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Pano para mangas Margarida Vargues
PANO PARA MANGAS
Margarida Vargues
Em miúda sonhava viver num prédio alto! Havia qualquer coisa de fascinante no acto de “varandar” apenas para observar o que se passava na rua ou para trocar dois dedos de conversa com quem estacionasse por baixo da varanda Mas de onde me vinha este desejo? Não faço a menor ideia! Os meus avós paternos viviam numa casa térrea, a mesma onde também eu morava e que agora visito ao fim-de-semana – a casa e os meus pais, pois os avós há muito que se finaram. Quanto aos maternos habitavam, também, num rés-do-chão. E eu ... bem, eu tinha a mania das alturas, por isso consegue-se imaginar o meu desgosto quando os meus pais resolveram ir de armas e bagagens para a cidade e a casa que escolheram era num rés-dochão? Anos mais tarde acabei por arrendar um nono andar com varandas, mas e eu tinha tempo para delas usuifruir? Acho que só varandei durante o inverno para ver como estava o tempo lá fora e, amiúde, constatar que não poderia sair de casa a não ser que tivesse um barco – as chuvas e as marés assim o ditaram nesse ano. Ironias do destino... Além disso, quem é que se punha a conversar de um nono andar? Só de megafone em punho!
Hoje já não alimento esse desejo e de cada vez que ajudo a minha vizinha do primeiro andar a levar o carrinho das compras para cima, dou graças por permanecer cá em baixo. Por vezes chego a pensar que ela carrega ou pedras ou um defunto por baixo
CRÓNICAS DO RÉS DO CHÃO
das alfaces e dos ovos que vejo à superfície. Não prima pela simpatia, é verdade, mas daí a ter um vizinha homicida...
Parece, então, que estou destinada a um rés-dochão – pelo menos por ora! E não é que morar junto à rua tem mais que se lhe diga? Passando a expressão, dá pano p’ra mangas!
A minha rua é um microcosmo! Há de tudo por aqui, especialmente especialistas altamente especializados em resolver os mais especiais problemas do país e do mundo. Qualquer uma destas criaturas é digna de um lugar na Assembleia da República, na Casa Branca ou em Bruxelas de preferência numa poltrona confortável, pois já não vão para novos e os ossos começam a queixar-se.
Eu não sei como há coisas no nosso país que estão mal. Confesso que não sei, pois nos metros quadrados que separam a janelas do meu escritório e do meu quarto e a esplanada do outro lado da rua há solução para tudo. Tudo, mesmo!
Há dias, já depois de ter passado o camião vassoura, a esplanada atravessou a rua e parou a conversar junto de uma destas minhas janelas. Aquilo que seria uma despedida prolongou-se por tempo indeterminado. As conversas são como as cerejas, vêm umas atrás das outras e o cesto devia estar bem cheio.
Sempre seguindo a estrutura problema-solução, chegaram ao assunto do dia: A VACINA – assim, com maíusculas para não haver confusão, pois tal como a gripe que se erradicou, todas as vacinas que levamos em miúdos e ao longo da vida parecem ter sumido do plano.
Os ânimos ficaram, a certo momento, exaltados e daí começou a destacar-se uma voz que identifico como a de um vizinho do prédio ao lado. Os decibéis roçavam o volume estratosférico das colunas Kadoc nos áureos já longínquos anos 90. O espectáculo prometia e resolvi abrir uma garrafa de vinho para desfrutar – do néctar e do debate. Fui buscar um queijinho e deixei-me ficar ali, como se estivesse a assistir a uma radio-novela.
A solução para a vacinação foi encontrada nesta tardia conversa: vacinar todas as pessoas - a nível mundial – em simultâneo. Mas o que é isso de vacinar uns em Janeiro, outros em Abril e ainda uns quantos em Outubro? Por isso é que isto não melhora!
(Sr. Vice-Almirante, tem aqui uma tropa de elite para a sua taskforce. Duvido é que saibam onde espetar a agulha na hora certa.)
Todo este discurso fez-me lembrar quando, há uns anos, entrei num táxi em Lisboa - daqueles com a Nossa Senhora fluorescente pendurada no retrovisor, o galo de Barcelos da meteorologia colado no tablier, uma dúzia de cassetes entaladas entre o cinzeiro e as mudanças e as almofadas de crochet a decorar o espaço entre o vidro traseiro e as cabeças dos passageiros - e o gentil motorista resolveu os problemas do país na corrida entre o Marquês de Pombal e o Cais do Sodré, especialmente quando eu, ávida das tais soluções, larguei a enfática bomba “Ahhh a falta que faz cá um Salazar...”
Encontrada a solução para o problema do momento, dispersaram-se entre repenicados beijinhos e promessas de outros serões. Terminei o vinho, lavei a loiça e fui-me deitar.
Apenas não percebi se a acta foi lavrada ou se vai haver um abaixo-assinado, porém a solução está encontrada sem que para isso tivesse sido feito qualquer plano ou gasto um cêntimo do que todos os meses pagamos ao estado. Ahh valentes! Vacinação para todos já, e em simultâneo!