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Flores na Abíssinia Carla Coelho
FLORES NA ABISSÍNIA
Carla Coelho
A CASA E O BALDIO
A casa não é um lugar. É o passado, as memórias de infância, o amor de adolescência, o primeiro emprego, o piquenique numa tarde de verão, o dia em que nasceu o nosso filho, o sorriso do amigo, a história que nos contamos sobre nós mesmos. São os sonhos, o segredo que nunca partilhado, as certezas que o mundo estilhaçou (ou não). O livro que lemos uma e outra vez na infância, o bolo que comíamos no intervalo das aulas, a canção que trauteamos ainda que a saibamos pirosa. Os filmes que nos devolveram a esperança nos momentos de negrume.
Os decoradores de interiores dizem que uma casa está sempre incompleta. E têm muita razão num sentido bem mais amplo do que imaginam. Pela minha parte, tal como me falta sempre mais uma estante para livros, também tenho espaço para mais um rosto, uma nova emoção ou uma palavra inesperada. Ainda que isso implique, por vezes, deitar fora qualquer coisa que estava lá antes e que deixou de ter préstimo. Ou, de forma menos dramática, passar a vê-la com outros olhos.
Para termos coisas novas na nossa casa temos de nos arriscar a caminhar por baldios. Só aí, na aventura do inesperado, encontramos os objectos preciosos,
A casa e o baldio
Flores na abissínia
que fazem da nossa casa o lugar único que habitamos. Diferente das casas dos outros. Que serão muito bonitas e capazes de os manter confortáveis. Mas são deles, não nossas.
Há dias encontrei uma coisa nova para a minha casa.
Entrei na sala do cinema no momento em que as luzes se apagaram. Senteime no silêncio (a sala tem pergaminhos e o público sabe estar). O ecrã iluminouse de um azul profundo, delicado e forte, a invadir a tela de liberdade. E comecei a seguir a história de Ana e Luís, dois amigos que vivem em São Miguel, nos Açores. Nunca fui à ilha (uma falha que espero corrigir em breve), mas posso jurar que lhe senti os cheiros trazidos pelo vento atlântico naquela sala de cinema plantada no meio da capital. Lobo e Cão, o título do filme, é uma metáfora para aquele espaço indizível entre uma coisa e outra, o intervalo subtil entre duas realidades que se sucedem. Assim é a adolescência em que se encontram os protagonistas do filme. Aquele momento em que acaba a infância, território em que a magia cobre a dureza da vida (mesmo quando esta é real as crianças conseguem esquecer-se disso, ainda que apenas pelo tempo em que correm atrás de uma boa de trapos ou entoam uma canção) e se entra na vida adulta, com as suas responsabilidades, liberdades e desilusões. É um tempo que me interessa muito, não só porque também eu já lá vivi, mas também por a minha profissão me levar a olhar para quem por lá anda com interesse e curiosidade.
No filme, seguimos Ana e Luís na sua jornada de abertura de possibilidades e descoberta, na sua recusa em serem outra coisa se não quem são, num percurso de dificuldade e superação de rejeição e aceitação. O filme é construído sobre dualidades, com uma luz poética, um ritmo que segue o da vida, recortando os pedaços variados de realidade que é a vida na ilha. Um mar aberto de possibilidades, um pedaço de terra que pode parecer tão pequeno.
Os dois protagonistas jovens estudantes de liceu, vivem com as suas famílias e têm um grupo de amigos que se revela essencial na descoberta e suporte do mundo que cada um deles traz em si.
Não se porquê (e talvez não muito a propósito, diga-se) ao sair do cinema veio-me à cabeça o jovem Lucien Rupembré, herói das Ilusões Perdidas, romance de Honoré de Balzac. Se já tiverem lido o livro recordarão Lucien. Muito jovem (menos de 20 anos) vai para Paris, com o propósito de vencer na vida. Não tem dúvidas existenciais
sobre o que significa isso, diga-se. E para alcançar o seu objectivo, sabe-o bem, tem de moldar-se ao que a sociedade dele espera, integrar-se, deixar-se ir, tomar-se de ambições de conquista do mundo, tudo para que lhe caibam algumas migalhas caídas do banquete dos ricos. Balzac é um dos meus escritores de eleição e este livro um dos que mais marcou até hoje.
Nada dessa filosofia de vida encontra eco neste filme. Está nos antípodas mesmo. Ana e Luís, com o apoio dos seus amigos também eles à procura do seu lugar no mundo, têm outro objectivo, não dito, mas sentido. O da coragem e do direito que todos temos de dizer “estou aqui e o mundo é também o meu lugar”. Não é o sucesso material que os comanda, mas o existencial, mais difícil, subjectivo e, por isso, mais precioso.
Comoveu-me também a audácia de lhes oferecer um final feliz, algo muito raro nos tempos que correm. E, no entanto, que melhor coisa se pode oferecer a alguém: a possibilidade da coragem que anda de mãos dadas com a liberdade, a promessa de toda uma vida para se descobrir, para se construir, não sendo outra coisa se não aquilo que estamos destinados a ser?
Afinal, sei porque motivo me ocorreu Balzac, esse céptico de pluma abençoada. É que terminado o filme percebi que ao contrário do que o mestre francês vaticinava ser adulto, crescer, não tem de se traduzir em ganhar experiência no sentido de perder as ilusões. Pode significar algo muito diverso: fazer do que os outros pensam ser uma ilusão a realidade. Que diferentes são os jovens hoje!
Um Natal muito feliz a todos e um Ano Novo cheio de descobertas são os desejos desta vossa cronista.
Lobo e Cão é um filme português de Cláudia Varejão em exibição nos cinemas. Ilusões Perdidas, de Honoré de Balzac, tem várias edições em português, a última das quais da D. Quixote.