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O imaginário na justiça José Carlos Oliveira

José Carlos Oliveira O IMAGINÁRIO NA JUSTIÇA

Andava há muito para escrever umas linhas, mas, sempre que pensava no assunto, fervilhavam imensas ideias na minha mente, fragmentadas, fazendo-me constantemente dispersar quanto ao meu propósito.

Resolvi, então, delimitar o tema a algo que estivesse no domínio do meu conhecimento, pois, com a pretensão de ser eclético, corria o risco de me tornar fastidioso ou ininteligível, porque escrita livre não é, seguramente, a minha vocação assumida. Sou mais de falar e pensar, mas, acima de tudo, de observar e escutar atentamente o que me rodeia, com o possível e desejável espírito crítico.

Foi, assim, com fulgor, que, num turbilhão de pensamentos, me deixei abraçar por Morfeu, começando a sonhar que vivia numa sociedade evoluída, humanista, com uma visão política e social séria, e a pensar como seria se se perdesse este fio condutor de ética, de responsabilidade, de transparência, de visão estratégica, de são exercício da cidadania, dando enfâse à Justiça, pilar fundamental de qualquer Estado de Direito.

Imaginei, então, apreensivo, que a Justiça se encontrava cada vez mais fragilizada por parca ou inexistente aposta numa verdadeira reforma estrutural a fazer-se no seu seio.

Imaginei um Estado em que as instituições que gravitavam na órbita da Justiça eram elas próprias incumpridoras da lei, o que, manifestamente, a descredibilizava.

Imaginei haver uma Lei de Política Criminal (LPC), caduca, por culpa objetiva e subjetiva do legislador, cuja função seria determinar, com periodicidade bienal, os objetivos, prioridades e orientações de política criminal.

Imaginei, no defluir dos propósitos da Lei Quadro da Política Criminal, que essa LPC em nada contribuía para a celeridade dos processos, por serem tantas as exceções consagradas que, praticamente, se transformariam em regra, ressalvando a patente discriminação entre ilícitos penais que merecem constitucional e legalmente idêntica dignidade de tratamento e a eventual declaração ou juízo de inconstitucionalidade que desta iniquidade poderia advir.

Imaginei que a duração média de conclusão de um processo crime se cifrava nos 8 meses, sublinhando, todavia, que a esmagadora maioria dos findos, designadamente os que corriam termos nos juízos de pequena criminalidade, sê-lo-iam por via da aplicação de medidas de consenso e diversão processual, como a suspensão provisória do processo ou o arquivamento com dispensa de pena, o que desmistificava, em parte, as médias reclamadas.

Imaginei, por outro lado, que os crimes de branqueamento ou corrupção, crimes de investigação prioritária na LPC, tinham uma duração média de, respetivamente, 14 e 11 meses, não olvidando que parte substancial da criminalidade económica tivesse lapsos de tempo muitíssimo mais alargados quanto à sua conclusão nas várias fases processuais, designadamente, nas fases de inquérito e instrução, durando, por vezes, longos anos.

Imaginei, além da jurisdição comum, que, na jurisdição administrativa e fiscal, o tempo médio de duração de um processo administrativo se fixava em 31 meses e, no que tange a processos fiscais, em cerca de 50 meses.

Imaginei que estas crónicas, extensas e, por tal, indesejáveis marchas processuais redundavam numa violação do direito à realização da Justiça num prazo razoável, conforme dispõe, v. g., o artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Imaginei, de outra sorte, que havia uma politização e, quiçá, partidarização da Justiça, com casos tão flagrantes que envergonhariam qualquer cidadão ou cidadã, como, a título meramente exemplificativo, um processo de escolha de magistrado/a para a EPPO (Procuradoria de Justiça Europeia) ou uma querela fútil sob a (in)admissibilidade legal de renovação de mandato de Procurador(a)-Geral da República.

Imaginei, nesse registo de ingerência, que as designações para cargos dirigentes e de chefia, em entidade organizada hierarquicamente sob dependência do membro do Governo responsável pela área da Justiça, se faziam, todas elas, unicamente sob proposta do dirigente máximo, sem qualquer procedimento concursal, caso único na Administração Pública, tornando-se, assim, um porto de abrigo para família, amigos e «homens de mão», independentemente da (in)competência, e, por isso, uma incubadora de nepotismo, de relações tentaculares, de opacidade e abuso de poder, minando qualquer possibilidade aos demais que pugnavam pela transparência e pelo direito legítimo de acesso a cargo dirigente ou de chefia.

Imaginei, igualmente, que tal entidade se tornava numa espécie de «braço armado» do poder político vigente, atenta a dependência hierárquica e a competência e atribuições, abrindo, deste modo, caminho à violação do princípio da separação de poderes, sem prejuízo da sua lídima interdependência, o que, obviamente, não se

O imaginário na Justiça

José Carlos Oliveira

coadunaria com os princípios de um Estado de Direito.

Imaginei que o Ministério Público, órgão constitucional, cuja principal competência é representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, tinha sob sua direção e dependência funcional entidade coadjuvante, a qual, por sua vez, se encontrava na dependência hierárquica do membro do Governo responsável pela área da Justiça, o que, em bom rigor, configuraria um risco iminente, por exemplo (mas não só), ante a criminalidade económico-financeira registada e a natureza dos seus agentes quando titulares de cargos políticos ou altos cargos dirigentes.

Imaginei, ainda, que o titular de um alto cargo dirigente na órbita da Justiça, fazia, impunemente, declarações públicas intoleráveis, reiterando-as, ao lançar labéus, desprovidos de fundamento legal ou factual, sobre outros atores judiciários, sem quaisquer consequências civis, disciplinares e/ou criminais, em clara violação dos princípios gerais de ética contidos no Estatuto do Pessoal Dirigente dos Serviços e Organismos da Administração Pública, continuando, porém, e insolitamente, a merecer confiança do superior hierárquico, isto é, do titular do cargo político a quem devia obediência.

Imaginei que o mais alto dirigente na entidade inspetiva ministerial manifestava, amiúde, tolerância para atos e factos reconhecidamente menos claros ou ilícitos aquando praticados por dirigentes e chefias, sendo magnânimo com estes, embora, ao invés, contundente com os demais trabalhadores, também alegadamente prevaricadores.

Imaginei que em inúmeros tribunais subsistiam condições terceiro-mundistas para o exercício da nobre função de julgar, como, por exemplo, a realização de debates instrutórios ou audiências de discussão e julgamento em salas decrépitas ou em contentores, a chover copiosamente no seu interior, ou, ainda, a falta de papel para uma simples citação ou notificação, mostrando que a solenidade exigida para a realização da Justiça não passava de uma vã quimera.

Imaginei, pasme-se, que do valor atribuído à Secretaria-Geral do Ministério da Justiça pelo PRR (10,35 milhões de euros), mais de metade (5,5 milhões de euros) se destinava à Unidade de Supervisão da Execução do PRR, de forma a assegurar a melhor articulação e economia de esforços entre as entidades envolvidas, reforçando a capacidade organizativa central, associada à tutela e com a possibilidade de apoiar as diferentes fases da execução dos projetos, desde a sua conceção à análise de impacto e à gestão de risco, ou, em resumo, destinando-se à criação de sinecuras, para não utilizar o nome masculino mais conhecido na linguagem popular.

Imaginei que esta quase distopia se encontrava provada e era, no mínimo, do conhecimento do membro do Governo responsável pela área da Justiça.

Súbita e abruptamente, eis-me a despertar, do modo representativo, da dimensão paralela, para a vida real, constatando que a fértil imaginação se confunde, afinal, com a realidade e, pior, persiste na espuma dos dias, pois os problemas inerentes à Justiça e seu funcionamento existem factualmente, mantêm-se e, por este andar, têm, até, tendência a agudizar-se.

Admito, contudo, laborar em equívoco, ante a declaração da atual ministra da Justiça, feita, à guisa de conclusão, e diametralmente oposta ao que se perceciona, aquando da discussão na especialidade

do Orçamento do Estado para 2023, na Assembleia da República, afirmando que o ministério da Justiça estava «com as pessoas, pelas pessoas e para as pessoas, estamos a fazer acontecer».

Incréu, questionei-me: além dos persistentes problemas, como a falta de recursos humanos e materiais, da imperatividade de revisões e/ou reformas estruturais em várias áreas e estruturas orgânicas, da quase inexistência de propostas sustentadas e exequíveis para uma verdadeira administração da Justiça e dos seus operadores, o que acontece, realmente?! Parece-me, admitindo, reiteradamente, estar equivocado, que nada de novo e importante, trazendo-me à memória a frase batida do Príncipe de Falconeri, na obra de Giuseppi di Lampedusa, «O Leopardo», quando este alvitra, para se salvar, que «tudo deve mudar para que tudo fique como está»!

Apercebi-me, outrossim, que a aludida ministra, referiu que o Orçamento do Estado «reforça o rumo que traçámos, e que permitirá que, em 2023, todo o trabalho de planificação, de racionalização e de estabelecimento de prioridades – um trabalho invisível que, por isso, deixa escondida a monumentalidade da sua dimensão – possa emergir e revelar-se». Após o torpor da alvorada, e já plenamente acordado, fiquei – e continuo – expectante sobre o desvendar desse profícuo trabalho oculto, a aguardar a Revelação, o que se esconde sob o véu da monumentalidade, pois esta nossa Justiça, que se quer digna, efetiva, progressista e prestigiada, está, há muito, a necessitar de uma verdadeira Ressurreição.

A rematar, por mera curiosidade histórica, relembrese o que, há cerca de 600 anos, na afamada e, por incrível que pareça, muito atual Carta de Bruges, datada de 1426, escrevia o Infante D. Pedro, o das Sete Partidas, a seu irmão, o Príncipe D. Duarte, futuro rei de Portugal, sobre a Justiça:

A justiça parece só existir em Portugal na cabeça do rei e do seu herdeiro; e dá ideia de que lá não sai, porque, se assim não fosse, aqueles que têm por encargo administrá-la comportar-se-iam mais honestamente. A justiça deve dar a cada um aquilo que lhe é devido e deve dar-lho sem delongas [...]. O grande mal está na lentidão da justiça.

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