Chichico Venâncio e sua adoråvel Lalinha
Carlos Vieira
Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha
Belo Horizonte • 2009
Ficha Catalográfica Bibliotecário: Marcílio Coelho Lisboa da Silva CRB 2145-6 D812 Vieira, Carlos Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha / Carlos Vieira -- Belo Horizonte : Fundac-BH, 2009. 97 p. : il. ; 21 cm. ISBN 000-00-00000-00-0 1. Biografia - família. 2. Biografia - romance . I. Título.
CDU 929 Duarte, P.
Revisão: João Batista Xavier
www.fundac.org.br
Diagramação e arte da capa: Josemar Lucas Impressão: Gráfica Fundac-BH
Uma obra de ficção literária em que as personagens, os fatos, os conflitos são fictícios e sem quaisquer relações com eventos, pessoas ou situações da vida real.
Dedico este livro a vocĂŞ, leitor amigo.
Sumário Capítulo 1 - Um bárbaro assassinato .... 11 Capítulo 2 - O delegado Pepe Maura .... 17 Capítulo 3 - A fundação de Santa Maria do Desterro .... 25 Capítulo 4 - O farmacêutico Tunico Costa Pinto .... 33 Capítulo 5 - A adorável Lalinha .... 41 Capítulo 6 - Chichico Venâncio e sua comadre Santinha .... 55 Capítulo 7 - A sábia orientação médica .... 61 Capítulo 8 - O obsessivo Chichico Venâncio e a histérica Lalinha .... 69 Capítulo 9 - Divisão de terras – um velho problema nas Minas Gerais .... 77 Capítulo 10 - O doutor José Cândido Mayrink .... 87 Capítulo 11 - Mea Culpa .... 91 Capítulo 12 - E a paixão continua .... 97
Capítulo 1
Um bárbaro assassinato
- Sô Chichico! Sô Chichico! Depressa! Mataro o Zé Ciro! - Onde? - O Zé Ciro, Sô Chichico! - Onde Sô?! - Uma covardia Sô Chichico! Arrancaro os óio dele. Caparo ele. E ainda enforcaro ele! - Que diabo Sô! Onde?! - Na curva do arranca unha, Sô Chichico. Na goiabeira pelada. - Vai lá na cidade, Deolindo! Chama o Pepe Maura. Chama o Padre Antônio. Corre, home! Chichico Venâncio da varanda mesmo de sua fazenda convoca seus colonos: - Antônio Grande! Vem cá. Me acompanha. - Oh Zé Serafim! Prepara a charrete! - Oh Joaquim Polinim, mataro o Zé Ciro Sô! Essesfiiodeumagrandeégua! - Oh Gil Martins! Chama aí o Manduca e o Quinzinho. - Zé Mariano! Oh Zé Mariano!! Oh Zé Mariano!!! Tá surdo, home! Traiz aí tamém o Baiano Sô! Dona Lalinha, instigada pelo alvoroço do marido: - O que foi, meu bem? O que foi? - Mataro o Zé Ciro, Lalá! - Nossa Senhora! Virgem Maria! - Lalá! Manda chamá seus pais pra ficá co`ôce e co`minino. Eu vou ficá intirtido nesse porém. Não me espera pra vortá se não dé tempo de arresorvê tudo logo, viu? Um bárbaro assassinato - 11
- Tá bom, meu bem. Tá bem. Vai com Deus! O Zé Ciro estava totalmente despido, enforcado na velha e moribunda goiabeira, com uma crueldade sem limites: no lugar dos olhos duas feridas sangrantes, corpo todo riscado à faca e emasculado. O sol da manhã, quente como o fogo do inferno, iluminava seu corpo rígido, magro e ossudo, e as moscas dançavam em ondas na altura de sua cabeça. Chichico Venâncio e seus colonos fizeram de início um meio círculo na frente do morto e num silêncio reverente ficaram ali algum tempo imóveis. O patrão foi depois o primeiro a aproximar-se e a tocar o corpo, quando foi admoestado pelo Manduca, que era primo-irmão do falecido. - Sô Chichico! Sô Chichico! Vamo primero esperá o delegado fazê o reconhecimento. - Que esperá que nada Sô! Cumé que nóis vai dexá o Zé Ciro desse jeito Sô! Todo buguelo inda fartano os dicumento tudo! As ordens do patrão foram cumpridas pronta e diligentemente. Em pouco tempo o Zé Ciro estava estendido de costas no chão, com os dedos das mãos entrelaçados sobre o peito e coberto por um lençol branco. Chichico Venâncio ordenou: - Manduca! Vai com jeito avisá a viúva. E lev’ela co’os minino tudo lá pra casa. Eu vô ficá aqui co’Antônio Grande. Oia, ôces aí, vai agorinha, de dois em dois, por aí afora, assuntando cum muita cautela, mode nóis achá esse miseráve desse assassino. Vamo logo! Vamo! Era exatamente 24 de agosto de 1954, e a população de Santa Maria do Desterro acordava aterrorizada pela crueldade da notícia - um vaqueiro do Chichico Venâncio fora encontrado pendurado numa árvore, morto por dezenas de facadas no peito, sem os dois olhos e brutalmente castrado. Era um dos três homens de confiança do patrão, pai de sete filhos, casado com Dona Clotilde. Chichico Venâncio foi exemplar. A esposa do falecido era mãe de leite de seu filho. Estabeleceu um prêmio de cinco mil cruzeiros para quem descobrisse o criminoso, mandou logo de início amparar totalmente a família de seu colono, transferindo-a para uma casa próxima da sua. Com seus capangas passou pouco mais de um mês, especulando, interrogando alguns suspeitos, ameaçando ora um, ora outro, incansável na tentativa de descobrir o assassino. O sogro e a sogra foram amparar a filha e o neto, porque o genro, após enterrar o colono, não visitou uma única vez a sua família por quarenta dias.
Nos rincões das Minas Gerais, naqueles tempos como agora, matar com crueldade por questões de honra era um valor esperado por todos. Dessa forma qualquer cidadão de Santa Maria do Desterro passou a ser suspeito daquele bárbaro assassinato, porque a vingança nesses casos era uma necessidade esperada socialmente de um homem digno do sertão independentemente de sua posição social. Mas o dia 24 de agosto de 1954 trazia ainda uma maior surpresa para toda a população de Santa Maria do Desterro, bem como para toda a população brasileira. Às oito e trinta da manhã, Heron Domingues, cuja voz já familiar a milhões de brasileiros desde seus famosos boletins de última hora na época da Segunda Guerra Mundial, do estúdio da Rádio Nacional, no Rio de Janeiro, após apresentar o Repórter Esso, interrompeu a programação normal e num tom esbaforido e entrecortado anunciou: ”-Atenção, atenção, atenção, Brasil. Atenção, atenção, atenção para uma importante notícia. Atenção, atenção! O Presidente Getúlio Vargas acaba de se suicidar com um tiro no peito em seus aposentos no Palácio do Catete”. A partir de então, a notícia da morte de Vargas, repetida exaustivas vezes pela voz do Repórter Esso, chegava a todas as cidades do Brasil, e o país inteiro mergulhava nas trevas do pesadelo, do qual talvez se supusesse livre pela notícia anterior do mesmo repórter meia hora antes - o presidente entraria em licença. Era a notícia que todos tinham também diante dos olhos nas primeiras edições dos jornais e que muitos tinham ouvido pelo rádio durante a madrugada. Naquela hora o país inteiro dava conta de que a fórmula da licença fora vetada pelas Forças Armadas e que o presidente, por ter sido deposto, se matara. Terminava assim a Era Vargas, marcada pela gradual elevação da intervenção do Estado na economia e na organização da sociedade, além da grande centralização do poder. Dizem que a voz do povo é a voz de Deus, mas na verdade ela é formada pelos canais de comunicação popular, e nessa época as informações dos jornais e revistas, em especial as opiniões das emissoras de rádio, geravam a opinião pública. E assim, em menos de uma hora, o povo brasileiro se indignava e dava marcha à ré. A multidão engravatada postada diante do Palácio do Catete, que vaiava Getúlio na madrugada do mesmo dia e clamava por sua deposição, foi substituída por outra muito maior no local e arredores, Um bárbaro assassinato - 13
formada por cidadãos comuns, assalariados, proletários, população da favela com atitude de indignação, inconformismo e ameaças de vingança. Ficou difícil conter a massa que passou a exigir a cabeça de Carlos Lacerda e dos próceres da UDN. O povo já não tomava conta apenas do bairro do Catete, mas de todo o centro da cidade do Rio de Janeiro. A carta-testamento de Getúlio Vargas era recitada pelas rádios à Nação, aos borbotões, e encerrava-se dando o tom da tragédia: “Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história”. O trabalhador, provavelmente de repente, penitenciava-se por ter-se mantido alheio a toda a crise anterior, arrependido de não haver sustentado, quando deveria, aquele que redimira o trabalho, estabelecera o salário mínimo, a jornada de oito horas, as férias remuneradas, as pensões, as aposentadorias, a proteção ao trabalho do menor e da gestante e a estabilidade do emprego. A mesma multidão que vinte dias antes depredara os carros da Última Hora como reação ao atentado da rua Tonelero, agora estava pondo fogo nos veículos de O Globo e ameaçando a sede da Tribuna da Imprensa. Até as 8 horas e trinta minutos da manhã daquele dia, a Tribuna da Imprensa era uma das grandes vitoriosas por ter iniciado a luta contra Vargas, que agora ali estava deposto. A partir das quatro horas da madrugada, com as notícias da licença solicitada por Getúlio, começaram a chegar à redação caixas de vinho e de cerveja para as comemorações. Porém, às oito horas e trinta minutos da manhã, com aquele tiro no peito, a Tribuna da Imprensa já era uma das grandes derrotadas. De um momento para outro, vários telefonemas denunciavam que grupos de pessoas de diversos pontos da cidade do Rio de Janeiro estavam afluindo no rumo do jornal. Somente às duas horas da tarde, a Cavalaria do Exército conseguiu fazer um cordão de isolamento na frente do jornal, e os manifestantes começaram a se afastar após muita tensão e depredações. Caminhonetes de distribuição de O Globo no Tabuleiro da Baiana foram incendiadas. Formaram-se grupos para empastelar a Tribuna da Imprensa, O Diário de Notícias e outros jornais, contudo a Polícia, mobilizada, se mostrara incapaz de manter a ordem. O mesmo se passava Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 14
em todo o território nacional, fazendo tremer as elites, substituídas pelo povo de verdade. O velório durou dois dias no Rio de Janeiro, e mais de quinhentas mil pessoas desfilaram diante do corpo do morto ilustre. Outro também célebre vivo, porém, ficou proibido de homenagear seu antecessor. Ainda na tarde do dia 24, o Vice-Presidente Café Filho assumiu o governo e mandou consultar a família sobre a hora em que poderia comparecer ao velório. Foi aconselhado a não ir. Seria “persona non grata” e correria o risco de agressão por parte da multidão. Não foi. O único governador a comparecer ao velório, na madrugada do dia 25, foi Juscelino Kubitschek, das Minas Gerais.
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Capítulo 2
O delegado Pepe Maura - Quem tirô o morto da forca e pôs ele aqui no chão assim tão direitinho? - Fui eu mermo, Pepe Maura – adiantou-se Chichico Venâncio. - Ôce não sabe que não pode tocá no morto antes da otoridade examiná o cadave? - Sei sim, Pepe Maura. E eu ia deixá um home meu dependurado aí feito um fantoche Sô? - Despois a gente conversa, Chichico Venâncio – respondeu o delegado enfurecido e advertiu: - Oia aí o Padre Antônio chegando. Chichico Venâncio divisou se aproximando o pároco, sua esposa e Deolindo. E exaltado explodiu: - Oh Lalá! O que qu´ôce veio fazê aqui Sô! – amparando-a pela cintura na descida da charrete. - Oh meu bem. O Padre Antônio passou lá em casa e me pediu pra ajudar ele encomendar o morto. - Eta Padre foigado Sô! Inda bem qui o difunto já tá ribuçado – desabafou resmungando. O grupo aproximou-se do cadáver. O Padre Antônio destampou a parte superior do mesmo e iniciou seu ritual. Lalinha se mostrou indignada: - Nossa Senhora. Virgem Maria. Que crueldade! Foi abraçada pelo marido. Encostou ternamente sua cabeça no peito dele e de repente vislumbrou à distância: bem!
- Olha ali, meu bem! Olha! Ali oh! É o membro do Zé Ciro meu Separando-se do marido adiantou-se alguns passos. Agachou-se. O delegado Pepe Maura - 17
- Lalá! Lalá! O qu´é´isso? Tira a mão! Não pega isso não, Lalá! Lalinha continuou resoluta sua exploração e ato contínuo ergueu como a um troféu seu achado e, se encaminhando até o defunto, levantou o lençol e colocou o mesmo no seu devido lugar. Todos entreolharam-se perplexos, menos o Padre Antônio, que impávido terminava sua prédica: - E em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. O clima de constrangimento instalado foi prontamente atenuado pela impaciência do Delegado Pepe Maura: - Vamo, minha gente. Vamo logo com isso. Perciso fazê meu trabaio agora. Vamo. Vamo – e foi dispersando o grupo. Pouco tempo depois, o delegado e seus três fiéis escudeiros – cabo Magalhães, cabo Tampinha e soldado Joãozinho – puderam então iniciar o rito policial de identificação da vítima, da situação do local do crime e a procura de possíveis indícios do mesmo, não sem antes exigir aos retardatários Chichico Venâncio e Antônio Grande para se afastarem devidamente da área em questão. Pepe Maura era um cidadão descendente de italiano, de aproximadamente um metro e oitenta, gordo, balofo, olhos verdes, bochechas vermelhas, cabelos grisalhos e de todos chamava a atenção por andar chutando as pernas em passos largos como um urubu cansado. Pepe Maura sabia desenhar o nome - José Maura. Se estivesse escrevendo “José” e alguém chamasse sua atenção, ele não continuava. Precisava recomeçar de tão analfabeto que era. Em contrapartida, era um indivíduo altamente leal ao Partido Social Democrático e aos seus mandantes, ou seja, ao Dr. Pedro Antônio Miranda Chaves, Juquita Correia, Adamastor Miranda Chaves, Nestor Duque de Miranda Chaves - conhecido como Duque Dentista - e a outros membros menores do diretório do Partido em Santa Maria do Desterro. O delegado Pepe Maura era valente, truculento e, sobretudo, avesso à lei quando a mesma se opunha aos interesses e às ordens dos mandantes do PSD. Era assim um "bate-pau", como tantos outros delegados municipais da época, cognominados popularmente de calça-curta, porque nomeados pelo Governador por indicação dos mandantes políticos locais. Como de praxe, para o desempenho de suas funções policiais, necessitava do apoio dos militares da Polícia Militar para exercer seu trabalho coercitivo. Tinha, porém, uma vantagem: não mandava os policiais Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 18
sozinhos fazer as diligências. Ia junto. E fazia questão de ser o primeiro a pegar o cidadão incauto. Pepe Maura praticou atos indescritíveis como delegado de Polícia: deu dentada em desafeto político da UDN, relatou inquérito de homicídio com três tiros nas costas como sendo suicídio... Certa feita participou de uma querela que quase assume âmbito estadual, quiçá nacional, ao se indispor com o dentista João Neto, que havia sido denunciado por colocar veneno para matar pulgão na horta dele. O vizinho do dentista temia que seus filhos pudessem se contaminar: se pulassem a cerca e comessem folha de couve poderiam morrer envenenados. O jornal MACHI, de propriedade do Carlos Lacerda, da UDN, era o palco do inusitado confronto. De um lado, escrevia o João Neto, por sinal, muito inteligente e perspicaz, e do outro, Pepe Maura, que, naturalmente, se exprimia através de um de seus amigos - culto e muito inflamado. A digladiação desceu logo a deboches, acusações, ofensas puramente pessoais, onde a tentativa de ridicularizar o oponente era a regra geral. Mas, não pensem que Pepe Maura era desonesto. Somente, não podia saber que alguém contrariou um pensamento qualquer de um partidário do PSD, porque, nessa eventualidade, apesar de extremamente educado (principalmente para lidar com as mulheres e as crianças), explodia irrefletidamente toda sua truculência, corpulência e ignorância. De comerciante, proprietário do "Boteco do Pepe Maura", foi guiado a delegado municipal, tutelado na época pelo Dr. Juquita Correia, certamente pela coragem, determinação e honestidade por todos reconhecidas e, naturalmente, também porque poderia incorporar o papel de marionete dos detentores do poder municipal do PSD, dado seu pronunciado servilismo ideológico. Pepe Maura se notabilizava pela ignorância geral e principalmente histórica. Contam que certa feita a Prefeitura Municipal baixou uma portaria proibindo que os açougues locais funcionassem nos feriados e diassantos. Num determinado domingo, na rua Conde Nassau, uma das ruas centrais de Santa Maria do Desterro, um açougueiro da UDN, de nome João de Souza Cunha - alto, gordo, ignorante -, apelidado de "João Penicilina", porque quando surgiu a penicilina trabalhava numa farmácia local O delegado Pepe Maura - 19
e foi aquele que mais a aplicou, abriu seu açougue e estava lá vendendo a sua “carne” quando se apresenta o Pepe Maura, secundado pelo cabo Magalhães, cabo Tampinha e o soldado Joãozinho, seus fiéis auxiliares, e advertiu: - João Penicilina, eu vou fechá seu açougue, pruque ocê não tá respeitando o decreto do Prefeito. Nenhum resultado causou a admoestação do delegado na postura e no rosto do açougueiro da UDN, o que o deve ter enfurecido mais ainda. Continuou: - E, além do mais, ocê não respeita minha otoridade, pruque eu sô do PSD. Mas ocê divia respeitá um símbolo maior, um herói da pátria brasileira, que foi Tiradentes, e hoje é dia da morte dele. Por isso ocê fecha o açougue. Era 15 de novembro de 1935. De outra feita, o Pepe Maura dirigiu-se ao escrivão da Delegacia, que era um escrivão “ad hoc”, nomeado por ele mesmo, e ordenou: - Fauzi, requê aí para Dr. Galba mais Dr. Juquita o "habeas corpi" do defunto. E o Fauzi, que era mais ou menos estudado, estava fazendo ginásio, discordou: - Oh Pepe, não é "habeas corpi" não; é auto de corpo delito, necropsia. Ao que o Pepe Maura, retrucou: quisé.
- Oh Fauzi, eu falo em latim e ôce escrivinha na língua que ôce
Na década de 1950, a cidade de Santa Maria do Desterro, no cenário mineiro, era conhecida como uma metrópole voltada para as manifestações artísticas e culturais e tinha principalmente seu Teatro significativamente prestigiado por toda a comunidade. Seu grupo de teatro local era formado por eminentes cidadãos da própria cidade e chefiado por um ex-ator de renome nacional - Pedro Braga, pelo seu irmão e tabelião do registro civil - Antònio Braga e por um comerciante de venda de secos e molhados - Juca Barcelos. Esses animadores culturais, conscientes da responsabilidade política e cultural com sua comunidade, resolveram então trazer a célebre Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 20
peça, na época famosa em todo o país, “As mãos de Eurídice”, monólogo de Pedro Bloch, para ser apresentada no Cine Brasil. O Cine-Teatro Brasil era de propriedade de Agostinho Marques, empresário de Ubá, que tinha uma rede de cinemas em várias cidades mineiras. O ator amador Wilson Cardelli, de Viçosa, foi convidado, e um carro de som, durante toda a semana que antecedeu o evento, anunciou à população de Santa Maria do Desterro a data, o horário e o local da apresentação. Censura livre. Preço módico, popular. Às vinte horas de um sábado de 1956, no Cine-Teatro Brasil, um grande número de cidadãos se misturou às maiores autoridades locais. Estas se postavam na primeira fila do teatro, numa ala de honra, empertigadas e ansiosas: o prefeito municipal; o vice-prefeito; o presidente da Câmara; o nosso delegado municipal de Polícia (de paletó, gravata, terno de linho Panamá, branco, chapéu Paramount de lado), chamado José Maura, vulgo Pepe Maura, analfabeto de pai, mãe, avó, bisavó e parteira; o cabo comandante do Destacamento, Nélio dos Santos, que respondia pela alcunha de cabo Tampinha, dados os seus pouco mais de um metro e cinquenta, fardado, de uniforme de gala; o juiz de Direito José Paulo de Souza, como sempre muito mal trajado e notável pela sua desinformação e falta de sensibilidade a toda prova; o promotor de Justiça Joaquim Pires; o coletor federal Antônio Guerreiro; o coletor estadual José Egídio; e a diretora do Grupo, Dona Ana Brandão. Ouviu-se o primeiro sinal. Três minutos após, o segundo sinal. Mais três minutos, o último sinal. Apagaram-se as luzes. A cortina começou a se abrir, e o palco foi se iluminando progressivamente. A atenção do público foi então polarizada por um alarido vindo da porta de entrada do teatro e em seguida por um cidadão (paletó roto, camisa fora das calças e aberta no peito, calça amassada, barba por fazer, cabelos em desalinho, garrafa de cachaça numa das mãos) que se insinuava a passos largos pelo corredor lateral direito do teatro e que em voz alta gritava: - Ricardinho... Ricardinho... Ricardinho... O delegado municipal virou-se imediatamente para trás e ordenou: - Cabo Tampinha, prende aquele bandalha. Viu-se um vôo do militar de fazer inveja a qualquer atleta olímpico do salto à distância, e o mesmo já caiu com o revólver 45 debaixo do queixo do meliante e uma faca encostada na barriga dele avisando ao imobilizado, ora mudo e perplexo: O delegado Pepe Maura - 21
- Teje preso em nome da lei e do Sô Pepe Maura. Foi um reboliço geral. Ninguém mais permaneceu no seu devido lugar. Muitos pularam as cadeiras do teatro para se aproximar da cena inusitada. Um dos mais próximos acudiu: disso!
- Cabo Tampinha, esse é o ator da peça! Não faça isso não! Deixe O Pepe Maura foi chegando e ordenou:
- Leve esse bandalha pra cadeia. Ele está desrespeitando a sociedade e a otoridade do Juiz de Direito e do Promotô aqui presente. Alguns circunstantes continuaram a insistir com o delegado e com o cabo da impropriedade de suas condutas, ao que o Pepe Maura impassível retorquia: - Leve esse bandalha pra cadeia. - Senhor Pepe Maura! Que coisa é essa? Essa é a peça “As mãos de Eurídice”, e ela é assim mesmo... - Mais determinado ainda: - Leve esse bandalha pra cadeia. - Senhor Pepe Maura, essa peça tá fazendo sucesso em todo o Brasil! - Não adianta. Leve esse bandalha pra cadeia. - Senhor Pepe Maura... Ele não ouvia qualquer argumento: - Ôces não pense que eu não sei o que é teatro não. Eu tô acostumado a vê muita peça de teatro aqui mermo. E eu sei que no teatro o atô fica é lá enriba do palco. Ôces pensa que eu sô bobo? - Mas Senhor Pepe Maura... - Oia, essas mão de Eurídice pode tá fazendo sucesso no Brasil todo, mais se quisê passá aqui em Santa Maria do Desterro tem de começá é lá enriba do palco. Aqui embaixo é bagunça que esse bandalha tá fazendo. As autoridades oficiais ali presentes continuavam impassíveis, imobilizadas, nos seus devidos assentos, apesar do burburinho que por longo tempo se denunciou. Empurra daqui, empurra dali; ora a turma do “deixa disso”, ora a turma do “espera aí”; gente que sai, gente que entra – o tempo foi passando -, até que o chefe do PSD se pronunciou: Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 22
- Oh Pepe Maura, deixa disso. Pode soltar o homem. Solto o ator, o mesmo se aprumou, e ele e mais dois outros cidadãos mais tenazes ainda tentaram convencer o eminente delegado argumentando que o início do monólogo daquele jeito era uma inovação da direção teatral moderna e inclusive muito elogiada pelos críticos da época. Nada. Muita lenha ainda se queimou nessa fogueira inglória da impassibilidade daquela autoridade ali constituída. E apesar dos pesares e apesares, meia hora após, o monólogo “As mãos de Eurídice”, de renome nacional, de Pedro Bloch, foi finalmente encenado. E, pasmem-se, prezados leitores, como o Delegado Pepe Maura se mostrou irredutível, iniciado a partir do palco, como todos concordamos devem se apresentar peças de teatro numa cidade do interior de Minas Gerais que tem uma autoridade tão consciente e tão determinada na defesa de seus concidadãos. Apesar de folclórico, o Pepe Maura era de uma coragem indômita. Chegava sempre na frente da polícia e pegava o bandido. Foi considerado pela população de Santa Maria do Desterro, naquela época, um dos melhores delegados da história da cidade, porque não se registravam então estupro, sedução, roubo e o índice de criminalidade era extremamente baixo. Em suma, prestou relevantes serviços à sua comunidade, apesar de sempre a comando do PSD e de sua tão especial maneira de entender e enfrentar a realidade sua e da comunidade então a ele confiada.
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Capítulo 3
A fundação de Santa Maria do Desterro
Só Deus sabe com certeza o que realmente determinou a fundação de Santa Maria do Desterro: a História documentou muitos fatos, o povo contou muitas estórias, mas ninguém pode negar o seu auspicioso progresso em menos de um século. A sua terra não podia ser melhor - na sua maioria, terras de mata, de cultura, sem um palmo de campo. Floresta atlântica, semelhante à da Amazônia pelo porte das árvores, rica em madeira de lei, cobiçada em todo o Brasil e no exterior. Peroba, Jequitibá, Baraúna, Sucupira, Jacarandá, Ipê de todos os matizes, Cedro, Sapucaia, Cerejeira e tantas outras ali abundavam e deram origem a um sem número de serrarias na década de 1940, atraindo pessoas e capitais dos mais diferentes recônditos do país, na procura desenfreada de posse e riqueza fácil, com o natural rasgar de inúmeras estradas, fruto de um pujante e crescente progresso econômico e financeiro. Sob a mata, o solo de terra agricultável rico de húmus, água em profusão, com esplêndidas vazantes às margens do rio Doce e do rio Manhuaçu e afluentes menores, e várzeas sinuosas e intermináveis à beira e ao longo dos canais dos rios propícias às plantações de arroz e milho, duas ou mais vezes ao ano. O subsolo, cobiçado desde o Brasil Colônia pelos bandeirantes, que desceram o rio Doce nas canoas e caíques, faustoso em mica, berilo, pedras coradas – principalmente as turmalinas e as águas marinhas. O berilo e principalmente a mica, material estratégico de primeira ordem e amplamente procurado por todo o mundo, deram origem a grandes explorações e à abertura de inúmeras empresas na região por ocasião da Segunda Grande Guerra. O rio Doce, com sua posição geográfica pujante, era caminho estratégico para quem demandava o mar pelo porto de Vitória, vindo do Quadrilátero Ferrífero, e o mais importante escoadouro de nossas riquezas minerais para o exterior antes da construção da Estrada de Ferro A fundação de Santa Maria do Desterro - 25
Vitória-Minas, das atuais maiores usinas siderúrgicas da América Latina – Usiminas e Acesita, cujo local na época distava pouco mais de cem quilômetros por terra, e da Cenibra, empresa de celulose nipo-brasileira, afastada por setenta quilômetros. Santa Maria do Desterro estava situada a sessenta quilômetros da antiga Figueira do Rio Doce, hoje a próspera cidade de Governador Valadares, importante via de acesso para aqueles que buscavam e buscam a Guanabara e São Paulo, partindo do Nordeste brasileiro e das Minas Gerais, cortada pelos trilhos de uma das melhores e mais moderna ferrovias do país, e pelo corredor asfaltado da rodovia Rio-Bahia. Deitada em berço esplêndido como o de seu país, ficava a meio caminho de três das mais importantes regiões mineiras. Rodeada ao Norte pelos imensos tabuleiros das Minas Gerais, que ajudaram a dar nome ao Estado. Ao Sul e Sudoeste pela Zona da Mata, de colonização primeira e antiga datando ainda do Brasil Colônia e do Brasil Império e porta de entrada obrigatória do Porto do Rio de Janeiro para o território mineiro. E ao Oeste pelas escarpas íngremes do Quadrilátero Ferrífero. Sabe-se que desde o início do século XVII os bandeirantes desceram o rio Doce na procura do ouro, mas sua mata virgem fora desbravada inicialmente por um casal de Ubá, de grandes posses materiais, no final do século XIX, sendo a mulher descendente de uma das duas irmãs de Tiradentes que vieram a se casar. O casal temia permanecer na Zona da Mata das Minas Gerais e correr o risco de ser expropriado de sua fortuna, posto que a Coroa Portuguesa houvesse declarado infame as dez gerações posteriores do nosso mártir da liberdade por ocasião de sua execução. Deve ter sido pensado: - Vai que eles passam de dez para quinze gerações e podem nos atingir. A História não afirma que Tiradentes se casou, mas que teve filhos não se tem dúvida. Tinha dois irmãos padres, duas irmãs freiras e duas irmãs que não se tornaram religiosas, sendo que uma delas, a Maria da Encarnação Chaves Xavier, era a ascendente do casal desbravador - Marieta Chaves Xavier e José Antunes Moreira. Eram católicos e com o tempo se ressentiram da falta de missa no local. Eventualmente um padre itinerante oficiava a santa missa, que enChichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 26
tão se revestia do colorido de um acontecimento extraordinariamente esperado por toda a comunidade. Num desses eventos, ao término do santo ofício, José Antunes Moreira perguntou ao padre como poderia ser feito para que a missa pudesse ser realizada ao menos uma vez por mês. Ele explicou: - Esse local pertence à Arquidiocese de Mariana, e ela exige como primeiro passo a doação de um terreno para no povoado ser construída uma paróquia. Como o casal era dono de quatrocentos e cinquenta alqueires de terras (duas sesmarias), prontamente cumpriu a exigência diocesana, e assim nasceu dois anos antes do final do século passado a Paróquia de São Domingos e o nome do santo passou a nomear inicialmente o povoado. Em 1900, três portugueses riquíssimos, após uma noitada em Lisboa, deixaram suas esposas e rumaram para o Brasil. Aportaram no infante Povoado de São Domingos do leste das Minas Gerais, situado na confluência do rio Doce com o rio Manhuaçu. Os três portugueses - o jornalista João Marques Pereira, o poeta Lázaro Durval e o comerciante alto capitalista Adriano Chaves, que logo rumou para o Rio de Janeiro para montar um atacado -, em 1902 montaram um “bazar”. O Bazar da Mata logo passou a ser uma loja que vendia de tudo. Desde o perfume pequeninho francês até o mais baratinho de um cruzeiro; desde a seda da china (a casimira originária da região de Caxemira) até o brim grosseiro que era denominado “arranca-touco” ou a chita que é o tecido de algodão mais humilde; desde o brim “Rock Smile” até o linho importado da Irlanda - a casimira inglesa especial. Era, além do único mantedor das necessidades do povoado de víveres, móveis, instrumentos, o principal fornecedor dos mascates que lá enchiam suas malas para sair a percorrer todas as regiões vizinhas levando suas preciosas mercadorias – canivetes (taludo, meio-curvo, despontado; de uma, duas, três folhas de corte); saca-rolhas, abridores de lata, sovela; chave de parafuso; furadores; escovas de dente, unto para cabelo, grampinho, ruge, esmalte; colares; pó-de-arroz, sabonete; apito; gilete; fermento para bolo; alfinete de fralda; tesouras, dedais, alfinetes; facas, colheres; perfumes, espelhos, medalhas, batom; relógio de ouro de algibeira; cordas de violão; botões, colchetes; contas de vidro; novelos de rendas – de bico, entremeio, crochê, do Norte, de tira bordada ...; e muito e muito mais. A fundação de Santa Maria do Desterro - 27
No centro da vila a paróquia altaneira de São Domingos com o cemitério local nos seus fundos avistava duas fileiras de menos de duas dúzias de casas, o Bazar da Mata, a coletoria, a rua dos Negros, remanescente ainda da época da escravatura com seus ranchos de taipa e folha de buriti, um pequeno descampado e a estrada de acesso picada na mata virgem circundante, único acesso à civilização e à Figueira do Rio Doce. À beira do Manhuaçu, algumas canoas dos grandes proprietários descansando nas águas onduladas pelo vento quase sempre forte, quente e pesado, açoitando as folhas secas das guarirobas e das macaúbas, e promessas de pescarias de jacarés nas noites altas de lua cheia, nos varjões à beira do rio Doce. Aqui e ali, pindas amarradas nos galhos dos barrancos à espera de algum surubim menos cuidadoso. Muito peixe de todo tipo – de escamas e de couro, com ou sem bigode – dourados, matrinxãs, surubins, jacus, piaus, jaús, corvinas, curimatãs de mais de um palmo, cascudões de mais de um quilo, peixes de arroba e meia e os pintadões de mais de cinco arrobas. Caça miúda e de porte – perdizes, cordonas, nhambus; emas; capivaras, queixadas; veados campeiros, catingueiros, mateiros; antas; cervos; onças pintadas. Sucuris nas cabeceiras e piranhas aguardando um gado desajeitado e mais afoito que extemporaneamente se precipitasse das encostas dos barrancos para os rios. Surgiu então a figura de Francisco Moreira de Carvalho, nascido em 29 de fevereiro de 1896, ano bissexto, na época com onze anos, que, após tanto insistir com seu pai para trabalhar com o Coronel João Marques Pereira, dele ouviu: - Oh meu filho, o que você vai fazer lá no Bazar é o mesmo que você faz na roça. Levar vaca no pasto, tratar de porco, tratar de galinha, buscar animais no pasto. Que vantagem você vai levar? - Coronel, a vantagem que eu levo é que eu trabalho na roça capinando. Mas, quando chega o tabuleiro de comida e a gente começa a comer, cai mosquitinho dentro da comida. Pelo amor de Deus! Eu vou fazer tudo para vir para a cidade, porque aqui eu sei que ao menos vou ficar livre dos mosquitos. A resposta do jovem tão espontânea e incomum denunciou sua inteligência brilhante e sua vontade de progresso inabalável, e o Coronel Pereira incontinenti se reportou ao pai do menino e disse: Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 28
- Oh Coronel Moreira, esse rapaz tem futuro. Pode levá-lo para trabalhar comigo. Sua rotina diária passou a ser a de se levantar às cinco horas da manhã, lavar e espanar a loja inteira e, após a chegada dos empregados da mesma (mais de cinquenta empregados e quarenta negros), tratar das galinhas, dos porcos, levar as vacas para o pasto, trazer os animais que permaneciam todos soltos no pasto, a mando do Coronel Pereira, para não se tornarem indolentes (segundo ele). Poucos dias após, o português, jornalista, com coluna mensal em jornal de Lisboa, se dirigiu ao menor: - Francisco, hoje, após o jantar não saia não. A surpresa do recém-empregado foi logo esclarecida, porque, a partir daquele dia, o Coronel Pereira com um sentimento paternal passou regularmente após o expediente por várias horas pela noite afora a ensinar ao jovem Francisco as línguas inglesa, francesa, portuguesa, Matemática, História, Humanidades. Tinha ao lado do escritório do Bazar uma biblioteca invejável. E o jovem passou a fazer daquele lugar seu santuário por muito tempo. Nessa época o Coronel Pereira se amancebou com a mulata solteira Ernestina, que morava com sua irmã Laura, mãe de dois filhos, Adriano e Ernesto. O Bazar da Mata cada vez crescia mais. Vinha gente de Vitória para comprar na loja. Ao lado da loja, havia um depósito com dez cômodos imensos – armazém número um, dois, três etc., ao estilo do Caís do Porto do Rio de Janeiro. Um armazém somente com caçarola, outro com panela, outro com caldeirão, outro com chapas de ferro de ferrar carrosde-boi... A empresa tinha já em 1902 sua escrita regular com todos os livros contábeis que a lei exigia realizados pelo contador Victor Viotti e, apesar de não ser registrada na Junta Comercial, a Receita Federal os aceitava. Algum tempo após, Francisco nota que o Coronel passou a se mostrar acabrunhado, triste, mais irritado do que o habitual e com a liberdade que já conquistara o inquiriu: - Coronel, estou achando o senhor triste. O que está acontecendo? Posso ajudar? - Olha, Francisco. O Victor está doente. A contabilidade da empresa está parada. Não pode. É um verdadeiro desastre. A fundação de Santa Maria do Desterro - 29
O que o Coronel Pereira não sabia era que Francisco, após o final do expediente e o início de seu estudo noturno, muitas vezes se encontrava com o contador na Loja e este já o estava ensinando há muito tempo a ciência da contabilidade. Não foi difícil manter a escrita em dia. Algum tempo depois o Coronel veio, através de seu próprio contador, saber que seus livros estavam em perfeita ordem e que nenhuma solução de continuidade havia acontecido no registro do livro-razão e nos outros graças ao trabalho profícuo e silencioso do jovem Francisco. Isso serviu para reforçar mais a confiança e a amizade entre o Coronel e seu protegido. Mandou buscar mais dois irmãos do jovem Francisco – José e Manoel –, que foram formados pelo próprio para assumir cargos de confiança na empresa. O transporte do dinheiro para a compra de mercadorias para o estoque do Bazar da Mata, na época, era feito, numa grande mala, pelo Coronel e pelo Francisco, armados de revólver, mais três jagunços de carabina, que marchavam três dias a cavalo inicialmente até Raul Soares. Daí por trem até o Rio de Janeiro, somente com o Coronel, ou com o Francisco, mais um dos jagunços – sempre o mais valente. Na Capital do país o dinheiro era trocado por um vale fornecido pelo irmão Álvaro Chaves e com esse instrumento de troca as compras eram realizadas – não havia ainda então cheque, duplicata ou promissória. O tempo passou. Veio a revolução de 1930. O Coronel Pereira caiu doente. Foi transferido para Figueira do Rio Doce para ser tratado em hospital local pelo pessoal da Maçonaria e por eles acompanhado diariamente – era um emérito dos seus fundadores locais. Francisco o visitava regularmente e pressentiu que o tratamento dedicado do Doutor Salvador Leitão e de todos os outros médicos da Casa de Saúde Espírito Santo não parecia muito promissor. O Coronel Pereira já permanecia internado há mais de um mês e, talvez pressentindo seu pouco tempo de vida, manifestou ao então amigo e maior colaborador Francisco a vontade de se casar com Ernestina. As núpcias foram marcadas, e o Coronel Pereira foi guiado para Santa Maria do Desterro no início da semana que antecedia as bodas. O Bispo de Caratinga marcou sua presença ilustre. Tudo preparado no dia anterior do evento, manda um padre em seu lugar. - Vim no lugar do Bispo. Ele ficou na última hora impossibilitado de comparecer pessoalmente por instâncias urgentes da Diocese. Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 30
A Paróquia de São Domingos estava repleta com quase toda a população local e demais convidados para a celebração do sagrado matrimônio do Coronel Pereira e de sua Ernestina, que na verdade era também a comemoração de suas bodas de prata. Um pouco antes da oficialização do casamento, o padre é acometido de um insulto cardíaco e falece aos pés dos noivos. Uma semana após o Bispo finalmente une pela Santa Amada Igreja os nubentes. O Coronel Pereira retorna ao hospital. Vive mais dez dias. Pouco antes de sua morte, chama o Francisco e o adverte: - Meu Francisco querido. Sinto que minhas forças já se esvaem. No cofre do escritório existe na parte da direita um dinheiro que quero que você encaminhe para meu filho em Portugal (sua primeira esposa já havia falecido). Na parte da esquerda está meu testamento. Se eu morrer, você deve cuidar enquanto possível da Ernestina e de sua família em todas as suas necessidades. Aberto o testamento um mês após, a cidade foi surpreendida pela grata notícia de que o Coronel Pereira havia reservado: para cada um de seus empregados, uma significativa quantia em dinheiro, além da posse de suas moradias; à Ernestina, foi deixada uma quantia que lhe permitiria viver segura e tranquilamente por mais duas ou três décadas; e ao Francisco e seus dois irmãos, foi transferido o Bazar do Mato – setenta por cento das cotas para o Francisco e quinze para cada um de seus irmãos. A felicidade durou muito pouco. O contador, tudo indica, não ficou muito satisfeito com o que lhe foi reservado e contratou dois indivíduos de uma celebre família de matadores profissionais, que moravam num pequeno sítio ao pé da Serra dos Papagaios, na encruzilhada das Antas, para matar de tocaia o diligente Francisco. A indignação, e principalmente o desejo de vingança, assolou a partir de então a pacata Santa Maria do Desterro. O capataz da Loja da Mata, epiléptico, violento, sorrateiro, que quando de suas crises se tornava pálido, cambaleante e era dado a sair dando tiros inopinada e espontaneamente, foi aquele que tomou a si o desejo de justiça. Não passou mais de um mês, e o contador foi encontrado pela manhã enforcado no primeiro jatobá à saída da estrada principal. Um irmão assassino, afogado e amarrado pelas pernas a uma árvore às margens do A fundação de Santa Maria do Desterro - 31
Manhuaçu como se fora uma boa vara de pesca com sua presa a boiar nas águas plácidas do rio. O outro irmão, apesar de quando avistado ter-se escondido no meio de dois militares na frente da casa do Senhor Jerônimo e de Dona Constância – lugar habitual de prosa, de peixada e de galinhada com arroz após as pescarias dos cidadãos de Santa Maria do Desterro –, com um único e certeiro tiro de carabina entre seus dois olhos aterrorizados. O capataz justiceiro era avô paterno de nosso Chichico Venâncio.
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Capítulo 4
O farmacêutico Tunico Costa Pinto
- Vamo, minha gente. Temo que achá esse fiiodeumagrandeégua! Esse miseráve desse assassino! Chichico Venâncio durante as três primeiras semanas havia feito a sua caçada particular ao criminoso, diuturnamente, junto ao Antônio Grande e mais quatro colonos e nem uma vez sequer havia voltado à sua casa na Fazenda das Águas Claras. Quando voltou à rotina nas suas terras, todos foram testemunhas da profunda tristeza, do intenso ressentimento pela morte do capataz e amigo, da decepção pela sua fragorosa falência em não ter levantado alguma pista que pudesse encaminhar o esclarecimento do crime. O amparo que passou a dar à viúva do Zé Ciro foi mais uma de suas atitudes respeitáveis que todos na comunidade conheciam – seu pessoal era tratado como se bons irmãos fossem e qualquer dificuldade dos mesmos lhe incomodava tanto como se fosse sua. O delegado Pepe Maura e seus sequazes também não tinham desvelado nada realmente proveitoso. O crime continuava a ser um terrível mistério, e, apesar de contar aparentemente com a colaboração tácita de todos os cidadãos, nada, nenhuma evidência mesmo fora levantada que pudesse sinalizar um caminho para sua solução. Chegaram mesmo a colaborar, lado a lado, os dois grupos – o do delegado Pepe Maura e o de Chichico Venâncio – e sei que a sinergia foi muito prejudicada pela personalidade muito parecida de ambos – rígida, pretensiosa e mais emocional e prática do que racional, pensante, metódica. Os dois truculentos e energúmenos cidadãos trocavam o tempo todo desafetos pela necessidade de cada um ser maior do que o outro. - Esse Chichico Venâncio é um idiota – não cansava de repetir o delegado Pepe Maura, quando irritado e seu compadre e colega de partido não estava por perto. - Esse Pepe Maura é uma mula sem cabeça – não ficava atrás o Chichico Venâncio. O farmacêutico Tunico Costa Pinto - 33
O fato é que os quarenta dias de investigação correram célere como notícia ruim, ou como o capeta (dizem que ele corre rápido), e nada de relevante ficou assentado no mundo dos homens, e, como tudo na vida, o tempo foi passando e outros acontecimentos menores foram se destacando. Um ano após o assunto já era coisa gasta, vazia, inexpressiva. Mas, de repente... O senhor Tunico Costa Pinto, um dos farmacêuticos mais tradicionais de Santa Maria do Desterro, casado já há vinte longos anos e dono de uma prole numerosa com uma mulher da família Pena, irmã do médico José Dias Pena, achou de se separar dela. Motivo? A mesma não gostava de ir à Igreja diariamente como era o seu costume. O pároco local, seu confessor e conselheiro, defensor ardente da família e dos princípios cristãos, se postulava radicalmente contra a idéia da dissolução daquela sagrada união. O farmacêutico tentou, arrazoou, insistiu muito na defesa de sua demanda e sem alternativa rumou para Mariana para pedir ao Bispo Dom Laércio Pires Pereira autorização para sua pretensão. Dizem que conseguiu a episcopal e necessária aquiescência para sua oficial separação e, voltando, se divorciou de sua esposa. Tunico Costa Pinto era um raparigueiro de mão cheia, mas estritamente reservado: não gostava de que ninguém suspeitasse de sua sanha prevaricadora. Morava num sobradado, na primeira casa de farmácia de Santa Maria do Desterro, na entrada da estrada que vinha de Roças Grandes, na rua Padre Batista, ou rua do Cemitério. Sua residência datava da época da fundação do Arraial de São Domingos, que depois passou a se chamar Arraial dos Bicudos e finalmente Santa Maria do Desterro. Três casas abaixo da sua, morava uma viúva, Dona Belinha, que, voz comum, era de exagerada libidinagem e levava uma vida de manifesta prodigalidade sexual comunitária. Num determinado dia, Tunico Costa Pinto não mais suportando sua já necessária e longa abstinência sexual pós-separação conjugal, espreitou a viúva e em tom reservado confidenciou: - Dona Belinha (chamava todo mundo de senhor e senhora, mesmo quando se dirigia às crianças), a senhora sabe que sou um homem divorciado. A senhora também sabe que eu necessito manter relações sexuais. Mas não sabe que eu sou um seu admirador há muito tempo. E saiba que eu estou querendo manter relações sexuais com a senhora. Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 34
- Oh, Seu Tunico, que é isso? – respondeu Dona Belinha alvoroçada. - Mas tem uma coisa, Dona Belinha – ninguém pode saber. - Oh, Seu Tunico, que é isso? - E o horário de nossas relações sexuais será três horas da manhã. - Oh, Seu Tunico, que é isso? - E a senhora não vai se arrepender, porque eu gosto de ser muito agradecido com quem me ajuda. E a viúva, já aquiescendo, retrucou: - Oh, Seu Tunico, então eu venho para a casa do senhor... - De jeito nenhum. Meus sobrinhos e o Joel, meu irmão, ficam lá até de noite. A conversa continuou e os detalhes foram sobejamente combinados. E, a partir de então, a viúva levantava-se às duas e meia, passava pela primeira porta do sobradado e, na segunda porta, que coincidia com a segunda janela, puxava um barbante que terminava na altura de uma pessoa de sua estatura, estando o mesmo amarrado num dos dedos do pé do amante. Acordado, Tunico Costa Pinto recolhia o barbante. Descia escada abaixo. Abria a porta da farmácia, e na calada da noite os dois se amavam. Ato feito, novamente a porta era aberta, e a viúva se dirigia de volta à sua casa, e a população de Santa Maria do Desterro continuava seu sono inocente. O senhor Tunico Costa Pinto, no outro dia, seguia sua vida sisuda – nunca foi visto rindo, pois não era homem de brincadeira. Sabe-se que era íntimo de duas pessoas na cidade. Do Joel Costa Pinto, comerciante de Secos e Molhados, seu irmão, e de seu colega de infância Rodolfo Chaves. E era realmente um homem de opinião – oito ou oitenta. Certa feita chamou o João Penicilina, seu empregado, e pediu: - Senhor João, vai chegar o senhor Custodinho, meu irmão de Belo Horizonte, e ele gosta muito de tomar um vinho Claret Único. Então, o senhor vai comprar seis garrafas de Claret Único lá no senhor Rodolfo para mim. Está aqui o dinheiro. - Perfeitamente – concordou o João Penicilina recebendo o dinheiro. O farmacêutico Tunico Costa Pinto - 35
- Na época existiam dois bares mais frequentados em Santa Maria do Desterro. O Bar do senhor Rodolfo e o bar do Tunico Braga. O João Penicilina para mostrar serviço encaminhou-se primeiro ao bar do Tunico Braga e perguntou: - Tunico Braga, ôce tem vinho Claret Único? - Tenho. - Quanto custa uma garrafa? - Cinco mil réis. Agradeceu. Atravessou a praça e indagou? - Oh Rodolfo, ôce tem vinho Claret Único? - Tenho. - Quanto custa uma garrafa? - Oito mil réis. - Oh Rodolfo, por que seu vinho é mais caro do que o do Tunico Braga, que é cinco mil réis a garrafa? - Porque eu vendo muito vinho. Esse que tenho aqui chegou ontem, e o preço é oito mil réis. O João Penicilina ameaçou um início de negociação, mas desistiu logo, dada a cara ríspida e de poucos amigos do senhor Rodolfo. Agradeceu. Atravessou novamente a rua e comprou seis garrafas no bar do Tunico Braga. Voltou para a farmácia e num ar maroto e vitorioso foi logo avisando ao senhor Tunico Costa Pinto: - Tá aqui o vinho. Eu não comprei no senhor Rodolfo. - Por que, senhor João? - Porque lá no Tunico Braga tá custando cinco mil réis a garrafa. O senhor Rodolfo tá vendendo por oito. - É? - É. - Pois o senhor faz o favor de voltar com as garrafas. Devolve ao senhor Tunico Braga e compra o vinho na mão do senhor Rodolfo. Assim foi feito. Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 36
Nos idos de 1957, o senhor Rodolfo estava com câncer. Recebia uma injeção denominada Linfogex. Sua esposa chamou seu filho de aproximadamente doze anos e pediu: - Meu filho, corre lá na farmácia do senhor Tunico e compra duas ampolas de Linfogex pro seu pai. O diálogo que se seguiu na farmácia foi o seguinte: - Senhor Tunico, cumé que vai? - Bem, graças a Deus. Como vai o senhor Rodolfo? Como vai a senhora Luzia? O que é que o senhor deseja? - Eu queria duas ampolas de Linjofex! - Não tem. O rapazinho pedalou sua bicicleta de volta à sua casa. Relatou o ocorrido à sua mãe, que berrou: - Oh diabo! Seu pai está passando mal. Volta lá que eu já telefonei para o senhor Tunico e sei que ele tem as injeções lá. Retornou à farmácia. - Senhor Tunico, a mamãe disse que já telefonou para o senhor. Me dá as duas ampolas de linjofex. - Vou repetir para o senhor: não tenho. Novamente voltou à sua casa. Tentativa de explicação. Sua mãe berrou: - Seu filho da puta! Eu vou escrever aqui oh! Duas ampolas de linfogex. Retornando entregou o bilhete e disse: - Oh aqui, senhor Tunico. Duas ampolas de linfogex. - Linfogex eu tenho. Linjogex não existe. Para o senhor aprender a falar o nome certo, eu disse para o senhor que não tinha. Tome! Está aqui preparadinho. - Aqui o dinheiro. - Não vou receber. - Uai, a mamãe pagou. - Não vou receber. O farmacêutico Tunico Costa Pinto - 37
- Por que senhor, Tunico? Chamou o filho do senhor Rodolfo, ainda uma criança, a um canto, e com reserva sussurrou: - O Abel, meu irmão... Ele não sabe que eu sei... Ele deve loteria a seu pai. Por isso não vou receber. Ele não recebeu. E, para ajudar a compor a personalidade do senhor Tunico Costa Pinto, relembro sua intervenção com a mulher do Isaías, lá do Chumbeiro, que, certa feita, o interpelou: - Senhor Tunico, lá em casa, tá um problema sério. Tem rato dimais. Tem barata dimais. Uma danação. Eu queria que o senhô me vendesse daquele remédio “arsênio” para mode d’eu matá esses bicho. Ele andou de um lado para o outro da farmácia várias vezes e demoradamente com seu ar austero e reflexivo. Sempre trabalhava de gravata e abotoadura de ouro. Depois disse: - Senhora Mariinha. Eu não vou vender o arsênico para a senhora. - Mas, senhor Tunico, os ratos tão acabando com os mantimento, eles mexem nas minhas lata, cumé que eu vou fazê? - Não vou vender o remédio para a senhora. A senhora tem cara de ser irresponsável. O menino da senhora, um daqueles pequenos, vai comer o remédio e vai morrer, e eu não quero ter esse remorso. Mas a Mariinha era daquelas que sabia insistir e, tanto fez, que ouviu: - A senhora presta bem atenção ao que vou lhe dizer. Eu vou vender, mas a responsabilidade é toda sua. E, se acontecer qualquer coisa de ruim, a senhora faz o favor de não me procurar. Foi lá dentro da farmácia. Pegou um papel de seda. Colocou-o na balança de precisão. Pegou um vidro e despejou seu conteúdo, pesando-o. Dobrou o papel e cobrou: - Dois mil réis. A mulher pagou e saiu. Três horas da tarde do dia seguinte, chega a Mariinha com um menino de colo, desesperada, chorando convulsivamente, e dizendo que seu filho estava se contorcendo em dores. Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 38
- Oh Senhô Tunico, pelo amor de Deus, pelo amor de Nossa Senhora da Conceição, pelo amor que o senhor tem pelo Santíssimo Sacramento, olha aqui, oh, comeu daquele remédio. - Comeu, tá morto. Pode levar que o cemitério é mais acima. - Oh Senhor Tunico, tem misericórdia. - Eu falei com a senhora. Eu avisei. Comeu, tá morto. - Oh Senhor Tunico, me perdoa minha ingnorância. - Comeu, tá morto. E quanto mais a mulher chorava, mais era advertida: - Comeu, tá morto. A senhora é uma irresponsável. Vou mandar chamar o Pepe Maura para prender a senhora. Esse menino tá morrendo pela sua irresponsabilidade. Eu avisei. A sessão de tortura psicológica durou uma eternidade para a pobre mãe. Quando a mesma já não esboçava qualquer reação e sua face era só perplexidade e terror, o nosso eminente farmacêutico pegou o pequeno doente e o deitou numa cama. Preparou um copo com um pouco d’água, piperazina e elixir paregórico e administrou à criança, sentada e amparada pelo mesmo. Pouco tempo depois a mesma começou a mostrar sinais de melhora, e se ouviu a sentença final: - O que eu vendi para a senhora não foi arsênico. Foi açúcar refinado. Essa criança está é com lombriga. Sua irresponsável! Quem é você para comprar arsênico na minha farmácia. Some daqui! Mas, de repente... Tunico Costa Pinto, que também era um conselheiro local e amigo íntimo do Padre Antônio, dá entrada, no final da tarde, morto, por enforcamento, amarrado no seu cavalo, sem os olhos e também mutilado na genitália, como o vaqueiro há um ano. A tragédia não ficou restrita à jurisprudência local, e um delegado da Capital foi designado pelas altas patentes políticas e veio com mais dois policiais investigar o fato.
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Capítulo 5
A adorável Lalinha
- Estou saindo, meu bem – Dona Lalinha com um beijo na testa despede-se do marido, rumo à igreja, acompanhada como sempre de sua amada mãe, única e melhor amiga. Como já vimos anteriormente, Lalinha era uma mulher profundamente religiosa, de comunhão diária e, senão a maior, a mais confiável colaboradora do Padre Antônio nos serviços da igreja. Herdara essa dedicação e essa fé religiosa de sua mãe e da avó materna, molas propulsoras da Sociedade São Vicente de Paulo e exemplos de dignidade cristã da comunidade local. O Chichico Venâncio não as acompanhava. Primeiro porque foi afastado do convívio com o pai aos dez anos e viveu com sua mãe até os quatorzes anos – assunto que ninguém tinha coragem de abordar com ele. Foi criado depois pelo tio paterno, homem rude, analfabeto e ateu. Depois porque no fundo sentia certo ressentimento e, por que não dizer, um pequeno ciúme mesmo desse Padre Antônio, que era como um segundo pai para sua mulher e a absorvia, segundo ele, em demasia. Essa era uma questão que, porém, não conseguia nem iniciar a desabafar com sua esposa, na medida em que, quando a conheceu e a cortejou, não havia sido muito feliz, até que por influência mesmo do pároco, as portas do coração da Lalinha foram se abrindo para ele. Assim como a religião era uma necessidade orgânica para Lalinha, o trabalho diuturno era para o Chichico Venâncio. E foi esse espírito de vontade férrea para o trabalho que, aos trinta anos, já o tornara senhor de uma sesmaria, de uma tropa valiosa de burros, de uma moradia digna para os padrões do local e da época e, principalmente, de admirável produção na lavoura e na pequena pecuária. Mas vamos voltar um pouco na nossa Lalinha. Acho pertinente conhecermos sua infância e adolescência para situarmos essa mulher tão excepcional, alvo de tantas atenções de todos que a conheciam e dos que vinham a privar de seu convívio e intimidade. E também de todos que não tinham esse privilégio, principalmente dos homens, porque, apesar A adorável Lalinha - 41
de seu ar angelical e de sua vida profundamente dedicada e guiada pelos preceitos religiosos, era, sem dúvida, a sensualidade em pessoa, por que não dizer o convite ao pecado encarnado no corpo de uma mulher. Você leitor, a seu ver, pode escolher qual será o protagonista dessa estória. Para mim, sem dúvida, apesar das inúmeras qualidades e defeitos do nosso Chichico Venâncio poderem sinalizar, de início, sua pessoa como o verdadeiro herói de toda a trama, fico com a Lalinha, a nossa deusa do amor e da beleza cabocla, pelo poder de transformação que sempre impulsionou a sua vida e a daqueles que vieram a cruzar seu caminho. Lalinha na época em que a conheci era próspera, porque, apesar de seus pais serem pessoas de formação educacional primária e de poucas posses materiais, ela aos dezoito anos já havia atingido uma posição social de destaque em relação aos membros de sua família e à maioria de sua comunidade. Era mediana na estatura, na classe social, mas na beleza e na sensualidade era uma coisa de impressionar a todos. Um metro e setenta, densos cabelos pretos que tocavam os ombros, postura aprumada, seios e traseiros insinuantes, que acentuavam sua feminilidade, e um sorriso angelical. Guardava, porém, um segredo, muito bem guardado, que mesmo o Padre Antônio, seu confessor, nunca veio a saber ou a sonhar. Eu sei, e os leitores desta estória agora ficarão sabendo. Quando em lugares públicos seu olhar encontrava homens que despertassem nela aquela mesma expectativa incontrolável, aquela mesma fome diferente, aquela mesma angústia que a acompanhava desde que um de seus primos fora assassinado, ela era assaltada por uma ansiedade e uma inquietude ingente. Sempre foi uma especialista natural na sedução de todas as categorias de homens e a todos era ela quem iniciava – a maioria por interesse tácito, outros por picardia e uns poucos por verdadeira diversão e inconsequência. Mas não pensem que acontecia sempre alguma coisa física. Um único de seus olhares era capaz de encantar e hipnotizar sua vítima de uma maneira que a mesma, como um pequeno animal, ia, pouco a pouco e sem qualquer controle, sendo atraído até a boca da serpente, ou melhor, até perder a cabeça e tentar se engraçar ou se aproximar dela. Muitos foram os senhores, distintos ou não, que fizeram parte de sua lista de seduzidos até que, finalmente, encontrou a serenidade e a austeridade (quem sabe) do Padre Antônio. Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 42
Era uma religiosa empedernida, mas essa sedução, esse condicionamento, essa idiossincrasia não a levava a se ensimesmar ou a se culpar e, antes de tudo, acreditava em Deus, na sua clemência, no seu amor infinito. Não era uma intelectual, uma artista, uma executiva, mas sua inteligência dava para o gasto, para a sobrevivência e para gerir todas suas metas, propostas com vivacidade, bom humor e malícia. Era na verdade, me dou o direito de arriscar, uma neurótica comum, uma histérica, refém das mesmas fobias, ansiedades e angústias que a todas caracterizam. Mas era, antes de tudo, uma fêmea valorosa, valente, assumida. Nascida numa pequena fazenda, no Córrego do Beija-Flor, município de Dourados, nos rincões do Sudeste das Minas Gerais, teve uma infância livre, amparada por cinco irmãs mais velhas e pelo irmão primogênito, distanciado dela por dez anos. Eu sabia que três experiências permaneciam sempre presentes na memória dela - vívidas, marcantes, excitantes -, quando teimava em recordar aquele tempo distante de sua vida. A primeira, na primeira infância, seu prazer de andar sem calcinha nos lombos dos porcos da fazenda amparada por sua irmã do meio. Claro que Lucinha nem de longe suspeitava de que ela sempre se despisse às escondidas antegozando o deleite do contato do dorso do animal com o vão de suas pernas. Era uma sensação de prazer que a partir de sua genitália ia invadindo cada centímetro de seu corpo, cada célula, cada átomo, percorrendo-a com a velocidade de um raio. E ela procurava acentuar esse deleite, batendo suas pernas como duas céleres asinhas até o êxtase final, que sempre a deixava estendida de costas no solo num quase desfalecimento. Sua irmã sempre perguntava preocupada: - Está passando mal, Lalinha? Ela abria os braços e de olhos fechados a cingia docemente. Lucinha sempre se deitava ali com ela, de mãos dadas, sem pressa, compartilhando aquele momento feliz. A segunda experiência, na sua adolescência, com sua prima Geni (Geninha) e depois com seu noivo, Antônio. A adorável Lalinha - 43
Lembrava, ainda com ternura, as noites passadas na casa da prima, que mudara por empréstimo para uma casa na fazenda dos pais dela. O pai de Geninha, irmão da mãe de Lalinha, morrera subitamente e deixara a família sem condições mínimas de sobrevivência. Ela tinha na época quinze anos. A prima, vinte e um. Viera da Capital e com modos discretos e delicados logo conquistou seu coração. A ligação entre as duas foi acontecendo muito naturalmente. Geninha passou a ajudá-la nas tarefas da escola, da quarta série do segundo grau, pois havia repetido o primeiro ano primário. Logo se tornou sua companheira habitual nos passeios e diversões pela fazenda e a vizinhança, sempre demonstrando zeloso cuidado com ela, com as roupas dela e, até, com pequenos detalhes da higiene íntima da prima. Esse estreito relacionamento foi abrindo possibilidades, não muito usual para o lugar e a época, de certos aconchegos - andar sempre abraçadas, trocar pequenos afagos em público e tomar banho juntas. Com o tempo, a mãe de Lalinha ganhou confiança nas duas e as liberou para irem juntas às festas noturnas locais e para dormir depois na casa da sobrinha, e muito mais porque a mesma morava sozinha com sua cunhada. Geninha era recatada, doce e extremamente generosa na expressão física de sua amabilidade com todos os familiares e os amigos mais próximos. Para as duas não foi, portanto, nada estranho, quando na primeira noite, após se recolherem ao quarto apertado de duas camas, os carinhos trocados durante o dia entre elas se prolongassem em afagos, ternuras, carícias, antes de conciliar o sono. Com o tempo, e sugerido pela mais velha, não sem antes fechar a porta do quarto por dentro, passaram a se despir, a se tocar mais explicitamente e a dormir numa única cama, enroscadas ternamente. Acordavam, pela manhã, com a porta aberta, cada uma em sua própria cama e devidamente vestidas. Lalinha não se recordava uma única vez sequer de ter-se acordado durante a noite, de ter-se vestido e muito menos de ter ido conscientemente se deitar na outra cama. Geninha começou a receber em alguns fins de semana a visita de seu namorado da Capital, e Lalinha passou a servir de companhia para eles e também de escolta da prima, de início, muito a contragosto, mas como uma exigência peremptória de sua tia. Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 44
Antônio dormia inicialmente no quarto de hóspedes, numa dependência contígua à sede da fazenda, e os três passavam o dia inteiro em íntimo contato. Quase todas as noites eram passadas até o romper do dia na imensa varanda da propriedade principal, de onde se descortinam até hoje um caudaloso rio, o curral, o chiqueiro e as plantações bem cuidadas que se estendem a perder de vista até tocar o morro distante mais próximo. Nesse ambiente Lalinha ora escolhia deitar sua cabeça no colo da prima, ora no do namorado dela, ou mesmo, muitas vezes, se estendia próxima aos dois no extenso banco de madeira da varanda. As vindas de Antônio foram se tornando mais frequentes e, eventualmente, se estendendo no período de estadia, e a sua chegada era cada vez mais aguardada com uma ansiedade crescente, compartilhada e explicitada pelas duas primas. Lalinha já estava preparando a formatura de segundo grau, quando começou a perceber a necessidade do colo de Antônio se mostrar mais aflitiva para ela e, principalmente, quando sua prima se demorava em alguma tarefa dentro de casa e os dois ficavam sozinhos. De início, era ele mesmo que a puxava carinhosamente, lhe beijava o rosto, deitava a cabeça dela no seu colo, e ficavam ali perdidos e enternecidos com a visão exuberante do horizonte circunjacente. Depois, ela mesma começou a se insinuar, abraçando-o, acariciando-o no rosto e quase sempre indo por vontade própria descansar sua cabeça no regaço amigo. Um dia ele a puxou e a sentou no seu colo. Ela ficou de costas apoiada entre as suas pernas e abraçada pela cintura. Não houve qualquer resistência repulsiva de início, mas ela se levantou muito prontamente, talvez apreensiva de uma possível volta repentina da prima. Mas um caminho de maior proximidade se insinuou silenciosamente a partir daí entre os dois, e, mesmo quando na presença de Geninha voltava a deitar a cabeça no colo de Antônio e ele acariciava seus cabelos, não deixava de sentir uma ternura diferente e um calor que aos poucos lhe ia consumindo. Ser puxada para o colo uma segunda e uma terceira vez e se desvencilhar com maior relutância se seguiram. A quarta sentada, porém, foi definitiva. Fechou os olhos, entregouse docemente, e, ato contínuo, aquela sensação prazerosa da infância que A adorável Lalinha - 45
experimentava nos lombos dos suínos da fazenda lhe assaltou novamente e a despertou de uma longa letargia. O contato inesperado daquela massa viva, dura, pulsátil, que de entre as pernas de Antônio a acariciou por trás, zonzeou-lhe prontamente a cabeça, e um calor subiu em paroxismos pela coluna, esquentando-lhe todo o corpo e fazendo sua respiração um tanto difícil. As pernas tremeram, as mãos ficaram mais e mais pesadas, a boca secou, e foi sentindo como se desfalecendo, quando os dois braços que a apertavam pela cintura quase a esmagaram. Viu-se como num sonho cavalgando e começou a pular na sela como em desabalada correria, até sentir mais e mais, aos poucos, encharcar-ser toda a sua calcinha. Em seguida, levantaram-se incontinenti como dois moribundos e procuraram direções e locais diferentes. Na mesma noite, houve uma segunda, uma terceira encenação e, cada uma, mais excitante, demorada, comprometida. Desde então, os dois ficaram mais sem resguardo, mais decididos, sedentos, e uma paixão tão avassaladora, tão premente, tão faminta os assaltou, que pareciam dois viciados compulsivos de uma mesma droga: quanto mais a consumiam, menos se exauriam. Tudo indica que, desde o início, Geninha solidarizou-se silenciosamente com eles, porque sempre completava o trio somente quando era muito oportuno, e, logo depois, as duas iam juntas e felizes para o descanso noturno de mais um dia. No quarto, elas continuavam, enquanto era seguro e possível, a exploração lenta e progressiva de suas mais sutis intimidades e, com o tempo, se tornaram senhoras uma do corpo da outra, numa dimensão que não mais conhecia limites. Nunca precisaram, por uma única vez, se deter em planos, promessas, cuidados, para proteger aquele relacionamento inusitado. Dois anos de namoro, mais um de noivado, e o casamento foi marcado para dali a seis meses. Lalinha completara quinze anos e estava cursando a oitava série. Antônio já era um membro da família, com a liberdade de ir, de vir, de entrar, de dormir, em ambas as residências da fazenda. Uma noite, Antônio estava um bom tempo abraçado com Geninha, à sua direita, e com Lalinha, encostada no seu flanco esquerdo, deitados todos na varanda de sempre e protegidos por um cobertor estendido sobre eles, por estar chovendo, ventando e a temperatura estar muito fria. Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 46
De repente, sorrateiramente, Antônio pegou a mão de Lalinha e a encostou no sexo dele. Sentiu uma inicial resistência. Esperou um pouco e, com determinação e audácia, insistiu. A mão tremula sentiu o órgão e se recolheu novamente. Começou a beijar Geninha na boca, e a nova tentativa vingou plenamente. Abriu com a mão esquerda a braguilha e sentiu sem pressa o gozo duplo de ser acariciado pela boca de uma e agora pela mão terna, macia, mas decidida da outra. Ao sussurro no ouvido de sua noiva, preocupada com a prima ao lado, respondeu: - Ela está dormindo. Na mesma noite, no quarto, deitadas, nuas e abraçadas, certamente por lealdade, Lalinha confidenciou o ocorrido a Geninha. - Você quis, você gostou – ela rebateu. Sorriram e continuaram suas intimidades. No outro dia, à noite, quando os três descansavam, no mesmo cenário de quase todas as noites, Lalinha se pronunciou: - Toninho, eu contei para Geninha o que você fez eu fazer com você ontem aqui. Os nubentes se entreolharam, e Geninha acariciou os cabelos de Antônio com ternura e, passado algum tempo, foi para o quarto dormir sozinha. De início, um silêncio sepulcral se insinuou pesadamente entre os dois retardatários. Depois, seus olhares se cruzaram. Lalinha foi tocada por uma ternura que nunca havia experimentado antes. Seu coração acelerou, foi ficando sem fôlego, seu corpo foi se esquentando rápida e desmesuradamente, suas pernas foram se enfraquecendo e, trôpega, cambaleante, decidida, encaminhou-se até Antônio e lhe ofereceu sua boca. Ele a beijou voraz e demoradamente, enquanto as duas mãos firmes prendiam dois seios primorosos. Depois os braços dele a enlaçaram pelas coxas e pelo tórax, levantando-a do chão, espremendo-a contra a parede da varanda. Imóvel, ela sentiu os dentes dele mordendo sua boca, seu pescoço, onde os vasos palpitavam e ardiam. Deitou-a no chão e, naquele doce suplício, prosseguiu pelos peitos, barriga, baixo ventre, pernas, pés e veio subindo novamente até sua boca sedenta. Virou-a de costas, se deitou por cima dela e cutucou com golpes certeiros de seu membro aquele desejável traseiro, beijando-a na nuca tensa, sensível, estendida então por tamanho prazer. Ela passou a murmurar repetidamente: A adorável Lalinha - 47
- Quero ser sua. Arfante, pletórico, trêmulo, Antônio pegou-a no colo e levou-a para o quarto da noiva. A porta estava somente encostada, e ele a transpôs pesadamente, fechando-a por dentro com duas voltas na fechadura e, entre as duas camas, foi despindo-a, e as roupas foram se aninhando em volta dos dois, que, de pé, se abraçavam, se amassavam, se rendiam. Pegou o colchão da cama desocupada, jogou-o ao chão, e se projetaram ao solo como se fossem um corpo único. Um quê de animalesco tomou conta de Antônio. Suas carícias se alternavam entre um extremo de força e voracidade a um extremo de ternura e suavidade. Suas mãos percorreram aquele corpo macio, submisso, sequioso de prazer, na sua mais completa extensão e plenitude, e como se ele o quisesse, ao mesmo tempo, chupar, morder, apertar. Era como se muitas mãos, dentes e bocas tocassem simultaneamente a mesma partitura, ora executando os acordes de uma marcha marcial, ora, de uma canção de ninar, ora, de uma melodia que se revestia dos arrojos e das variações de uma peça clássica. De repente, Antônio estirou-se por cima em todo o comprimento dela, como se quisesse ficar grudado nela dos pés à cabeça e como se a esmagasse contra a superfície do solo. Em seguida, virou-a de costas, e esparramou as mãos sobre seu traseiro majestoso, puxou-a até ela ficar de joelhos e a penetrou por trás, descansando dentro dela, e esperou. Lalinha, tomando a dianteira, se afastou vagarosamente, ergueuse, virou-se de frente, de joelhos, empurrou o amante até ele se deitar de costas, e, com os olhos entorpecidos, foi tateando sua boca pelas pernas dele até encontrar seu pênis, que se sacudia levemente com cada beijo recebido. Ele segurou a cabeça dela com suas duas mãos e foi comandando o preciso ritmo do movimento da boca de Lalinha, que continha e acariciava seu membro da glande à base, e vice-versa, de uma maneira continuada, mas não estereotipada. Às vezes se alternavam as sucções com beijos e pequenas mordidas no pênis e nos escrotos do parceiro. De repente, bruscamente Antônio conduziu Lalinha a uma posição deitada de costas e a penetrou totalmente pela frente, passando a entrar e a sair reiteradamente, gemendo e balançando a cabeça desvairadamente, até que ambos ficaram entorpecidos. O ritmo foi ficando cada vez mais lento, as mãos foram ficando progressivamente mais pesadas, e as bocas de ambos não mais fechavam. Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 48
Antônio retirou seu membro agonizante daquele lar hospitaleiro, molhou seus dedos no mel que saía das entranhas de sua amada e lubrificou seu sexo. Serenamente, então, a moveu, de modo que ela ficou por cima dele, com as pernas atiradas por cima das dele, e, enquanto ele a possuía, podia ver seu membro entrando e saindo dela e ficou esperando por ela. Como ela não acelerou seus movimentos, ele a fez deitar-se novamente de costas, agachou-se por cima de sua pelve e a penetrou por trás novamente, aumentando a fricção à medida que ela aumentava a força de sucção de sua vagina, de forma cada vez mais gradual e prazerosa, como se novas fontes de desfrute houvessem se despertado. Ele então apressou os movimentos dentro dela e a incitou a gozar junto com ele com palavras de carinho, com as mãos segurando seus cabelos como se fossem as rédeas de um cavalo, e com beijos, lambidas e mordidas na nuca dela compartilhando os espasmos de seus corpos, que primeiro anunciaram e depois desencadearam um prazer deslumbrante, edênico, definitivo. Deitaram-se de costas, mas logo Lalinha começou a tocar o rosto do amante com suas mãos como se quisesse modelá-lo. Em seguida, passou a friccionar seu corpo no dele com a luxúria de uma cadela e a beijar, apertar, morder toda a carne do amante como se quisesse despertá-lo, animá-lo ou confirmar se aquele homem era verdadeiramente real. Nesse momento, Geninha se juntou aos dois e se abraçaram ternamente os três. Antônio não voltou mais àquele recanto querido. O casamento foi desfeito no dia seguinte, por determinação e desejo de Geninha. Aos parentes e amigos não foi dada uma explicação convincente. Um mês após, ela se mudou para o Rio de Janeiro, para estudar e morar com um tio materno. Há cinco anos vive uma relação conjugal estável num apartamento confortável do Leblon com uma policial da Polícia Militar local. A terceira experiência, e a mais traumática e definitiva, foi a que se passou com Lalinha, um primo dela e um colono da fazenda. Eduardo, seu primo, cinco anos mais velho que ela, de esposa simples e dedicada, pai de dois filhos, foi criado na fazenda próxima, na outra margem do rio Santo Antônio, rio, esse, parede-meia entre as duas propriedades. Apesar de terem vivido próximos desde a infância pela moradia, até o início de suas vidas adultas, Eduardo e Lalinha não haviam compartilhado quaisquer interesses ou intimidades. Mas foi o destino que os A adorável Lalinha - 49
uniu, quando numa manhã de domingo ele a salvou de ser afogada nas águas próximas de suas moradias. Lalinha estava nadando sozinha e foi tragada pela correnteza após um ataque de câimbras e espasmos nos dois membros inferiores dela. Aos pedidos de socorro acudiu Eduardo, que, nadando da margem contrária do rio, a alcançou e a levou até a margem segura da propriedade dela. O susto foi aterrorizante, e as suas lágrimas foram secadas pelas mãos rudes de seu primo. Os dois se deixaram ficar ali por um tempo considerável, muito maior do que o realmente necessário, deitados lado a lado, num cantinho confortável da vegetação ribeirinha. O acidente ficou como um segredo deles, e o local passou a ser visitado cada vez mais a miúdo, sempre que os dois se enxergavam de ambas as margens do rio. Lalinha passou a sentir, diariamente, no mesmo horário da sua ameaça de afogamento, um tremor, que teimava dominar todo o seu corpo, associado a um disparo de seu coração, a uma respiração difícil, mãos pesadas e ardentes, peito apertado, uma sensação de desrealização e um medo incontido, o que a fazia se encaminhar imediatamente para o lugar só dela e do primo conhecido. Eduardo quase sempre a estava esperando, sentado, e, logo à sua chegada, se levantava, a abraçava, a confortava em silêncio respeitoso, e, debelada a crise, conversavam, riam, se divertiam. O quase esconderijo dos dois passou a receber um cuidado esmerado e efetivo, e alguns apetrechos foram sendo agregados, como um cantil de água, colchões, travesseiros, cobertores, fronhas, que sempre eram guardados no mesmo local, protegidos por sacos plásticos, uma garrafa de cachaça de excelente qualidade. O local foi ganhando em possibilidades de intimidade e em condições de proteção das intempéries. Os encontros foram se oportunizando cada vez mais e deixaram de obedecer somente ao horário do evento traumático e a se estender por períodos mais dilatados do dia, da noite e mesmo a perdurar por algumas madrugadas adentro. Naturalmente que a relação entre os dois passou com o tempo a preencher todas as necessidades de ambos - anímicas, espirituais, instintivas. Uma noite, estavam os dois recolhidos ao seu ninho, quando uma canoa passou próximo à margem do rio, e pressentiram que foram avistados pelo seu ocupante, que, enrolado num pano, não possibilitou sua identificação. Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 50
Não sei se por paranóia ou por instância real, os dois amantes passaram a ser incomodados por ruídos e deslocamentos na vegetação próxima, até que um dia Lalinha acordou e se sobressaltou na penumbra com a visão de dois olhos flamejantes que pareciam estar espreitando-a. Gritou. Saíram procurando por perto à volta. Nada foi encontrado – ser humano, animal ou qualquer alma viva. Os encontros começaram a ser postergados, dificultados, quase suspensos, por única e racional determinação dela. Passaram menos frequentemente a se encontrar em locais próximos de suas residências, em momentos propícios, mas com extremamente menor possibilidade de se continuar mantendo o necessário anonimato. Aproximadamente um mês após, num final de tarde, Lalinha estava sozinha na sua residência, todos tinham saído, e foi até o terreiro próximo ao pasto de porcos magros para pegar umas folhas de carqueja para fazer um chá. Voltando se deparou com o vaqueiro Deolindo - baiano rude, amorenado, de meia idade, mal encarado, alto, esguio. Nunca havia trocado uma única palavra com ele. Há quinze anos vivia com a mulher e sete filhos menores, numa pequena casa e num pedaço de terra que seu pai lhe dera para plantar à meia. Ninguém sabia com certeza das origens dele, detalhes de sua vida pregressa e o verdadeiro porquê de ter vindo para tão longe viver sua vida. Era detestado pelo padre local, porque recebia em domicilio clientes para ver suas sortes e seus destinos através dos búzios. Somente quando atendia aos que o procuravam se podia escutar sua fala. Nas outras condições era um sujeito mudo, sorrateiro, esquisito. Deolindo postou-se na frente de Lalinha, olhou-a fixamente como se a hipnotizá-la, pegou-a pelo pulso direito e foi puxando-a, sem pronunciar um “a”, para um pequeno cemitério dentro da própria fazenda. Ela não resistiu. E em meio aos túmulos de descanso eterno dos antepassados dos proprietários da fazenda, rasgou os botões de sua blusa e começou a chupar seus seios primorosos com uma fome desvairada, bestial, incontida. Sua boca faminta aninhava de uma só vez cada um deles, em cada bocada, e só os alternava quando sua respiração se interrompia ou quando beijava seus mamilos, que foram ficando ingurgitados, vermelhos, quais duas pontas ígneas. Apesar do escabroso e do inusitado daquele momento, Lalinha se mostrou serena, inteira, empedernida.
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Saciada talvez a inicial fome, o vaqueiro abriu a braguilha e mostrou seu membro flamejante, roliço, como o de um cavalo no cio. E disse: - Chupa, sua cadela fudida, como do seu primo querido – e agarrou-a pelos cabelos e foi enfiando seu falo na boca dela até não ser mais possível. Lalinha não se intimidou e o chupou sem qualquer relutância e de forma prodigiosa e contínua. Seguiu-se o arrancar de suas calças e calcinha, o ser virada de costas, o ser espremida de bruços na tumba do bisavô deputado e para sempre adormecido e o ser seviciada pelo ânus, agarrada pelas nádegas por duas mãos ásperas, pesadas, mortíferas. O vaqueiro gemia, bufava, tremia, à medida que desvirginizava com volúpia aquele recinto até então incólume, sagrado, incorruptível. Finalmente, Deolindo agarrou seu membro com sua mão direita e molhou por inteiro as costas e as nádegas de Lalinha. Ela permaneceu imóvel, submetida, silente, deitada de frente na última morada do ilustre político. Passado algum tempo, o vaqueiro avisou: - Levanta, pega sua roupa e bico calado. Sou capaz de morrê e de matá pr´ocê, sua cadela gostosa. Espero ocê amanhã aqui bonitinha às cinco da tarde. Lalinha pegou suas roupas rasgadas e sem se proteger se encaminhou calmamente de volta para sua casa. Foi direto para o banheiro e tomou um banho demorado, deitando-se no box e deixando a ducha fria arrefecer e massagear todo o seu corpo. Encaminhou-se depois para seu quarto, trancou a porta, deitou-se nua, coberta por um simples lençol, numa posição fetal, colocou as mãos apertadas entre as pernas, como que a acariciar sua vagina há pouco desprezada, humilhada, preterida, e dormiu. Passou a se encontrar com Deolindo a cada dois a três dias e, algumas vezes, o procurava, em horas as mais inoportunas, e o levava, simplesmente com um olhar, direto para a morada dos mortos para viver perigosamente tudo aquilo que sabia era o mais proibido. Os encontros com Eduardo foram se arrefecendo, se distanciando, se vulgarizando pela rotina, e ele foi-se ensimesmando, se enciumando, se fragilizando. A aventura com Deolindo cada dia mais surpreendia Lalinha e, apesar de ele manter sempre, de início, a mesma conduta sexual predatória, agressiva, dominadora, após pouco tempo já começou a se mostrar mais acolhedor, mais carinhoso, mais protetor. Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 52
Logo ele foi se acostumando mais a ela e com a vagina, a boca e o ardor do corpo dela e passou a sodomizá-la somente quando ela própria pedia e insistia. Lalinha passou a ficar sentada no colo dele, encostada no túmulo e marco de toda aquela relação, sentindo ele todo dentro dela, com seus braços a enlaçá-la por trás e as suas mãos a conter por inteiro os seus dois seios sempre hirsutos e sensíveis. Seus encontros passaram, às vezes, a se estender por toda a madrugada. Um belo dia, digo, uma bela noite, de céu estrelado e de lua minguante, no momento do primeiro gozo, Deolindo e Lalinha se ressentiram da intromissão inesperada de Eduardo que, com uma faca em punho, os ameaçou com deslavados impropérios e partiu decidido e frontal para ambos. O vaqueiro se interpôs entre o agressor e a sua fêmea, protegendo-a, e recebeu uma facada que, desviada, lhe atingiu a coxa direita de raspão. Abraçou seu algoz e o arremessou ao solo, e se enfrentaram numa luta renhida. Eram semelhantes o ódio, as condições físicas e a rudeza de ambos os contendores. O membro armado de Eduardo é mordido com tamanha ferocidade que o faz deixar a faca cair e, ato contínuo, a recebe de volta em várias punhaladas na região posterior de seu tórax. Deolindo, certo de que ele já não mais existia, apressado vestiu a roupa, guardou a arma e, junto com Lalinha, deixou a área do crime. O corpo de Eduardo só foi localizado na tarde do terceiro dia após a morte dele, avistado pelos urubus que começaram em revoada a indicar com certeza uma área isolada do cemitério. O vaqueiro na manhã que sucedeu ao assassinato já não foi mais encontrado, porque, abandonando a maioria dos pertences dele, evadiuse junto com toda a sua família. Com essa atitude foi denunciado à população o criminoso, mas ninguém até hoje sabe ou suspeita nada mais sobre as razões do delito. Os pais de Lalinha ficaram arrasados com a morte do sobrinho nas terras sob sua responsabilidade, e seis meses após, por intermediação do padre local, foram para outra fazenda da família Barbosa e Silva, em Santa Maria do Desterro. A adorável Lalinha - 53
As crises de pânico de Lalinha voltaram a vitimá-la e, em vez de procurar o Doutor José Cândido Mayrink, figura eminente da medicina da região, preferiu se dedicar aos trabalhos da igreja e lá encontrou o Padre Antônio – um novo pai, conselheiro e amigo. E, já sabemos, depois de pouco tempo, por aconselhamento, indicação e mesmo insistência do pároco, veio a estreitar o relacionamento e a se casar com o Chichico Venâncio.
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Capítulo 6
Chichico Venâncio e sua comadre Santinha
Quero explicar que o ter revelado algumas das mais recônditas intimidades de nossa Lalinha não foi devido ao fato de querer empalidecer a imagem que temos todos dela de mulher profundamente dedicada à religião e aos mais necessitados, ou de levantar qualquer senão em relação à sua conduta moral por todos reconhecida como digna e acima de qualquer suspeição. Toda a comunidade de Santa Maria do Desterro era unânime em atestar que o casal Chichico Venâncio e Lalinha, apesar de algumas flagrantes desproporções de interesses, escolaridade e principalmente de sensibilidade no trato com o mundo e com as diversas pessoas, vivia e convivia harmoniosamente. Mas como nossa estória tem como protagonistas principais essas duas interessantes personalidades, seria um pouco injusto e desigual, se igualmente, além de enaltecer os predicados também por todos reconhecidos - vida voltada ao trabalho, à família, aos seus empregados e a alguns poucos e diletos amigos -, não desvelasse um pouco a figura do Chichico Venâncio através de sua vida à sombra daquela sua imagem até agora projetada. Creio mesmo que, levantando mais dados de sua vida pregressa e de sua vida atual, aquela não compartilhada pelo conhecimento de todos, e também os movimentos e atitudes subalternas de seus relacionamentos mais estreitos, possa seguir a contar a estória que a todos nós realmente mais interessa. E como a expressão da sexualidade e do desejo do ser humano, sem dúvida, diz muito ou quase tudo de nossas pessoas, vamos constatar que nosso Chichico Venâncio, apesar de ter em casa, à sua disposição, uma das mulheres mais sensuais e cobiçadas da comunidade, era, por fetiche ou perversão, dado a se relacionar com suas comadres da fazenda e sempre escolhia mulheres bem mais velhas do que ele (principalmente algumas das senhoras de seus colonos), de uma forma compulsiva, escamoteada e obstinada. Chichico Venâncio e sua comadre Santinha - 55
Assim é que quero mostrar aqui nesse capítulo como começou seu envolvimento com Dona Santinha, que tinha idade para ser sua mãe, como um exemplo particular dos inúmeros casos dessa sua prática sexual e afetiva às escondidas ou muito bem dissimulada. O Chichico Venâncio, apesar de sua ingenuidade aparente, sempre arranjava tempo e disposição para dar assim umas visitas incertas, mas no fundo muito bem planejadas, às algumas comadres que foram entrando com o tempo no seu rol de conquistador. Essa visita à comadre Santinha, aproveitando que o compadre havia ido para a Capital para tratamento de saúde, ocorreu muito tempo após o estúpido assassinato de seu vaqueiro e amigo e dois meses após o assassinato do farmacêutico Tunico Costa Pinto. Primeiro, naturalmente, discorreram sobre o assassinato do Zé Ciro. Depois passaram para o assassinato recente do Tunico Costa Pinto. Entraram nos assuntos gerais do dia-a-dia de ambos e acabaram por descer às considerações sobre concidadãos numa intimidade própria de compadres (ou comadres). - Mais entonces a moça casô mermo, comadre Santinha? - Casou sim, cumpadre Chichico. Mais não deu certo não. Rapidinho mermo vortô pra dentro de casa. E não vortô sozinha não, hein! Vortô trazendo uma fiia de quatro pra cinco anos. - Que pena né mermo, comadre Santinha. - É. E eu fico imaginando... A pessoa, quando está namorando, é beijo na boca. É aquela montueira de carinho, de agarramento. Um até senta no colo do outro. Casa. Não dá certo. Vem a separação. - Pois é, sai um de casa e vorta dois. Se não vortá com mais, né mermo? Por que será que isso acontece Sô? - Oia, no caso da Dircinha, os pais são de pouco recurso. A minina é fiia única. O pai, Jerônimo, é epilético, e a mãe não está se aguentando mais. Tá tentando um benefício ou uma aposentadoria. Eles são trabaiador rural com pouca ou nenhum estudo, e a fiia que conseguiu estudá mais um pouquinho deu no que deu. - Mas dizem que eles não queriam o casamento, né mermo? - É, mas quando a cabeça não pensa o corpo padece. Se bem que, em casa de pobre onde come um ou dois, come uma dúzia, não é mermo? - É. Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 56
- Mas hoje ela ta lá na Pizzaria bem colocada e já tem um ano morando com o Toninho do Zé Constâncio. A fíia dela, Joseni, é mais agarrada mermo é com os avô. - E o outro marido? - O outro marido disse que, enquanto pudesse atormentá a vida dela, ele ia atormentá. Levou a Dircinha na Delegacia, no Conselho Tutelar, mas na verdade ele não liga nada pra fiia. Se gostasse, ele dava pensão, não é mermo? Jerônimo não gosta de vê nem a sombra dele. - Dizem que ele foi pros Estadozunido? - Foi, mas não ficô lá nem um ano e hoje fica lá na cidade zanzando pra lá e pra cá. O meu sonho é sair daqui, apesar de muito bom, e levá eles cumigo. Eu quero morá lá na Figueira do Rio Doce. Nóis tem muitos parente que já tá lá. - E como a Dircinha veio se interessá por esse danado desse Antônio Valente? - Antônio Valente, não é mermo. Valente só no nome. Quando o Toninho começou a se enrabichar com a Dircinha, ele cascou fora. É mermo um covarde. Mas já tinha quatro anos que ela namorava um rapáiz lá da roça, o Valdete. E a gente fazia muito gosto. Sem mais nem meno, ela largô ele e passô a namorá o Antônio Valente e deu de casá com ele. - Que paxão Sô? - Paxão nada. Deve ter sido alguma manha dele co’ela. Uma veiz só que ele foi lá na roça e ela ficô gostando dele – não é possíve, é? Nem sei o quê qu’ele fez que assim que ela viu ele ficou gostando dele. - E ele trabaiava de quê? - Não, não trabaiava de nada não. Vivia com os pais dele. Ele são aposentado. - E o namoro dos dois? - O namoro era lá na casa da Dircinha mermo. Os pais não deixa ela saí, porque a menina de uma hora para outra virô a cabeça. E ele não saía de lá. A mãe dela varrendo a rua pela Prefeitura e ele lá. Ambrosina morria de raiva. O Jerônimo do lado vigiando. - E ela não tava estudando mais? - Tava, mas parô. Não dava pros pai ficá andando atráis dela. Estudô até a oitava série. Menina nova – eu quiria que ela estudasse mais. Chichico Venâncio e sua comadre Santinha - 57
- Que pena Sô! - Hoje, eu falo co’ela. Pois é – você jogô tudo fóra. - É, mas ela trabaia lá na Pizzaria. Tá bom. - É. E é muito esforçada. - Mas o Jerônimo adoeceu quando? - Foi logo depois que começaro a criá a Justina. Ele trabaiava na Penitenciária. Era agente penitenciáro. E tava de plantão naquele dia da fuga dos preso. Coitado, tá afastado até hoje. Deu depressão. Os preso tentaro pegá os agente. Botaro fogo nos colchão, subiro no teiado, com barra de ferro, com faca, com revórve. Aqueles que eles pudia agarrá, fizero refém. - É, eu alembro bem. A revorta começô de manhã e foi um tormento por trêis dias. Os familiar pela rua afora em desespero, chorando pelos parente que estava lá com os preso, e eles ameaçando os agente com as arma. hoje.
- Teve um que eles jogou de encima do teiado. Tá entrevado até
- É, todos os agente devem ter ficado traumatizado com a situação que depararo, né mermo? - Uai, até hoje, minha irmã acorda, às veize, e pega o Jerônimo chorando pelos canto. - Isso já deve tê uns cincos ano, né mermo? Os agente e a cidade naquela agonia por trêis dias. Eles sem comê, sem dormii, debaixo do ameaço de morte, com avião passando por encima deles e as radiopatrulha rodando em vorta da Penitenciária com o alarme ligado. - Aqui de casa a gente via tudo lá. Nessa época a Dircinha já morava com o Toninho do Zé Constâncio. A muié dele aparto dele por outro e foi aí que eles juntaro os panos. Os dois fiio dele foi com a outra muié, a Lucimar. Ela é até cabeleleira. Tem um salão lá no centro do Guarani, na avenida Manoel Machado. Quando eles separaro os minino tava tudo novinho. E logo ela arranjô mais dois fiio sem ser do Toninho, um com um home e outro com outro home. - É? Lá no Guarani dá de tudo Sô! Tem caso de toda espéci Sô! - Você alembra cumprade Chichico do Sebastião do João Camilo. É até primo da mamãe. Ele era casado com a Maria. A Maria treiteira. Um Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 58
belo dia ele chega em casa e topou ela com o Zé Amâncio, na cama. Ele começô a chorá e vortô pra tráis. - Que situação Sô! - A muiié engravidô do Zé Amâncio e nasceu uma minina. Não é que o besta do Sebastião registra a minina no nome dele. - E continuaro a vivê junto? - Seis anos ainda. Houve a separação, quando a minina já tava grandinha. Já tava com seis ano. Aí que o pataca separô. Viveu um tempo sozinho e arranjô uma muié com trêis fiio. - É? co’ele.
- O Sebastião tinha cinco fiio, e na separação os fiio quisero ficá - E a minina?
- De início, ele não levô ela não. Deixô com a mãe. Quando ela foi crescendo, a cara dela era a cara do amante, e ele começô a corrê atráis de desresgistrá a minina. - E conseguiu Sô? - Não, eles aconselharo ele a deixá pra lá. Mas o Zé Amâncio morreu, e ele levô a minina pra morá co’ele. - Interessante mermo! - Aí, os fiio do Sebastião crescero, ficaro tudo rapáiz. E não é que a muié que o Sebastião arranjô traiu ele com o fiio dele mais véio. - Que coisa Sô! - E acredita que a muié foi criando o fiio do fiio do Sebastião e continuô a ficá com os dois! Nascero mais três fiio do fiio do Sebastião e foro registrado como fiio do Sebastião. - E ele sabia? - Claro que sabia. Não teve outro jeito. Ele ficô por uns tempo criando a fiia do Zé Amâncio, os quatro fiio do fiio dele e mais os cinco fiio dele mermo. - Ficô tudo em famíia, né mermo Sô? - Não. Não ficô não. O fiio mais véio do Sebastião achô de tomá por inteiro a muié do pai dele. Ficá com ela só pra ele mermo e levô ela e deiChichico Venâncio e sua comadre Santinha - 59
xô pra tráis os quatro fiio dele para o bobo do Sebastião criá. E o Sebastião ficô chupando dedo, fazendo o que o peixe fáiz. - O quê que o peixe fáiz Sô, que eu não sei? - Nada. Fáiz nada, cumpadre. né Sô?
- Eles dizia qu’esse Zé Amâncio era treteiro como ele só também
- Se era. Morreu bisavô. Mais engravidô muita muié por aquelas banda. Ele não tinha nada de boniteza, nem de dinheiro, mas tinha muita lábia. Ele era alto, forte, careca. Motorista de caminhão. Trabaiava na caldeiraria Almeida, mexendo com lenha, num caminhão, véio, fudido, mas ele era conquistadô como ele só. Mió que esse tal de Dom Juan... E corajoso. A famíia dele toda continua morando em Guarani. Morreu tem pouco tempo um fiio dele maconheiro bravo – cheio de facada na barriga e nas viriia. - ... - Morreu como um passarinho, amparado pela muié e todos os fiio. - Pois é, comadre, esse mundo ta é degenerado né mermo Sô? - Tá não, compadre. São coisa da vida. - Pois é, no fundo essas estória chega a me dá até uma gastura, um arrepio na espinha. Eu sempre quis ser mais atirado, mas esse danado desse meu jeito... - Oh cumpadre Chichico. Fica assim não. O que o senhô tem é de atacá a fera. - Oh comadre Santinha. Vê se me ajuda. Vê se me dá uma forcinha. - Mas que forcinha, cumpadre Chichico? - Oh comadre Santinha, um abraço. Um beijo, comadre. porta.
- Oh cumpadre... Não fáiz assim não. Deixa primeiro eu fechá a - Oh comadre Santinha!
- Oh cumpadre Chichico! Que mundo degenerado, mas tão bão, né mermo?
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Capítulo 7
Uma sábia orientação médica
- Tô muito contrariado Sô! - O que tá acontecendo, meu amigo? - Minha muié, Doutô Mayrink. Não sai da minha cabeça Sô! Me pertuba Sô! - Perturba como, Chichico Venâncio? - O passado da minha muié me pertuba, Doutô Mayrink. - O passado dela? - Eu sei que não tem nada a vê mais... - Mas? aqui.
- Ela ficô com um rapáiz duas a tréis véiz logo que ela veio morá - Depois de casada, Chichico Venâncio?
- Não Sô! Antes de casá, Doutô Mayrink. Ela era solteira. Só abraçô e beijô. Assim foi qu’ela me contô. - Mas que é isso, meu amigo?! - É. Só abraçô e beijô. - Como solteira tinha o direito de namorar, não acha? - Eu sei que isso não tem nada a vê, mais me pertuba. - Perturba? Como? - Toda véiz que vô tê uma enrelação co’ela isso vem na minha cabeça e interrompi. - Olha, Chichico Venâncio, você não pode deixar o pensamento vir e se agarrar nele assim. - Eu fico querendo vortá no tempo, Doutô Mayrink. Me sinto muito culpado. Chichico Venâncio e sua comadre Santinha - 61
- Deixa o pensamento vir e não resiste a ele. Ele passa, Chichico Venâncio. - As pessoa que ela ficô eu tentaria... - Se você se fixar em pensamento negativo, vira um sofrimento. - Fico chateado porque eu conheci ela antes. - Antes de quê? - Dela tê abraçado e beijado. - Ela começô a trabaiá numa loja perto da minha casa e da minha tia. Se eu tivesse me aproximado dela antes, ela não teria se engraçado com ninguém. - Será? - Se eu tivesse conversado co’ela uma conversa mais real, eu acho que ela teria namorado comigo. - Então você tentou namorar ela uma vez, e ela não quis? - É. Ela não quis. Não foi só uma véiz não. Foi muitas véiz. Se a gente pudesse vortá atrás no tempo, né mermo Doutô Mayrink? - Voltar atrás? Nem todo mundo quer voltar atrás como você, Chichico Venâncio. Eu mesmo não quero. Estou muito melhor agora. - Se o senhô pudesse vortá atráis, o senhô pudia corrigi muitas coisa. Não poderia não Sô? - Não. Nem pensar. - Eu tenho até vergonha de conversá essas coisa com qualquer pessoa. Eu só conversei isso com ela e agora com o senhô. As pessoa se sobé pode até me colocá em situação falsa ou pior. - Por quê? - Elas vão tê uma idéia ruim de mim. Que eu sô um sujeito fraco. - E que mais? - Bobo. Porque isso é uma bobeira, né mermo Doutô Mayrink? - Não é bobeira não. Tudo indica que você tem um compromisso com a perfeição. Eu não sou. Você não é. Ninguém é perfeito. Perfeito é só Deus, Chichico Venâncio. - Tá vendo. Eu pensei que o senhô ia me entendê. Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 62
- Eu? Eu estou lhe entendendo perfeitamente meu amigo. - Eu pensei que o senhô ia me entendê porque o senhô tá acostumado a vê muita coisa Sô. Eu pensei... - Oh Chichico Venâncio, me perdoa. Eu talvez tivesse de lhe ouvir mais. Eu sou realmente muito precipitado às vezes para resolver as coisas. Mas eu estou lhe entendendo. E repito, perfeitamente, Chichico Venâncio. Totalmente. Claro que, quando a gente não está numa determinada situação, a gente fala mais tranquilo sobre ela, não é mesmo? - Sei não, Doutô Mayrink. - Eu não estou na sua situação, Chichico Venâncio. E é talvez por isso que eu posso lhe dizer o que estou lhe dizendo. Quando a gente está de fora, entende melhor. É mais fácil controlar uma coisa quando a gente nada ou pouco tem a ver com ela, não é mesmo? Vai. Pode confiar no seu velho amigo e médico. - Pois é. Eu fico insistindo com minha muié para mode dela me contá os detalhe. Eu quero sabê de tudinho. Tim Tim por Tim Tim. Ela começa a chorá e não fala nada. Eu quero sabê as coisa como foi com todas as minúcia Sô! - Pois é! Você está vendo? Você tem necessidade de controlar as coisas e quer que as coisas corram perfeitas. Se você entender que não existe essa possibilidade de perfeição nos seres humanos e que não se pode controlar tudo, você já começa a entender o seu problema. - Eu fiquei falando pra ela que tava tudo bem. Que eu não tava mais pensando nisso. Que meus sofrimento tinha passado. Só pra confortá ela Sô! Eu fiquei segurando. Mais não adiantô. - Você sabe que, sob o ponto de vista da razão, o que você quer é impossível, Chichico Venâncio. Apesar disso, esse pensamento atormenta você, angustia você, faz você perder muito tempo à toa sem a mínima possibilidade de sucesso. - Esse rapáiz não mora aqui na cidade. E não é que eu encontrei ele outro dia no Banco do Brasil? - E aí? - Aquilo parece que piorô a situação. - Por que piorou? - Não sei. Quando eu vi ele assim... Eu imaginei ela... Com ele. SenUma sábia orientação médica - 63
ti uma vontade danada de pulá nele. Senti um aperto na garganta e fiquei zonzo. Aí, toda véiz que eu me alembro vem um aperto e essa zonzeira. E vem tão forte que parece que foi onte. - Que situação hein, Chichico Venâncio? - Isso ficô entalado aqui, Doutô Mayrink... Engasgado aqui oh. Oh. Até que um certo dia eu fui pra um lugá mais longe e lá eu abri o jôgo pra ela. Falei que tava sofrendo muito. Implorei pra ela me contá tudo com os detalhe que perciso. Choramo. Ela chora mais que eu. Me dá vontade de chorá pra valê... Mas... Eu não choro... Eu choro só por dentro. Aqui oh. Ela chora, e a gente vê qu’ela tá chorando mermo. E ela falô assim: Eu nunca vi ôce assim, meu bem. Tão triste. Tão abafado. Chora, home! Desabafa! E me abraçô apertado. Essa é a minha Lalá. É uma santa, Doutô Mayrink. Eu que não presto. - Não é assim não, Chichico Venâncio. - Eu arrespondi pra ela: Não queira me vê chorando não, Lalá. Eu acho que ia chorá só se fosse uma tragédia. A última véiz que eu chorei foi na morte da minha mãe. Tem dezesseis ano. Eu estou com trinta e cinco agora. Isso tudo é uma tragédia, né mermo, Doutô Mayrink. - Talvez nem na morte de sua mãe você se permitiu chorar mesmo, não é mesmo, Chichico Venâncio? - Descarreguei mermo foi quando ela foi enterrada, Doutô Mayrink. É o momento mais difící Sô! - Você chorou? - Chorei muito e me alembrei quando tinha quinze ano. Meu pai tinha um ano que tinha abandonado minha mãe e eu. Fiquei num beco sem saída. Gostava dimais do meu pai e da minha mãe. Não consegui ficá do lado nem di um nem di outro. - Mas você continuou morando com sua mãe? - Claro. Mas passei a andá sem rumo pelas rua e chegava em casa só de madrugada quando ela já tava dormindo. No outro dia de manhã ela me xingava, me batia, falava pr’eu criá vergonha na cara e arranjá um emprego, porque percisava de dinheiro. À tardinha eu começava a andá em circo pela cidade passando perto da casa da minha mãe e do meu pai. Chegava a batê na porta da casa dele, mais não esperava, pruque vinha assim um pensamento me falando que, se ele atendesse, minha mãe ia morrê. Andava di novo e di novo me assaltava aquela vontade de vortá e batê na porta do meu pai. Quando chegava perto da porta, o danado do pensamento vinha di novo. Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 64
- ... - Todo dia era a merma coisa. - ... - Pro muito tempo eu fiquei na merma coisa. Despóis eu comecei a colecioná figurinha e acho que isso aliviô bastante mermo. Passava o dia inteiro trocando figurinha, matava aula, vindia coisa da minha mãe pra mode de comprá aquelas figurinha mais difice. O senhô alembra daquele álbu de jogadô da copa quando o Brasil foi Tri? - Lembro muito. Eu mesmo quase cheguei a fechar o meu. - Fechá um? Eu fechei trêis!! - E a Lalá? Quando você a conheceu? - Foi logo despóis do enterro da minha mãe. Ela era vizinha da minha tia, e foi ela e a mãe dela. Aquelas duas é igual... E... Quando ela veio me dá os pêsame, eu passei a gostá dela. Mas não tive coragem de falá logo isso p’r’ela. Quando eu vi ela saí um dia com um namorado que ela falô que não feiz nada co’ele, eu passei a ter que lavá as mão toda hora que alembrava dela. Passei também a ficá muito tempo tomando banho. Ficava quase duas horas no banho. Tomava banho não sei quantas véiz por dia. Dependia de muitas coisa. E passei tamém a contá os vagão do trein de minério quando ele passava. Se errava e não dava tempo de vortá a contá, ficava parecendo que ia me acontecê alguma coisa ruim. Purisso que eu queria podê vortá no tempo, Doutô Mayrink, pra mode d’eu podê consertá as coisa. - Pois é, meu amigo Chichico Venâncio, cabra valente, o que estamos vendo aqui é um homem querer voltar ao passado (uns quinze anos atrás) e sair corrigindo as coisas que ele hoje acha que deveriam ser diferentes. Isso é tarefa para um Deus, não é mesmo? Você quer ser ou é um Deus, Chichico Venâncio? - Claro que não Sô! - Claro que não o quê? - Eu não sou capaz. Ser Deus é difice. Difice até de pensá! - Então o que você vai fazer? - Lutá contra o pensamento como o senhô me falô. Agora está um pouco... Um pouco não, bem mais fáci pra mim a respeito desses pensamento. Uma sábia orientação médica - 65
- Por quê? - Pruque eu abri pro senhô, e a sua intenção foi me ajudá e não a de me atrapaiá. - Que bom, Chichico Venâncio, meu amigo. Que bom que você está me compreendendo. Mas você acha que tem alguém querendo lhe atrapalhar a vida ainda? - No fundo, no fundo, lá no fundinho mermo, Doutô Mayrink, a gente sempre pode tê qualqué hora um inimigo na vida. Às véiz o senhô ou uma outra pessoa pode me tratá como amigo, mas pode sê um dia um inimigo. - Você não acha... Você já pensou... Que o problema não é o outro e pode ser você mesmo, Chichico Venâncio? - É? Aí de novo! Tá vendo? O senhô tava me ajudando. Mas agora parece que o senhô tamém tá contra mim. - Oh Chichico Venâncio! Você não me leva a mal, mas tenho de ir agora para uma reunião lá no Diretório. Você quer vir comigo? E toma aqui essa receita. Passa lá no Tunico Costa Pinto. Tem um outro farmacêutico no lugar dele. Que coisa triste não é mesmo? Que morte trágica! Mas passa lá e manda aviar. - Ta bem, Doutô Mayrink. - Mas eu com toda a sinceridade quero também lhe dar um conselho sincero, de amigo, de pessoa preocupada com o seu bem-estar. Pode ser que você não vai gostar, mas é sincero. - Pode falá, Doutô Mayrink. - Eu sinceramente acho que você deve procurar um médico lá em Belo Horizonte. Se você quiser, eu vou lhe recomendar o nome de um muito bom. - Médico de quê, Doutô Mayrink. Médico eu já tenho o senhô. - É. Mas o seu caso agora está me parecendo que você pode ser ajudado também por um bom psiquiatra. - Psiquiatra? - É. - Médico de doido, Doutô Mayrink? - Não, Chichico Venâncio. Psiquiatra não trata só de doido não. Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 66
Trata deles também. Afinal eles também devem ser tratados por alguém, não é mesmo? Mas não é o seu caso. Você está é com uma obsessão. E o psiquiatra trata melhor do que eu essa condição. - Tá bem, Doutô Mayrink. Se o senhô acha que perciso, eu vô. - Muito bom, Chichico Venâncio. Que bom que você concorda. E acho também, Chichico Venâncio, com a minha experiência e a minha idade, com licença da má palavra, e aqui entre nós dois, que você devia é deixar de frescura e comer logo sua mulher, porque está sujeito outro cidadão comer ela. - Epa, Doutô Mayrink. Sai pra lá Sô! - Oh Chichico Venâncio! É verdade, meu amigo. Palavra de médico e de amigo.
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Capítulo 8
O obsessivo Chichico Venâncio e a histérica Lalinha - Oh diabo Sô! - Fica assim não, meu bem – Lalinha docemente consola o marido, que abandona o leito conjugal derrotado, mais uma vez. - Eu podia tanto conseguí Lalá – responde com a sua voz mais desvalida o Chichico Venâncio. - Fica tranqüilo, meu bem. Volta. Vem aqui. Vem. - Lalá, eu tento. Mas na hora vem esse pensamento miserave. - Você ainda vai conseguir, meu bem. Isso passa. - Lalá! Conta pra mim, Lalá! Tim Tim por Tim Tim. - Oh Chichico, não faz assim não, meu bem. - Conta, Lala! - Contar o quê, meu bem? Você sabe que eu não faço nada de errado, meu bem. O que eu faço é pelas minhas necessidades. E eu sempre aviso você antes, meu bem. - É isso é. Você sempre avisa. - E quando você insiste muito eu sempre acabo contando o nome do sujeito, meu bem. hora.
- Não. Eu quero sabê é na hora. Cumé que esses miserave faiz na - Que hora, meu bem? - Na hora que eles consegue fazê o fiio n’ôce, Lalá.
- Oh meu bem. Nós já conversamos isso muito. E você sempre fica sabendo. E eu faço com autorização sua. - Mas eu quero sabê, Lalá. Tim Tim por Tim Tim. O obsessivo Chichico Venâncio e a histérica Lalinha - 69
- Oh meu bem. Não fica assim se martirizando não. - Eu vou saí um pouco, Lalá. Vou ficá na varanda um tiquitinho. - Vai não, meu bem. Fica aqui um pouquinho mais comigo. - Não, Lalá. Eu vou saí um pouco, Lalá – Chichico Venâncio deixa o quarto do casal e vai para a varanda de sua casa da fazenda. O nosso Chichico Venâncio era, antes de tudo, um homem prático – um touro enfurecido e voltado às suas necessidades mais básicas – trabalho, sexo, comida. Agia sempre orientado mais pelo instinto do que pela razão, dotado de uma afetividade infantil, sensível a qualquer contradição (principalmente a ser interditado, humilhado, preterido) e refém de sua forma rasa e precária de pensar. Era um obsessivo na estrutura de sua personalidade, refém de um pai fraco, perdedor e ausente, e de uma mãe rígida, que, tão remotamente quanto ele podia recordar, cuidava com castigos em fazer com que tudo estivesse “em ordem” nele e principalmente com que ele se mantivesse limpo. Bem cedo ele se acostumou a colocar suas roupas, ao levantar, bem na ordem em que as vestiria em seguida. Mais tarde a perna e o braço direito tinham sempre de serem os primeiros a entrar nas roupas. Às vezes ele ficava com uma ideia – meia, calça, botina – fixa na cabeça e tinha de pensar continuamente nela ou mesmo falar interiormente a palavra. Desde criança se mostrava tristonho, temeroso, mas muito ambicioso. Sentia muita preocupação em “fazer tudo direito” e também medo diante das pessoas. Ao brincar com seus vizinhos sempre se mostrava muito sensível e facilmente se sentia magoado. Quase sempre se retirava e se ensimesmava pela mínima agressão ou injustiça do mundo. Na infância, sujeira já era algo desagradável, e um grande medo de ir às aulas o assaltava. Tinha de, em certo trajeto, alcançar uma determinada casa ou esquina com certo número de passos para que nada lhe acontecesse na escola. Sujava-se o menos possível e lavava-se sempre muito cuidadosamente. Sonhava repetidamente com cobras dentro de uma lagoa suja. E nessa época se retraía muito da convivência humana e buscava consolo na natureza e no trato dos animais. Na adolescência o ato de lavar as mãos tornou-se cada vez mais frequente. E sempre, apesar de saber que o homem tem de conviver com uma determinada medida de sujeira, não conseguia se libertar dessa ideia e da compulsão de lavar as mãos. Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 70
Não é justo, no entanto, generalizar, na falta de um pai que lhe desse correto sentido e limite na vida, numa vivência com uma mãe rígida e incapaz de expressar seu afeto através do corpo dela e numa educação repressora na infância, a gênese da estrutura obsessiva do nosso Chichico Venâncio. Sabemos que, mesmo em seres humanos de relações familiares favoráveis, existem hipersensibilidades e medos congênitos e tantas outras variáveis que podem ser utilizadas na explicação de por que uma pessoa se torna obsessiva. No início de sua vida adulta, apesar de seu progresso material rapidamente consistente, a insegurança passou a ser sua mais constante companheira e tão dramática que parecia vir do fundo de seu coração e de seu espírito. E ela, a insegurança, o fez estruturar um sólido sistema de defesa para resistir aos seus próprios impasses, aos desafios do contato com os seus semelhantes e com o mundo. Isso tudo o conduzia a constantes apreensões, dúvidas, medos e obsessões. Era, no fundo, um inquieto, um preocupado difícil de convencer, colocando objeções em tudo, duvidando dos outros e de si mesmo e tentando ultrapassar sua ansiedade através de um sistema cada vez mais complicado de “manias”, de rituais, com a compulsiva necessidade de contar, de verificar, de repetir atos. Um escrupuloso. Mas, sobretudo, um supersticioso, analisando as ideias que lhe ocorriam, sempre encontrando um significado estranho, frequentemente maléfico. Precavido de tudo e de todos, sempre se defendia com uma estratégia de tentar evitar os acontecimentos ou impasses mais estressantes, ou por tentativas de apagamento de suas ideias obsessivas. Chichico Venâncio impunha-se quase sempre obrigações complicadas e totalmente irracionais, como itinerários cheios de desvios, mania de contar seus passos, de limpeza, de desinfecções, tudo isso preso por um estado de angústia, de culpa, de pressa e precipitação, que o esgotava e desesperava, mas que era também fonte de um gozo apavorado. Dono de convicções tenazes que nenhum raciocínio lógico conseguia diminuir, pois lhe era sempre necessária uma demonstração perfeita, uma certeza absoluta, uma resposta sem caso particular nem exceção. A visão de prédios altos o angustiava, assim como os ângulos das ruas, e sentia vertigens quando estava em cima de uma ponte, ou debruçado em uma janela alta, e sensação angustiante de desequilíbrio e de ser atraído pelo vazio de grandes alturas. O obsessivo Chichico Venâncio e a histérica Lalinha - 71
Seus colonos o admiravam e o queriam bem, mas se ressentiam de suas atitudes sempre precipitadas e apressadas, porque era incapaz de esperar qualquer coisa calmamente – o tempo para ele passava muito lentamente. Por ter pressa de terminar aquilo que ele apenas começava, era extremamente ansioso quanto ao resultado de qualquer ação desenvolvida por ele ou por seus auxiliares. Emotivo, desconfiado, sem confiança em si mesmo, temia toda nova situação, principalmente as imprevistas, sobretudo aquelas em que tinha o risco de ser julgado ou comparado. Essas eventualidades desencadeavam-lhe crises intensas de diarréia, por excessiva preocupação com sua própria imagem e com a opinião do outro. Chichico Venâncio, como todo bom obsessivo, caracterizava-se desde o início de sua vida daquela falta irreparável do amor, esse fardo que é colocado nos ombros dos filhos criados num ambiente de culpa e inquietude, e da falta de contato físico principalmente com a figura materna. Parece que os pais do obsessivo dizem: - Vá, corra, voe e vingue-nos – por eles mesmos terem sido incapazes de ter sucesso nas suas próprias existências. Assim o obsessivo vai, corre, voa ao preço de sua identidade, de sua autonomia, sempre preso ao desejo de não perder, da indecisão eterna e da ambivalência entre o amor e o ódio, do ser e do não ser, do sentir e do não sentir, do fazer e do não fazer, com a ingente necessidade de não perder tempo, atirando-se sem retenção num atalho mortal que o pode levar ao cume que lhe dará todas as riquezas e o libertará definitivamente dele próprio e de sua insuportável dificuldade existencial. O obsessivo está enredado na confusão essencial de seu inconsciente entre “ser” e “fazer”. Perseguido pela culpabilidade corrosiva originária de sua fraqueza e por uma vivência cronológica precipitada que anuncia de maneira aterradora a hora dos prazos pesados das ameaças, a todo o momento, só consegue dizer: - “Já!” E mais. Prende-se constantemente a múltiplas complicações que ele próprio monta a título de mecanismo de defesa contra a angústia. Está sempre “em estado de urgência de ter” (ter feito, ter recebido, ter terminado...), interpondo, justamente nessa engrenagem sem fim, rituais (verificações, repetições de atos, contabilizações complicadas) que se junChichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 72
tam, se aproximam uns dos outros, muralha ao mesmo tempo protetora e cada vez mais isolante. Apesar disso e por causa disso, abordar a realidade (sair de si e de sua casa) torna-se um problema: medo de multidão e medo de lugar fechado retratam e evidenciam o processo neurótico de desadaptação, indo da angústia à fobia caracterizada, daí as evitações incontornáveis de tudo aquilo que (por associação irracional) pode evocar, mesmo de forma caricatural ou “deslocada” (no sentido psicanalítico do termo), a profunda evidência de seu mal-estar. Tendo medo de grandes espaços vazios, assim como de lugares grandes ou estreitos cheios de gente, fechados ou reservados, ele só é a angústia de agir, pois agir é um risco: risco da iniciativa, então, do erro, daí, da falta; risco de sua responsabilidade, de responder por ela, e em consequência de ser visto (angústia da opinião do outro) porque implica julgamento, em ser pesado e perseguido! Sempre condenado pelo que ele fez, mas, principalmente, pelo que se omitiu de fazer. Agir é tão angustiante que isto o “esvazia”: enfraquecido, pernas trêmulas, ele se esvazia também de uma maneira imperiosa através de uma diarreia ou vontade urgente de evacuar. Não posso deixar de relatar que Chichico Venâncio teve grande dificuldade em vir ao mundo durante o trabalho de parto demorado de sua mãe. O parto foi feito em condições precárias por uma parteira ainda inexperiente e temerosa de cortar as entranhas de sua parturiente para facilitar a saída da cabeça dele do canal de parto materno. A nossa Lalinha, essa não (desculpem a minha preferência flagrante por ela), era uma deusa do Olimpo grego baixada e travestida à tupiniquim – ora uma Atalanta, que suplantava todos os homens que a tentavam vencer, ora uma Perséfone, que fazia tudo aquilo que agradava ao homem amado, ora uma Hera, que proporcionava boas refeições ao marido, mas, fundamentalmente, querendo ou não, uma Afrodite, porque a expressão mais liberta e pura de uma natural sensualidade. Desde a primeira vez que a vi fui fulminado por um feitiço poderosíssimo e paralisante, que passou a roubar a minha vida real e me fazer como ajoelhar aos seus pés, encantado por ela – ora amando-a perdidamente, ora possuído por um ódio mortal e, às vezes, quase incontido. Dada a perspectiva do meu lugar privilegiado, sabia tudo (ou quase tudo) sobre ela e sua vida atual e pregressa. E mais do que qualquer um a compreendia, a admirava, a queria. Evocava em mim sentimentos O obsessivo Chichico Venâncio e a histérica Lalinha - 73
os mais díspares: admiração pela sua pungente capacidade de colocar cada coisa no seu devido lugar; cólera, porque cada vez que a via ou com ela convivia mais a perdia, ou sabia ficar mais impossível tê-la em meus braços um dia; fascinação pela sua beleza mais bela a cada momento e situação; não conformação pelo drama de seu dia-a-dia e pela minha incapacidade de poder ajudá-la concretamente. Via nela tudo aquilo que em mim ressentia – rebeldia, violência, drama, sexo, desejo, cortesia. Sua natureza era egoísta, individualista, instintiva. Não ostentava uma rebeldia por defesa de uma determinada ética, sociedade, ideologia. Não uma rebeldia heróica, épica, humanista. Ela desde pequena violentara os códigos do meio. Não em função de uma família, de uma sociedade, de uma humanidade, mas porque desde criança nunca se capitulara à opressão de seus desejos, apetites, fantasias. Era tão forte que conseguia se manter sozinha, centrada, decidida, mesmo sendo com todos e em tudo sentimental, impulsiva, sensível. Lalinha sempre fora capaz de enfrentar seu meio, sua família, seu destino, pelo seu incurável materialismo, pela sua predileção pelos prazeres do corpo sobre os da alma, por saber cercar sua vida de elegância, de refinamento, de aventuras, de risco, de generosidade, de simpatia. Sua vida sempre se realizou plena e totalmente no que e no momento em que vivia. Queria gozar a vida e não se submetia a se resignar ou se reprimir em sua profunda exigência sensual, e nenhum homem, por mais completo que fosse, conseguia satisfazer sua exuberância feminina. Nem mesmo a religião, ou qualquer filosofia e ideologia, foi capaz de forçá-la a aceitar a tão costumeira submissão de seus conterrâneos aos ditames do sectarismo religioso, da exploração econômica ou mesmo da sede humana de saber e poder. Seu marido, coitado, nem de longe a satisfazia. E só eu sabia ou achava que sabia. Aliás, somente eu, ela, aquele que há muito não conseguia, e... Bem, esse outro, era o Padre Antônio, que sempre lhe emprestava um ouvido atento, como padre e como amigo. Eu sabia por que era muito curioso de tudo e me colocava também atento e escondido. Acho que o Padre Antônio tinha mais sucesso com ela como amigo, porque nenhuma religião, filosofia, ideologia era capaz de forçar Lalinha a aceitar ou a se sujeitar a tão costumeira submissão humana de seus contemporâneos. Por isso eu a via como a uma deusa encarnada num corpo Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 74
de mulher e a cada momento me encantava com uma de suas facetas, todas elas se submetendo harmonicamente a um todo quase completo, quase acabado, ao mesmo tempo animal, humano, divino. Comecei a conhecer mais profundamente seu drama conjugal quando, premido pela minha paixão por ela - a cada dia mais esfomeada e mais sem perspectiva, me coloquei na Igreja em posições e situações em que me foram possíveis ouvir ora suas confissões, ora alguns dos diálogos entre ela e o padre da Igreja a que servia. Não quero me estender muito sobre minha pessoa e sobre a minha estória de vida, mesmo porque, como narrador dessa história para mim especialmente tão significativa, devo dizer apenas que era sacristão (fizera todo o seminário, mas na hora de me ordenar não tinha vocação), administrador da Igreja de Santa Maria do Desterro, da cidade do mesmo nome, no interior das Minas Gerais, e mais do que tudo amigo de Padre Antônio Brito. Ah! Ia me esquecendo de declinar o meu nome – Júlio Brito -, para todos na comunidade sobrinho do Padre Antônio Brito, na verdade, filho dele bastardo, mas consciente de ser muito amado e querido.
O obsessivo Chichico Venâncio e a histérica Lalinha - 75
Capítulo 9
Divisão de terras – um velho problema nas Minas Gerais
- Oh Deolindo! Uai! Leva tudo de uma vêiz, Sô! ... - Oia! Ocê ta levando só dois! Leva tudo Sô! E já falando com outro empregado: - Oh Rodézio! Oia aquele cavalo lá. Ele não fica naquele pasto não. Vai pegá ele Sô! ... E aí Chichico Venâncio se dirigia a mim: - Uai Sô! Se eu não mandá na minha casa, eu vou mandá adonde? Eu sempre tive um contato estreito com o Chichico Venâncio. Nunca nos visitou na igreja, nem mesmo nos batizados de seus filhos – Lalinha ia sozinha com sua veneranda mãe e, nessas ocasiões, com seu pai. Mas o Padre Antônio Brito não dava assim muita atenção a essa inimizade gratuita e escamoteada do marido de sua fiel mais protegida e querida. Íamos regularmente e sempre juntos à fazenda das Águas Claras – no mínimo duas vezes ao mês para almoçarmos aos domingos e esporadicamente quando Lalinha não podia ir a alguma reunião da beneficência cristã e solicitava o pároco para juntos colocar a agenda em dia. Muitas vezes fiquei com o Chichico Venâncio, na varanda panorâmica da sede da fazenda dele, a conversar relaxadamente, enquanto Lalinha e o Padre Antônio Brito se desincumbiam das tarefas da igreja lá dentro. Eu, como sempre muito curioso, me encantava verdadeiramente com o dia-a-dia, o mundo e a vida de nosso anfitrião. Deleitava-me com sua simplicidade, espontaneidade e principalmente com sua indômita coragem. Divisão de terras – um velho problema nas Minas Gerais - 77
Sim, ele era, sem dúvida, um homem corajoso. Acredito que a coragem é, vista como uma capacidade de superar o medo, quase sempre apanágio dos heróis. E quem não sonha no íntimo ser um herói? Ele. Chichico Venâncio. Nunca, nem de longe, aspirou a tal destino. Mas a coragem pode servir para tudo – para o bem e para o mal. E coragem para o mal pode ser maldade, terrorismo, fanatismo, que não me parecem valores positivos. “A coragem não é uma virtude”, dizia Voltaire, “mas uma qualidade comum aos celenterados e aos grandes homens”. Assim ela é uma excelência, mas não é moral nem imoral em si. Nosso herói era corajoso, mas ao mesmo tempo tinha a idiotice em certo grau e a falta de aprimoramento intelectual, artístico e mesmo espiritual. Lembro ainda muito bem de quando me contou da disputa de terra com um de seus vizinhos: - Como o senhor conquistou todo esse patrimônio, Chichico Venâncio? - Oh Sô Júlio, o meu pai era muito pobre. Não deixô nada pra mim. Mais meu tio, quando morreu, deixô um pedacinho de terra lá pras banda do Sô Jerônimo. Um cerrado no arto da serra. Pra entrá nele só a pé, com muita dificulidade. Arrumei uns sete home. Levei pra lá. Fiquei lá seis mês garrado no trabaio comendo na marmita. Despóis mioró um cadiquinho. No todo fiquei lá um ano mais ou meno, um ano e tanto. Botei tudo arrumadinho. Fui comprando de pouco a pouco uns bezerrinho e botando lá. Cheguei a tê uns cinquenta bezerro lá. Não cabia cinco. Comprei o terreno por meno de vinte conto, vendi despóis por oitenta mil. - ... Percisava do dinheiro pra comprá outra propriedade lá perto do Daniel. Mil e tantos metros de terra. Os minino dele não quiria ajudá ele. Ele perdeu a otoridade co`eles. Não adiantava mais. A muié dele fugiu co`outro. Ele ficô desacossoado. A vida dele acabou. Foi aí que eu não comprei lá perto do Daniel e comprei aqui. Dei tudo de entrada que tinha. Fui pagando devagarzinho. Ele era um home tão direito que me deu a escritura bem antes d`eu acabá de pagá. Ele tinha medo de morrê e os fiio dele criá confusão comigo. Ainda bem qu`eu paguei tudo antes dele morrê. - Foi ele que ensinou o senhor a comprar gado, não foi? Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 78
- Foi. - Qual era o segredo dele? - Uai Sô! Ele tentava comprá pelo preço mais barato possíve e vendê pro preço mais caro que existe. - Esse era o segredo? - É. Comprá mais barato e vendê mais caro. Comprá por cinquenta e vendê por cinquenta e cinco ou sessenta. - E como é que ele escolhia o gado? - Ele é muito esperto. A medicina era essa. Primeiro é mostrá que não tá interessado. Despóis vem o cumprimento do boi. Um tem uma pá desse tamanho; o outro, desse tamanho. Um dá uma picanha desse tamanho. O outro dá desse tamanho. Qual qu`é mió? Tem um boi que não cresce, e outro que cresce muito. Qual qu`é mió? E para comprar gado, engordar e levar para o frigorífico, como era? - Oia, ele chega num curral e escoie cinquenta ou sessenta boi; oiava o peso, o tamanho, a raça e daí por diante. Um boi de dez arroba não dá proveito algum, né mermo? Um boi curtinho, leve, não serve; não dá proveito algum, né mermo? Boi tem de tê padrão - o boi tem de tê dezoito arroba, vinte arroba. Tem que comprá o boi bão. Ocê vai vendê uma carne pro Rio de Janeiro pru exemplo. Ocê não pode mandá um filé, um contrafilé cada um de um tamanho, né mermo? Isso é padrão, entendeu? A gente pode comprá cinquenta boi e bão mermo dá cinco. Um bezerro bão vai dá quinze a vinte arroba em dois ano; às vêiz um boi de dois ano dá quinze arroba e o outro com três ano não deu quinze arroba ainda. - E qual era o boi bom naquela época? - Era o nelore cruzado com tecerá ou o nelore bão puro; o gyr; o gyr com holandês dá o girolando: bom pra dá leite. - Ele conseguia vender o gado com facilidade? - Vindia. Ele tinha muita experiência. Ele tentava vendê o boi por um preço mais caro que existe. A gente tem de tá interessado no volume do boi. A gente não compra boi só bão não. Comerciante compra tudo. Até o ruim. A gente compra boi ruim tamém. Tem aquele marinheiro de primeira viage que ocê vende o ruim pra ele como bão. Tem de tudo nesse mundo, né mermo? A gente vende tudo pra ele. - Quer dizer que tudo era no olho, não é? Divisão de terras – um velho problema nas Minas Gerais - 79
- Tudo nos oiô. O boi bom, o touro, a gente vê pelos oiô. Tem a sorte tamém. Nasce aí duzentos bezerro; às vêiz não dá um pra touro. Nasce aí cem leitão e não dá um pra cachaço. Nenhum, né mermo. - Qual o tamanho de uma fazenda boa naquela época, Senhor Chichico Venâncio? - Oia, fazenda boa tem que tê de cem alqueire pra cima. Duzento alqueire já começa a ficá bom. - Mas o Daniel era muito poderoso naquela época, não é, Chichico Venâncio? Era dono de quase toda a terra aqui em volta de Santa Maria do Desterro, não é mesmo? - Era. Oia eu alembro que um dia ele foi visitá um Coronel amigo dele que tinha uma fazenda lá embaixo. Ele me levo co´ele. Ele foi lá na fazenda e passô a tarde lá. Despóis meia noite nóis viemo embora. Tava uma chuvinha fria e os cavalo veio derrapando um pouquinho. Quando nóis chegô lá na Fazenda dele tinha um punhado de polícia lá dentro da propriedade. Uns quarenta polícia. O pessoá penso que ele tinha sido sequestrado. - Que é isso? É mesmo? - Pára lá senão vem tiro - um milico gritô. - Pra lá ôce tamém - arrespondeu o Daniel. - Eu tamém tô com a minha aqui – falou. - Algum gritô: - É o Daniel co´o Chichico. Ele foi chegando... Levô os praça pra tomá café. Ficô tudo bem. Mandô fornecê, pra cada um, um saco de fruta e outro de mantimento. Eles ficô tudo sastifeito. E eles despóis foi embora. - Ele gostava do senhor porque o senhor tinha fama de homem corajoso, não é mesmo, Senhor Chichico Venâncio? - Não. Ele gostava de mim de graça. Uma véiz ele disse que me achava muito trabaiadô. - É, pode ser. Mas bem antes dele morrer, ele mesmo me contou uma estória dele pegando um documento lá na Prefeitura. E ele riu muito com a braveza do senhor. - É mermo, eu alembro. Ele contou essa estória? - Contou - o rosto de Chichico Venâncio se abriu num largo sorriso maroto. E incontinenti lembrou o ocorrido: Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 80
- É alembro bem ainda. Um dia eu fui capangando o Daniel lá na cidade: ele ia pegá um documento. Esperou muito: às vêiz ele tinha muita paciência. Lá tava um rapáiz atendendo os outro e conversava... Conversava... Ria... Brincava... com os outro funcionário. Quando chegô a vez do Daniel... O Daniel falô co`ele o que queria e ele nem oiô pro Daniel. O rapáiz despóis disse: - Vorta daqui quinze dia. - Eu peguei ele pelos colarinho: - Oh fedaputa, ôce me conhece, Sô! Eu sô home e sô macho, Sô. A obrigação sua era nóis chegá aqui e ôce tratá a gente direito, Sô. Até oferecê pra nóis um copo d´água, Sô. Tamo aqui tem duas hora esperando. E ôce brigando, rindo, caçoando e nem oia p´ros outro e pra nóis ôce não oia Sô! Chama lá seu chefe qu´eu quero conversá com os dono do porco, não com a porcada não. ... - E não fiquei ainda muito satisfeito não. Ai eu falei brabo: - Ocê sabe quem é seu patrão. O rapáiz assustado me encarô assim meio de lado e arrespondeu: - O quê? - Ocê sabe quem é seu patrão - arrepeti. E como ele ficô mudo, eu falei: - Sô eu, viu? Eu sô seu patrão, viu? Se ocê não me atendê direito, eu corto ocê no couro. Corto ôce no tiro. Fedaputa! ... - O rapáiz fugiu lá pra dentro. Deve tê ido pro banheiro pela cara dele. Sabe o quê que fiz? - Não. - Eu dei um murro na bancada. Todo mundo ficô me oiando e oiando um pro outro. Não é que apareceu um home mais vêio, abriu a porta e pediu pra nóis entrá e se assentá. Eu raiei: - Não. Não vô assentá não. Tamo bem em pé mermo. Eu quero é vê como é qu`ôces vai arresolvê nosso negócio. Quem tem direito tem direito, não tem não, Sô? Veio aí uma mocinha muito serelepe, com cara de assustada, tremendo, e ofereceu nóis um copo d´água. Pra não fazê desfeita o Daniel aceitô. Eu não. Continuei com a cara fechada. O Daniel tomô a água de um gole como se toma uma pinga boa. Devolveu o copo. Agradeceu ela com a cabeça. O vêio falô: - Eu mermo vô olhá o caso do sinhô, Sô Daniel. Pode vortá aqui amanhã à tardinha que seu documento vai tá prontinho. Divisão de terras – um velho problema nas Minas Gerais - 81
- Eu vortei lá no outro dia. Não é que tava pronto mermo Sô! Aproveitei então que o Chichico Venâncio se mostrava em um de seus bons dias e perguntei sobre a briga dele com o vizinho sobre as divisas das terras deles. Sabia de todos os mínimos detalhes da demanda, mas não havia ainda ouvido o relato dele próprio.
ele?
- Hi! Esse caso já tem mais de cinco ano. O senhô chegô a conhecê - Cheguei.
- Ele era muito ganancioso. Um mongolóide, né mermo? Ele pegô uma famazinha, pruque ganhô um pouco de dinheiro e achô que tava com o rei na barriga. O povo vinha tratando ele com muita amizade, com muita senhoria e ele não entendeu. Um famacêutico de bosta. E o povo tratando ele de dotô. É muito atraso, né mermo? Querê sê uma coisa que não é. A gente não entende. Uma coisa que não tem nem explicação. Ganância mermo. Querê só pra ele. Querê tomá tudo dos outro. Dinheiro não é tudo não, né mermo? - É? - Nunca foi, né mermo? Dinheiro faz falta mais... Nóis brigou por ganância dele. Só por ganância. Nóis pudia ser amigo até hoje. As vêiz mais tarde eu pudia até vendê as terra pr`ele. A minha fazenda é pequena, mas é boa; a dele é grande, mas é ruim. - Como assim? - Uai Sô! A minha terra tá na margem do rio e tem água. A dele ta lá encima e não tem água. O terreno dele é abarrancado. A chuva vem e joga o esterco da terra dele todo pra minhas terra. São consequências, né mermo? - O farmacêutico queria tomar a terra do senhor sem mais nem menos? - Era. O home começô a ficá valente e queria qu`eu fosse imbora. O irmão dele um dia falô com algum e chegô nos meus ouvido: - Ah aquele home – tava se arreferindo a eu - a gente marra ele num cavalo e corta ele no chicote e puxa ele daí. - Eles era meio metido a valente. Foi coletô lá no Guarani mais de ano e vivia impondo... Matô um home lá, covardemente. Tinha o rei na Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 82
barriga mermo. Era bruto. E não é por aí, né mermo? Eu cansava de dizê: - Eu não sô de briga por qualquê coisa não, Sô. Mais não tenho medo de nada, porque ando ... Toda vida andei certo com meus negócio... Eu só não gosto de padre e de igreja. Mas cá pra mim eu tenho uma religião muito boa, graças a Deus. - E o farmacêutico? – perguntei logo, porque o Chichico Venâncio, quando falava na mãe dele e em religião, ficava dando volta como cobra cega. - O famacêutico queria que a fazenda dele viesse na beira do rio e ela nunca veio. - Mas ele tentou comprar um pedaço de terra do senhor? - Nada. Conversô nada. Comprô nada. Aproveito qu´eu tava viajando e arrancô a cerca e pôs a dele. - Como? - Arrumô lá um jagunço e mudô a cerca de lugá. Não propôis nada não. Falô que o pedaço de terra era dele. - Mas como? - Lá passava uma estrada de ferro nos limite de fora da propriedade dele. A Vale do Rio Doce endenizô todo mundo. Desativô a estrada. Rancô os trio e os mourão. Passô a estrada bem lá pra cima. Ficô lá um caminho no lugá da estrada, né mermo? Como o fulano não tinha mais o tréin de ferro para segurá ele, ele achô de chegá as terra dele até o rio passando pela minha fazenda. Entendeu? - Sim. - O caminho não era meu nem dele, certo? As terra minha ia ficá dali pra baixo, e eu ia deixá ele ficá dali pra cima. O Nego que tinha um pedacinho de terra ali encima queria um pedacinho tamém. - ... - Eu achei justo. Mas o fulano queria era ficá com o trecho inteiro. Conversaro muito e não chegaro num acordo. Aí eles acharo de ií lá num chefão da Vale pra tratá do assunto. Fizero a reunião num acampamento lá embaixo. Fumo os tréis: Eu, ele e o tal de Nego. Na reunião o doutorão perguntô: - E você, fulano, o quê que você quê? - Ah, eu quero a linha toda – ele arrespondeu de pronto. Divisão de terras – um velho problema nas Minas Gerais - 83
- Perguntô pro Nego. - Eu tamém quero a linha toda – ele arrespondeu. - E o sinhô, Sô Chichico Venâncio? - Eu não quero nada não, doutô – eu arrespondi. - Pensei: - Briga de tréis home macho; todo mundo tá quereno; tinha que descê a lenha, né mermo? - É. - O chefão não falô nada; nem que sim, nem que não. - Acabô a reunião lá; o pessoá foi saindo e o fulano falô assim: - Oh Sô! Agora a linha é minha, Sô. Tá bom, Sô! Vô pô uma porteira lá e seja o qui Deus quisé Sô! ... - E o quê que ele fez então? - Foi aí que o fulano mandô fazê uma cerca no meu terreno estendendo a terra dele até no rio aproveitando da minha ausência. Quando eu cheguei fui avisado e fui lá com uns empregado da fazenda e mandei rancá a cerca. Cheguei lá na hora e encontrei um capanga do famacêutico tomando conta. Eu mandei avisá ele que encontrava co´ele no outro dia sete horas da noite num lugá pro nome de grotão. - Porque no início da noite? - Pruque claro que ele ia levá uns capanga e eu ia levá os meu tamém, né mermo? E eu conhecia bem a situação do local e na hora já tinha gente açapado, agachado, espaiado pra tudo quanto é lado. Nóis ia furá ele e os acompanhante dele igual uma peneira vêia. - E ele apareceu lá na hora marcada? - Apareceu. Ele, o irmão dele e um capanga. Divia tê outros escondido, né mermo? Eu tava parecendo que tava sozinho e fui logo dizendo: - Ôce não é home não Sô? Eu chamei ôce sozinho, Sô! ... - Eu tava com uma garrucha na cintura e um rifle de ripitição balançando co´a mão direita. Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 84
- ... - Como ele não desceu do cavalo e não falô nada, eu provoquei: - Já que ôce quê tudo vai ficá sem nada, Sô. E se mexê com aquela cerca de novo eu te mato. Não vou marcá mais lugá não. Na hora que ôce meno esperá ôce tá morto. ... - Ele continuô parado, sem falá um “a”. ... - Mais ôce pode deixá de sê covarde e me matá ou mandá um jagunço seu me matá, Sô. Meus home já me prometeu matá ôce e toda sua famíia. Não vai ficá um pra contá a estória, Sô. ... - O irmão dele chegô com o cavalo perto dele e falô baixo alguma coisa só pra ele ouví. Ele continuô olhando firme pra mim uns tempo. Eu armei o rifle e apontei pra ele. Ele fico mais um pouco. Deu meia-volta e os tréis foro imbora. O jagunço pouco tempo despóis abandonô ele e entrô na Justiçia contra ele. Ele morreu num cobre bão, porque o jagunço sabia de muita coisa e podia complicá pro lado dele. - E o irmão dele – provoquei. - Ah! O irmão dele foi assassinado dois ano despóis. Humilhô um caboclo que tava tomando umas pinga lá no baixio. Ele não conhecia o sujeito. Despóis ficamo sabendo que o sujeito já tinha matado vinte e oito home. O forasteiro não gostô e ali mermo espetô uma peixeira na barriga dele. O home tava tão nervoso que puxô ele pra fora e na rua cortô o pescoço dele até separá a cabeça do resto do corpo. Coitado! Tá preso lá na penitenciária tem quinze ano. E até onte já passô mais de cinco ano e a cerca não foi ainda mexida. não?
- Esse pedaço de terra nunca foi registrado no nome do senhor
- Não. Não percisa não, né mermo? Terra não tem jeito dos outro carregá ela né mermo? Esse negócio de registro vale muito e não vale nada. Quem ia querê entrá lá? O sinhô vai querê entrá lá, vai? - Não. - E outro vai entrá? Divisão de terras – um velho problema nas Minas Gerais - 85
- Acredito que não. - Pois é. Não percisa de registrá, né mermo? - E o outro homem do pedacinho de terra? - O Nego morreu. Eu despóis comprei o pedaçinho de terra dele da famíia dele.
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Capítulo 10
O Doutor José Cândido Mayrink
Sim, a meu ver, o Doutor José Cândido Mayrink foi, sem dúvida, um dos maiores médicos que Santa Maria do Desterro teve. Quando se formou médico no Rio de Janeiro, em 1923, um de seus professores, entristecido com sua decisão de trocar a carreira acadêmica pela vida de médico do interior, lamentou com um de seus colegas da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil que “a ida de José Cândido Mayrink para Santa Maria do Desterro equivaleria à perda de um cientista do gabarito de um Osvaldo Cruz para a ciência nacional”. A sua tese de graduação médica versava sobre Epilepsia e pontificava no seu primeiro parágrafo: "A Epilepsia ou morbus herculeus ou morbus demoniacus (doença de Hércules... doença do demônio...) é uma doença de fundo neurológico..." Cientista por formação, dono de uma cultura humanística consistente, era, no entanto, político por natureza. E talvez por essa sua índole, apesar da promissora carreira universitária, que de início o seduziu, preferiu retornar à querida terra natal e, ali, em cada dia de uma longa e profícua existência, exercer junto aos seus conterrâneos a difícil Arte de Hipócrates. Era um integralista roxo: o que o Plínio Salgado falasse era lei. Numa certa feita, numa reunião do diretório municipal do Partido da Representação Popular, PRP, em Santa Maria do Desterro, houve uma discussão entre ele e outro médico local, de família tradicional, muito rico, e que, apesar de ainda muito jovem, não exercia mais a medicina. Dr. José Antônio Cupertino, mais conhecido como Dr. Antoninho Cupertino, que no calor de uma argumentação, dirigindo-se ao Dr. Mayrink, disse: - Deco (era sua alcunha para os íntimos), você não serve para ser político, porque você é rancoroso. Essa consideração atingiu o Dr. Mayrink como uma punhalada. Ato contínuo, sua fisionomia demonstrou todo seu pujante desapontamento. Levantou-se e, dirigindo-se a todo o grupo, anunciou: O Doutor José Cândido Mayrink - 87
- Senhores e demais presentes. Vão me dar licença. Retiro-me da reunião. Retiro-me do partido. Retiro-me da vida política local e nacional. Rumou para sua residência. Chegando, confidenciou todo seu pesar à Dona Nitinha (sua esposa, homônima e prima primeira da esposa de seu ofensor, Dr. José Antônio Cupertino). Rio Casca tinha duas Nitinhas - a Nitinha do Dr. Mayrink e a Nitinha do Dr. Antoninho Cupertino -, ambas verdadeiros exemplos de bondade, distinção e respeitabilidade. Foi assim que o Dr. Mayrink desabafou todo seu ressentimento: - Nitinha, o Cupertino me ofendeu. Chamou-me de rancoroso, coisa que eu não sou. E, após citar todas as definições léxicas do vernáculo "rancoroso", tomou um banho e foi dormir. O tempo passou. A vida seguiu seu curso normal. Eis que o Dr. Antoninho Cupertino cai doente - uma dor nas costas e uma febre ardente que o acamou. Pediu à sua Nitinha: - Chama o Dr. Galba. Dr. Galba examinou-o, detidamente, e ponderou: - É. Estou achando que com esse negócio seu você tem que ir pro Rio ou pra Belo Horizonte. Mal o médico deixou o quarto do doente, o apelo continuou: - Chama o Dr. Juquita. Nova espera, novo exame, a mesma condenação: - Concordo com meu irmão Galba: você tem de ir para um centro maior. O Dr. Antoninho Cupertino não concordou: - Chama o Dr. José Martins Pinheiro. A perspectiva não mudou. Esse nem chegou a avaliar seu sofrimento clínico. - Oh! Antoninho. Você sabe que eu não estou mexendo mais com medicina. O PSD tem-me tomado todo o tempo. Não estou sabendo receitar mais nem uma cibalena. Desesperado: Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 88
- Chama o Dr. José Rezende Barros. Nada de solução. Sobrou quem? Dr. Antoninho Cupertino, desesperado, deixou escapar para a esposa: - Nitinha, vou morrer. Se eu chamar o Deco aqui, ele não vai me ver. Ficou meu inimigo mortal. - Não, eu converso com a Nitinha, minha prima. Deco tem um coração maior que o corpo. Ele vai cuidar de você sim. Deve-se ressaltar que o Dr. José Cândido Mayrink era um grande pneumologista. Um daqueles médicos de grande intuição e grande saber. Contam que "passava um sujeito tossindo, na via pública, e pelo timbre da tosse do transeunte, ou sabe Deus porque, gritava": - Fulano, vai para Belo Horizonte. Procura o Souza Lima lá e pede para ele levar você lá no Hugo Werneck. O cidadão ia e estava tuberculoso. Não demorou nada, e as duas primas se falaram. A esposa do Dr. Mayrink atacou: - Deco, você vai lá ver o Antoninho. Seus colegas todos já passaram lá e não puderam ajudar. - Eu, não. Eu sou rancoroso. Dona Nitinha, muito persuasiva, ponderou todos os argumentos que poderiam sensibilizar o coração do marido. Em vão. - Não vou. Eu sou rancoroso. Atacou fulminante: - Não estou reconhecendo você. E o seu juramento? Você não tem que atender até um inimigo seu? Foi o bastante. - Eu vou, Nitinha. - Que bom! Neco, eu sabia. Você tem um bom coração. - Eu vou, mas você vai ver. Eu vou fazer uma coisa para que os pósteros tenham conhecimento. Era fevereiro. Sol a pino. Um calor abrasador, torturante, aflitivo. E, como se preparasse para uma batalha, o Dr. Mayrink ordenou: - Nitinha, traz minha capa gaúcha. O Doutor José Cândido Mayrink - 89
Veio a capa gaúcha. Vestiu-a, demoradamente. - Nitinha, traz meu chapéu Paramount. Colocou-o, solenemente, na cabeça já alva e rala. Pegou sua maleta de médico. Saiu. Ao invés de descer cinco quarteirões na avenida Senador Cupertino e vencer a distância que separava sua residência da mansão do Dr. Antoninho Cupertino, encaminhou-se para a praça central, a pé, chamando a atenção de todos os que passavam, tanto pelo inusitado do traje àquela hora, quanto pela sua marcha decidida, intrépida, resoluta. Ao longe avistou um dos motoristas de praça, filho de um velho amigo e cliente, e gritou: - Taquinho, vem aqui, para você ser testemunha para a história de um ato que eu vou fazer. - Dr. Mayrink, o quê que foi? - Taquinho, não discuta comigo. Venha comigo. Saíram os dois andando, um atrás do outro, o Dr. Mayrink na frente e o Taquinho humilde e estarrecido atrás, e pensativo com seus botões: o Dr. Mayrink de capa gaúcha, de chapéu, no mês de fevereiro, num calor desse; mas que estranho? Taquinho - e toda a população da Zona da Mata - estava acostumado a ver os grandes fazendeiros portarem sua capa gaúcha, para tanger o gado, para percorrer suas terras, mas quando das baixas temperaturas do inverno. Quando chegaram à residência do Dr. Antoninho Cupertino - colunas gregas, gradil e portão de ferro, escada de mármore de Carrara, com a inscrição na parede frontal: "Vila Nitinha" -, o Dr. Mayrink tirou a capa gaúcha, dobrou-a, colocou-a, no passeio, e anunciou: - Taquinho, você é testemunha para a História. Tirou o chapéu e colocou encima da capa dobrada. - Taquinho, aqui nessa casa está entrando um médico, porque aqui está ficando o José Cândido Mayrink. E acreditem, prezados leitores, o nosso doutor entrou, examinou seu paciente, tratou dele alguns dias e curou o Dr. Antoninho Cupertino, mas o José Cândido Mayrink fez questão de ficar do lado de fora, nunca mais entrou naquela mansão.
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Capítulo 11
Mea Culpa
… - Lembro-me muito bem do enterro dele. Finalmente, havia descansado o homenzarrão. Homem valente, vida infeliz, triste sina. A cidade inteira estava lá. O Padre Antônio (brincadeira!) fez uma prática comovente. Enalteceu todos os seus predicados em vida, mas naturalmente deixou de lado seu lado escuro, sombrio, mesquinho. Pessoalmente, fiquei todo o tempo indiferente; ele me fez muito mal e paguei na mesma moeda. Deus, de vez em quando, precisa de uma ajuda humana para fazer justiça. Fiz minha parte, nem mais nem menos, me defendi. - E a viúva? - Coitada da viúva. Parecia um espectro, um fantoche, uma múmia; primeiro em casa sentada ao lado do caixão o tempo todo; depois andando com um terço na mão, acompanhando o féretro, amparada por duas tias velhas e solteironas, na ida e na volta ao cemitério. - Os filhos... - Dos sete filhos e filhas, somente o Zequinha faltou; permaneceu deitado, encolhido como um feto, sem comer e sem dormir, indiferente a tudo e a todos, como já estava há quase um mês. - Que melancolia, hein? - É. No final do enterro, choveu, choveu, choveu. Parecia que o mundo ia desabar. Quem sabe foi para limpar todos os rastros deixados na terra pelo falecido ou para aliviar de nossas mentes todas as lembranças dele. - Não você sabe. Isso não tem nada a ver com Deus, isso é coisa dos homens. ... - Eu sei. Mas ele não sai fácil da minha cabeça. Era um bruto como ele só – a rudeza em pessoa. Destacava-se entre todos pelo porte, alto Mea Culpa - 91
como um jequitibá, mas era avermelhado e pesado como um jatobá, e tão grosso, largo, e falante, quanto uma samauma. De uma força de imobilizar com somente uma das mãos um animal – boi, cavalo, jumento – e castrá-lo, sem constrangimento. - Diziam as más línguas, e com toda razão, que sua única fraqueza era sua esposa – não propriamente ela, mas a beleza dela. De um lado, sua força descomunal, do outro, aquela mulher irradiante, viva, impossível de ser apagada ou escondida. ... - Ao levantar, consumia uma rapadura, um jarro de coalhada e ia para o curral beber os seis litros de leite da mimosa, vaquinha que vivia somente para completar, diariamente, seu café da manhã. - Um pouco exagerado, não? - Sim, deve ter um pouco de exagero, mas corria solto que comia no almoço e no jantar cinco a seis pratos de comida, cheios, em cada repasto. - É possível. - Não bebia, não fumava, não jogava, mentia somente quando absolutamente necessário, não era refém de qualquer outro vício ou desvio. - Católico? - Não praticante. Só entrou na Igreja três vezes – no batismo, levado pelos pais, no casamento, por força do destino e ameaçado pelo pai da noiva, e quando encomendaram seu corpo. - Escolaridade? - Formal, acadêmica, nenhuma. Analfabeto, sim senhor. O que não lhe causou qualquer dificuldade, pois nunca precisou ler ou escrever uma linha sequer para sobreviver. ... - O trabalho diuturno desde a infância na lavoura, na pequena pecuária e no comércio de uma coisa e outra, aos trinta anos de idade, o tornou senhor de uma sesmaria, de uma tropa valiosa de burros e de uma digna moradia para os padrões da época e do local. ... Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 92
Foi aí que se deparou com a Lalinha e seis meses após ela já era a famosa e cobiçada Dona Lalá do Chico Venâncio. O casamento foi todo certinho, mas se sabe nos bastidores que a noiva já estava grávida e que o pai dela não era desses de engolir desaforo fácil. - É. Isso é muito natural. - Mas é provável que tenha casado virgem do contato com mulheres, a não ser que a vida campestre e a lida com tantos animais possa ter propiciado sua iniciação sexual bem mais precocemente. - Nem sempre, por quê? - Eu já havia especulado e tinha informações precisas. Ele era impotente. ... - Três meses após nasceu o primeiro filho dos sete do casal, praticamente um cada ano, e a vida deles foi se fazendo como Deus foi permitindo. - É. Deus, os homens e tantas outras variáveis, não é mesmo? - Acompanhei sempre tudo muito de perto. E aquela mulher me perseguia, teimava em se intrometer no meu pensamento e quanto mais a tentava afastar da minha mente mais insistia. - Perigoso. - Aos dezoito anos, já era mãe de dois filhos. De uma formosura que eu tinha de tirar os olhos dela sempre que a via, para não pecar por cobiça – assim era a Lalinha. ... - Uma conduta irreprimível. Sua vida era a do lar e dos trabalhos na Igreja. Seguiu a trilha de sua mãe. Religiosa, prendada, prestativa. ... - Dois anos haviam passado, e, numa manhã, a cidade acorda aterrorizada pela crueldade da notícia – um vaqueiro fora encontrado pendurado numa árvore, morto por dezenas de facadas no peito, sem os dois olhos e emasculado. Era um dos três homens de confiança do Chico Venâncio, íntimo da família dele, pai de seis filhos menores, casado com Dona Clotilde, mãe de leite de seus dois filhos. Fui chamado ao local, mas, quando cheguei, já o haviam retirado, estava coberto por um lençol branco, aguardando a identificação policial. Mea Culpa - 93
- É, de toda maneira, era impossível chegar a tempo. - Há quanto tempo foi isso? - Exatamente dia 24 de agosto de 1954. O dia do suicídio de Getúlio Vargas no Catete. - Então, há quatorze anos e seis meses atrás. - Sim. A população de Santa Maria do Desterro acompanhou atenta, solidária e principalmente curiosa a caçada ao facínora, e qualquer outro assunto diuturnamente por muito tempo não conseguiu atrair ou interessar seus moradores. ... - Todas as possibilidades e mais algumas foram levantadas pelo povo, desde a de ser obra do maligno (brincadeira!), passando pela possibilidade de suicídio, até as mais engenhosas estórias de acerto de contas. - É muito natural. - Claro. O tempo foi passando, e como tudo na vida, outros acontecimentos menores foram se destacando, e um ano após o assunto já era coisa gasta, vazia, inexpressiva. - É assim o mundo dos homens. - Mas, de repente, o farmacêutico local, homem sensato, de fala mansa, recentemente divorciado, que também exercia a função de conselheiro local, e meu amigo íntimo, dá entrada, no final da tarde, morto, por enforcamento, amarrado no seu cavalo, sem os olhos e mutilado na genitália, como o vaqueiro há um ano. - E aí? - A tragédia não ficou restrita à jurisprudência local e um delegado da Capital foi designado pelas altas patentes políticas e veio com mais dois policiais investigarem o fato e convocaram a ajuda do delegado Pepe Maura e de seus sequazes. Instalaram-se numa casa alugada, na praça da Matriz, e gemidos e ranger de dentes, por dois ou três meses, assolaram a nossa pequena comunidade. Desta feita, a coisa não ficou somente com os mais humildes, e muita gente de nome foi instada a comparecer e a prestar declaração. A vida de cada um e de todos foi investigada, e muita intimidade foi devassada, evidenciada, execrada. Nem mesmo eu fui poupado do alvitre, da infâmia, da ignomínia. - É, ninguém está acima da lei e da opinião pública, não é mesmo? Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha - 94
- Um aspecto positivo, porém, se fez presente. Nesse clima de terror, de medo, de inquisição, a vida da comunidade quase ia atingindo a perfeição dos bons costumes e da completa ordem. - Mas... - Mas numa madrugada de lua cheia, o delegado, todo poderoso, é visto em desabalada correria, na estrada que dá acesso à cidade, totalmente nu, atemorizado, como se estivesse fugindo de alguém em seu encalço, e a investigação, naturalmente, no dia seguinte foi interrompida, para a paz de todos e de alguns pecadores mais renitentes. - A cidade ficou desprotegida. - Uma verdadeira lástima. Os crimes, os roubos, as brigas aumentaram; ninguém respeitava mais ninguém. Ficamos todos reféns de nossos instintos e tendo de defender por conta própria a nossa sobrevivência. - Naturalmente. - E pior. Tudo, por mais escabroso que fosse, parecia normal. Ninguém mais se surpreendia, se revoltava, se condoía. Tanto assim que todo mundo só especulava quem seria o próximo a perder os olhos, a genitália, a vida. ... - Tanto assim que, quando o quarto crime aconteceu, ainda deu certo reboliço, mas o quinto já constituiu um fato gasto, provável, rotineiro. - E o senhor, como o pároco, nada suspeitava, nada sabia? - Tudo. E esse é o meu crime, senhor Bispo. E tão inominável que venho a essa diocese apelar por vosso perdão e solicitar minha exclusão da Santa Amada Igreja. ... ... ... ... - E que o senhor pretende fazer de sua vida? - Viver com Lalinha e com meus sete filhos. - Como? - Todos são meus filhos, senhor Bispo. Mea Culpa - 95
- Mas como? - Pequei por fornicação com ela ainda virgem. Quinze anos. Fui eu que a orientei para seduzir o Chichico Venâncio. Pretendia nunca mais molestá-la. Mas não consegui. Estava doente, moribundo, dominado pelo desejo dela. E cada vez que ela ficava grávida, ela seduzia um novo admirador e deixava pistas para que o marido fizesse o flagrante antes de consumar o ato. E ele ia eliminando, um por um, até que no sétimo ele suspeitou de mim, e tive que matá-lo, de tocaia, para não ter o mesmo fim de todos os outros. - Inacreditável. - E eu não acertei bem o tiro. Atingiu seu pescoço, destruindo sua laringe e sua coluna cervical. - Ficou tetraplégico. - E sem possibilidade de falar. E somente com o cérebro, os olhos e os outros sentidos não conseguiu me destruir, até morrer dois anos depois. ... - Que Deus me perdoe, senhor Bispo. - Que Deus o perdoe, Antônio Brito.
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Capítulo 12
E a paixão continua...
Trinta anos lá se foram desde o falecimento do Chichico Venâncio. Nesse tempo eu não me afastei de meu pai, ex-Padre Antônio, da Lalinha e de meus sete irmãos. Vencemos todas as vicissitudes da vida juntos. Todos meus irmãos casaram-se, exceto Zequinha, que se suicidou por enforcamento há dez anos. Suas crises de depressão continuaram a se repetir periodicamente e, apesar de vários tratamentos enfrentados, nunca se recuperou plenamente. Volto hoje do enterro de meu pai. Permaneceu acamado nos últimos três anos, vítima de vários derrames cerebrais, demente, sem controle dos esfíncteres, sem poder articular uma palavra inteligível, cuidado diuturnamente e com esmero por Lalinha e por mim. Admito que a paixão por essa mulher valorosa nunca se arrefeceu no meu coração e na minha mente. Duas ou três vezes não resisti e tentei uma aproximação mais estreita. Ela sempre carinhosamente se opôs inflexivelmente. O cuidado diário do meu pai durante sua invalidez, a meu ver, cada dia mais e mais verdadeiramente nos aproximou e nos irmanou. Dez anos separam-nos na idade. Completei, há um mês, sessenta e um anos. Ela continua a mesma aos meus olhos – a deusa serena, irradiante, desejada. Sei que um dia ainda seremos um, na cama, na alma e na vida.
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