Mario Benedetti
histórias de paris
histórias de paris
Ilustrações Antonio Seguí
hist贸rias de paris
Mario Benedetti
histórias de paris Ilustrações Antonio Seguí
Tradução Paulina Wacht e Ari Roitman
First published in Spain under the title Historias de París ©2007 Libros del Zorro, Barcelona-Madrid www.librosdelzorro.com Editorial Project: Alejandro García Schnetzer Copyright da tradução ©Editora Globo, 2013 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc., nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a expressa autorização da editora Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no 54, de 1995) Coordenação editorial Ana Lima Cecilio Editora assistente Juliana de Araujo Rodrigues Preparação Claudia Cantarin Capa e projeto gráfico Jussara Fino Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Benedetti, Mario Histórias de Paris: Mario Benedetti Ilustrações: Antonio Seguí Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman São Paulo: Globo, 2013 isbn 978-85-250-5373-2 1. Ficção uruguaia i. Seguí, Antonio ii. Título 13-02198
cdd-ur863
Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção: Literatura uruguaia ur863 1ª edição, 2013 Direitos de edição em língua portuguesa adquiridos por Editora Globo s/a Avenida Jaguaré, 1485 05346-902 São Paulo-SP www.globolivros.com.br
sumário
Geografias 7 Cinco anos de vida 23 O hotelzinho da rue Blomet 45 Só por distração 57 Sobre 63
geografias
Bobagens que você inventa no exílio para tentar se convencer de que não está ficando sem paisagem, sem gente, sem céu, sem país. As geografias, que delírio bobo. Pelo menos uma vez por semana, Bernardo e eu nos encontramos no café Cluny para mergulhar (diante de um beaujolais, ele; de um alsace, eu) nas benditas geografias. Um jogo elementar e meio opaco, que só se explica pela chatice. Mas a chatice, porra, é uma realidade. Me chateio, logo existo. E por isso o jogo tem lá o seu encanto. É assim: um dos dois pergunta ao outro sobre algum detalhe (não particular, e sim público) da longínqua Montevidéu: um edifício, um teatro, uma árvore, um pássaro, uma atriz, um café, um político proscrito, um general na reserva, uma padaria, qualquer coisa. E o outro tem que descrever esse detalhe, tem que espremer a memória ao máximo para dela extrair o seu cartão-postal de dez anos antes, ou dar-se por vencido e admitir que não se lembra de nada, que aquela figura ou aquela informação se apagaram, não estão mais em seu arquivo mnemônico. Neste caso perde um ponto, desde que aquele que fez a pergunta saiba efetivamente a resposta. E como o regula-
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mento é muito estrito, se essa resposta não satisfizer o perdedor o ponto fica à espera de resolução até que o detalhe controverso possa ser cotejado com uma fotografia ou com um dos tantos eruditos que povoam (e assolam) o Quartier. Desta vez Bernardo está ganhando por dois pontos. Ou seja, o score até o momento é o seguinte: Bernardo 15, Roberto 13. Sempre que ele consegue alguma vantagem, fica todo sobranceiro e pedante, mas honestamente é bom esclarecer que hoje está na frente graças a uma pergunta muito esquisita, quase fraudulenta, sobre não sei que detalhe da pata dianteira do cavalo no monumento ao Gaúcho, e a uma outra, não menos venenosa, a respeito das janelas do Palácio Salvo, décimo primeiro andar, que dão para a Plaza Independencia. Isso está com cara de jogo sujo, já que eu, de minha parte, só faço perguntas normais, verossímeis e simples; digamos, qual é o café que fica (ou ficava) na crucial esquina da Rivera com Comercio, ou quantas portas de entrada há (ou havia) no setor Colombes do estádio Centenario, ou onde é (ou era) o ponto final da linha de ônibus 173. Estão vendo a diferença? Então registro o meu protesto formal e no instante exato em que Bernardo me responde, entre gargalhadas presunçosas, que o meu problema é que sempre fui e sempre serei um mau perdedor, “como todos os de Áries”, vejo Delia, ninguém menos que Delia, esperando resignadamente o passez
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pietons ou sua verde metáfora no cruzamento do Boul Mich. Faz oito ou nove anos que não nos vemos e, no entanto, a reconheço sem pestanejar. Mais magra, e sempre linda. Sua postura irradia a mesma segurança que em primaveras distantes. Lá por volta de 69, antes do delírio militante e da loucura repressiva e das pichações nos muros e da irreversível clandestinidade, passamos boas noites e melhores sestas, ela e eu. Pois é, então a vejo ali, esperando o sinal verde, e (é mais forte que minha proverbial discrição) a dispo com il pensiero. Mas a nossa antiga relação não foi somente física. Delia é uma mulher admirável, inteligente, sensível, com um sorriso que alegra a vida, não só a minha em particular, a vida em geral. Boa não só na hora do amor, mas antes e depois também. Se não fôssemos tão jovens naquele momento, talvez tivéssemos nos casado, mas sabe como é. Eu estava indo para o segundo ano de engenharia e vivia de biscates. Ela, que tinha os pais em Paysandú, estava um pouco mais atrasada, também em engenharia, e ganhava uns trocados vendendo artesanato na feira de Tristán Narvaja. Mesmo assim nos encontrávamos e nos amávamos, para dizer com recato, duas vezes por semana. Depois veio a época dura e as nossas militâncias começaram a nos separar. Os horários (a luta política também tem horários, e como são severos) conspiravam contra nós. Às vezes passávamos quinze dias nos encontrando somente em
cinco anos de vida
Olhou disfarçadamente o relógio e confirmou seus temores. Meia noite e cinco. Se não começasse a se despedir naquele momento, perderia o último metrô. Sempre acontecia a mesma coisa. Quando alguém, levado pela nostalgia, própria ou alheia, ou pelo álcool, ou por certa vocação reprimida de vedete, finalmente se entregava às confidências, ou de repente alguma das mulheres ali presentes ficava mais bonita ou mais acessível ou mais terna ou mais interessante que de costume, ou um dos convivas mais maduros, em geral algum anarquista da velha fornada, começava a contar a sua versão pessoal e colorida da luta casa por casa na Madri da Guerra Civil, ou seja, quando a reunião afinal se livrava das brincadeiras de mau gosto e das intrigas de rotina, justamente nesse instante decisivo ele tinha que ser o desmancha-prazeres e privar o seu antebraço do estímulo efetivo de alguma mão feminina, suave e empreendedora, e levantar-se e dizer, com um sorriso constrangido: “Bem, chegou minha hora fatal”, e despedir-se, beijando as moças e dando tapinhas nos homens, só para não perder o último metrô. Os outros podiam ficar, ou porque moravam perto ou – a
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minoria – porque tinham carro, mas Raúl não podia se dar ao luxo de tomar um táxi nem via a menor graça (embora em duas ocasiões o tivesse feito) na perspectiva de ir a pé de Corentin Celton até Bonne Nouvelle, anódina façanha que equivalia a atravessar metade de Paris. De modo que, já decidido, pegou os dedos esguios de Claudia Freire, que durante a última hora haviam repousado solidariamente no seu joelho direito, e os beijou um por um, em atitude compensatória, antes de deixá-los sobre o veludo verde do encosto. Depois disse, como sempre: “Bem, chegou minha hora fatal”, aguentou firme os discretos assobios de censura e o comentário de Agustín: “Vamos fazer um minuto de silêncio em homenagem à Cinderela, que precisa retirar-se para o seu distante lar. Não esqueça o seu sapatinho quarenta e dois”. Raúl aproveitou as gargalhadas de praxe para beijar as bochechas quentes de María Inés, Nathalie (única francesa) e Claudia, e as inesperadamente frescas de Raquel, pronunciar um audível “tchau a todos”, cumprir o ritual de agradecer o convite aos muito bolivianos donos da casa e se mandar. Estava bem mais frio que quatro horas antes, por isso levantou o colarinho do impermeável. Quase correu pela rue Renan, não só para combater o frio, mas também porque era meia-noite e quinze. Como recompensa, alcançou o derradeiro trem em direção a Porte de
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la Chapelle, teve o raro deleite de ser o único passageiro do último vagão, e se encolheu no banco, disposto a ver o desfile vazio das dezesseis estações que faltavam para a correspondance em Saint Lazare. Quando estava na altura de Falguière, pôs-se a pensar nas dificuldades que um escritor como ele, não francês (que lhe pareceu, para o caso, uma categoria mais importante que a de uruguaio), tinha que enfrentar se queria escrever sobre aquele ambiente, aquela cidade, aquela gente, aquele metrô. Justamente, ele se dava conta de que “o último metrô” era um tema que estava à sua disposição. Por exemplo: alguém, por uma circunstância imprevista, passa a noite (sozinho, ou melhor, acompanhado; ou, melhor ainda, bem acompanhado) trancado numa estação até a manhã seguinte. Faltava achar a chave anedótica, mas era evidente que ali havia um tema aproveitável. Para outros, claro; nunca para ele. Faltavam-lhe os detalhes, a minúcia, o mecanismo daquela rotina. Escrever sem eles, escrever ignorando-os, era a forma mais segura de selar o próprio ridículo. Como fariam no fechamento? Deixariam as luzes acesas? Haveria um vigia? Alguém revistaria as plataformas para verificar que não ficara vivalma? Comparou essas dúvidas com a segurança que teria se o eventual relato se relacionasse, por exemplo, com a última viagem do ônibus 173, que em Montevidéu ia da Plaza Independencia à avenida Italia com Peñón. Não é
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que soubesse todos os detalhes, mas sabia perfeitamente como dizer o essencial e como inserir o acessório. Ainda estava perdido nessas reflexões quando chegou a Saint Lazare e teve que correr de novo para alcançar o último trem em direção a Porte de Lilas. Dessa vez outras sete pessoas correram junto com ele, mas se dividiram nos cinco vagões. Previdente, ele voltou a subir no último, calculando que assim, em Bonne Nouvelle, ficaria mais perto da saída. Mas agora não estava sozinho. Uma moça se postou no outro extremo, em pé, embora todos os assentos estivessem vazios. Raúl olhou-a atentamente, porém ela parecia hipnotizada por um sóbrio aviso que recomendava aos franceses que regularizassem os documentos com a devida antecipação caso pretendessem viajar ao exterior nas próximas vacances. Ele tinha o hábito de olhar as mulheres (sobretudo se eram tão aceitáveis como aquela) com certo espírito inventariante. Pelas dúvidas. Então logo constatou que a garota estava com frio como ele (apesar do casaquinho claro, claro demais para a estação, e do cachecol de lã), sono como ele, vontade de chegar como ele. Almas gêmeas, enfim. Ele sempre prometia a si mesmo começar uma relação mais ou menos estável com alguma francesa, como um meio insubstituível de incorporar-se definitivamente ao idioma, só que, na hora h, suas amizades, tanto femininas como masculinas, se limitavam ao clã latino-americano. Às vezes isso,
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só por distração
Ele nunca se considerou um exilado político. Tinha saído da sua terra por um estranho impulso que se formou em três etapas. A primeira, quando foi abordado na Avenida sucessivamente por quatro mendigos. A segunda, quando um ministro usou a palavra Paz na televisão e imediatamente sua pálpebra direita começou a tremer. A terceira, quando entrou na igreja do seu bairro e viu um Cristo (não o mais rezado e cheio de círios e sim outro, decaído, de uma nave lateral) chorando feito um bendito. Talvez tenha pensado que, se ficasse em seu país, ia logo cair no desespero e sabia muito bem que não era feito para o desespero e sim para a vagabundagem, a independência, o modestíssimo deleite. Gostava de gente, sem contudo se amarrar a ninguém. Também se divertia com as paisagens, mas afinal enjoava de tanto verde e sentia saudade da fuligem das cidades. Saboreava as tensões metropolitanas, embora chegasse um dia em que se sentia acossado pelos imponentes blocos de cimento. Assim como tinha vagado pelas ruas e estradas da sua terra, começou a vagar pelos países, pelas fronteiras e pelos mares. Era terrivelmente distraído. Com muita
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frequência não sabia em que cidade se encontrava, mas nem por isso se decidia a perguntar. Simplesmente seguia em frente e, em todo caso, se estivesse enganado, não se importava de corrigir o erro. Se precisasse de alguma coisa, fosse para comer ou para dormir, dispunha de quatro idiomas para apelar e sempre havia alguém que o entendia. No pior dos casos, ainda restava o esperanto dos gestos. Viajava de trem ou de ônibus, mas normalmente conseguia que algum carro ou caminhão o levasse. Inspirava confiança. As pessoas acreditavam nas coisas mais absurdas que dizia, e não se enganavam, porque tudo nele era um pouco absurdo. Costumava andar sozinho, o que era lógico, já que nenhum homem e, muito menos, nenhuma mulher seria capaz de suportar tanta incúria e tanta desordem. Quando passava por uma fronteira, mostrava o passaporte com um gesto displicente ou mecânico, mas imediatamente se esquecia de que fronteira se tratava. Ficava pouco tempo no centro das cidades. Preferia os bairros periféricos, onde se dava bem com as crianças e os cachorros. Às vezes surgia algum detalhe que lhe servia de orientação. Mas nem sempre. Certa manhã se viu ao lado de um canal e pensou que estava em Veneza, só que era Bruges. Confundir o Sena com o Reno, e vice-versa, lhe
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aconteceu pelo menos três vezes. Não usava bússola, preferia orientar-se pelo sol; no entanto, quando enfrentava dias borrascosos, de céu escuro, não tinha a menor ideia de onde ficava o norte. E isso tampouco o afetava, já que não tinha preferência por nenhum dos pontos cardeais. Uma vez, ao meio-dia, descobriu que estava em Helsinque porque viu uma cabine telefônica em que se lia Puhelin. Era uma das poucas informações de que dispunha sobre a Finlândia. Noutro dia sentiu uma alarmante espetada de fome no estômago e tirou um pouco de queijo da mochila; enquanto mastigava com fruição notou que estava encostado numa coluna que lembrava as colunas de mármore pentélico que vira em alguma foto do Partenon e, claro, a partir dessa associação percebeu que de fato estava na Acrópole. Sim, era terrivelmente distraído. Em outra ocasião estava nevando e para se proteger do frio ele se enfiou nas galerias comerciais do moderno subsolo de Les Halles. Quando, um semestre depois, emergiu de outras galerias subterrâneas em pleno centro de Estocolmo, ficou sinceramente alegre porque já não estava nevando. De vez em quando ia aos aeroportos, mas quase nunca viajava de avião, entre outras coisas porque, depois de se apresentar no balcão correspondente e despachar sua leve bagagem, ia ao terraço para ver as grandes aeronaves decolando e aterrissando e não prestava a me-
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nor atenção nos alto-falantes, que repetiam seu nome com insistência. Em certa ocasião, porém, sabe-se lá por que estranho mecanismo, ficou ao lado da porta de embarque e subiu confiante no avião junto com os outros passageiros. Quando chegou ao destino e mostrou seu passaporte, tão displicente como de costume, um funcionário aduaneiro olhou-o com atenção e disse: “Venha comigo”. Ele o seguiu docilmente por um corredor deserto. Quando chegaram a uma porta com o letreiro Entrada proibida, o funcionário abriu-a e o fez passar. Ele entrou, desprevenido. Quis se aproximar de uma mesa que havia no meio da sala, mas de repente não viu mais nada. Alguém, por trás, havia lhe colocado um capuz. Foi então que percebeu que, só por distração, estava de novo na sua pátria.
sobre
Mario Benedetti Com uma vasta obra que compreende poesias, novelas, contos e ensaios, Mario Benedetti (1920-2009) é um dos escritores mais lidos e admirados da América Latina. Integrante da chamada Geração de 45, da qual participavam também Idea Vilariño e Juan Carlos Onnetti, Benedetti ficou conhecido sobretudo pelos poemas de Poemas de oficina (1956). Escreveu mais de 80 livros de poesia, romances, contos e ensaios, assim como roteiros para cinema.
Antonio Seguí Autor de uma obra extraordinária e versátil que abarca pinturas, desenhos, gravuras e esculturas, Antonio Seguí estudou artes em Madri e em Paris, cidade onde mora desde 1963. Durante sua vida, realizou mais de duzentas exposições internacionais, obtendo amplo reconhecimento.
Histórias de Paris As narrativas que integram este volume foram extraídas de três obras de Mario Benedetti: “Cinco anos de vida”, publicada originalmente no livro de relatos A morte e outras surpresas (1968); “O hotelzinho da rue Blomet”, em Com e sem nostalgia (1977); “Geografias” e “Só por distração”, em Geografias (1984).
Os quatro contos de Mario Benedetti (1920-2009) que compõem este livro são como fotografias de
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personagens transitórias e frágeis, cristalizadas em um movimento passageiro. De 1973 a 1985, o Uruguai viveu sob uma ditadura militar, como, em períodos similares, a Argentina, o Chile e o Brasil, fazendo com que milhares de intelectuais, políticos, artistas e poetas sul-americanos vivessem fora de seus países. Paris foi um desses destinos. O que vemos na capital francesa descrita por Benedetti são cenas do exílio, em que as dúvidas e a falta de concretude regem vidas incertas, sem deixar de apontar em cada uma das situações e das personagens a beleza de um mundo que ainda espera um tempo melhor. Tradução ari roitmann e paulina wacht