Rodolfo Nanni
QUASE UM SÉCULO imagens da memória
QUASE UM SÉCULO
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Rodolfo Nanni
QUASE UM SÉCULO imagens da memória
Rodolfo Nanni Nestes meus quase trinta anos de atividade na área cultural, tenho tido o privilégio, o prazer e – é justo reconhecer – a responsabilidade de conhecer e conviver com pessoas marcadas por vivências únicas, homens e mulheres formadores e empreendedores que se dedicam a diversas esferas da atividade humana. Em grande parte, muitos desses meus conhecidos – e amigos – participam ativamente da formação e consolidação da história da vida cultural brasileira. Lembro-me de ter conhecido Rodolfo Nanni, juntamente com Anna Maria Kieffer, na residência de Maria José de Carvalho, figura especial para a cidade de São Paulo e, em particular, para mim. No primeiro momento – e já se passaram vinte anos desde então – a figura solene do Rodolfo me impôs certo temor reverencial. Eu sabia que ele era cineasta de prestígio, homem de cultura e professor da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Ao longo do tempo, porém, fui desvendando o homem sensível e afetuoso – como, agora, eu o qualifico – e a proximidade e a convivência não fizeram senão aprofundar minha admiração por ele. Para este livro, seu texto autobiográfico é o saborosíssimo registro de uma trajetória repleta de experiências culturais e humanas, todas elas memoráveis. No aspecto profissional, inicialmente voltado para seu talento para as artes visuais, Nanni se aperfeiçoou em pintura, estudando aqui no Brasil e seguindo depois para a França, onde se uniu a um grupo de jovens pintores patrícios. A vivência parisiense foi intensa e o destino lhe reservou surpresas, aproximando-o da arte cinematográfica, que iria se consolidar como sua atividade principal e fazê-lo destacar-se no cenário cultural do Brasil. As apresentações do próprio Rodolfo, de Maria Alice Milliet, de Nelson Pereira dos Santos, mais os depoimentos recentes daqueles que privaram do convívio com Nanni e o apoio sereno e constante de Anna Maria Kieffer ajudaram a consolidar esse perfil biográfico. A excepcionalidade da história contada ganhou muitas imagens, vindas do arquivo pessoal do cineasta. Todos esses fatores ajudam a destacar o perfil desse homem conciliador, sempre generoso em compartilhar sua cultura com quantos dele se aproximaram – entre os quais, com orgulho, eu me incluo. Antonio Carlos Suster Abdalla Setembro de 2014
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O MENINO Sentado no chão, saudável nos seus dois anos de existência, olhos voltados para a frente, parece ouvir uma história. História contada por um velho em sua cadeira de balanço, como faziam os velhos nos velhos tempos, imagens da memória. O menino aponta seu dedo indicador para o que poderá ser o mistério do futuro dele mesmo ou do grande enigma que balizará o futuro de todos nós. Seu passado ainda recente, de fevereiro a novembro, os nove meses passados na generosa barriga de Teresa, sem ouvir os disparos e os bombardeios que castigavam a cidade durante aquela revolução de 1924, não o faria imaginar que, no futuro, outro velho contaria sua história. Naquela época, o infinito ainda existia para nossos olhos. Quase tudo era campo aberto, os espaços livres, sem a desconfiança de que o homem, um dia, transformaria tudo. Os olhos, então, não seriam mais donos do infinito. O futuro chegaria para nós, como chegou até este momento, sem mistérios.
17 ¥ Rodolfo Nanni aos 2 anos. Fotografia de Antonio Nanni, 1926.
Armazém Nanni - Secos e Molhados, rua Teodoro Sampaio, São Paulo. O arco montado com latas do Óleo Sol Levante, das Indústrias Matarazzo, era uma reprodução do portal de entrada das IRFM, na Água Branca, e foi criado para o concurso de melhor apresentação do produto. O Armazém Nanni foi o vencedor. Início da década de 1930. Fotógrafo não identificado.
Já adolescente, meu primo pediu que posasse para ele. Contou-me, depois, que iria usar minha imagem como um dos bandeirantes de seu célebre monumento. Bastante estilizado, fiquei sendo o primeiro homem a pé, logo depois dos dois cavalos. Quando o novo projeto foi aprovado e contratado pelo governo, muitos anos depois, foram necessárias fundações em concreto que suportassem as toneladas de pedra cinza. Depois, foi construído no local um imenso barracão de madeira. Em seu interior, iam surgindo as imensas figuras moldadas em gesso. Era frequentador assíduo do barracão, mesmo na ausência de meu primo. Passava horas admirando aqueles descomunais fantasmas brancos, às vezes iluminados pela mágica luz que vazava das frestas da madeira. Hoje compõem, em granito, o grande monumento que se tornou um dos símbolos da cidade.
ANITA Conheci Anita entre o grupo de modernistas que frequentava a casa da Oscar Freire, em torno de meu primo escultor. Eram, principalmente, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Menotti del Picchia e o arquiteto Gregori Warchavchik. Adolescente, desenhando amadoristicamente, senti a necessidade de uma orientação. Comecei a estudar com Anita Malfatti em seu ateliê, na rua Ceará. Sua maneira quase tímida, mas competente, guiava-me nos desenhos a carvão, em grandes folhas de papel-jornal. Ressaltava a liberdade na criação, sem autocensuras e sem receio de encarar os primeiros resultados. “Aprendemos apanhando”, dizia sorrindo. Sua delicadeza contrastava com a força de seus quadros, influenciados pelos expressionistas alemães com quem conviveu durante seus estudos na Europa. Nessa época, fui profundamente marcado por essa estética traduzida em muitos de meus trabalhos, incluindo um retrato dela, de corpo inteiro, sentada, seus braços cruzados. Aos 19 anos, pintei meu primeiro óleo, um autorretrato, o modelo mais à mão. Foi o único que restou dessa época. Os outros foram se deteriorando, craquelando, descascando, possivelmente por umidade e má qualidade das tintas. 38 Rodolfo Nanni. Autorretrato, 1943. ¦
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que hoje leva seu nome. Sentei-me ao seu lado e contei que, muito tardiamente, estava lendo Macunaíma. Ele riu e me perguntou que idade eu tinha. Respondi: “Vinte”. E Mário: “Não se preocupe, está na idade”. Anos mais tarde, tive o prazer de gravar trechos desse texto premonitório de sua vida, no CD Mel Nacional, em que o percurso de Macunaíma se cruza com a vida do próprio Mário. A última vez que estive com Menotti del Picchia foi em sua casa, na esquina da avenida Brasil com a Gabriel Monteiro da Silva, onde hoje há uma loja comercial que vende azulejos. Não houve nenhuma preocupação em preservar a casa em que morou por tantos anos, ao contrário do que foi feito com as de Mário de Andrade, Guilherme de Almeida e Sérgio Buarque de Holanda, transformadas em centros culturais. Menotti estava em idade muito avançada, com algumas ausências de memória enquanto conversávamos. Tinha, na época, os cuidados de Helena, filha de seu grande amor, a pianista Antonieta Rudge. Lembrei-me de uma foto de quando tinha cinco anos, sentado em seu colo, numa poltrona de vime, nos jardins da casa da Oscar Freire. Desejava falar sobre o projeto de um trabalho, a convite da TV Cultura, baseado num livro seu, Caetés, mas senti que não havia clima. Dei um último abraço. A última vez que estive com Gregori Warchavchik foi por ocasião de um estudo fotográfico realizado a seu pedido. Além de ser o importante arquiteto que projetou as célebres Casas Modernistas, uma na Vila Mariana, outra na rua Itápolis, e as construções onde hoje se situa o Museu Lasar Segall, Warschavchik mantinha um estúdio fotográfico na alameda Barão de Limeira, 1.003, no andar térreo de um prédio projetado por ele. Com seu ligeiro sotaque russo, explicava-me as diferentes fases da revelação, copiagem e ampliação das fotos, cujo resultado era primoroso, como poucos laboratórios eram capazes de fazer. Até hoje, quase 65 anos depois, as fotos continuam perfeitas. A última vez que estive com Anita foi em 1957, na exposição comemorativa do quadragésimo aniversário de sua exposição de 1917, realizada no Clubinho. Afetuosamente, perguntou sobre meu trabalho e me convidou para visitá-la. Infelizmente, não fui. Sua presença continuou me acompanhando, enquanto pintor e, depois, cineasta, ao filmar com especial carinho seus quadros em dois documentários: Percurso da Modernidade da Arte Brasileira e Do Palácio ao Museu – Uma Rota de Descobertas, ambos realizados para o Acervo Artístico e Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo. 45 ¥ Retrato de Rodolfo Nanni. Fotografia de Gregori Warchavchik, 1948.
PARIS O ônibus cortava a cidade na manhã cinzenta. Aos poucos, surgiam o Sena, suas margens, longos barcos de carga estacionados nos cais e o repentino vislumbrar, ao longe, da Torre Eiffel, competindo com o rosto de Tereza. Eu só olhava. Não conseguia dizer nada. Relampejou, em minha memória, aquela frase do tira boçal: “Você está fodido”. 69, rue de L´Assomption, travessa da avenue Mozart. Tereza tinha descoberto um incrível studio. Eu continuava em silêncio, como se estivesse sonhando. Tereza segurou minha mão. “Venha ver…” Era um espaço longo, quase um salão todo de vidro na frente, de onde se avistavam a rua e casas vizinhas. Ao fundo, uma cama bem simples, uma minúscula cozinha e um banheiro meio precário. O centro da sala era ocupado por imponente cavalete com uma tela iniciada. Para pintores que éramos, o lugar parecia sensacional. Vinte e oito anos antes, apesar de suas possibilidades financeiras, Tarsila não conseguiu um lugar como aquele. Sentamos na cama. Ainda de mãos dadas ela pergunta: — Como foi tudo? — Meio complicado… Olho em volta, depois para ela. — Estou aqui! Tereza participou minha chegada a seus pais e, como era menor de idade, teve de lhes pedir autorização para o casamento. Se eles negassem, para nós, seria indiferente. A autorização chegou em prazo recorde. Casamos na Mairie du 16ème, com uma juíza que, ao fim da cerimônia, nos cumprimentou e aproveitou para nos comunicar: “Se um dia resolverem se divorciar, me procurem”. Pasmos, nossos olhos se cruzaram e, rindo, saímos correndo, abraçados. Alguns dias depois, embarcaríamos para Roma, onde encontraríamos meus pais, que tinham voltado à Itália depois de quarenta anos. Durante a noite, no trem, passava a mão pelo vidro embaçado da janela, de onde entrevia campos e pequenas cidades cobertas de neve. Roma nos recebeu com um pálido sol em sua atmosfera dourada.
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Rodolfo Nanni e Tereza Nicolau, Paris, 1949. Fot贸grafo n茫o identificado.
Institut des Hautes Études Cinématographiques (IDHEC). Aula de direção: Rodolfo Nanni e Moisés Gurovitz, Paris, 1950.
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com cerca de 50 anos, para falar de um de seus trabalhos. O filme era Le Chapeau de Paille d’Italie e o diretor, René Clair. Foi uma grata surpresa, um inesquecível presente. Além das aulas de Sadoul, comecei a frequentar, com Tereza, a salinha da Cinemateca onde, todas as noites, eram exibidos filmes históricos. Tínhamos comprado uma enorme panela na qual colocávamos duas grandes alcachofras bretãs, que deixávamos no fogareiro elétrico, cozinhando. No caminho de ida, nas noites frias, comprávamos, na rua, castanhas assadas e um punhado de batatas fritas. Na volta, as alcachofras estavam no ponto! Tereza continuava pintando enquanto eu preparava meu primeiro exercício de roteiro, realizado sobre um trecho de Capitães da Areia, de Jorge Amado. O IDHEC tinha tantas dificuldades naquele pós-guerra que “filmávamos” sem negativo, nas velhas câmeras Débrie. Mas o fazíamos com grande entusiasmo! Realizávamos um invulgar exercício mental, pressupondo o resultado das filmagens. Conseguia ver, numa tela imaginária, o meu filme, com as imagens, os diálogos e a música. Cerca de quarenta anos depois, estando em Paris, resolvi procurar meus antigos colegas e consegui marcar um encontro num restaurante na rue des Blancs Manteaux, no Marais. Foram quase todos. Robert Enrico, com quem mais me identificava, não pôde comparecer. Tendo feito uma brilhante carreira no cinema francês, que inclui a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar por seu filme La Rivière du Hibou, era muito solicitado e tinha, nessa noite, um compromisso com a Academia de Arte e Técnicas de Cinema, da qual era presidente. Os demais amigos se distribuíram em torno de uma grande mesa. A maioria deles continuava no cinema, mas nem todos costumavam se encontrar. Relembramos fatos dos tempos de estudantes. Um de meus ex-colegas, muito tímido, na época, relatou ter sido louca e silenciosamente apaixonado pela senhora que agora estava em sua frente. E ela, com lágrimas nos olhos, respondeu: “Eu também”. No dia seguinte, fui almoçar com Enrico no Le Télégraphe, quando pudemos discorrer mais sobre nossas vidas, durante todos aqueles anos. Tempos depois, soube, através de Claude Lelouch, que Enrico não havia resistido à loucura de seus compromissos de trabalho. Morreu aos setenta anos, no primeiro ano do século 21.
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Vista do Viaduto do Chá, São Paulo, década de 1940. Fotógrafo não identificado.
Neves imaginou usar para o filme o título de um dos livros de Lobato, O Saci, embora o argumento integrasse personagens de diversos livros seus, cujas histórias se passavam no sítio. Ia escrevendo e enviando, enquanto eu mergulhava nos personagens de Pedrinho, Narizinho, Emília. Nunca havia usado uma máquina de escrever. Comecei a criar o roteiro, escrevendo à mão. Num certo sentido foi bom, pois, com minha prática de desenho e pintura, desenhava as situações. Ao completar o roteiro, ganhei uma pequena máquina Olivetti Lettera 22 de meu irmão Antonio. Comecei digitando com um só dedo, como faço até hoje. Fui então copiando, num trabalho de paciência, o roteiro que foi usado nas filmagens e cujo original se encontra na biblioteca da Cinemateca Brasileira, juntamente com a claquete do filme. 94
AS FILMAGENS Já tínhamos algum dinheiro, mas a vontade de fazer era muito maior do que o interesse pelos cifrões. Quanto a meu salário como diretor, não lembro nem mesmo se tive algum. Começamos a montar a equipe e a escolher os atores. A grande preocupação era com os personagens infantis. Resolvemos promover testes. De início, só tínhamos três nomes certos: o produtor e argumentista, Arthur Neves; o diretor, eu; e o fotógrafo, Ruy Santos. Tereza faria a cenografia e os figurinos. Em seguida, completamos a pequena equipe: Alex Viany seria o diretor de produção de campo; Bráulio Pedroso, meu assistente; Cesar Giorgi, irmão do escultor, assistente de fotografia. Testamos muitas crianças. Os escolhidos foram: Lívio Nanni, Pedrinho; Aristéia Paula Souza, Narizinho; e Olga Maria Amâncio, Emília. Para o Saci, convidamos o ator e bailarino Paulo Matozinho. Depois, vieram Maria Rosa Ribeiro, Dona Benta; Benedita Rodrigues, Tia Nastácia; Yara Trexler, a Iara; Mário Menegheli, a Cuca; e Otávio Araujo, o Tio Barnabé. Na casa da Oscar Freire havia um grande barracão que foi transformado em local de ensaio. Durante cerca de três meses ensaiei, sobretudo as crianças, Tia Nastácia e Tio Barnabé, o que lhes possibilitou chegar às filmagens totalmente encarnados em seus personagens. Decidimos não filmar em Taubaté, onde Lobato havia imaginado o Sítio do Picapau Amarelo, mas na cidade de Ribeirão Bonito, terra natal de Neves, na qual teríamos várias facilidades. Todo o material técnico, câmera, refletores e até um gerador, foi alugado da Companhia Cinematográfica Maristela. Por motivos pessoais, Bráulio Pedroso não pôde continuar no projeto. Convidamos, então, para meu assistente, um jovem recém-formado em Direito, que havia conhecido, em Paris, e cuja vocação era realmente o cinema: Nelson Pereira dos Santos. Assim começou a carreira daquele que se tornou um dos maiores diretores do nosso cinema. Desde o início, Nelson revelou uma incrível capacidade em resolver questões relativas às filmagens, como se já tivesse participado da realização de muitos filmes. Ruy atrás da câmera, Nelson ao meu lado, foram meus dois santos, pelo nome e pela eficiência. Passaram também a fazer parte da equipe: Raimundo Duprat, como segundo assistente; Lyba Friedman, continuísta; Aparecido André e Isidoro Laet, eletricistas. 95
Retirantes (registros fotogrรกficos durante as filmagens de O Drama das Secas). Fotografias de Rodolfo Nanni, 1958.
Depois, Ibimirim, onde o DNOCS preparava uma grande barragem, Serra Talhada e Salgueiro, antes de subirmos em direção ao sul do Ceará. Parávamos apenas nas cidades que podiam nos fornecer algum alimento e estadia mas onde, raramente, havia água para um banho. Dormíamos com a poeira vermelha que se impregnava em nossas roupas e cabelos. As filmagens continuavam pelas estradas sempre repletas de retirantes, crianças de barrigas inchadas e costelas à mostra. Nos sentíamos como correspondentes de guerra, na qual o inimigo era a fome. Nosso primeiro pouso no Ceará foi em Juazeiro do Norte, terra do célebre Padre Cícero. Iguatu foi a cidade seguinte, perto de onde estava sendo construída a grande barragem de Orós. Lá, depois de filmar centenas de trabalhadores carregando pedras, dormimos em redes, na casa do jovem engenheiro que dirigia as obras. Chegando a Icó, pudemos filmar uma impressionante marcha de lavradores entrando na cidade para protestar contra a falta de apoio e soluções dos governos. Quando Josué viu o material, ficou fortemente impressionado e fez questão de fazer pessoalmente uma apresentação do filme. Armamos um espaço nos estúdios da Vera Cruz, onde Josué, entre outras questões, afirmava serem regiões de fome no mundo o sul da Itália e a Espanha. Isso, em 1959. Como estão hoje? Pouco antes, apesar do apelo do Conselho Mundial da Paz, em Estocolmo (Suécia), para a interdição de todas as armas atômicas, os Estados Unidos fabricam sua primeira bomba de hidrogênio, com um poder destruidor de 15 milhões de toneladas de TNT, 750 vezes mais potente que a bomba atômica. Foi então fundada a Agência Internacional da Energia Atômica, que propõe uma conferência em Londres, para a redução dos arsenais atômicos. Nessa ocasião, a URSS põe em órbita seu primeiro satélite, o Sputnik 1. Em 1959, enquanto nosso Nordeste torrava, o submarino Nautilus navegava sob a calota glacial do norte. Os soviéticos colocavam o Lunik 2 na órbita lunar, os Estados Unidos fundavam a NASA e o Explorer IV fotografava a terra a 27 mil quilômetros de altitude. Apesar de toda essa tecnologia desenvolvida no hemisfério Norte, logo abaixo do Equador, éramos testemunhas de um atraso desumano, em parte, até agora, não sanado. O Drama das Secas recebeu o Prêmio Saci, do jornal O Estado de S. Paulo, o Prêmio Governador do Estado e o Prêmio da Municipalidade de São Paulo. 141
percebe-se a utilização de linguagens comuns a determinados setores da sociedade para, através deles, ressaltar sua decadência. A amizade com Khouri também durou até sua morte, em 2003. Fui, ainda, amigo de Flávio Tambellini, crítico dos Diários Associados, depois diretor de cinema e presidente do Instituto Nacional do Cinema, de Thomaz Farkas, de João Batista de Andrade, de Galileu Garcia. Também de Carlão Reichenbach, Ozualdo Candeias, Francisco Ramalho, Ana Carolina, além da camaradagem tida com Alfredo Sternhein, Rogério Sganzerla, Maurice Capovilla, Hector Babenco. Hoje, esse universo foi ampliado com todos os colegas do SIAESP (Sindicato da Indústria Audiovisual do Estado de São Paulo), do qual sou um dos diretores, da Apaci (Associação Paulista de Cineastas) e do Sindcine (Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Cinematográfica). No Rio, minha admiração por Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues e Roberto Farias. Creio que nós quatro somos os diretores históricos vivos do cinema brasileiro ainda em atividade.
ADHEMAR Quando adolescente, vi desaparecer o campo de futebol do Glorioso Futebol Clube, para dar lugar à construção do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Assisti ao lançamento da pedra fundamental pelo então interventor no Governo do Estado, por volta de 1938. A estrutura de concreto foi levantada com invulgar rapidez, mas, como os esqueletos humanos existentes logo atrás, na Faculdade de Medicina, o imenso prédio assim ficou por um bom tempo. Não demorou para tomarmos conta do espaço, onde inventávamos todo tipo de brincadeiras. Meus companheiros eram filhos de Seu Manuel, um português contratado como guarda do estádio de esportes que a Faculdade de Medicina estava construindo numa área dessa grande propriedade do Estado. Uma das nossas molecagens era, aos domingos, quebrar o vidro da janela da lanchonete da faculdade, para roubarmos balas e chocolates. Terminado o novo estádio, foi criada a competição chamada MAC-MED, entre os estudantes de engenharia do Mackenzie e os de medicina da USP, 160
Rodolfo Nanni, Ingolstadt, Alemanha, c. 1960. Fot贸grafo n茫o identificado.
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Rodolfo Nanni dirigindo o filme Cordélia, Cordélia..., Jardim da Luz, São Paulo. Fotografia de Lúcio Kodato, 1971.
Eron Domingues foi o diretor de produção. A cenografia foi realizada por mim, com assistência de meu filho, Pedro Nanni, que se iniciava no cinema e que também participou de algumas cenas como ator, contracenando com Lilian. A edição foi realizada por Maximo Barro, com minha supervisão. A trilha musical é de autoria de Rogério Duprat. Quando fui acertar o pagamento de seu trabalho, Rogério me propôs, generosamente, que o pagasse com um violão. Fomos até a loja da Del Vecchio. Duprat saiu com seu violão. 174
Carlos Silveira (na câmera), Oscar Cabrera, Maria Catarina Rocha (continuista), Francisco di Franco, Rodolfo Nanni e Lilian Lemmertz (de costas), durante as filmagens de Cordélia, Cordélia... nos estúdios da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, São Bernardo do Campo, São Paulo. Fotografia de Lúcio Kodato, 1971.
Rodolfo Nanni dirigindo Lilian Lemmertz e Francisco di Franco em Cordélia, Cordélia... Fotografia de Lúcio Kodato, 1971.
Já com poltronas instaladas, realizamos uma mostra de cinema argentino, com destaque para o filme Martin Fierro, de Leopoldo Torre Nilsson, e outra de cinema polonês, na qual se ressaltava Cinzas e Diamantes, de Andrzej Wajda. Numa época em que apresentar inéditos incluía pesquisas na área de música antiga, foi realizado um espetáculo resultante da investigação de Anna Maria Kieffer em arquivos norte-americanos sobre a música praticada na América do Norte nos séculos 17 e 18. Música Antiga Norte-Americana reuniu um grupo de 12 jovens cantores, sob a direção de Samuel Kerr, com a participação da cravista Regina Schlochauer. O espetáculo foi ilustrado por exemplos de arte norte-americana do período, em projeções cedidas pelo Smithsonian Institut de Washington e organizadas por Libby Mathes. Alguns desses cantores, que se apresentavam pela primeira vez como solistas, fizeram importantes carreiras. Entre eles, a soprano Adélia Issa, a meio-soprano Regina Helena Mesquita, o tenor Luiz Tenaglia e o baixo Fernando Carvalhaes. A inauguração oficial do Teatro FAAP se deu em 1976, com um concerto do pianista Jacques Klein estreando o piano Bechstein que havia sido recentemente importado. Algum tempo depois, o teatro passou a ser alugado prioritariamente para produções comerciais.
TRANSFORMAÇÕES E MEMÓRIA No início dos anos 1970, realizei para a Emurb (Empresa Municipal de Urbanização), da Prefeitura de São Paulo, uma série de filmes-documentários, objetivando registrar a adequação de alguns bairros e regiões centrais da cidade à sua evolução. Naquela época, o Centro, já bastante congestionado com o trânsito de veículos e a enorme circulação de habitantes, fez com que algumas ruas da região fossem dedicadas exclusivamente a pedestres. Essa operação foi programada para as ruas Barão de Itapetininga, Dom José de Barros e Marconi, nas imediações do Theatro Municipal, e para as ruas São Bento, Direita, Álvares Penteado, Quitanda, do Comércio e praça do Patriarca, do outro lado do Viaduto do Chá. 198 Rodolfo Nanni no Viaduto do Chá, durante filmagens de ¦ São Paulo Centro, 1974. Fotógrafo não identificado.
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