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Flores na Abíssinia Carla Coelho

FLORES NA ABISSÍNIA

Carla Coelho

AS VOLTAS QUE A VIDA DÁ

O nome é Abkar El Saud. Nasceu numa pequena aldeia no Afeganistão e com 15 anos decidiu trocar a agricultura a que a família se dedicava pela promessa de uma nova vida. Rumou a Cabul. Trabalhou nas obras, numa pequena mercearia e quando os norte-americanos entraram na cidade, apercebeu-se de que tinha chegado um novo negócio – a barbearia. E foi assim num subúrbio de Cabul. Primeiro na rua. Escolheu uma esquina, levou um espelho, um alguidar, uma tesoura e um banco. Sentou-se no banco aguardando os primeiros clientes. E eles chegaram. Não no primeiros dias, mas nos dias subsequentes. Cortar o cabelo, aparar o bigode, fazer a barba. Não pensou em trazer grandes inovações à sua crescente clientela. Mas com o tempo e o desenvolvimento de uma nova geração, Abkar percebeu que os clientes estavam a ficar mais exigentes. Queriam copiar artistas e desportistas, alguns locais, outros que viam na televisão e nas redes sociais. Entre os clientes surgiram também, com o tempo, alguns ocidentais.

Entretanto a vida de Abkar tinha passado por algumas mudanças. Num Eid que passou na aldeia casou com Larissa (assim chamada por causa de uma novela russa que os pais tinham visto) e trouxe-a para Cabul. Abkar achou que tinha muita sorte. Gostava de Larissa e ela gostava dele. É certo que o casamento foi decidido pelas respectivas famílias, mas não sem antes os dois terem sido escutados. O pai de Larissa tinha fama de progressista. Tinha recusado casar as filhas quando elas eram crianças. Isto apesar de ter tido uma proposta de um dos maiores pastores da aldeia (50 cabras e 15 ovelhas) quando ela tinha 12 anos. O pastor tinha um filho de 30 anos, Ahmed e cansado de o ter por casa a fazer pouco mais que nada, queria casálo com uma boa rapariga da aldeia. Mas o pai de Larissa recusou. Menos sorte teve a filha do seu vizinho do lado, uma vez que a sua família (pai e avô) tinham aceite casar Soraya, menina com 9 anos. Abkar não era político. Mas sempre lhe tinha parecido que as pessoas só deviam casar-se adultas e com alguém que escolhessem para marido ou mulher. Das poucas idas à aldeia que fizeram depois de casados Abkar e Larissa tinham a certeza de que não pretendiam voltar para lá e muito menos que os filhos, Momim e Akmena. Os campos agrícolas

estavam semeados de papoilas, as crianças tinham fome e a sua ida à escola, sobretudo se fossem meninas, continuava a ser um desafio constante.

A vida, aliás, corria-lhes bem em Cabul. Da rua a barbearia de Abkar passou para uma pequena loja, num prédio ao fim da rua onde também viviam. Larissa começou a trabalhar numa escola perto. Trabalhar no Estado era uma garantia de salário certo. Pequeno, mas seguro. Entretanto, para além de clientes mais jovens, Abkar começou também a cortar o cabelo a voluntários e soldados ocidentais. Depois, no dia 16 de Agosto de 2015, o casal abriu a segunda barbearia, três semanas depois de nascer o terceiro filho – Akum. Esta nova barberaria, localizada já em Cabul, trouxe um outro tipo de clientela – advogados, professores, médicos. Gente com outra instrução, outras conversas e carteiras mais recheadas. Abkar confessou à mulher uma noite enquanto lavavam os pratos do jantar que ambicionava para os filhos que tirassem um curso superior. Serem alguém. A mulher olhou-o muito séria e perguntou-lhe “e a Akmena?” Abkar olhou a mulher sem perceber onde ela queria chegar. Pois não era a menina a primeira da sua escola? Não lhe brilhavam os olhos quando mostrava os testes ao pai? Não ficava este, que na verdade pouco sabia de ler e escrever, a rebentar de orgulho com as suas classificações? E não dizia ela que queria ser juíza? Claro que Akmena iria para a universidade também. Assim Abkar e a mulher tivessem forças e amealhassem o necessário pecúlio. Deitado ao lado de Larissa já adormecida Abkar imaginava a sua vida futura. Uma enorme rede de barbearias espalhadas pelo Afeganistão e os três filhos formados, todos a viver num grande apartamento com piscina em Qasaba. O sono surpreendia-a com um sorriso nos lábios e encontrava-o desperto com entusiasmo sempre renovado.

Tudo isto parece agora muito longe, uma outra vida. No dia 16 de Agosto de 2021 Abkar e a mulher tinham pensado fazer uma pequena celebração, para marcar o aniversário da barbearia. Pouco conhecedor de política internacional Abkar estava apreensivo. Afinal, os seus clientes militares iam-se embora e havia rumores de que os talibans iam voltar. Mas, no fundo, não acreditava nisso. O mundo, como sempre diz Larissa, não anda para trás, anda sim para a frente. Que ilusões se cultivam! O mundo anda para onde os poderosos lhe dizem para andar ou para onde o atiram quando lhe dão um pontapé com descaso.

Por força do pontapé dado no traseiro dos afegãos, Abkar está agora sentado com a mulher e filhos à porta de uma tenda num campo de refugiados em lugar que ele próprio não conseguiu identificar com precisão. Espera estar na Europa, mas um outro homem disse-lhe que ainda tinham de atravessar o mar de barco para lá chegar. Ou ir a pé, por um caminho mais longo. Qualquer das hipóteses é de difícil concretização para a sua família de cinco pessoas, três das quais crianças. E, contudo, é precisamente por elas que tem de ter força para a fazer. Já passou o momento da raiva, da revolta, da incredulidade. Porque nos abandonaram? Porque nos atraiçoaram? Porque não nasci do outro lado do mar, naqueles países onde os políticos dizem mal uns dos outros, mas depois há eleições e alguém é eleito e isso é respeitado? Abkar gostava de ter nascido na França, viu algumas reportagens na televisão e pareceu-lhe um país bem simpático. As pessoas até vestem coletes amarelos para ir protestar e ninguém limpa as ruas com uma saraivada de balas. Mas não, não podia ter nascido num desses países que vive em paz e onde as crianças vão à escola e até lhes davam comida (isto tinha sido Larissa que lhe tinha contado, tinha ouvido uma senhora a falar com dois homens junto da enfermaria sobre esse assunto).

Nos momentos mais difíceis nem consegue chorar. Quando se sente um pouco melhor faz planos frenéticos para abrir não uma, mas duas, três ou quatro barbearias (e também cabeleireiro para senhoras, um sonho que já começava a acalentar, antes da sua vida ter sido reduzida a estilhaços). A maior parte do tempo, quando não anda à procura de informações ou a tentar comprar comida no mercado negro, senta-se à porta da tenda ao lado da mulher, a ver os filhos brincar. Só aí encontra um sopro de esperança.

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