Fernando Pessoa
Cartas a Ophélia Ilustrações de Antonio Seguí
Fernando Pessoa
Cartas a Ophélia
Ilustrações de Antonio Seguí
First published in Spain under the title Cartas a Ophelia ©2010 Libros del Zorro Rojo, Barcelona-Madrid www.librosdelzorrorojo.com Editorial project: Alejandro García Schnetzer Todos os direitos reservados. nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc, nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a expressa autorização da editora Editor responsável Ana Lima Cecilio Editor assistente Erika Nogueira Vieira Revisão Luciana Araujo Capa e projeto gráfico Jussara Fino
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ P567c Pessoa, Fernando, 1888-1935 Cartas a Ophélia: Fernando Pessoa ilustração: Antonio Seguí 1. ed. – São Paulo: Globo, 2013. 160 p.: il.; 21 cm. ISBN 978-85-250-5539-2 1. Pessoa, Fernando, 1888-1935 – Correspondência. I. Seguí, Antonio. II. Título. 13-04716
CDD: 869.6 CDU: 821.134.3-6
1ª edição, 2013 Direitos de edição em língua portuguesa adquiridos por Editora Globo S/A Avenida Jaguaré, 1485 05346-902 São Paulo-SP www.globolivros.com.br
SUMÁRIO
Apresentação – Antonio Tabucchi Cartas a Ophélia Primeira etapa (1920) Segunda etapa (1929-1930) Poemas
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f er na n d o p es s oa
Um fausto em gabardina Antonio Tabucchi
Com tanto poder como tens sobre mim: vamos, transforma-me em um homem capaz do óbvio Kafka, em uma carta a Felice
Inscrita entre a paródia da declaração de Hamlet a Ofélia, em pequenas notas ocultas em caixinhas de caramelo, e um final em forma de cantilena nonsense, a história desse amor secretíssimo e casto, de tão otimista inocência e ao mesmo tempo tão carente de esperança, poderia parecer ridícula se não participasse, exatamente como os autênticos grandes amores, do ridículo e do sublime. Temos aqui um Fausto em gabardina, propenso à amigdalite e empregado em empresas lisboetas de exportação e importação, obrigado a trocar sua frágil Margarida, inteligente e algo desorientada, por um Mefistóteles implacável e totalitário, disfarçado no Projeto de uma Obra (“Além do mais, minha vida gira em torno da minha obra literária, boa ou má que seja, ou possa ser. Todo o resto na minha vida tem um interesse secundário...”).
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Cartas a OphĂŠlia Primeira etapa 1920
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1 de março de 1920
Ophelinha: Para me mostrar o seu desprezo, ou, pelo menos, a sua indiferença real, não era preciso o disfarce transparente de um discurso tão comprido, nem da série de “razões” tão pouco sinceras como convincentes, que me escreveu. Bastava dizer-mo. Assim, entendo da mesma maneira, mas dói-me mais. Se prefere a mim, o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito, como lhe posso eu levar isso a mal? A Ophelinha pode preferir quem quiser: não tem obrigação – creio eu – de amar-me, nem, realmente necessidade (a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama. Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos de advogado. O amor não estuda tanto as coisas, nem trata os outros como réus que é preciso “entalar”. Porque não é franca para comigo? Que empenho tem em fazer sofrer quem não lhe fez mal – nem a si, nem a ninguém –, a quem tem por peso e dor bastante a própria vida isolada e triste, e não precisa de que lha venham acrescentar criando-lhe esperanças falsas, mostrando-lhe afeições fingidas, e isto sem
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que se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça. Reconheço que tudo isto é cômico, e que a parte mais cômica disto tudo sou eu. Eu-próprio acharia graça, se não a amasse tanto, e se tives se tempo para pensar em outra coisa que não fosse no sofrimento que tem prazer em causar-me sem que eu, a não ser por amá-la, o tenha merecido, e creio bem que amá-la não é razão bastante para o merecer. Enfim... Aí fica o “documento escrito” que me pede. Reconhece a minha assinatura o tabelião Eugênio Silva.* Fernando Pessoa
* Ophélia queria uma prova escrita em que Pessoa declarasse que era seu pretendente e que suas intenções eram sérias.
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18 de março de 1920
Muito agradeço a sua carta. Tenho passado muito aborrecido por todas as razões que calcula. Até para tudo ser desagradável, há duas noites que não durmo, pois a angina dá uma saliva constante, e acontece-me esta coisa muito estúpida – eu ter que estar a cuspir de dois em dois minutos, o que não me deixa sossegar. Agora estou ao mesmo tempo melhor e pior do que estava de manhã: tenho menos ardor na garganta, mas tenho outra vez febre, o que de manhã já não tinha. (Notar que esta carta vai escrita no mesmo estilo da sua, por o Osório* estar aqui ao pé da cama, de onde eu estou escrevendo, e naturalmente repara de vez em quando para o que eu escrevo.) Não posso escrever mais, com a febre e as dores de cabeça com que estou. Para responder ao que tu perguntas, as outras coi sas, meu amorzinho querido (oxalá o O. não veja isto), teria que escrever muito mais e não posso. Desculpa-me, sim? Fernando Pessoa
* Osório era o mensageiro da empresa em que Ophélia e Pessoa trabalhavam.
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19 de março de 1920
Meu Bebé pequenino (e atualmente muito mau): A carta que vai junta é a que mandei ainda agora a tua casa pelo Osório. Espero poder entregar-te as duas amanhã, indo esperar-te à saída do escritório Dupin.* Sobre a informação, que te deram a meu respeito, não só quero repetir que é inteiramente falsa, como também dizer-te que a “pessoa de respeito”, que deu essa informação a tua irmã, ou inventou por completo, e, sobre ser mentirosa, é doida; ou essa pessoa nem sequer existe, e foi tua irmã que a inventou – não digo que inventou a pessoa, mas que inventou que determinada pessoa lhe disse uma coisa que ninguém lhe disse. Olha, amorzinho: é sempre mau, nessas coisas, julgar que os outros não passam de parvos. Sobre essa “pessoa”, e o que dela me disseste (naturalmente porque to tinham dito), terei dois detalhes: 1. que essa pessoa
* Em março de 1920, Ophélia passou a trabalhar nos escritórios da Casa C. Dupin, no cais do Sodré.[n. e.]
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OUTROS POEMAS
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Aqui está-se sossegado, Longe do mundo e da vida, Cheio de não ter passado, Até o futuro se olvida. Aqui está-se sossegado. Tinha os gestos inocentes, Seus olhos riam no fundo. Mas invisíveis serpentes Faziam-a ser do mundo. Tinha os gestos inocentes. Aqui tudo é paz e mar. Que longe a vista se perde Na solidão a tornar Em sombra o azul que é verde!
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Fernando Pessoa Lisboa (1888-1935)
Órfão de pai aos cinco anos, passou sua infância e parte de sua juventude em Durban, na África do Sul. No idioma inglês, as obras de Milton, Byron, Keats e Shakespeare entre outros foram o legado de sua educação britânica. Voltou definitivamente a Lisboa em 1905 e trabalhou como correspondente estrangeiro em casas comerciais, ofício que casou com a composição de uma vasta literatura; dessa se destaca sua produção poética, atribuída a uma plêiade de heterônimos como Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e Ricardo Reis. Foi um dos primeiros difusores da vanguarda em Portugal, colaborando nas revistas Orpheu, Athena, Ruy Vaz e Presença. Com exceção de Sonnets (1918), English Poems (1921) e Mensagem (1834), a maior parte de sua obra permaneceu inédita, guardada em um baú que continha centenas de originais. Fernando Pessoa morreu aos 47 anos no Hospital São Luís dos Franceses, onde havia sido internado pelas sequelas do alcoolismo.
Antonio Seguí (Córdoba, Argentina, 1934)
Estudou Artes em Córdoba, Madri e Paris, cidade em que reside desde 1963. Realizou mais de 150 exposições internacionais que o consagraram um dos maiores artistas contemporâneos. Seu traba lho artístico mereceu diversos prêmios, entre os quais o Grande Prêmio da Bienal de Gravura em Tóquio (1966), o Prêmio Inter nacional de Pintura de Darmstadt (1967), o Grande Prêmio Biblio filia da Secretaria de Promoção da Edição Francesa (1978) e a Medalha de Ouro da Trienal de Artes Gráficas da Noruega. Em 2005, o Centro Pompidou organizou uma retrospectiva de sua obra.
Todas as cartas de amor são Ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem Ridículas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor, Como as outras, Ridículas. As cartas de amor, se há amor, Têm de ser Ridículas. Mas, afinal, Só as criaturas que nunca escreveram Cartas de amor É que são Ridículas. Álvaro de Campos
Prefácio de Antonio Tabucchi
ISBN 978-85-250-5539-2
9 788525 055392