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E o mar logo ali Ana Gomes
UMA LEITURA DA CONSTITUIÇÂO
It’s time you’ll never get back, Marianne adds. I mean, the time is real. The money is also real. Well, but the time is more real. Time consists of physics, money is just a social construct.
Sally Rooney, Normal People, 2018, Faber
E O MAR LOGO ALI
Ana Gomes
Com a liberdade criativa que a “Justiça com A” nos dá, vamos imaginar que Marianne foi para Trinity College, em Dublin, mas estudar outra coisa. Tinha devorado com todos os sentidos os DVDs de “Cosmos” com doze anos e daí até procurar outros conhecimentos e se especializar em Física passaram mais dez. Ainda que mantendo a imaginação a 100%, Marianne não encontrou muitas respostas e espanta-se de cada vez que a prima Olívia lhe apresenta uma solução para qualquer problema do nosso tempo.
Nada de especulação, fórmulas ou equações. Olívia é portuguesa e acabou por se doutorar em Direito Constitucional, coisa que a prima não alcança, o que sucede exatamente com Olívia quando Marianne lhe tenta explicar as últimas tendências de investigação na sua área.
- Estás a ver as leis fundamentais da Física, aquelas que são agora reconhecidas e aceites por todos? Assim é a Constituição, a lei fundamental de um país que todas as outras leis devem respeitar, ainda que, no caso português, a própria Constituição integre as normas da Declaração Universal dos Direitos Humanos e as normas europeias. Contém os princípios materiais adotados pela nossa sociedade política, como por exemplo o respeito e garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais como o direito à vida, à integridade física ou à liberdade. - Bom, os juristas passam anos a estudar, mas esses princípios são muito diferentes dos da Física, estes muito mais fáceis de entender, são reais.
As primas têm mantido contacto só à distância nos últimos dois anos e finalmente encontraram-se no início de agosto, prosseguindo a última conversa que tinha sido interrompida abruptamente no skype.
- Fiquei a pensar na tua observação... Trouxe-te a Constituição. Não te assustes. Qualquer criança que saiba ler compreenderá a maioria do texto que te vou apresentar. Lê o artigo 12.º, n.º 1. Princípio da universalidade.
- Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição.
– Agora, artigo 13.º, n.º 1. Princípio da igualdade.
- Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
- Saltamos para o artigo 17.º, é sobre o regime dos direitos que vêm a seguir.
- Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas (…)
- Percebes? Continua. Artigo 19.º, n.º 1.
- Sim. Os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição.
O artigo 21.º (direito de resistência) interpela Marianne:
- Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública – segue em frente, sem expressão de dúvida.
- Agora, entras no capítulo dos direitos, liberdades e garantias pessoais (artigos 24.º a 47.º). Lê em voz alta o artigo 27.º.
- 1.Todos têm direito à liberdade e à segurança.
2. Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.
3. Excetua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes:
a) Detenção em flagrante delito;
b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos;
c) Prisão, detenção ou outra medida coativa sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão;
d) Prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente;
e) Sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente;
f) Detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente;
g) Detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários;
h) Internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente (…) - Isto significa que, em Portugal, ninguém pode ser privado da liberdade noutras circunstâncias que não estas ?
- Exatamente. Vê o artigo 31.º. Olívia dá uma ajuda na leitura. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente
Agora, salta para o art.41.º.
- A todos os cidadãos é garantido o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do território nacional – art. 44.º.
Marianne está temporariamente confusa porque muito do que ouviu na abertura dos telejornais portugueses dos últimos meses parece não ter correspondência com as normas que acabou de ler.
- Amanhã podemos passar à leitura dos artigos sobre as competências dos vários órgãos para estabelecer as outras regras infraconstitucionais, como as dos artigos 165.º e 198.º, mas fica para amanhã. E para o dia seguinte, a norma que nos pode salvar, assim se realce a importância do Direito: as leis de revisão constitucional terão de respeitar:
(…) d) Os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos – artigo 288.º.
Sem ilusões, Marianne remata:
- Well, dear, law is just a social consctruct.