. Título. CDU 929 CDD 920

Índice para catálogo sistemático: 1. Farias, Walter: Biografia 929

Copyright © Walter Farias e Daniel Navarro Sonim 2014 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA TERCEIRO NOME Rua Cayowaá, 895 05018-001 – São Paulo – SP www.terceironome.com.br fone 55 11 3816 0333


sumário

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o amigo do capa-branca Daniel Navarro Sonim

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sou esquisito, e daí? Walter Farias

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primeira parte hospital psiquiátrico JUVENTUDE EM FRANCO DA ROCHA, 19 • TRATAMENTOS PARA A LOUCURA, 22 • CONCURSO PÚBLICO, 26 • ENTRANHAS DO JUQUERY, 30 • LOUCOS, MALUCOS E PIRADOS, 35 • APRENDIZADO NA SEXTA COLÔNIA, 39 • TRABALHO NA TERCEIRA CLÍNICA, 42 • EXTRAVAGÂNCIAS E CONFORTO, 45 • O ESPECIALISTA, 47 • O PACIENTE QUE MANDAVA, 50 • FUNCIONÁRIOS INESQUECÍVEIS, 59 • O PADRE, 61 • A VIAGEM SEM VOLTA, 64

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segunda parte manicômio judiciário RECOMEÇO, 69 • O BATISMO, 71 • AS PORTAS DO INFERNO, 77 • RELAÇÕES PERIGOSAS, 82 • O SER INDOMÁVEL, 85 • A BESTA FERA, 91 • NEGUINHO DA MADAME, 93 • ROSEMIRO, O BOXEADOR, 97 • O DETENTO INTRAGÁVEL, 103 • O GUARDA-COSTAS, 109 • OS MISTÉRIOS DE ADAMA, 115 • LUZ VERMELHA, 128

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terceira parte internação O FILME, 135 • COLAPSO MENTAL, 138 • A SOLUÇÃO DEFINITIVA, 147 • EU ME TORNEI UM DELES, 149 • NA PRÓPRIA CARNE DÓI MAIS, 153 • IDENTIDADE PERDIDA, 155 • SORRISO ARRANCADO À FORÇA, 157 • O REENCONTRO, 159 • UMA DOSE DE LIBERDADE, 163 • APRISIONADO NA LOUCURA, 166 • DE VOLTA PARA CASA, 170 • O JUQUERY SEMPRE DENTRO DE MIM, 176

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apêndice

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AGRADECIMENTOS



o amigo do capa-branca Daniel Navarro Sonim

Franco da Rocha, município da região metropolitana de São Paulo, distante cerca de 30 quilômetros da capital, até hoje é lembrado por abrigar o Juquery, conjunto que compreende o Hospital Psiquiátrico e o Manicômio Judiciário. Por razões óbvias, é inevitável associar o local à loucura e, consequentemente, à imagem de uma multidão de homens vestindo farrapos ou nus perambulando pelos pátios do hospital. Já de Franco da Rocha, nos últimos anos, apenas saem notí­cias de enchentes que atingem a população ou crimes que ocupam as páginas policiais dos jornais. Eu nunca tinha ido a Franco da Rocha, muito menos ao Juquery, até assistir ao programa Casos de Família, na emissora de televisão SBT, na tarde do dia 7 de junho de 2007, feriado de Corpus Christi. Walter Farias, o dono das memórias deste livro, participou do programa, que, naquela tarde, tinha como tema “Sou esquisito, e daí?”. A apresentadora Regina Volpato o anunciou como um ex-funcionário que tinha se tornado paciente do Juquery. Antes de entrar no palco, chamou a mulher dele. A apresentadora e a plateia do programa tentavam entender por que Walter era considerado esquisito. A mulher dele então revelou que ele passava muito tempo trancado no quarto escrevendo. Mas o que ele escrevia? Walter contou no programa que, após um período de trabalho no Juquery, acabara enlouquecendo e se vira obrigado a se internar para não perder o emprego. Anos depois, aposentado por invalidez, 7


passava dia e noite compondo músicas, criando inventos e escrevendo suas memórias. Segundo ele, vizinhos e amigos achavam que estava perdendo tempo porque ninguém se interessaria em ler as histórias de um louco que morava em Franco da Rocha. No final do programa, a apresentadora perguntou o que faltava para o livro dele se transformar em realidade. Walter respondeu que precisava de alguém que o ajudasse, porque, como havia estudado pouco, não tinha condições de concluí-lo. Depois de assistir à entrevista, percebi que poderia ajudá-lo. Então enviei um e-mail à produção do programa pedindo que nos colocasse em contato. Na segunda-feira à tarde, um dos produtores do programa me ligou para avisar que Walter gostaria de conversar comigo. Imediatamente telefonei para a casa de Walter. Conversamos rapidamente e marcamos um encontro na quarta-feira seguinte. Uma de suas filhas o levou até o centro de São Paulo para me encontrar na escola de idiomas onde eu dava aulas de francês e de italiano. Lembro que ele se animou bastante quando falei que eu, além de ser professor de idiomas, era jornalista, embora não estivesse exercendo a profissão no momento. A conversa durou mais de duas horas e, antes de ir embora, ele me entregou três folhas manuscritas com breves descrições de alguns pacientes do Juquery. Walter pediu para que eu desse uma olhada naquele material e, caso o considerasse realmente interessante, me disse que mandaria o restante pelo correio. Mais do que interessantes, achei aquelas três folhas fascinantes. Não demorou muito para eu receber mais manuscritos pelo correio. Por coincidência, Mancuso, o carteiro que entregava a correspondência no prédio onde eu morava, não só conhecia Walter como também tinha um estúdio em Franco da Rocha que gravava as composições dele. Levei seis meses para digitar e organizar todos os manuscritos. Enquanto isso, continuei dando aulas de idiomas e passei a trabalhar como assessor de imprensa em uma agência especializada em turismo. Só consegui visitar Walter no início de 2008, quando pedi demissão da agência. 8


Peguei o trem da CPTM na estação Palmeiras Barra-Funda e, em janeiro de 2008, parti rumo a Franco da Rocha pela primeira vez. Walter já me esperava na estação para irmos à casa dele. Passamos o dia todo conversando até decidirmos que as histórias, que se passam na década de 1970, seriam divididas em três partes: o trabalho no Hospital Psiquiátrico, a transferência para o Manicômio Judiciário e o tempo em que viveu como paciente. Passei a visitar Walter com mais frequência. Além de entrevistá-lo, ele foi meu guia em Franco da Rocha e nas clínicas do Hospital Psiquiátrico, que já estavam bem diferentes do que eram antes. Apesar de manter a antiga estação de trem e de o centro ser bem movimentado, cheio de lojas, bancos e vendedores ambulantes, grande parte da população do município saía todas as manhãs para pegar o trem e trabalhar em São Paulo. Franco da Rocha se transformara em uma cidade-dormitório, e, diferente de antes, pouca gente trabalhava no Juquery. No Hospital Psiquiátrico, enquanto caminhávamos pelos corredores dos prédios de paredes amareladas, percebia que Walter olhava para tudo aquilo com melancolia e tristeza. Pouco mais de duzentos pacientes permaneciam internados. Nessa minha primeira vez no hospital, consegui ver apenas o rosto de um paciente idoso que nos observava pelas grades de uma janela. Em maio de 2008, decidi me mudar para Fortaleza, mas continuamos a escrever o livro. À medida que eu escrevia os capítulos, imprimia as folhas, as colocava em um envelope e enviava pelo correio. Walter lia o material, escrevia seus comentários à mão com caneta esferográfica e devolvia o envelope. Eu aguardava ansiosamente por recebê-lo. Trabalhamos assim por dois anos e meio até eu voltar a São Paulo. Passei, então, a visitá-lo aos sábados. No mesmo quarto em que ele se trancava para escrever suas memórias, compor suas canções e bolar seus inventos, trabalhávamos até o início da madrugada de domingo. À medida que Walter dividia comigo suas memórias como funcionário e paciente do local onde trabalhou por cerca de uma década, fui descobrindo que o Juquery era mais grandioso do que eu pode9


ria imaginar. Tratava-se de uma instituição que recebia pacientes da capital, de municípios do interior de São Paulo e de outros estados. Atendia, desde o início do século XX, não apenas Franco da Rocha, mas também os municípios vizinhos de Francisco Morato, Cajamar, Caieiras e Mairiporã. O Juquery começou a nascer na segunda metade do século XIX, quando os locais reservados ao atendimento de doentes mentais na capital e no interior de São Paulo já não comportavam a quantidade de pacientes, que não parava de aumentar. Para aliviar essa superlotação e com o propósito de se tornar um centro de estudos psiquiátricos e pesquisas científicas, em 1895 começou a construção, com projeto do arquiteto Ramos de Azevedo, da Colônia Agrícola Juquery, em uma área de 150 hectares. A população da metrópole aumentava, acompanhando o acelerado desenvolvimento da indústria e a chegada de imigrantes. O número de desempregados, mendigos, prostitutas, sifilíticos, pessoas com deficiência, doentes mentais, alcoólatras e ex-escravos, entre outros indivíduos considerados improdutivos pela sociedade, também aumentou. A burguesia e a ciência apoiaram a criação de um local afastado da capital que pudesse receber esses excluídos da sociedade. Além de promover a disciplina e a moralidade através do trabalho, os gastos públicos diminuiriam. Em 18 de maio de 1898, o psiquiatra paulista Francisco Franco da Rocha foi incumbido pelo governo do estado de São Paulo de administrar o Asylo de Alienados do Juquery, que, em 1929, passou a se chamar Hospital e Colônia de Juquery. Inaugurado com capacidade inicial de oitocentos leitos, o hospital ocupava um terreno à margem da linha férrea, próximo à Estação Juquery, no então município de Mairiporã. Franco da Rocha se tornaria município apenas em 30 de novembro de 1944, quando houve sua emancipação. Durante a gestão de Franco da Rocha, foram construídos outros prédios e instaladas oficinas e colônias agrícolas, além de alas reservadas a homens, mulheres e crianças. Até 1921, internos menores de idade conviviam com adultos. 10


Mas havia ainda a necessidade de separar os pacientes criminosos dos comuns. Antonio Carlos Pacheco e Silva, sucessor de Franco da Rocha, fundou em 31 de janeiro de 1933 o Manicômio Judiciário de Franco da Rocha. Atualmente conhecido como Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Professor André Teixeira Lima, surgiu com o objetivo de abrigar pessoas que cometeram delitos e estão sob custódia da justiça como inimputáveis, isto é, aqueles que não podem ser responsabilizados nem condenados porque não têm condições psíquicas de compreender nem reconhecer seus atos transgressores. Em 1934, o manicômio recebeu a primeira turma de 150 criminosos doentes mentais. O jardineiro austríaco Wilheim Holtezmann é o paciente de registro no 1. Aos 21 anos, um ataque de psicose aguda o levou a assassinar um amigo a coronhadas de uma garrucha durante um baile de carnaval. De 1938 a 1945, durante a Era Vargas, o processo de limpeza das cidades se intensifica, resultando no aumento do número de internações. O auge de lotação do Juquery aconteceu na década de 1970. O complexo foi moradia de 16 mil pacientes psiquiátricos, embora a capacidade máxima fosse de 9 mil. E é em 1972 que Walter Farias entra nesse mundo. Ele é um dos primeiros funcionários concursados a trabalhar no Juquery. Primeiro, ele vai lidar com os pacientes do Hospital Psiquiátrico. Em seguida, é transferido para o Manicômio Judiciário, onde, desde o primeiro dia, teve a impressão de estar cercado por detentos de um presídio. A rotina no manicômio o levou a abandonar sua capa branca, o jaleco que os funcionários vestiam no Juquery. Walter é internado no Hospital Psiquiátrico e se transforma em paciente. Três anos antes de eu conhecer Walter, em 2005, além do início da desativação do Hospital Psiquiárico, um incêndio atingiu o setor administrativo do prédio do Hospital. Seis horas de fogo destruíram o edifício de dois andares tombado pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), sua biblioteca – a mais completa em livros e periódicos de psiquiatria da metade do século XIX até metade do século XX – e os prontuários 11


dos pacientes do início da década de 1950 até 2005. Do edifício sobraram apenas as estruturas e uma parte da cobertura do piso inferior em uma de suas laterais. O prédio havia acabado de ser restaurado, com reformas do telhado, do piso, vitrais e da estrutura elétrica. As páginas adiante reconstroem as memórias de Walter Farias e retratam o Juquery a partir de suas experiências pessoais. Para proteger a identidade dos funcionários e dos pacientes, alguns nomes reais não foram citados – utilizamos apenas apelidos ou os trocamos.

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sou esquisito, e daí? Walter Farias

Muita gente entra na loucura pelo medo de endoidecer, mas permanece nela por outro medo: o de abandoná-la. Por sete anos vivi cercado de todo tipo de louco, maluco, pirado ou qualquer outro nome para um doente com problemas mentais ou psiquiátricos. Acredito que as pessoas pensam que sou meio esquisitão por causa disso. Hoje estou aposentado e muita gente classifica meu comportamento como loucura. Mas aposto que essas pessoas nem imaginam quais são os verdadeiros limites da loucura – se é que a mente humana tem algum limite. Sinto um desconforto muito grande quando minha mulher coloca a mesa para as refeições e vejo no meu lugar um prato raso de louça, um garfo e uma faca de metal na minha frente. Se ela insiste em fazer isso, recolho tudo, me levanto e jogo os talheres e o prato na pia. Então abro o armário e vou à caça de um prato fundo de plástico e uma colher. Só me sinto à vontade para comer assim. Muito raramente, quando vou a um restaurante, tenho que me esforçar muito para usar garfo e faca. Fico incomodado com o barulho dos talheres batendo na louça. Tampouco me agrada a ideia de levar algo de metal até minha boca. Meus colegas de trabalho já achavam estranho eu cortar as unhas das mãos e dos pés com gilete. Em casa, mantive esse hábito, mas também comecei a usar as lâminas de aparelhos de barbear descartáveis. Para executar essa tarefa, bastava quebrar o aparelho e retirar 13


as lâminas. Diferentemente da gilete comum, esse tipo de lâmina não envergava, por ser bem mais dura. Eu a encaixava debaixo da unha, tomando cuidado com a carne na ponta do dedo, e puxava-a para cima para cortá-la. Parei de fazer isso quando uma imagem passou a perturbar minha mente: era só minhas unhas começarem a crescer para eu ver a gilete cortar meu cérebro em fatias. Não saio por aí vestindo frangalhos ou trapos imundos, mas detesto usar roupa nova. Só sei que me incomoda colocar uma camisa ou calça que nunca foram usadas por mim antes. Esse incômodo também compreende os lençóis da minha cama. Fico extremamente irritado quando minha mulher os troca, apesar de ter plena consciência de que isso é absolutamente necessário para meu bem-estar. Apesar disso, já fiquei cinco anos sem tomar banho, durante minha aposentadoria. Poderia ser inverno ou verão, os dias passavam e nada de eu entrar debaixo do chuveiro. Só quando a situação estava insuportável para quem convivia comigo é que, depois de muita insistência da minha mulher e de um primo meu, eu ia para o chuveiro me lavar. Eu não tinha a mínima noção do meu cheiro. Até hoje não sei se o fedor realmente me afastava das pessoas porque eu dificilmente saía do meu quarto. Passava o tempo dormindo ou compondo minhas músicas. Mas, aos poucos, os intervalos sem tomar banho foram diminuindo e retomei esse hábito diário. Chuvas fracas ou tempestades me atormentam. Peço na hora a Deus e a todos os santos de que me lembro para que a água pare de cair do céu. Também não consigo entrar no mar. Apesar de eu saber nadar, tenho medo de ser levado pela correnteza e morrer afogado. Eu só conseguia tomar banho de mar em uma praia de Ubatuba, no litoral paulista, mas tinha que estar acompanhando de um amigo, que, infelizmente, já morreu. Desde o início da minha aposentadoria compus mais de 400 canções nos mais variados estilos, só que nunca entendi como pude fazer isso sem gostar de ouvir música. Na verdade, eu gosto de ver a música: 14


assisto a programas e shows na TV ou em DVDs. Não suporto discos, fitas e CDs. Rádio, nem pensar. Nem tenho condições de ir a shows, porque começo a passar mal logo que eu vou me aproximando do local da apresentação. Já tentei entrar em alguns shows em locais ao ar livre ou fechados, mas não consegui ficar por muito tempo. Tenho pavor da multidão entrando e saindo. E também acho que os seguranças fazem a revista de forma extremamente desleixada. Muitas mulheres passam sem uma averiguação. Sempre imagino quantas poderiam estar carregando algum tipo de arma. Se mataram o John Lennon na porta da casa dele, por que outra pessoa não poderia fazer o mesmo comigo no meio da multidão? Já recebi inúmeros convites para ir a bares nos quais alguns cantores apresentariam minhas músicas, mas sempre dou um jeito de escapar desse suplício. Até hoje não entendi como isso aconteceu, mas poucos anos atrás insisti em ir a um show em que se apresentariam a banda Ira! e a cantora Pitty. Houve um atraso de mais de uma hora e meia, mas, mesmo assim, nada me incomodou. Não reparei nos seguranças, que deviam estar fazendo revistas superficiais; a multidão não representou uma ameaça; e nem me passou pela cabeça que alguém poderia me agredir ou tentar me matar. Permaneci no local fechado até a última música. Eu me senti muito bem e à vontade o tempo inteiro. Porém, foi só dessa vez. Não sei se essa experiência vai se repetir. Na verdade, não consigo frequentar nenhum local com multidão. Os shows são apenas um exemplo. Tenho pavor de shopping centers, lojas, vagões de trem, ônibus e supermercados. Escapo até das filas de banco. Se preciso pagar alguma conta, dou um jeito de convencer alguém a fazer esse favor para mim. Ao contrário das pessoas que só se sentem seguras trancadas em casa, eu só fico tranquilo se as portas estiverem destrancadas ou abertas. Tenho certeza de que é pior deixar tudo fechado. Essa atitude acaba chamando mais atenção dos ladrões, porque eles podem pensar que estou escondendo objetos de valor e dinheiro. As trancas, fechaduras, correntes e cadeados não servem para dificultar o acesso deles, 15


já que conhecem todos os mecanismos e têm todas as ferramentas para entrar e levar tudo o que lhes interessa. Mas tem uma coisa que ninguém pode tomar de mim: minhas memórias. Acho que só a morte pode apagá-las. E foi no meu quarto, sozinho, que decidi sentar e pegar papel e caneta para escrever minha história. Para você entender como me tornei essa pessoa que muita gente acha esquisita, estranha, maluca, pirada ou sejá lá o que for, vou voltar ao tempo em que eu era jovem em Franco da Rocha e não imaginava que entraria em um mundo conhecido como Juquery.

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primeira parte

hospital psiquiรกtrico



JUVENTUDE EM FRANCO DA ROCHA

Mais de 20 mil pacientes viviam ali no Juquery, diziam. Alguns calculavam 30 mil. Na verdade, ninguém tinha parado para contar cada um dos loucos que ficavam isolados no Hospital Psiquiátrico e no Manicômio Judiciário, ambos na cidade de Franco da Rocha, no estado de São Paulo. Alguns também viviam nas oito colônias agrícolas distribuídas por Franco da Rocha, Caieiras e na Serra dos Cristais, próxima a Jundiaí. O prédio do Hospital Central já estava lá muito antes do meu nascimento. Em 1898, um doutor com o mesmo nome da cidade onde moro inaugurou o Juquery. Um arquiteto chamado Ramos de Azevedo projetou o local para que alguns enfermeiros e alguns poucos médicos cuidassem de doentes indesejáveis no convívio com a maioria da população considerada normal. No início dos anos 1970, sem ainda ter atingido a maioridade, eu levava uma vida pacata, não muito diferente da dos outros 15 mil habitantes de Franco da Rocha. Caminhávamos por ruas de terra batida com casas simples. Nas poucas avenidas com paralelepípedos quase não se viam carros. A maioria dos automóveis pertencia aos taxistas, que levavam os passageiros em modelos importados da Chevrolet e da Ford fabricados na década de 1950. Às vezes, víamos o rabecão da polícia passando de um lado para o outro. Um ou outro fusquinha dividia espaço com charretes puxadas por cavalos ou burros. O trem nos levava à estação da Luz, no centro de São Paulo, em uma viagem de pouco mais de uma hora. 19


Nos empórios encontrávamos um pouco de tudo, desde peças de carne seca, linguiça defumada e mortadela penduradas no teto até fumo de rolo, balas e pirulitos no balcão. Vendidos a granel, o arroz, o feijão, o sal, a farinha e o milho para as galinhas ficavam expostos em sacos de estopa; só o açúcar cristal era armazenado em sacos de linho. Além dos mantimentos, havia pares de botas, foices, facões e enxadas para o trabalho na roça. O dono do empório anotava em uma caderneta aquilo que gastávamos, e só precisávamos pagar quando recebíamos o salário no final do mês. Outra entrada dava acesso ao balcão de pinga: apesar de fazer parte do mesmo estabelecimento, mulheres e crianças não se atreviam a entrar nesse recinto, onde os pinguços passavam o tempo enchendo a cara e jogando conversa fora. A igreja, localizada na praça ao lado da estação ferroviária, recebia os fiéis que acompanhavam a missa aos domingos de manhã. Na época de São João, balões coloridos cobriam o céu a qualquer hora do dia ou da noite. Para prepará-los, comprávamos as folhas de papel nos empórios e as colávamos com um preparado à base de água e farinha de trigo. Toda manhã eu pegava o trem para ir ao trabalho na fundição da Voith, uma metalúrgica, próxima da estação Jaraguá, a cerca de vinte minutos de Franco da Rocha. Eu queria mesmo era sair por aí pilotando uma moto Yamaha de cinquenta cilindradas. Com meu salário, não dava para comprar uma. Infelizmente, a única opção de duas rodas era a bicicleta. Essa motocicleta passou a povoar meus pensamentos quando fui ao único cinema da cidade assistir a um filme estrelado pelo cantor e galã Antônio Marcos. Nem sei qual era o nome do filme, mas me lembro de uma cena em que o cara descia a serra pilotando aquela motocicleta rumo à Baixada Santista. Atrás dele, seguia um grupo de 150 jovens montados naquelas “cinquentinhas”. Todos eles levavam uma garota na garupa. Dava para contar nos dedos quantas vezes tinha ouvido o barulho do motor e visto aquela moto em Franco da Rocha. Cresci habituado a ter apenas o essencial. Diferentemente da moçada do filme, jogáva20


mos bola nos campos de areia, de terra batida ou com algum gramado. Se sobrasse alguma grana para o final de semana, a rapaziada se juntava e descia a serra de ônibus para tomar banho de mar na Praia Grande. Éramos chamados de farofeiros. E, aos domingos, quando os bolsos ficavam vazios ou ninguém tinha bola para emprestar, atravessávamos a cidade a pé procurando algum conhecido que possuísse televisor preto e branco. Se não dava para ver TV, recorríamos ao rádio, que garantia a transmissão das partidas de futebol. Tínhamos, assim, acesso à pouca informação que chegava. Apesar de o país viver a ditadura militar, as notícias diziam que tudo transcorria na mais completa paz, sem torturas, prisões ou manifestações contra o governo. Enquanto isso, se a coisa engrossava entre nós, resolvíamos o problema na base do tapa, soco ou pontapé. Quando a situação ficava feia de verdade, o rabecão da polícia passava e levava os brigões para dormir na delegacia. Às vezes, pelo que me lembro, alguns loucos do Juquery conseguiam atravessar os portões, as muralhas ou as cercas, para mudar nossa pacata rotina. Sem polícia para persegui-los, se embrenhavam no mato e caminhavam até encontrar uma rua residencial. Uma vez do lado de fora do Juquery, tentavam se adaptar à nova realidade, que, na verdade, já conheciam. A primeira preocupação era cuidar da aparência. Os habitantes do Juquery vestiam calça azul-clara bem larga e camisa parda de algodão cru sem colarinho. Uma fita de pano fazia as vezes de cinto. A cabeça raspada (para evitar a proliferação de piolhos) e a ausência de dentes também compunham o visual dos fujões. Maltrapilhos e imundos, tentavam roubar roupas dos varais. Quando não encontravam nada, batiam na porta das casas para amolecer o coração das donas de casa, que acabavam doando camisas e calças limpas. Bem-sucedidos ou não, continuavam com o desejo de sair daquela cidade. Viajavam sem destino até desaparecerem. A maioria dos pacientes perdia família, amigos, conhecidos, endereço, documentos e profissão. O abandono tornava-se a única referência. 21


Não sei a resposta, mas acho que muitos deles foram enterrados como indigentes no Cemitério do Juquery. Tenho a nítida impressão de que o Juquery está à mercê da ação implacável do tempo, sendo corroído aos poucos dia após dia, agonizando lentamente como um doente acamado sem qualquer esperança de continuar vivendo neste mundo. Quando eu trabalhava no Juquery, ouvia gritos e gemidos dos pacientes por toda a parte. Hoje há o silêncio que só é interrompido durante a semana pelo movimento das pessoas que vão ao novo hospital. Aos fins de semana não se escuta nenhuma voz. Mas o barulho dos pacientes com os quais convivi nunca abandonou minha mente. Nem preciso ir até lá para minha lembrança trazer de volta o som do sofrimento daquele batalhão de seres sujos e maltrapilhos que perambulava pelos corredores e os pátios das clínicas. O Juquery nunca me abandonou. Os habitantes daquele mundo vão morar sempre na minha cabeça. Jamais voltei a trabalhar no Hospital, nas colônias nem no Manicômio, que acabou virando um presídio. Só que, em pensamento, estarei dentro desses lugares para sempre.

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apĂŞndice



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Vista panorâmica do Hospital Central

Escadaria do prédio da Administração do Hospital Central – acesso aos escritórios e à biblioteca

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Edifício da administração do Hospital Central

Um dos pavilhões masculinos do Hospital Central

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Galerias entre os pavilhões do Hospital Central

Residência do doutor Franco da Rocha, primeiro diretor do Juquery – atual Museu Osório César

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Torre do relógio no edifício da padaria e do refeitório – Hospital Central

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Este livro narra a trajetória de Walter Farias, ex-funcionário do Complexo Psiquiátrico do Juquery, em Franco da Rocha (SP), nos anos 1970. Aprovado no concurso público para atendente de enfermagem, Walter, vestindo uma capa branca, é designado para cuidar de pacientes acamados ou que perambulam, alheios à realidade, pelos corredores das clínicas do Hospital Psiquiátrico.

Depois da repentina transferência para o Manicômio Judiciário, Walter começa a conviver com pacientes que cometeram crimes, alguns deles violentos e com requintes de crueldade. Com a sanidade abalada, ele acaba sendo internado no Hospital Psiquiátrico. Obrigado a abandonar a capa branca para se transformar em paciente, passa a sentir na pele os horrores daquele lugar.

9 788578 161446


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