A TĂŠcnica e a Arte do Conto
Carlos Vieira
A TĂŠcnica e a Arte do Conto
Belo Horizonte • 2009
Ficha Catalográfica Bibliotecária: Denise Cristina de Castro CRB 1941-6 V657
Vieira, Carlos A arte e a técnica do conto / Carlos Vieira -- Belo Horizonte : Fundac-BH, 2009. 160 p. : il. ; 21 cm. ISBN 978-85-85477-25-7 1. Conto - técnica. 2. Conto – estilo literário. 3. Teoria da literatura. I. Título
CDU 82.0
Revisão: João Batista Xavier
www.fundac.org.br
Diagramação e arte da capa: Josemar Lucas Impressão: Gráfica Fundac-BH
Homenagem ao Câmara Cascudo - uma das maiores autoridades em folclore nacional
“O conto (popular) revela informação histórica, etnográfica, sociológica, jurídica, social. É um documento vivo, denunciando costumes, ideias, mentalidades, decisões, julgamentos. Para todos nós o primeiro leite intelectual.”
Para PEDRO ALVES VIEIRA, filho amado, meu pequeno gigante, graรงa e luz de minha vida, com eterno e incondicional amor.
Apresentação
Tenho a honra de fazer a apresentação deste precioso livro do meu amigo Dr. Carlos Vieira. Fazer a apresentação deste livro, à altura de seu valor, deveria ser tarefa de alguém que realmente fosse conhecedor do assunto. No entanto, a amizade e consideração que este meu Amigo me devota, o levou, penso eu, a me dar esta honra. Honra, sim, mas, ao mesmo tempo, feliz oportunidade de conhecer um pouco mais este sedutor gênero literário que é o conto. Apresentar este livro me permitiu ainda descobrir a riqueza de obras-primas da literatura, que já conhecia, porém, superficialmente, tantos contos clássicos mais antigos, como “Mil e uma noites”, quanto os de nossa literatura, como “Feliz Aniversário”, de Clarice Lispector, “O Alienista”, de Machado de Assis, e muitos outros. A inteligência irrequieta de Carlos Vieira, neuropsiquiatra, o tornou pioneiro do Teatro na região do Vale do Aço com a criação e manutenção da Casa de Cultura e, agora, o leva para a Literatura sendo essa a sua primeira obra. E, assim, depois de vários anos de pesquisa e estudo (veja a extensa bibliografia apresentada na obra), ele nos brinda com um livro didático, que, certamente será referência para quem quiser conhecer e exercer a técnica e a arte do conto. Penso que Carlos Vieira não tinha necessidade de pesquisar e estudar tanto para compor este livro. Eu o incluo entre aquelas exceções a que ele mesmo se refere na introdução de seu livro: “Escrever, assim como muitas outras atividades humanas – cozinhar, pintar, tocar um instrumento musical –, pressupõe técnica e arte no seu fazer. Excepcionalmente, vamos encontrar cozinheiros, pintores, músicos, (escritores também), tão geniais e com tanta habilidade que, sem um período anterior, formal, consistente, de aprendizagem básica de suas atividades, produzem obras expressivas que encantam a todos e se tornam perenes.” (“A Técnica e a Arte do conto”, introdução, 1ª e 2ª alíneas). Carlos Vieira: inteligência intuitiva e vontade persistente e tenaz no estudo e na pesquisa.
Este livro foi escrito principalmente para ensinar a técnica e a arte do conto, composição literária agradável e atraente; por sua natureza, no que se refere ao seu tamanho, história ou estória curta. Na era do computador e da internet, a aparição de um livro é sempre bem-vinda e oportuna. Principalmente se esse livro ensina a escrever livros, contribuindo assim para difundir a Literatura. Parabenizo Dr. Carlos Vieira pelo seu livro. E lhe agradeço pela valiosa contribuição às nossas Letras. Vêm a propósito as palavras de Câmara Cascudo, que Carlos Vieira coloca no frontispício do seu livro: “O conto (popular) revela informações etnográfica, sociológica, jurídica, social. É um documento vivo, denunciando costumes, ideias, mentalidades, decisões, julgamentos. Para todos nós o primeiro leite intelectual”. Dom Lelis Lara, C Ss R.
Sumário 1. Introdução .... 13 2. O que é conto 2.1. Conceito do conto 2.2. Acepções do conto 2.3. Objetivos do conto 2.4. Tamanho do conto 2.5. O que é conto para diferentes autores 2.6. Ficção versus realidade
.... 15 .... 15 .... 18 .... 19 .... 20 .... 21 .... 22
3. Elementos do conto 3.1. Título 3.2. Ideia 3.3. Personagem 3.4. Conflito 3.5. Diálogo 3.6. Tempo e espaço 3.7. Unidade dramática
.... 25 .... 25 .... 26 .... 33 .... 46 .... 50 .... 57 .... 60
4. Modos de organização do discurso no texto 4.1. Narração ou narrativa 4.2. Descrição 4.3. Dissertação 4.4. Argumentação
.... 75 .... 75 .... 80 .... 86 .... 88
5. Voz narrativa (foco narrativo + ponto de vista) .... 93 6. Estilo e originalidade .... 99 7. Planejamento do conto .... 103
8. Técnicas de otimização da escrita do conto 8.1. Brainstorming 8.2. Escrita automática 8.3. Listagem 8.4. Aglomeração 8.5. Cavewriting 8.6. Cortar e colar, ou copiar e colar 8.7. Unir e compatibilizar
.... 105 .... 105 .... 108 .... 109 .... 110 .... 111 .... 111 .... 112
9. Tipos de contos .... 115 10. Ficha de avaliação do conto .... 117 11. Lista de contos exemplares da Literatura Brasileira .... 121 12. Decálogo do contista perfeito de Horácio Quiroga .... 125 13. História do conto .... 127 Referências .... 159
1. Introdução
Escrever, assim como muitas outras atividades humanas - cozinhar, pintar, tocar um instrumento musical -, pressupõe técnica e arte no seu fazer. Excepcionalmente, vamos encontrar cozinheiros, pintores, músicos (escritores também), tão geniais e com tamanha habilidade que, sem um período anterior, formal, consistente, de aprendizagem básica de suas atividades, produzem obras expressivas que encantam a todos e se tornam perenes. A regra, porém, para a maioria de nós, é primeiro aprender os fundamentos de uma dessas atividades e, em seguida, com muita vontade, esforço e dedicação, passar a produzir alguma coisa comum, depois significativa e, então, até mesmo eventualmente extraordinária. Escrever um conto envolve mais do que simplesmente criar uma estória com início, meio e fim – precisamos dominar os vários elementos da técnica e da arte de sua escrita com tempo, criatividade e prática. Escrever requer técnica - o conjunto de processos que estão envolvidos na execução ou no jeito de realizar esta atividade - que exige sobretudo raciocínio lógico, disciplina mental, domínio pleno de algumas regras essenciais e dedicação numa base de prática diária. Escrever demanda arte - o dom, a habilidade, a inspiração, o jeito de registrar de uma forma sensível e estética num texto o que a escrita materializa, suscitando no leitor o desejo de prolongar ou renovar a leitura do que foi escrito. Dividir o processo de escrever em dois aspectos - técnica e arte - permite-nos didaticamente estudar mais profundamente cada um deles. Na prática, porém, eles são naturalmente urdidos num esforço simultâneo. Estudar a técnica e a arte de escrever o conto ajuda o escritor a se tornar consciente das informações, sentimentos, atitudes que deseja transmitir e a ser mais perfeitamente entendido. O conto naturalmente requer um escritor e um leitor. E, para se escrever uma estória, deve-se ter uma estória para ser escrita. O escritor precisa do leitor e somente quando o consegue seduzir, prender, envolver, pela estória, faz verdadeiramente o conto nascer, encantar, se eternizar. 1. Introdução - 13
Com muita propriedade, Margaret Lucke, escritora americana, na introdução de seu livro Writing great short stories (1), incita seus leitores a escrever contos. Declara ser um grande divertimento criar uma boa estória e que poucos prazeres são tão básicos e satisfatórios quanto o contentamento de ouvir uma bem interessante, exceto a alegria de criá-la. Acrescenta ainda que os escritores escrevem por duas razões: uma, é que têm alguma coisa que querem dizer; e outra, um motivo que os impele igualmente - alguma coisa que querem encontrar. Escrever, num amplo sentido, é de início um ato de coragem, porque escrevendo mostramos nossa identidade, desnudando, querendo ou não, nossas emoções, nossas verdades, nossas ambições. É um ato de esperança em alcançar um sentido, um significado, uma determinada ordem no caos da vida e do mundo. É um ato de transcendência, porque todo escritor aspira a eternizar-se através de sua obra. E é mais do que tudo um gozo – um puro ato de prazer, de celebração, de completude. Na prosa, nada como o conto, tanto para o autor quanto para o leitor, como uma forma poderosa, rápida, simples, mas nem por isso a mais fácil de se escrever e de se ler uma boa estória. Vamos aprender juntos como escrever um conto?
A técnica e a arte do conto - 14
2. O que é conto?
2.1. Conceito do conto A palavra conto, etimologicamente, deriva do latim “comentum”, “in”, que significa invenção, ficção, plano, projeto, ligado ao verbo “contueor, eris” - olhar atentamente para, contemplar, ver, divisar. O conto é uma narração oral ou escrita, verdadeira ou fabulosa, uma obra literária de ficção, uma narração curta, sintética, monocrômica, de um fato da vida, que focaliza um único conflito e apresenta a sua solução em um breve espaço de tempo. O dicionário Novo Aurélio século XXI (2) registra, dentre outras acepções do conto, que ele é uma narração falada ou escrita, pouco extensa, concisa, que contém uma unidade dramática, concentrada numa única ação, num único ponto de interesse. Dois outros dicionários internacionais fornecem mais duas sucintas definições: a revelação de um acontecimento ou de uma série de eventos associados; ou uma narrativa designada para interessar, divertir, informar o ouvinte ou o leitor O conceito de conto, proposto por Massaud Moisés, da Universidade de São Paulo (3), é o de uma narrativa breve, concisa, densa, onde o diálogo predomina, com poucas personagens, em torno de um conflito único, constituindo uma unidade de ação, fruto da sequência dos atos praticados pelos protagonistas ou de acontecimentos dos quais participam. Existem concentração do espaço e do tempo e uma ação simples desenvolvida de forma mais ou menos linear. O conflito pode ser de natureza externa, quando as personagens se deslocam no espaço e no tempo, ou interna, quando o conflito se localiza no plano mental. Cada uma dessas definições tem sua utilidade, embora nenhuma expresse completamente a essência do conto. Analisadas, contribuem para desvelar o que o mesmo constitui ou para revelar o que faz um conto ser lido com satisfação e outro não. O conto deve ter nascido na intimidade anônima do povo, num tempo difícil de se precisar, anterior à invenção da escrita, através de relatos de situações ao redor das fogueiras das habitações dos povos primiti2. O que é conto? - 15
vos, nos momentos de lazer, geralmente à noite, caracterizados de modo original pelo suspense, pelo fantástico, pelo sobrenatural (4). Um contador de estórias narra, a um auditório pequeno e familiar, um episódio considerado interessante, fazendo comentários ou perguntas e restringindo, com a sua censura implícita, a imaginação criadora do contador e a sua espontânea expressão. A estória é curta pelo reduzido tempo disponível, pela limitação da memória, pela simplicidade dos ouvintes, retratando poucas personagens, com caracterização vaga e imprecisa das mesmas, pouco detalhamento do tempo e do lugar e simplificação da ação. Dada a sua origem, esse conto inicial não tem propriamente um autor, entendido como um ser humano determinado, ainda que desconhecido. Na verdade ele constitui uma criação coletiva, considerando que cada contador é passível de introduzir nele gradativa e inevitavelmente pequenas alterações, e assim, ao longo dos tempos, ele se vê transformado por variáveis de toda ordem - culturais, sociais, morais, éticas, econômicas, políticas, dentre outras. Assim, os contos populares que hoje conhecemos se diferem daqueles que há tempos são transmitidos oralmente de geração em geração. Seu registro por escrito implica inúmeras reedificações e o fato de no ato de narração oral o código linguístico ser acompanhado por outros códigos, variáveis de contador para contador e irreproduzíveis na escrita (a entoação, a ênfase, os movimentos corporais, a mímica e tantos outros). A fase escrita do conto provavelmente se insinua quando os egípcios registram o Livro do Mágico, aproximadamente 4000 a.C. Em seguida, a Bíblia traz a estória de Caim e Abel (2000 a.C.) e várias outras do Velho e do Novo Testamento, como os episódios de José e seus irmãos, de Sansão, de Ruth, de Suzana, de Judith, de Salomé, as parábolas - o bom samaritano, o filho pródigo, a figueira estéril, o semeador, entre outras -, que mostram a precisa estrutura de um conto (4). Nessas primeiras fases, os contos têm quase sempre uma estrutura muito simples e fixa que pode ser traduzida da seguinte forma: ordem existente — situação inicial; e ordem perturbada — a situação de equilíbrio inicial é destruída, o que dá origem a uma série de peripécias, que só se interrompem com o aparecimento de uma força retificadora - ordem restabelecida. A caracterização das personagens é sumária, sintética, estereotipada: os heróis concentram em si os traços positivos, enquanto os vilões A técnica e a arte do conto - 16
evidenciam todos os aspectos negativos da personalidade humana. Dessa maneira, personificam-se o bem e o mal e manifesta-se insistentemente a vitória do primeiro sobre o segundo. A caracterização indireta prevalece sobre a direta, visto que é sobretudo pelas suas ações que as personagens revelam seu caráter. Ao longo do conto, as indicações de natureza temporal são sempre limitadas e vagas, não permitindo determinar com rigor o tempo da ação ou o local num contexto histórico preciso. O mesmo acontece relativamente ao espaço, que é descrito de forma genérica: um palácio, uma casa, uma floresta. Na verdade, as vagas referências espaciais e temporais aparecem apenas porque são exigidas pela narrativa, sendo que nada acontece fora do tempo e do espaço. Não é o onde nem o quando que interessa, mas sim o que acontece, a ação. As personagens têm sua caracterização determinada por estereótipos, sendo retratadas por poucos detalhes, e representam um mero suporte da ação. A conjugação dessas características (personagens estereotipadas e espaço e tempo indeterminados) concede às estórias um caráter atemporal, universal, permitindo as suas atualizações permanentes, sendo passíveis de acontecer em qualquer tempo e em qualquer lugar. Os contos tradicionais estão carregados de simbologia: dizem mais do que parecem dizer; podem ser entendidos sob várias perspectivas e ópticas; adaptam-se às várias realidades e às inúmeras expressões da verdade. Uma característica muito evidente é a referência sistemática ao número três, símbolo da perfeição desde tempos imemoriais. Mas há mais... A rosa aparece como símbolo do amor puro e total. O beijo desperta e faz renascer. A heroína é frequentemente a mais nova (por isso a mais pura e mais inocente) e afirma-se por oposição às irmãs mais velhas e mesmo aos pais. O herói quase sempre tem que enfrentar uma série de provas antes de alcançar o objetivo — símbolo do amadurecimento que fará dele um homem. Outras vezes ele sai da casa paterna em busca da autonomia. Assim, em maior ou menor grau, o conto sempre tem as funções de preencher os tempos de lazer, de propor aos ouvintes modelos de comportamento, de transmitir os valores e as concepções do mundo próprias daquela sociedade, de reforçar os laços de convivência entre os membros da comunidade. 2. O que é conto? - 17
Ao despertar a imaginação dos assistentes por meio dos contos, é possível compensar a dureza e a monotonia da vida cotidiana, fugindo para mundos distantes e vivendo papéis e situações empolgantes. Por outro lado, tem também o objetivo de conceder aos mais velhos um instrumento privilegiado para levar os mais novos a interiorizar valores e comportamentos considerados aceitáveis. O conto de feição clássica se organiza numa cadeia de acontecimentos que centralizam o poder de atração, apresentando, consequentemente, ação, personagens, diálogos. Caracteriza-se como narração de um episódio, uma única ação, com começo, meio e fim, concentrado num mesmo espaço físico, num tempo reduzido. Destaca-se por sua unidade de tempo e de ação. O conto contemporâneo, reflexo da nova narrativa que se foi construindo nas últimas décadas, substituiu a estrutura clássica pela construção de um texto curto, com o objetivo de conduzir o leitor para além do dito, para a descoberta de um sentido do não-dito. A ação se torna ainda mais reduzida, surgem monólogos, a exploração de um tempo interior, psicológico, a linguagem pode, muitas vezes, chocar pela rudeza, pela denúncia do que não se quer ver. Desaparece a construção dramática tradicional que exigia um desenvolvimento, um clímax e um desenlace. Em contrapartida, cobra a participação do leitor, para que os aspectos constitutivos da narrativa possam por ele ser encontrados e apreciados. Exige uma leitura que descortine não só o que é contado, mas, principalmente, a forma como o fato é contado, a forma como o texto se realiza. 2.2. Acepções do conto A palavra conto possui várias acepções, e uma delas é a de estória, narrativa, historieta, fábula, caso, embuste, engodo, mentira (3). Na língua portuguesa o termo conto serve para designar a forma tradicional, popular, folclórica, criação coletiva da linguagem e daí a nãopropriedade de um único criador, e, ao mesmo tempo, a forma contemporânea, artística, atributo exclusivo de um estilo peculiar, individual (3). Na língua francesa e espanhola também, conte e cuento, respectivamente, uma única palavra serve para designar as duas formas – tradicional e contemporânea, ou popular e artística. A técnica e a arte do conto - 18
O mesmo não ocorre em algumas outras línguas. O inglês utiliza a denominação tale para o conto tradicional, folclórico, popular e shortstory para narrativas com características eminentemente literárias. Em alemão empregam-se novelle e erzählung para as mesmas narrativas a que o inglês chama short-story e märchen para contos tradicionais, populares. Em italiano encontramos também duas formas: novelle e racontto (5). 2.3. Objetivos do conto O objetivo do conto é emocionar, divertir, informar nossos leitores; examinar algum aspecto da natureza humana; procurar explicar o que está por trás de nossos pensamentos, sentimentos, comportamentos. Qualquer que seja o objetivo de nosso conto, ele será o elemento organizador da estória, dando-lhe um sentido de coesão, coerência, totalidade. As decisões que fazemos sobre a concepção, a estrutura, o desenvolvimento da estória estão profundamente ligadas ao objetivo dela – quem são as personagens, que incidentes ou eventos são descritos, onde se passa, como a estória é estruturada, que palavras são escolhidas para contá-la. Nada estranho, mesmo brilhante ou profundo que seja, deve nos distrair e ao leitor do propósito da estória. Edgard Allan Poe propõe na gênese do bom conto que o escritor tenha um objetivo único, imutável, preciso, sendo necessário estabelecer uma situação inicial e, a partir dela, trabalhar de forma concentrada situações capazes de criar o suspense no leitor conduzindo-o até o clímax, acomodando os acontecimentos para manter um eixo dramático e a atenção do leitor, não permitindo intervenções, comentários, descrições, se não necessários. Escrever um conto é um processo de exploração - uma procura que não necessariamente acaba com uma ou todas as respostas -, mas, de forma frequente, serve - e com muita utilidade - para argumentar, discutir, levantar problemas que podem ter ou não uma solução específica. O fato de termos desde o início um objetivo definido para o conto facilita o seu desenvolvimento textual, tornando mais claro para nós o início, o meio, o fim, e ao seu término podemos nos sentir recompensados pela sensação alcançada de fechamento, resolução, completude. 2. O que é conto? - 19
Muitas vezes, porém, iniciamos um conto e o desenvolvemos quase completamente sem que um objetivo esteja identificado com clareza. À medida que o escrevemos e os primeiros rascunhos são aproveitados, no todo ou em parte, espontaneamente vamos tornando mais nítido o que queremos desenvolver. E, antes do final do conto, as principais questões colocadas pela estória devem ter sido solucionadas, ou seja, os eventos levantados foram ligados de uma maneira que alcançam ao final uma conclusão lógica. Qualquer coisa a mais deve pertencer a uma nova estória. 2.4. Tamanho do conto O conto é, por definição, no que se refere ao seu tamanho, uma estória curta que requer, na maioria das vezes, um foco - limitado, apertado, definido - abrangendo uma realidade menos panorâmica, mais específica, concentrado num único relacionamento, num incidente significativo, num momento determinado. Na prática, o conto deve ter o tamanho de aproximadamente 1.000 palavras; deve conter entre 2.000 e 5.000 para algumas revistas; e deve ser sempre menor do que 15.000 palavras para se diferenciar do romance no que se refere à extensão do texto. O conto deve ter o número necessário de palavras que permitam ao escritor expressar a técnica e a arte de seu fazer, ou seja, que a estória se revele de maneira mais inteligente, criativa, efetiva. O ideal é que um conto seja exatamente tão longo quanto necessita ser. Apesar disso, há determinadas convenções que o escritor deve conhecer até para poder, às vezes, desrespeitar de maneira consciente, se quiser ou se necessário. Não deve ser muito longo, pois corre o risco de se transformar numa novela; nem tão curto, porque poderá parecer uma anedota. Embora os contos mais longos possam atingir a densidade de muitos romances, na sua grande maioria ficam dentro dos mundos que eles estabeleceram, aderem ao ponto e evitam tangentes. O conto prima pela economia nas suas palavras e é avesso a repetições, descrições prolongadas, passagens estendidas de diálogo, personagens desnecessárias, cenas estranhas. Edgard Allan Poe falava do tamanho do conto em termos de tempo de leitura. Para ele o conto ideal ocuparia o leitor entre trinta minutos e duas horas, ou poderia ser lido de uma assentada. A técnica e a arte do conto - 20
Vidas Secas, de Graciliano Ramos, A Festa, de Ivan Ângelo, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, de Machado de Assis, O Processo, de Franz Kafka, são constituídos de pequenos contos. A maioria dos romances típicos tem entre setenta e cinco mil a cem mil palavras, apesar de contagens bem superiores não serem incomuns. Entretanto a maior parte das revistas e antologias prefere contos que tenham aproximadamente cinco mil palavras, mas alguns editores optam por estórias bem mais curtas, ou com não mais de duas mil palavras. 2.5. O que é conto para diferentes autores? No estudo teoria do conto, Nádia Battella Gotlib (5), junta as impressões de diversos estudiosos e chega à seguinte definição: O segredo do conto é promover o sequestro do leitor, prendendo-o num efeito que lhe permite a visão em conjunto da obra, desde que todos os elementos do conto sejam incorporados tendo em vista a construção deste efeito (Poe). Neste sequestro temporário, existe uma força de tensão num sistema de relações entre elementos do conto, em que cada detalhe é significativo (Cortázar). O conto centra-se num conflito dramático em que cada gesto, cada olhar são até mesmo teatralmente utilizados pelo narrador (Bowen). Não lhe falta a construção simétrica de um episódio, num espaço determinado (Matthews). Trata-se de um acidente de vida, cercado de um ligeiro antes e depois (Oiticica). De tal forma que esta ação parece ter sido mesmo criada para um conto, adaptando-se a este gênero e não a outro, por seu caráter de contração (Friedman). Flávio Aguiar (6) diz que o conto é uma narrativa breve ou de menor extensão, linear, que se diferencia do romance e da novela não só pelo seu tamanho, mas também por conter características estruturais próprias. Possuindo os mesmos componentes do romance, evita análises, complicações do enredo e do tempo, o espaço é muito bem delimitado, não se aprofunda no estudo da psicologia das personagens, nem nas motivações de suas ações, desenrolando um só incidente predominante e uma única personagem principal, contendo um só assunto, cujos detalhes são tão comprimidos e o conjunto do tratamento tão organizado que produzem uma só impressão. Ricardo Piglia, contista argentino, no seu ensaio Teses sobre o conto, de seu livro O Laboratório do escritor (7), assegura que o segredo de um 2. O que é conto? - 21
conto bem escrito é que, na realidade, todo conto conta duas histórias: uma em primeiro plano e outra que se constrói em segredo. A arte do contista estaria em entrelaçar ambas ou saber cifrar a segunda história nos interstícios da primeira, e, só ao final, pelo elemento surpresa, revelar a história que se construiu abaixo da superfície em que a primeira se desenrola. As duas histórias encontram-se nos pontos de cruzamento que vão dando corpo a ambas, embora o que pareça supérfluo numa seja elemento imprescindível na armação da outra. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de um modo elíptico e fragmentário. O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície. Trabalhar com duas histórias significa trabalhar com dois sistemas diversos de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram simultaneamente em duas lógicas narrativas antagônicas. Os elementos essenciais de um conto têm dupla função e são utilizados de maneira diferente em cada uma das duas histórias. A história visível e a secreta recebem diferentes tratamentos no conto clássico e no moderno. O conto clássico é uma narrativa que encerra uma história secreta, como nas histórias policiais, em que se guarda a revelação para o final. No conto moderno, as duas histórias aparecem como se fossem uma só. A versão moderna do conto, segundo ele, abandona o final surpreendente e a estrutura fechada: a tensão entre as duas histórias nunca é resolvida, contando-se a história secreta de modo cada vez mais fragmentado, fundindo-se esta com a chamada história aparente. O mais importante nunca se conta. A história secreta se constrói com o não-dito, com o subentendido e com a alusão, onde a estranheza é base e o fim de tudo. 2.6. Ficção versus realidade Dois aspectos distinguem o mundo do conto do mundo real. Na vida real, os acontecimentos ocorrem ao acaso, enquanto na ficção eles têm um propósito, uma finalidade, um sentido. Como escritor, trabalhamos para fazer nosso mundo tão vivo que os leitores acreditem nele, não importando quão absurdo ele possa ser quando comparado com a realidade. Tom Clancy, escritor americano, diz que a diferença entre a realidade e a ficção é que a ficção tem de fazer sentido. Isso quer dizer que nosso conto deve ter um elementar senso de causa e efeito. Os eventos precisam acontecer logicamente. Isso é denominado causalidade – a tareA técnica e a arte do conto - 22
fa de fazer uma cena levar a outra, ou através de uma ação direta ou por implicação. O enredo deve construir uma sequência lógica de acontecimentos que convergem para um mesmo ponto constituindo uma unidade dramática. A falta de causalidade é um dos maiores erros que um escritor pode cometer, porque podemos engendrar enredos maravilhosamente complicados, mas falhos em construir uma sequência lógica de eventos. E como um conto é construído dentro de um plano lógico, a sua estória nunca nos deixa totalmente perplexos, atônitos, extasiados sobre aquilo que acontece no seu final, por mais inesperado que possa parecer. O conto clássico deve oferecer-nos a sensação de que os conflitos suscitados encontram uma resolução final, dando-nos assim um sentido de conclusão. Ao contrário, as nossas vidas, muitas vezes, se extinguem sem qualquer possibilidade de fechamento ou conclusão dos conflitos enfrentados (8). Quando escrevemos um conto, usamos o material bruto de nossa imaginação, de nossas experiências, de nossas observações acerca de como a vida faz para construir um pequeno, mas completo e autolimitado mundo. Criamos uma espécie de universo paralelo que se assemelha ao mundo real, mas que difere dele por significativos detalhes. O mundo de nosso conto deve parecer com o mundo real tão intimamente que nós e os leitores o aceitamos como aquele que nele transitamos no dia-a-dia, ou pode se distorcer de forma acentuada, especialmente quando escrevemos ficção científica ou fantasia.
2. O que é conto? - 23
3. Elementos do conto
Veremos logo que o conto é composto fundamentalmente por um título, uma idéia ou um tema, por personagens enredadas num conflito básico, expresso em diálogos, descrições, dissertações, argumentações, narrativas, onde problemas e complicações são suscitados, num determinado cenário (local, tempo), com início, meio, fim, relatado por um autor que apresenta um determinado estilo. De um modo geral, para começar a escrever um conto necessitamos de uma idéia ou, em alguns casos, partimos de um título interessante que induz o processo de criação da estória. 3.1 Título Um bom título é fundamental para recomendar a estória de um romance, de uma peça de teatro, de um conto, porque, se apropriado, instigante, genial, constitui um elemento de sedução ao leitor que o incita à leitura. Serve também como um olhar rápido da estória que se segue. Pode ser enunciado desde uma única palavra até por uma frase de longa extensão. Nicholas Weinstock, em seu artigo The trouble with titles, do livro The practical writer (9), assegura que escrever um livro em que ainda falta um título é como sentir o gosto de possuir um carro sem licença ou sem placas. O veículo pode ser vigoroso, potente, elegante, a narrativa no texto pode estar correndo suavemente, interessante, criativa, mas a estória anda sem identidade, segurança, destino. A criação de um bom título para uma obra literária já traduz em si uma grande virtude do escritor. O título de um conto normalmente é curto, informativo, chamativo. Costuma primar pela capacidade de sugerir o que trata o texto em poucas palavras, de informar abertamente ou sub-repticiamente algum aspecto importante da estória, mas também a oportunidade de o escritor anunciar, logo de início, sua sutileza, sua criatividade, sua inteligência. 3. Elementos do conto - 25
Pensar, intuir ou receber um bom título para o nosso conto faz com que seu processo de escrita flua mais facilmente, sem maiores dificuldades, sem grandes atritos. No entanto, na maioria das vezes, o título é a última parte do texto a ser criada. Ocorre também frequentemente que o título passe por muitas modificações, receba inúmeras nominações, até que o escritor (ou o redator ou o copydesk) crie um que, sendo impactante, se mostre definitivo (10). Romeu e Julieta, Gabriela Cravo e Canela, Dona Flor e Seus Dois Maridos, Grande Sertão: Veredas, A Divina Comédia, Dom Quixote de La Mancha, O Alienista, Cenas de Um Casamento Sueco, Suave é a Noite, O Velho e o Mar, Cem Anos de Solidão: quem teria coragem de modificar os títulos dessas obras geniais? Não há por que: nasceram primorosos, perfeitos, irretorquíveis. 3.2. Ideia Como encontrar ideias para nosso conto? Alguns escritores têm a capacidade de escrever naturalmente. Conseguem sentar e escrever uma estória do início ao fim, guiados pela sua inspiração e pelo seu banco de dados mental - produto do seu grau de informação, de suas emoções pretéritas e atuais e de suas experiências até então acumuladas. No entanto essa eventualidade não constitui uma regra geral mesmo para aqueles profissionais mais promissores. É relevante ao iniciar nosso texto, termos resposta para a crucial pergunta: Sobre o que vamos escrever? Às vezes enfrentamos uma página em branco com uma ideia interessante e as palavras se inscrevem de maneira quase espontânea e, em pouco tempo, produzimos um texto significativo. Outras vezes, o impulso para escrever é pungente, mas mesmo assim ela não emerge. Nessas condições, é bom pararmos de encarar a página e fazermos, inicialmente, um esboço, isto é, uma síntese de nossa estória. Escrever pressupõe influências conscientes e inconscientes, e assim esse delineamento inicial pode nos ajudar a nos defrontar com interesses, emoções e opiniões que podem suscitar uma ideia para nossa estória. Se nos autorizarmos a pensar livremente, ideias podem surgir. A técnica e a arte do conto - 26
Reservando um tempo e um esforço responsável no esboço de nossa estória, nosso processo ulterior de escrever pode ser mais fácil. De início, porém, a primeira fonte de ideias para nossas estórias pode ser encontrada, principalmente, através da observação da experiência do nosso dia-a-dia, dos outros, do mundo, da leitura (de livros, ensaios, jornais, revistas), da pesquisa bibliográfica, do convívio e da conversa com outras pessoas, de um tema específico fornecido ou escolhido. Viver, observar e adquirir experiência é a fonte principal das nossas ideias e abrange toda a atividade humana, seja física, emocional ou racional. Mas é preciso também aprender a pensar. Não estará em condições de escrever quem não dispuser de uma capacidade mínima de pensar, ou seja, de selecionar, ordenar, associar impressões e ideias advindas da observação de coisas, fatos, pessoas, locais, de tirar conclusões e de saber utilizá-las. Quanto mais observamos, quanto maior for a acuidade de nossa observação tanto maior será o acervo de nossas ideias. As impressões que colhemos ressoam no nosso espírito e se consubstanciam em ideias ou representações que, ao impressionar nossa alma, simultaneamente se associam, se entrecruzam, se multiplicam, desdobrando-se e originando tantos outros pensamentos, sentimentos, atitudes – ideias, emoções, ações (11). Como a nossa vida diária é desordenada, indiscriminada, limitada, e várias circunstâncias limitam as oportunidades de nossa experiência pessoal, é preciso conviver para compartilhar nossas ideias e assimilar as dos outros pela conversa, pelo convívio, pela leitura. Convivendo, estamos assimilando hábitos, atitudes, formando conceitos e preconceitos, adquirindo ou transformando padrões de comportamento, criando ou desenvolvendo ideias. Muitas vezes, o escritor sabe exatamente qual tema ele quer explorar quando começa a escrever seu texto; outras vezes, o tema pode aparecer após um ou vários rascunhos. Assim, podemos começar a escrever um conto sem termos uma ideia ou um tema bem-definido. Por exemplo, podemos iniciar uma estória descrevendo uma personagem, uma situação, uma época, e, durante o processo de escrever, pode acontecer que os elementos do conto vão se ajeitando, uns aos outros, intuitiva ou racionalmente, e, passado algum 3. Elementos do conto - 27
tempo, com esforço e determinação, eis que ele se apresenta completo, com início, meio, fim. Grande número de escritores tem mais ideias do que eles podem desenvolver num tempo de vida útil – temas, sentimentos, situações, que podem se transformar em contos, romances, memórias, poemas, peças de teatro, cenários, frases geniais, personagens (12). Na maioria das vezes, entretanto, o impulso inicial da criação de um conto parte de uma percepção interior, que de repente nos acorda e nos faz acreditar: aqui temos uma estória. Essa percepção interior surge como uma faísca, uma luz, uma visão rápida e instantânea vinda da imaginação ou da experiência, ou da observação do autor sobre ele mesmo, sobre o outro, sobre o mundo. Ela constitui qualquer coisa que dá o chute inicial, que desperta, que incita nossa imaginação com força suficiente para iniciar o processo criativo de uma estória. Representa o primeiro e essencial elemento que o escritor pode vislumbrar, entrever, perceber, para em seguida acrescentar vários outros componentes – personagens, conflito, cenário, enredo, foco narrativo, estilo - e constituir uma sequência lógica de acontecimentos que irão compor a estória. O processo de criação de uma estória é o mesmo que quando cozinhamos: vários ingredientes se combinam, várias reações químicas se processam e determinam um produto final de uma receita. O produto final é alguma coisa mais do que a soma de suas partes, é uma coisa nova, e os elementos iniciais da mistura não podem mais ser separados. Entretanto uma ideia inicial não determina somente uma única estória. Dependendo do número de componentes utilizados, da forma, do tempo de mistura, do cozimento deles, várias estórias diferentes podem nascer. Na verdade, uma única ideia é raramente insuficiente para se escrever uma estória. Suponhamos que temos uma maravilhosa ideia para um conto: uma visão de uma casa velha que seguramente deve ser assombrada; uma imagem de uma mulher idosa dirigindo um trem; uma mulher aterrorizada por uma barata. É como termos numa vasilha um pouco de farinha aguardando um segundo ingrediente. Quando soubermos o que acrescentar à farinha - o segundo ingrediente-ideia - é quando a estória começa a viver. A estória nasce da sinergia que ocorre quando duas ideias se mesclam (1). A técnica e a arte do conto - 28
Assim como os vários profissionais – médicos, advogados, delegados – têm um olho clínico, os escritores também costumam olhar para as pessoas, os lugares, os acontecimentos, quase sempre discernindo que potencial dramático pode estar contido ali. Nosso subconsciente nos dá pistas sobre onde começar. Sempre que algo impressiona bastante nossa mente e nos faz pensar - Isso é interessante. Sim, é interessante -, e é um sinal de que uma ideia de estória está ali, esperando para ser desvelada. O próximo passo é pensar: “E se...”. O jogo do “E se...” descortinará várias possibilidades de estórias. Estamos num restaurante e notamos uma jovem mulher com uma echarpe de seda verde sentada à mesa próxima da janela. Está lá desde que chegamos há aproximadamente uma hora, com um refrigerante à sua frente praticamente intocado e uma bolsa na cadeira ao lado. Olha a curtos intervalos para seu relógio. O que está acontecendo? Vamos fazer o jogo do “E se...”. E se ela estiver esperando um amante? E se ela saiu do trabalho furtivamente por alguns minutos arriscando enfrentar a raiva de seu chefe? E se ela é uma policial disfarçada? E se ela é casada e ao se encontrar secretamente com o amante, a sua mãe passa pela rua e a vê pela janela do restaurante? E se ao invés da mãe, for seu marido? E se seu amante não aparece e ela quiser descobrir o porquê. E se a jovem mulher descobriu que a empresa em que ela trabalha está fraudando seus clientes? E se ela está à espera de um agente do governo que investiga fraudes similares? E se a echarpe verde é um sinal para que o funcionário público a reconheça prontamente, e se sua bolsa na cadeira ao lado está com documentos que incriminam a empresa? No aeroporto, no supermercado, no caminho para o trabalho, enfim, em todos os lugares, em todos os momentos, em todas as situações, podemos identificar personagens, conflitos, cenários, assim como pegar o jornal diário de nossa cidade, identificar uma matéria ou manchete interessante e fazer o jogo do “E se...”. O importante é deixar a imaginação solta e tentar propor três ou mais enredos para cada pessoa, lugar, situação e... jogar. Cada escritor pode receber de uma ou de várias maneiras, ativa ou espontaneamente, esta capacidade do subconsciente que é a imagem inicial. Porém não é certo ficar esperando pela generosidade da mente. É 3. Elementos do conto - 29
possível fazermos uma busca ativa e consciente por ideias – nossa vida diária está repleta delas nos possibilitando incontáveis fontes. Muitos ficam bloqueados na hora de encontrar uma ideia para escrever uma estória. Na verdade não há um mundo de ideias residindo em algum lugar, que deve ser encontrado como num passe de mágica, ou por meio de uma iluminação divina, ou por intuição. As verdadeiras fontes de inspiração de ideias são a leitura constante de livros e textos já publicados e as informações que recebemos pela televisão, pelo rádio, pelos jornais, nas discussões formais e informais com grupos de pessoas, na escola, no escritório, nas ruas. Todo escritor deve fazer um banco de dados, por exemplo, no seu computador. Podemos armazenar nele ideias a serem desenvolvidas, frases, impressões, descrições de personagens, cenários, fragmentos e rascunhos de textos, fragmentos de textos de outros autores que nos tenham sensibilizado, resumos de enredos e tantas outras informações que podem ser buscadas no momento em que escrevemos nosso conto. A Internet e seus sistemas de busca (Google, Yahoo, MSN, Alta Vista e tantos outros) representam uma ferramenta preciosa para o levantamento de dados em quantidade e qualidade necessárias a se conseguir um eficiente acervo de informações pertinentes. Ao escrevermos nosso texto, podemos também fazer um rodízio do uso de nossos três cérebros, ou melhor, a cada momento privilegiar o uso de um de nossos três cérebros para desenvolver a nossa estória. Primeiro, usando o lado prático do cérebro, iniciar escrevendo a estória, sem a ajuda de qualquer outro recurso potencializador do processo de escrita. Simplesmente sentar e escrever. Segundo, usando o lado intuitivo do cérebro, utilizar alguma das técnicas de otimização do mesmo, antes da escrita propriamente dita: brainstorming, escrita automática, listagem, aglomeração, cavewriting, cortar e unir, copiar e colar, unir e compatibilizar. E por fim, usando o lado racional do cérebro, a partir de um tema ou de uma ideia, ou de uma premissa, seguir um esquema lógico de construção da estória. Identificar o título da mesma, levantar os objetivos da estória, definir as personagens, fazer uma coleta abrangente de dados ou de informações que serão nela explicitados, fazer um cruzamento desses dados traçando as várias relações possíveis entre eles, enredar ou construir uma unidade dramática, usar então técnicas de otimização da criatividade e, finalmente, passar ao ato da escrita propriamente dito. A técnica e a arte do conto - 30
Se a ideia para nossa estória é expressiva, vívida, completa, não será difícil tentar desenvolvê-la no texto prontamente. Porém, se temos à nossa frente somente um esboço, uma ideia incompleta, não muito bem elaborada, temos de elaborar os vários detalhes da mesma. Toda estória evidencia um tema, um enredo, um conflito. No entanto, no desenvolvimento da estória, devemos de início responder a pergunta: - O que acontece nela? Isto é denominado a pergunta dramática principal e representa o vácuo, a lacuna, a distância entre o problema da estória e sua resolução. Serve como uma bússola para toda estória, porque aponta o desenvolvimento da mesma e pode indicar o clímax do evento (10). Os contos reclamam precisão, e, se conhecemos a resposta da pergunta dramática principal, desde o início, podemos escrever nossa estória com uma direção mais específica e ter uma melhor compreensão do que necessita acontecer no clímax. Para compreendermos a pergunta dramática principal de nossa estória, devemos responder: - O que nossa personagem quer? - O que nossa personagem deve fazer para conseguir o que quer? - O que impede nossa personagem de conseguir o que ela quer? - Quem vence? Quem perde? Como autores de nossa estória, não devemos somente fazer a pergunta dramática principal, e sim respondê-la. Nossa resposta determina como a estória será resolvida. Mesmo se nossa personagem tem sucesso no que ela almeja, a resolução da estória não precisa ser necessariamente feliz. O modo com que resolvemos o conflito central ou o problema central na nossa estória não somente determina como a estória se desenvolverá, mas também determinará as mudanças nas personagens e nos acontecimentos e afetará o tema da mesma. Pensamos uma ideia para nossa estória e estabelecemos o conflito e a pergunta dramática principal, mas não é ainda tempo de começar a escrevê-la. Primeiro, devemos enriquecê-la com mais detalhes, torná-la viva, assentá-la em pormenores verossímeis e encadeados logicamente antes de iniciar o processo de escrita. Precisamos deixar bem delineados as personagens, o conflito, a resolução da estória. Nem tudo pode ser resolvido no esboço da estória, mas a maioria dos detalhes deve ser exaustivamente trabalhada. 3. Elementos do conto - 31
Antes de começar a escrever a estória, podemos fazer um diagrama. Este é um modo fácil e efetivo de esboçar todo o seu desenvolvimento. Devemos identificar os três pontos mais importantes - início, meio, fim - e os inscrever no diagrama. Na medida em que a estória se estrutura, precisamos adicionar todos os possíveis detalhes, delineando como o conflito leva a personagem para o problema principal e os obstáculos que a mesma deve superar antes de o problema ser resolvido. Os passos do diagrama são os seguintes: a personagem põe-se em marcha, mostra-se, levanta-se. A personagem enfrenta um conflito. A personagem enfrenta um problema. A personagem enfrenta obstáculos. O problema chega ao máximo. A personagem faz uma escolha. Nesse ponto, temos bastantes detalhes sobre nossa estória para escrevê-la de maneira clara, em parágrafos concisos e de forma resumida – a denominada sinopse. Descreveremos nossa personagem principal e o cenário da estória. Então, evidenciaremos o conflito que a personagem enfrenta e quais ações ela deve superar. Determinamos se vão ocorrer mudanças tênues, medianas ou radicais na vida da personagem quando a crise for resolvida. Tudo deve ser escrito de uma forma clara, concisa, precisa. Expor com minúcia, detalhar, particularizar nossa estória até a essência nos ajudará a ter um quadro exato do que queremos escrever. Para nos habilitar a ter ideias para nossa estória, Jack Heffron (12) aconselha: - Abra sua mente e seu coração. Abra seus olhos e seus ouvidos. Arrisque-se. Acredite no seu talento e no seu instinto. Esteja livre para analisar suas ideias – sua vida, o mundo ao seu redor – em novos caminhos. Seja paciente. Seja positivo. Não se distraia pelas opiniões dos outros, verdadeiras ou imaginárias. Não se preocupe com a publicação de seu trabalho – isto é uma nova estória, e é bom ter em mente de início se esse é o seu objetivo, porque ele é desnecessário e potencialmente uma preocupação prejudicial quando estamos escrevendo. Não se preocupe a respeito de seu desempenho ou se é de fato bom. Leia muito. Escreva muito. Se já temos uma ideia inicial para nosso conto, é preciso escolher as personagens.
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3.3. Personagens As personagens são os atores que habitam o palco criado pelo nosso cenário. A maneira pela qual as personagens interagem – ou não – sustenta muito a riqueza da estória, mesmo quando esta se baseia numa única personagem central. As personagens são um fundamento essencial, um primeiro elemento em qualquer narrativa de ficção de sucesso (romances, novelas, peças teatrais, contos) e não se torna viva, não começa a se tornar uma estória, não importando quão genial possa ser a ideia inicial, até que as personagens não a tomem como delas próprias. Já foi dito jocosamente que escrever uma estória é apenas questão de ajuntar algumas personagens numa situação e observar o que elas vão fazer. Sem dúvida, esse conceito é muito simplista, mas as personagens realmente são a chave da estória. Elas são as únicas que podem prender a atenção e a simpatia dos leitores. Se estes se identificam e se tornam cúmplices delas, continuam virando as páginas, porque a incerteza dos destinos das mesmas vai criar a tensão e o suspense necessários. Uma estória concebida com um enredo muito intrincado pode até sugerir que a estrutura seja seu elemento dominante. Mesmo nesse caso, as personagens são ainda as de maior importância, porque a estória necessita de personagens que não sejam somente bem construídas e que mereçam crédito do leitor, mas que também respondam plenamente àquele particular grupo de eventos. E a estória pode muitas vezes fugir do controle do escritor e responder aos desejos, ações, interações e reações das personagens. O escritor, como autor, espera ter as personagens plenamente sob seu controle. No entanto elas podem ter seus propósitos e tornarem-se valiosas colaboradoras no processo criativo da estória. Comparado aos romances, os contos tendem a ter poucas personagens e a exploração de um ou de poucos aspectos de suas personalidades em lugar de uma caracterização abrangente. Se já temos a ideia inicial, nossa primeira decisão é determinar as personagens e principalmente o protagonista (a personagem principal). Ele é o herói ou heroína da estória, a personagem central, a pessoa com a qual o leitor mais firmemente se identifica, a base dos eventos principais da estória ou o elemento ao redor do qual os eventos vão evoluir e frequentemente aquele que será mais afetado pelo desfecho dela. 3. Elementos do conto - 33
Ao se mudar o protagonista, o foco da estória também muda. Os eventos naturalmente afetam as personagens de modo desigual. Se enxergarmos os eventos, não através dos olhos do protagonista, mas de outra personagem qualquer, eles são interpretados diferentemente e nossa simpatia pode cair sobre outra personagem. Encontrar novas e interessantes personagens é um dos grandes prazeres da leitura – ou escrita – de ficção. Num romance, o leitor tem mais tempo para se relacionar com elas. Num conto ele não tem suficiente tempo ou espaço para se acostumar com as mesmas. Se o escritor faz o leitor crer nas personagens, ele acredita na estória toda. Algumas personagens são criadas de modo tão vívido que deixam suas estórias e passam a fazer parte do imaginário popular, tornando-se arquétipos culturais - Sherlock Holmes, Hamlet, Sancho Pancho, Dona Flor, Gabriela Cravo e Canela, Riobaldo, Diadorim, Capitu, para citarmos somente algumas. A caracterização da personagem é o processo de sua criação e de seu desenvolvimento. Pode ser direta ou indireta. Na caracterização direta o escritor conta para o leitor como as personagens simplesmente são. Na indireta o escritor revela a personagem através de sua aparência, de sua fala ou de suas ações. A maioria das estórias utiliza uma mistura das duas caracterizações. Para se criar uma personagem que seja verdadeira, devemos conhecê-la intimamente. Quanto maior o conhecimento a respeito dela, mais fácil torná-la viva para os leitores. Não é necessário colocar tudo que se levanta no papel - não há espaço para isso, nem há necessidade. Se soubermos, porém, exatamente como ela é, pensa, sente, age e reage, podemos ter uma certeza: o que sair na estória está certo, e a personagem ajuda a contar a estória de um modo mais forte e efetivo. Alguns escritores detalham esquemas biográficos de suas personagens antes de escrever a estória. Outros fazem mapas ou gráficos para levantar todas as particularidades pertinentes à composição das mesmas, tais como nome, descrição física, profissão, descrição da residência, personalidade, passatempos, interesses, antecedentes (pais, educação, infância), relações atuais significativas e outras informações importantes que devam ser conhecidas sobre elas. Estabelecida a personagem principal (protagonista), separamos os componentes da vida dele ou dela em duas categorias básicas: interior e exterior. A vida interior de nossa personagem acontece a partir do nasciA técnica e a arte do conto - 34
mento até o momento em que o conto, ou qualquer outra obra de ficção, começa. É um processo que forma a personagem. A vida exterior de nossa personagem acontece desde o momento em que o conto se inicia até a conclusão da história. É um processo que revela a personagem (12). Não podemos revelar aquilo que não conhecemos. Daí a distinção entre conhecer a nossa personagem e revelá-la no papel. Esquematicamente, a biografia da personagem (a vida dela, do nascimento ao presente da estória – vida interior) ajuda o escritor a formá-la. A ação da personagem do início ao fim do conto define a sua necessidade e a revela constituindo sua vida exterior. Podemos começar delineando nossa personagem através de sua vida interior. Masculina ou feminina? Quantos anos tem quando a estória começa? Onde vive? Que cidade e país? Onde nasceu? Filho único ou quantos irmãos? Que tipo de infância? Como era seu relacionamento com os pais? Que tipo de criança? Qual sua formação escolar? Qual seu estado civil? Qual sua formação afetiva e vida atual emocional? E tantos outros detalhes. Ao formularmos nossa personagem desde o nascimento, a vemos tomar corpo e forma. O aspecto exterior de nossa personagem acontece do momento inicial do conto até a última palavra. É importante examinar os relacionamentos nas vidas de nossas personagens. Quem são eles e o que fazem? São felizes ou infelizes com suas vidas ou estilos de vida? Desejam que suas vidas fossem diferentes, com outro emprego, outra esposa, ou serem outras pessoas? E como revelar nossas personagens no papel? Inicialmente isolando os elementos ou componentes de suas vidas. Devemos criar essas pessoas em relacionamento com outras pessoas ou coisas. Todas as personagens dramáticas interagem de três formas: Elas experimentam conflito para alcançar sua necessidade dramática: dinheiro, por exemplo, para comprar um revólver para assaltar o próximo. Como conseguem? Roubam? Assaltam uma pessoa ou uma loja? Elas interagem com outras personagens, seja em antagonismo, amigavelmente ou indiferentemente. Drama pressupõe conflito, e é dramaticamente mais efetivo retratar uma personagem torpe, má, criminosa do que uma de características opostas. Elas interagem consigo mesmas. Nossa personagem principal pode ter que vencer seu medo, sua angústia, sua insuficiência momentânea, na consecução de seu objetivo principal. 3. Elementos do conto - 35
Em seguida, precisamos definir o ponto de vista de nossa personagem? Somos todos semelhantes – as mesmas necessidades, quereres, medos, inseguranças, necessidade de amar e de ser amado, ter sucesso, sermos felizes e saudáveis. O que nos separa de todos os outros é o nosso ponto de vista ou como vemos o mundo. Personagem é um ponto de vista, um contexto, uma maneira de olhar o mundo. Nossa personagem pode representar o ponto de vista de um ativista político, um criminoso, um terrorista, um médico, um advogado, um homem rico ou pobre, uma mulher liberada ou não – todas apresentam pontos de vista individuais e específicos. Nossa personagem é liberal ou conservadora? Ambientalista? Racista? Criamos o contexto, e o conteúdo surge. Personagem é também atitude, uma maneira de pensar ou agir ou sentir, que revela a opinião de uma pessoa. Otimista ou pessimista? Positiva ou negativa? Entusiasmada ou infeliz? Personagem é personalidade. Toda personagem manifesta visualmente uma personalidade. Animada? Brilhante? Tímida? Encantadora? Rude? Rabugenta? Personagem é também comportamento. A essência da personagem é ação – o que uma pessoa faz é o que ela é. Ao estabelecermos o comportamento de nossa personagem dentro de uma situação dramática, proporcionamos ao leitor uma percepção de suas próprias vidas. Pesquisa, preparação, tempo de reflexão são necessários para a criação de personagens verdadeiras, vivas, verossímeis – meta de todo escritor. É preciso tornar as personagens tridimensionais. Podemos inicialmente classificar a vida da personagem sob três componentes básicos: profissional, pessoal e privado, por exemplo. Depois, determinando a necessidade de nossa personagem ou o que ela deseja no enredo de nosso conto, podemos criar obstáculos a essa necessidade. Isso empresta à nossa estória uma tensão dramática imprescindível na realização de nosso conto. Assim formamos nossas personagens criando biografias para elas e depois as revelando através de suas ações e possíveis detalhes que as caracterizam. Lajos Egri, autor de The Art of Dramatic Writing (13), define as três dimensões da personagem de ficção como física, sociológica e psicológica. Este conceito pode ajudar o escritor a criar suas pessoas imaginárias como se elas fossem reais. A técnica e a arte do conto - 36
Quando encontramos alguém novo, os detalhes de sua aparência são a fonte de nossa primeira impressão. Tamanho, forma, estado da saúde, linguagem corporal, estilo ao caminhar, seu modo de vestir são as características físicas básicas de uma pessoa ou de uma personagem, e esses dados compõem a sua dimensão física. A dimensão sociológica engloba a conexão da personagem ao mundo – família, status social, escolaridade, profissão, antecedentes (regionais, étnicos, culturais, socioeconômicos), relações com as outras pessoas. A dimensão psicológica de uma personagem é retratada pela sua personalidade básica – temperamento, perspectivas de vida, paixões, talentos, senso de humor, emoções, esperanças, medos. Assim como as pessoas do mundo real têm vidas com múltiplas facetas, assim também as pessoas que vivem nos domínios da ficção. Uma personagem não começa a viver no momento em que aparece na estória. Tem uma vida anterior que precede a que está sendo contada e propicia um contexto para ela. Conhecer a vida pregressa das personagens ajuda na construção das mesmas no texto e também a elucidar muitos dos seus comportamentos atuais e trazer mais consistência e profundidade às suas caracterizações. Esta vida pregressa da personagem é construída pelos acontecimentos desde sua concepção até aquele momento presente na estória. Inclui suas chaves de relacionamento, suas experiências formativas, seus momentos que fazem memória. Obviamente que não precisamos arrolar todos os detalhes na estória, porque somente devem ser levantados aqueles que foram significativos o suficiente para influenciar os acontecimentos atuais e para fazer parte da atual narrativa. Na constituição da personagem principal, devemos levantar os eventos passados que justificam seus objetivos no presente e que a transformam, mudando-a de certa forma, levando-a a aprender ou a evoluir. No fim da estória, o protagonista não deve ser mais aquela mesma pessoa que se apresenta no início da mesma e sim um novo ser - diferente, melhor ou pior. Para cada personagem, mesmo as menores, também devemos criar a impressão de que ela tem uma existência além dos limites da estória. Os leitores devem acreditar na possibilidade de que um destino interessante pode ser construído com cada uma delas. 3. Elementos do conto - 37
É preciso criar emoções e contradições nas personagens, e seus pensamentos e emoções são aqueles detalhes que verdadeiramente vão construir suas caracterizações. E não são os detalhes sobre suas vidas e personalidades que por si caracterizam as personagens e devem ser contados, e sim o que elas sentem e como reagem a esses detalhes. O que é importante salientar é por que a personagem está naquele caminho e como ela se sente afetada por ele. Enquanto esses pormenores não são desenvolvidos, as personagens permanecem sem identidade, sem vida, um mero adereço. Nossas emoções são as fontes das mais fortes e mais reveladoras motivações e ações. Sabemos que os sentimentos nossos e das personagens não têm qualquer lógica que os determinam, mas podem ser criticados, depreciados, enaltecidos, reforçados, reprimidos, exaltados, embrutecidos. Isto é o que dá às personagens cor, dimensão, sutileza. Para parecerem verdadeiras para os leitores, elas devem ter algumas complexidades e contradições na sua composição. Todos temos lados escuros e claros nas nossas naturezas, e as estórias que falam a ambos são as únicas que nos fazem sentir mais recompensados. Quando começamos a nos familiarizar com amigos, vizinhos, colegas de trabalho, não o fazemos pela leitura de suas biografias. Vamos conhecê-los através do que eles falam sobre si mesmos, sobre o que os outros dizem sobre eles e sobre o que observamos acerca de seus comportamentos. Com as personagens numa estória, as mais fortes relações dos leitores são formadas nesses mesmos caminhos, com um bônus adicional – podemos escutar os pensamentos das personagens dependendo do tipo de narrativa usada pelo autor. Como temos um espaço limitado no conto, devemos sumarizar cada personagem através de alguns detalhes somente: o que ela faz como ela age e reage; o que ela pensa - como ela se dirige a si mesma no seu próprio monólogo interior; o que ela diz - como ela se expressa no diálogo com as outras personagens; o que as outras pensam e dizem a respeito dela - o que elas dizem para ela diretamente e como falam dela na sua ausência. O escritor pode fazer o leitor conhecer suas personagens muito melhor, mais do que pela narrativa única de um observador externo, pelas falas das mesmas, pelos seus pensamentos interiores, pelo conhecimento sumário do que elas fazem, pensam, sentem e pelo que as outras reagem, pensam, sentem sobre elas. A técnica e a arte do conto - 38
Margaret Lucke, em seu livro Writing Great Short Stories (1), apresenta um mapa tridimensional da personagem. Características físicas - Tipo corporal, altura, peso, constituição, cor, características. Como a personagem sente sobre seu próprio corpo? Saúde – Quais doenças a personagem padece? Ela considera as mesmas um grande ou pequeno problema? Quanto elas interferem com suas atividades diárias? Vestuário – Quais tipos de roupas e acessórios a personagem veste usualmente? Em quais tipos ela se sente mais confortável? Qual é o seu estilo pessoal? Movimento – Como se movimenta no dia-a-dia? É graciosa ou desajeitada? Ela é maluca por exercício ou uma sedentária? Características sociológicas – Nome: que nome ela carrega? É o nome que foi dado ao nascimento ou outro que ela mesma escolheu para si? Tem um apelido? Qual sua idade, herança e as expectativas dos pais refletidas no seu nome? Detalhes biográficos básicos – Idade, onde e quando nasceu, como viveu da infância até o momento presente? Qual é hoje sua impressão sobre seus primeiros anos? Estado social, cultural, relações étnicas – Como essas condições formaram seu caráter? Vive isolada ou relaciona-se bem com seu meio social? Relacionamentos significativos – Pais, parentes, cônjuge, filhos, amores do passado e do presente, amigos. Como essas pessoas afetaram ou influenciaram sua vida? Qual é o perfil das suas relações diárias? Residência - Cidade, vizinhança, tipo de residência. Como se sente vivendo onde vive? Que tipo de ambiente criou para si próprio no seu ambiente pessoal (no lar, no escritório)? Educação – Qual sua escolaridade? Como utiliza sua escolaridade no dia-a-dia? Sua educação é do tipo que desejou ou a que mereceu? Ocupação ou profissão – O que faz para sobreviver? É bom no seu ofício? Acha seu trabalho agradável ou recompensador? Está feliz com o status e a remuneração que o trabalho lhe propicia? Como é vista pelos seus colegas, superiores e subordinados? Sente-se mais confortável num trabalho seguro ou é do tipo empreendedor? 3. Elementos do conto - 39
Religião, superstições, crenças sociais, políticas – O que modelou sua visão de mundo? Em que dimensão acredita nas coisas? É sincera? É tolerante ou intolerante com os pontos de vista dos outros? Características psicológicas – Personalidade: qual seu temperamento básico e sua perspectiva de vida? Otimista ou pessimista? Expansiva ou intimista? Emocional ou autocontida? Confiante ou desconfiada? Lenta ou rápida para responder à raiva? Padrões da fala - É articulada? Desembaraçada? Taciturna? Que tipo de jargão ou gírias utiliza? Há uma característica regional na sua fala? Atitude consigo mesma - Do que gosta ou não gosta nela? O que conta como seu grande sucesso ou sua grande derrota? Transforma-se? Como? Vê-se como os outras a veem? Talentos, interesses, paixões – O que é especialmente bom para ela? O que ama fazer ou ter? Como seria seu dia perfeito? Hábitos e rotinas – O que faz no seu dia típico? Como reage, se sua rotina diária é interrompida? Resposta ao estresse – Cai aos pedaços numa crise? Entra nela bem e então cai aos pedaços? Não nota a crise? Cria a crise em primeiro lugar? Humor – O que a faz sorrir? Que tipos de piadas conta? Assuntos polêmicos – O que a leva à loucura? Qual sua rabugice preferida? Atitude frente ao sexo oposto - Como essas atitudes se desenvolveram? Atitude frente à autoridade – Vê a polícia, seu chefe, seus pais como amigos ou inimigos? Sonho mais querido e medo mais profundo – Estes podem ser fortes fatores de motivação. O psiquiatra e psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), no início da década de 1930, apresenta ao mundo sua ideia de um inconsciente coletivo. Nela sustenta que, por baixo do inconsciente pessoal descoberto por Freud em cada indivíduo, há uma parte mais fundamental da psique humana que é comum a todos os homens, em todos os tempos e lugares, uma espécie de herança psicológica comum a toda a humanidade. Em 1934, afirma que o inconsciente contém não apenas componentes pesA técnica e a arte do conto - 40
soais, mas também impessoais, em forma de categorias, ou arquétipos. Esses arquétipos se manifestam por imagens e símbolos, presentes nos sonhos, fantasias de todos nós e nos mitos de todas as tradições culturais. Por causa da natureza coletiva da mente humana (inconsciente coletivo), os seres humanos obedecem a uma série de antigos padrões fixos de comportamento (os grandes arquétipos), que constituem uma espécie de herança milenar compartilhada pela raça humana através dos tempos e das diferentes culturas (14). Esses mitos para Jung são metáforas de nossa realidade interna mais profunda e essencial, revelam a própria natureza da alma, surgem nas mais distantes e diferentes culturas e, apesar de peculiar a cada uma delas, obedecem a uma forma, a uma estrutura, a um padrão universal. Joseph Campbell, norte-americano, que dedica toda a vida ao estudo das mitologias, em fins da década de 1920, entra em contato com a obra de Jung e passa a acompanhá-la. A visão acadêmica da época era a de estudar as diferenças entre as mitologias e os mitos em função dessas diferenças. Campbell escolhe evidenciar as semelhanças, os denominadores comuns e percebe uma espantosa unidade entre todos eles. Freud já havia escrito que todos os neuróticos são Édipo ou Hamlet. Em 1949, publica o Herói de mil faces (15), onde evidencia que as características mentais do homem são as mesmas em todo o mundo. Nele mostra que cada herói adquire a face de sua cultura específica, mas sua jornada é sempre a mesma, que denomina “A aventura do herói”, objeto do primeiro capítulo de seu livro. O herói sai de seu ambiente familiar e seguro para se aventurar num mundo estranho e hostil – feito de labirintos, cidades estranhas, outras dimensões, o que for -, onde enfrenta um conflito de vida ou morte com um antagonista poderoso; a certa altura, parece que ele não poderá escapar à destruição, mas o herói acaba por triunfar. No início da década de 1990, Christopher Vogler, um jovem analista de estórias dos estúdios Walt Disney, inspirado nessa concepção junguiana e nos estudos mitológicos de Joseph Campbell, escreve um memorando interno de sete páginas - Guia prático para o herói de mil faces - e o distribui para os roteiristas de seu local de trabalho, como uma contribuição para uma maior eficiência dos roteiros. Esse memorando em pouco tempo se torna o livro A jornada do escritor, que passa a ser admirado e usado por roteiristas americanos novos e antigos. Nele Christopher Vogler cria uma galeria de personagens-arquétipos – aquelas que, segundo ele, estão presentes na maioria esmagadora da ficção literária produzida no Ocidente e extremamente útil ao aprendizado da arte da ficção – em particular neste aspecto tão decisivo que é a construção das personagens. 3. Elementos do conto - 41
Como Vogler utiliza Campbell, seus arquétipos estão diretamente ligados ao contexto do livro desse último O herói de mil faces. De acordo com a tábua de personagens de Christopher Vogler, as principais personagens da Literatura Universal podem ser sintetizadas nos seguintes arquétipos: O Herói - Sempre disposto a sacrificar suas próprias necessidades em benefício de outros. Ele se confunde com a personagem central ou protagonista, independentemente de seu sexo. Embora este aspecto de renúncia e sacrifício seja mais evidente nos enredos épicos ou de aventura, o conceito está presente sempre que uma personagem central defende, ou põe em prática, um conjunto de valores elevados, sem nenhum egoísmo ou vaidade. O Mentor - Na Odisséia, de Homero (até hoje um modelo de enredo épico), Mentor era o nome da personagem que guiava o jovem herói Telêmaco, filho de Ulisses, em sua jornada. Transformado em substantivo comum por Campbell e Vogler, o termo designa a figura positiva que dá conselhos e até presentes ao herói. O Guardião do Limiar - Na aventura do herói de Campbell, o Guardião é aquele que oferece resistência e obstáculo ao herói, em sua trajetória – sem representar, necessariamente, seu principal antagonista, ou mesmo o vilão do enredo. O Arauto - É uma personagem eventual, e sua aparição representa um desafio ao herói, geralmente anunciando a vinda de uma mudança significativa. O Camaleão - Por sua própria natureza é uma personagem fugidia e escorregadia, de natureza instável e mutante – pelo menos do ponto de vista do herói. A Sombra - Este arquétipo representa a energia do lado obscuro da vida, os aspectos reprimidos ou rejeitados de alguma coisa ou de alguém. Tudo aquilo de que não gostamos constitui Sombras – e não é à toa que, na ficção, elas estão sempre encarnadas em antagonistas ou vilões. O Pícaro - Este arquétipo incorpora as energias da vontade de pregar peças e do desejo de mudança. Mais comum nos enredos cômicos, ele nem por isso deixa de se fazer presente em outros textos. Vogler avisa que conhecer os arquétipos pode ajudar o escritor iniciante a se livrar dos estereótipos, dando às suas personagens maior profundidade e mais densidade psicológica, mas que não devemos tomar A técnica e a arte do conto - 42
esses modelos muito ao pé da letra, procurando encaixar numa estória, à força, todas as personagens dos grandes enredos. Em compensação, os arquétipos podem ser úteis na construção de novas personagens. Mesmo não sendo de carne e osso, uma boa personagem é um dos elementos mais fundamentais da arte da ficção. E, quando construída com as palavras adequadas, pode ganhar vida própria. A semelhança com as pessoas e o tempero de humanidade são fatores indispensáveis à verossimilhança de qualquer personagem. Verossimilhança é a coerência interna da obra literária no tocante ao mundo imaginário das personagens e situações recriadas. Mas é preciso ter muita clareza num ponto: personagens não são seres humanos. Elas devem ser obrigatoriamente diferentes de nós, sobretudo na abordagem de alguns aspectos nem sempre presentes nas pessoas de carne e osso. Num texto de ficção de natureza épica ou edificante, por exemplo, a personagem central pode ser um verdadeiro herói, no sentido pleno da palavra – quer dizer, alguém que se destaque por seus feitos guerreiros, sua coragem, tenacidade, abnegação, magnanimidade. Pode ser um indivíduo capaz de suportar exemplarmente infortúnios e sofrimentos, ou de arriscar a vida pelo dever ou em benefício do Bem comum. O fato de que raramente encontramos pessoas assim na vida real não tira o sentido nem a força da personagem. Afinal, a literatura não mostra apenas a vida-como-ela-é, mas também a vida-como-ela-poderia-ser... O que é então uma personagem? Antes, uma personagem é uma criatura feita de palavras, uma entidade verbal que procura sintetizar e resumir características humanas – mas sempre de uma forma bem mais específica e concentrada do que costuma acontecer na vida real. Por isso, mesmo as personagens mais complexas e dissimuladas se apresentam com clareza aos olhos do leitor – ainda que não aos olhos de outras personagens. Esta clareza é, por sinal, uma necessidade estrutural da ficção: a tipificação bem clara das criaturas de papel. Elas devem ser suficientemente densas e originais para atrair a atenção do leitor, permitindo-lhe a fruição de um misto de prazer e aprendizado. Na vida real, a contradição e a incompletude são características de muita gente, ao passo que na ficção isso quase sempre é sinal de falha de construção da personagem. Algumas necessidades básicas da personagem no processo de sua criação são: a sua necessidade dramática; o seu ponto de vista; a sua atitude; o seu potencial de mudança. 3. Elementos do conto - 43
A necessidade dramática de uma personagem é marcada por aquilo que ela anseia vencer, conquistar, superar, durante o curso do texto – seja ele breve como um conto, ou mais longo como uma novela ou romance. É essa necessidade dramática que a direciona no desdobramento do enredo. O ponto de vista da personagem é a forma como ela vê o mundo – o conjunto de suas crenças e convicções. Em suma, trata-se de estabelecer aquilo que a personagem acredita ser verdade. Acreditar ou não em Deus, ter ou não valores morais intransponíveis, mesmo nas situações mais adversas, crer na família como unidade básica da sociedade, por exemplo, são fatores que acabam se mostrando determinantes para o estabelecimento e o desenlace do conflito central de um texto de ficção. A atitude da personagem, de um modo geral, é uma consequência do ponto de vista – e, às vezes, costuma confundir-se com ele. Isso acontece com as personagens mais reflexivas do que ativas, que, muitas vezes, se limitam a ser uma observadora da ação que se desenrola diante de seus olhos. Mas não devemos nos preocupar tanto assim com estas nuances: o importante é que tanto o ponto de vista quanto a atitude são decisivos para o curso da ação dramática. Finalmente, o potencial de mudança da personagem é a capacidade que ela tem de se transformar ao longo da ação, mediante uma trajetória emocional capaz de gerar surpresa e momentos de reflexão para o leitor. Toda grande personagem costuma se transformar ao longo de sua trajetória, mas ela pode também realmente evidenciar ao longo do texto a total impossibilidade disso vir a acontecer. Constitui um fator decisivo para uma obra de ficção que as personagens não sejam apenas bem construídas, mas necessariamente diferentes entre si. Ou seja, cada uma deve ter uma necessidade dramática, um ponto de vista e uma atitude bem diferenciada – pois é sobre esta diferença que vai se desenvolver o conflito do texto. Personagens muito parecidas despertam monotonia e falta de interesse. Existem também outros fatores que determinam a diferença entre as personagens: sua importância no enredo e sua densidade ou profundidade. No que se refere à importância da personagem, todo texto de ficção estabelece, como corolário de seu enredo, uma hierarquia dramática, que estabelece a importância e a participação de cada personagem na ação. De acordo com esta hierarquia, uma personagem pode ser: A técnica e a arte do conto - 44
Protagonista: nome que se dá à personagem principal, em torno do qual se constrói toda a trama. Na realidade muitos romances de construção mais complexa podem ter mais de um protagonista. Antagonista: também chamado de adversário ou opositor, é aquele com quem o protagonista irá se confrontar de forma morosa ou mais intensa no desenrolar da trama. Não necessariamente explícito como nos romances de aventura, o antagonismo pode também ser sutil ou involuntário. Secundária: é a designação genérica atribuída a todas as demais personagens de um texto de ficção, de cujo enredo cada uma delas participa com um grau diferenciado de influência e importância. O número de personagens secundárias nunca é fixo, nem obedece a critérios incontornáveis. A quantidade e a importância delas irão sempre depender da complexidade do enredo – e este vai depender, necessariamente, do fôlego e das expectativas do autor. No que se refere à sua densidade ou profundidade dramática, as personagens podem ser planas ou redondas, de acordo com a classificação de E. M. Forster – uma referência indispensável a quem deseja aprofundar no estudo e na prática das estruturas fundamentais da arte de ficção. Em 1927, E. M. Forster, romancista e crítico inglês, no seu livro Aspects of Novel, imortalizou-se pela sua classificação de personagens em flat (plana, tipificada, sem profundidade psicológica) e round (redonda, complexa, multidimensional). Segundo ele, as personagens planas são tipos unidimensionais, que podem ser definidas com uma ou duas frases: são as mais comuns, por exemplo, nos folhetins e nas telenovelas. Já as personagens redondas constituem verdadeiras criações tridimensionais, verossímeis, convincentes. As personagens planas inspiram sentimentos estereotipados; as personagens redondas vivem os grandes enredos e surpreendem o leitor, inspirando-lhe emoções fortes de qualquer natureza. As personagens planas são construídas ao redor de uma única idéia ou qualidade. Geralmente, são definidas em poucas palavras, estão imunes à evolução no transcorrer da narrativa, de forma que as suas ações apenas confirmem a impressão de personagens estáticas, não reservando qualquer surpresa ao leitor. Essa espécie de personagem pode ainda ser subdividida em tipo e caricatura, dependendo da dimensão arquitetada pelo escritor. 3. Elementos do conto - 45
As personagens redondas são aquelas definidas por sua complexidade, apresentando várias qualidades ou tendências, surpreendendo convincentemente o leitor. São dinâmicas, são multifacetadas, constituindo imagens totais e, ao mesmo tempo, muito particulares do ser humano. Para exemplificar, podemos recorrer ao elenco das personagens criadas pelos bons escritores e que permanecem como janelas abertas para a averiguação da complexidade do ser humano e potência da escritura dos grandes narradores. As personagens não devem ser meras encarnações de ideias preconcebidas, nem imitação de seres humanos reais. O segredo está em saber construí-las de tal forma que o leitor também venha a experimentar, a seu modo, aquilo que elas experimentam. Estas são, segundo Forster, as melhores personagens, as mais redondas. Agora que já temos uma ideia, ou um tema, o protagonista, as personagens, é preciso fazê-las pensar, sentir, agir, comunicar seus desejos, suas emoções, suas compreensões de si, do outro, do mundo. É preciso narrar a estória expondo no texto as personagens e seus conflitos num determinado contexto de tempo e espaço. 3.4. Conflito Para criarmos uma estória, diz Margaret Lucke (1), pegue seu protagonista pelo pescoço e jogue-o impetuosamente dentro do conflito. Os contos tendem a se basear num único em vez de privilegiar muitos conflitos ou impasses ou mudanças. Sem conflito uma estória não tem energia, nada para impulsioná-la para frente e nenhuma razão para o leitor continuar virando as páginas. Ao colocarmos nossas personagens numa luta, num desafio, num conflito, a narrativa ganhará propósito e direção. Aparecerão questões e problemas que deverão ser resolvidos. Teremos energia, tensão, suspense para gerar e manter interesse na sequência da estória. O conflito é aquilo que dificulta à personagem atingir seu objetivo. E a estória nasce quando o conflito aparece no caminho. Em particular, no drama e nas narrativas ficcionais, o conflito é aquilo que dificulta à personagem atingir seu objetivo e pressupõe uma luta entre quaisquer duas forças que estão agindo em oposição. A estória nasce quando o conflito aparece no caminho impulsionando-a e criando o suspense que leva o leitor preso até a última página. A técnica e a arte do conto - 46
O conflito resulta de uma situação de antagonismo entre personagens de características diferentes, entre personagens e entidades sobrenaturais, entre personagens e o meio natural, social, familiar ou político, ou entre uma personagem e o seu próprio mundo íntimo. Uma estória é o desenrolar do que acontece quando uma personagem tenta resolver um conflito para alcançar um objetivo ou solucionar um problema. O conflito é assim o sangue da estória, fluindo através dela e dando-lhe energia vital. O conflito faz progredir os eventos da estória e levanta as questões que devem ser resolvidas. Ao lidarem com o conflito, as personagens se revelam – suas motivações, fraquezas, forças. E como uma estória pode ser definida como uma descrição do que acontece quando uma personagem tenta superar um conflito de modo a alcançar um objetivo ou solucionar um problema, as duas - personagens e conflito - são a essência daquilo a que a estória se refere. Ratificando, o conflito é simplesmente qualquer impasse obstaculizando o protagonista a conseguir aquilo que ele quer naquela determinada situação. Se nosso principal personagem tem uma situação ideal no princípio da estória, ou se mostra tranquilo, através do desenrolar da mesma, isto é fantástico, mas não é uma estória. A estória ocorre quando “as pedras aparecem no meio caminho’’, como já dizia Carlos Drummond de Andrade. A resolução do conflito depende das circunstâncias que o precipitam. Na tragédia clássica, ele deve ser resolvido dentro do próprio drama, segundo uma regra que assegura que o espectador fique sabendo tudo sobre as personagens em cena, após o desfecho da estória, e, de preferência, que saia do espetáculo sem dúvidas sobre o destino e o caráter das personagens. Na dramaturgia e na ficção pós-moderna é costume se explorar a situação sem saída, o eterno conflito, nunca resolvível, ou cujo termo fica apenas subentendido ou sugerido. Compete, muitas vezes, ao espectador ou ao leitor realizar as inferências necessárias à total compreensão das personagens e/ou da estória narrada. Para descobrirmos que tipo de conflito nosso protagonista está enfrentando, façamos a ele e às outras personagens três perguntas: o que ele almeja realizar no curso da estória; o que está em jogo; quem ou o que o mantém no caminho? O que nosso protagonista almeja realizar no curso da estória? Assim como qualquer pessoa real, uma personagem na estória tem aspirações, objetivos, coisas que ela sente desejo de obter ou alcançar. O 3. Elementos do conto - 47
protagonista mostra-se envolvido na estória por uma razão: ele percebe que a situação em questão o ajudará ou o impedirá de realizar um importante objetivo. O que está em jogo? Basta respondermos algumas questões. Quais são as consequências, se o protagonista alcançar seu objetivo ou falhar? Em cada caso, de que forma outras pessoas na sua vida serão também afetadas, para melhor ou pior? O que, quando, onde, como, por que o protagonista almeja alcançar? Até onde está disposto a ir para assegurar o resultado esperado? Como sofrerá na possibilidade de uma derrota de seu objetivo? Quem ou o que o mantém no caminho? Isto é onde o conflito começa. Com quais desafios o protagonista se depara, dificultando-o a atingir seu objetivo. Alguns desses impasses podem ser impostos por forças externas que ele não pode controlar; outros podem derivar de seus próprios desempenhos e deficiências. Como o conflito se apresenta quando os objetivos de duas personagens se confrontam diametralmente, cada personagem tem, em maior ou menor grau, sua participação naquela situação descrita na estória. Cada uma tentará direcionar o curso da mesma para uma situação de melhor vantagem para si, assim como todos fazemos na vida real. As únicas exceções serão aquelas personagens que têm uma menor importância no desenrolar da estória e cujas funções são de apoio, de adereço, de complementação: o garçom que serve os clientes num restaurante; os espectadores num ginásio assistindo a uma luta de boxe; o padre na cerimônia de um casamento. Na medida em que as personagens interagem, seus objetivos se misturam e entram em colisão. Como elas respondem quando isso acontece vai representar a base do nosso enredo. Assim, uma vez que saibamos quem são as personagens e quais conflitos elas enfrentam, podemos encontrar como se pode arranjar e apresentar os eventos da estória, do início ao meio e ao fim da mesma. A estória caminha nos ombros do protagonista e dos seus objetivos. Ele tem a responsabilidade primária de esboçar a estória e manter-nos nela. Para que mereça nosso tempo e atenção, ele deve ser alguém com o qual nos possamos identificar e nos apaixonar e cujos apuros possam nos emocionar de tal forma que permaneceremos curiosos e interessados nas suas soluções. Há três cuidados principais para ajudar nosso protagonista a cumA técnica e a arte do conto - 48
prir ou satisfazer suas obrigações na estória. O primeiro cuidado é dar ao nosso protagonista uma missão significativa, se possível, de importância vital, com consequências funestas se for derrotado. Um capricho dele não pode constituir um bom objetivo para a estória. Ele deve estar em apuros e ter um grande motivo para buscar uma saída para seu sofrimento. Os leitores precisam ter uma clara noção do objetivo do protagonista desde o início da estória e durante todo o desenrolar da narrativa. Ele, por seu turno, não deve ter um grande ou completo entendimento acerca de seu problema, ou, no mínimo, deve estar iludido ou confuso sobre ele, como todos nós estamos na maior parte do tempo sobre muitas coisas de nossas vidas. Sua compreensão deve ir mudando em resposta a fatos que vão gradativamente ocorrendo, e, através de suas ações e reações, suas palavras, seus pensamentos, seu objetivo deve ir se tornando aparente para nós. Por exemplo: a ambição de Fernando de tornar-se um médico pode esconder seu verdadeiro desejo, que é provar a seu pai que ele não é um idiota. Mariana pode proclamar aos quatro ventos seu desejo desesperado de desposar André, mas talvez o que ela realmente quer é escapar da violência e pobreza da casa dos pais. Juscelma faz um imenso esforço para trabalhar numa determinada empresa, mas, na verdade, esconde um desejo de se infiltrar na instituição e prejudicá-la por desejo de vingança da mulher do proprietário. O objetivo pode aparentar ser uma decisão racional e pode sem dúvida fazer sentido dentro de um raciocínio lógico. Mas, quando ele se baseia numa necessidade emocional profundamente situada ou numa ferida aberta, o objetivo pode trazer uma dimensão muito mais rica à personagem e à estória. O objetivo da estória é o que motiva o escritor a escrever: o objetivo da personagem, porém, pertence a ela unicamente. O segundo cuidado é fazer com que o protagonista venha a encontrar muitas barreiras no seu caminho para que o interesse do leitor aumente. O que acontecerá? Ele vencerá ou será derrotado? Se subitamente o desfecho da estória está interrogado, a tensão aumenta e todos ficamos curiosos para saber o que pode acontecer em seguida. A função do escritor é colocar a personagem principal cada vez mais em dificuldade para justificar a razão de ser do protagonista.
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A palavra protagonista deriva do grego proto, que significa primeiro, principal, e agonista, ou aquele que está engajado no combate, o combatente número um. Se não conseguimos colocar nosso protagonista em constante conflito, a nossa estória não emociona o leitor e, por ficar insatisfeito, ele não se sente tentado em completar sua leitura. E, por último, devemos construir um antagonista - forte, digno, valoroso - que deve ser tão inteligente quanto o protagonista e ter tanto ou mais recursos ou vantagens no início do confronto entre eles. Quanto mais vantagens, possibilidades, conhecimentos do terreno dermos ao antagonista no início da batalha, maior será a tensão e o suspense criados no desenvolvimento da estória. Se de antemão já sabemos que nosso protagonista vence, não conseguimos compor um bom conflito para nossa estória. Agora que já temos uma ideia, um tema, o protagonista, as personagens, o conflito, precisamos fazer as personagens falarem através do diálogo e usar os principais processos de composição de todo e qualquer tipo de texto – a descrição, a narração, a dissertação, a argumentação para escrever a nossa estória. 3.5. Diálogo Na história e mesmo na vida de cada pessoa, a fala antecede a escrita. A comunicação oral é a primeira forma de comunicação entre os homens, e ao seu tão essencial registro dá-se o nome de diálogo. O diálogo é de suma importância, consistindo uma ferramenta absolutamente indispensável, sendo a base expressiva do conto, porque propicia tensão, conflito, suspense na estória e pode ajudar a caracterizar melhor as personagens. Sem ele não há discórdia ou conflito, elementos fundamentais no conto. A melhor maneira de se informar é através dos diálogos, mesmo no conto em que o ingrediente narrativo é importante. Henry James (1843–1916), nascido em Nova York e naturalizado cidadão britânico em 1915, para muitos, o legítimo escritor para escritores e autor de contos como A besta na selva e A coisa real – obras-primas do gênero –, diz que a função do diálogo é expor. Massaud Moisés (3) ressalta que o conto, por seu estofo dramático, dever ser, tanto quanto possível, dialogado. A técnica e a arte do conto - 50
O diálogo está presente na ficção, na reportagem, nas entrevistas de jornais, nas revistas – enfim, é a própria conversa reproduzida por escrito sempre que isso se fizer necessário. Certamente, o diálogo encontra sua utilização mais plena e completa nas peças de teatro e nos roteiros para o cinema. Mas ele é uma presença constante em muitos textos em prosa (ficcionais ou não), em geral combinado aos outros processos de composição: descrição, narração, dissertação, argumentação. Por que o diálogo é tão importante? Sabemos que os conflitos, os dramas residem mais na fala, nas palavras proferidas (ou mesmo pensadas) do que nos atos ou gestos (que são reflexos ou sucedâneos da fala). Sem diálogo, não há discórdia, desavença ou mal-entendido e, portanto, não há enredo, nem ação. As palavras como signos de sentimentos, ideias, pensamentos e emoções podem construir ou destruir. A música e a mímica são sempre citadas como exemplo de linguagem universal, mas transmitem apenas parte de tudo o que pensa ou sente o homem: o meio mais completo de comunicação é a palavra, sobretudo na forma de diálogo. O diálogo representa a melhor forma capaz de expor e aprofundar todos os variados matizes dos conflitos humanos em ação, mesmo quando o recurso narrativo parece ser o mais importante. O diálogo é a própria ação falada, segundo Pirandello, porque captura a atenção do leitor da mesma maneira que o faz a ação. O ritmo e o duelo dos diálogos fundamentam o conflito básico da representação dramática revelando os desejos, as ideias, os sentimentos, as convenções, os objetivos, as características psíquicas e sociais das personagens. Compor na nossa estória um diálogo convincente e natural das personagens é o desafio mais difícil, a não ser que tenhamos sido abençoados com um excelente ouvido para as nuanças de como as pessoas falam. Nosso ouvido, no entanto, pode e deve ser treinado, e é bom dedicar um tempo, muito esforço e algum cuidado a essa tarefa de se escrever bem um diálogo (1). As falas devem ser sugestivas e pertinentes e cumprir as três funções do diálogo: revelar as personagens, fornecer informações e mover a estória para frente. 3. Elementos do conto - 51
O diálogo revela a personagem porque o escritor através dele diz ao leitor o que está acontecendo de um modo muito mais efetivo e interessante do que através de outros métodos de composição do texto. Quando a personagem fala, permanecemos firmemente no tempo e espaço da estória, sem sermos retirados da mesma por uma explanação do autor. O diálogo leva a estória para frente porque através dele as personagens dizem aos leitores coisas pertinentes, interessantes, importantes à estória e que ajudam a manter o momento da mesma fluindo. É necessário, porém, construir uma fala particular para cada personagem. Quando um amigo nosso telefona, nós o reconhecemos sem o mesmo dizer se é o João ou o Manoel. Cada um deles fala diferente. E não somente cada um tem qualidades únicas no som de sua voz – aguda, intermediária, grave, suspirosa, irritante, musical – porém, as palavras que cada um escolhe e o modo que as coloca juntas são bastante singulares. Uma mesma informação pode ser dada de um modo (ou estilo) diferente, distinto, específico por cada uma das personagens. O trabalho do escritor como autor da estória é ajudar cada personagem a encontrar sua distinta e característica voz. O leitor deve ser capaz de identificar qual personagem está falando pelo seu próprio padrão de fala. Quanto mais ele pode distinguir as personagens pelas suas maneiras de falar, mais acredita nelas como indivíduos reais. Isto é mais complicado quando as personagens têm muito em comum – quando elas vêm da mesma região, têm a mesma condição socioeconômica, têm níveis equivalentes de escolaridade ou têm profissões e atividades de lazer semelhantes. Mas, mesmo as pessoas que são semelhantes em muitos aspectos, têm suas próprias características e sutilezas nas suas falas quando dialogam. Uma das maneiras de aprender a escrever melhor o diálogo de nossas estórias é prestar atenção e mesmo registrar anotando ou gravando como as pessoas que encontramos no trabalho, na escola, num ônibus, num restaurante e em tantos outros lugares se expressam quando dialogam entre si. Não nos interessa naturalmente o conteúdo dos diálogos, mas os tipos de palavras e frases que usam e o ritmo e a altura de suas falas. A primeira exigência ao se escreverem os diálogos das personagens é colocar as palavras delas, e não as do escritor, e deixar sempre claro para o leitor quem está falando, para quem, onde estão e o que estão fazendo. A técnica e a arte do conto - 52
Apesar de na maioria das vezes ser importante evitar usar a mesma palavra com frequência e muito perto uma da outra, as palavras decorrentes do verbo dizer e perguntar parecem palavras invisíveis para o leitor e o mesmo não costuma se sentir agredido pela sua repetição. Podemos, no entanto, mostrar ao leitor como a personagem disse a palavra – por exemplo: João chamou, sussurrou, cochichou, murmurou, segredou. É possível também usar seus sinônimos: disse (afirmou, alegou, arriscou, arguiu, aconselhou, assegurou, asseverou, bradou, contou, comunicou, considerou, descobriu, evidenciou, explicou, expôs, exprimiu, exclamou, informou, interpretou, inquiriu, mostrou, narrou, proferiu); perguntou (interrogou, inquiriu, questionou, indagou). É importante evitar advérbios de modo e adjetivos, por exemplo: sarcasticamente, levemente, confusamente, raivosamente. Deixar as próprias palavras da personagem conduzir o tom da voz para que o leitor possa ouvi-las de forma correta. Seu desgraçado! Saia daqui! - Jane berra raivosamente. Eu não quero ver você nunca mais. - A ira de Jane é evidente neste exemplo e fica muito bem explícita na sua fala: adicionar a palavra raivosamente é uma redundância que nada acrescenta. Uma exceção – embora ela deva ocorrer com raridade – é quando o tom da personagem é contrário ao que suas palavras exprimem: - Eu vou quebrar seu pescoço, seu monstro - Maria diz com sua voz mais dócil. Como dar às personagens a voz com tons peculiares? Podemos variar o grau de articulação das palavras da personagem, caracterizando-a como desembaraçada, fluente, loquaz, taciturna, dissimulada, errante, direta no assunto. Exemplos: É? Sei! Tá! Hum! Bom! Não acredito! É mesmo! Variar o comprimento e a estrutura das frases, usando frases curtas, demoradas, incompletas. Podemos comer palavras no início das frases, usar frases incompletas, deixar uma frase no meio e pular para uma nova. Deixar pensamentos, afirmações, perguntas sem concluir. Interromper muito o sentido real da frase e partir para comentários secundários e sem qualquer importância. Variar nosso vocabulário. Podemos usar palavras curtas, longas. Utilizar vocabulário rico ou muito limitado. Variar o comprimento das falas típicas das personagens. Mostrar a personagem conversando muito ou muito pouco; usando muitos detalhes; sendo muito superficial e evasiva. 3. Elementos do conto - 53
Dar às personagens suas próprias exclamações, gírias, expressões regionais ou étnicas. Deixá-las falar com ou sem correção gramatical. Deixá-las fofocar, falar abertamente sobre suas emoções ou intimidades, fazer perguntas desconcertantes. Tom Monteleone, no seu livro Writing a novel (8), ensina algumas técnicas e truques na formação de um bom diálogo. Sugere-nos abrir o texto com um diálogo e de preferência com um diálogo que sugira um argumento ou um conflito. Melhor ainda, abrir a nossa estória com uma personagem perguntando alguma coisa a alguém - uma pergunta que se pode ou não responder. Isto constitui um gancho inicial que leva o leitor não somente a esperar por uma resposta, mas também esperar saber quem está falando e quem está escutando. Usar o humor no diálogo é uma maneira natural de captar o leitor para nossa estória. Isto, porém, não quer dizer colocar as personagens se ridicularizando, caçoando, brincando, entre elas: o humor deve ser inteligente e sugerir mais do que revelar. O humor pode ser sardônico ou descarado. Ironias e sátiras são também formas sutis de humor que podem ser criadas através de diálogos verdadeiramente bons. Criar uma frase original que possa se repetir várias vezes durante o desenrolar da estória e cada vez que apareça desvele um significado novo ou mais claro. Descrever o modo com que as personagens falam ajuda-nos a distinguir entre uma e outra e pode servir para caracterizá-las melhor. Por exemplo: Ângela disse: - Eu vou ver - coçando a cabeça, ou fechando os olhos, ou balançando a cabeça. Não usar determinados lugares-comuns, como, por exemplo, Bem, como você sabe; - Mas como eu ia dizendo. Não utilizar falas longas, porque o diálogo torna-se enfadonho. Por outro lado, falas curtas trazem ação e movimento à estória. Não ter medo de usar no diálogo - Ele disse - e ter de repetir o mesmo verbo muitas vezes quando for necessário. Nenhum leitor desaprova seu uso, o que não quer dizer que tenhamos de usá-lo em cada linha do diálogo. Quando usarmos o Ele ou o Ela disse, não devemos utilizar advérbios que o modifiquem, tanto quanto possível, a não ser que seja imprescindível. Por exemplo: - Ele disse rudemente. Também: - João disse, ou, - Disse João, vai depender do ritmo da frase. O uso de verbos substitutos não é aconselhável. Por exemplo, em vez de “Ele disse”, usar: Ele opinou, Ele declarou, Ele gaguejou. A técnica e a arte do conto - 54
As palavras contêm vários níveis de estruturação e consciência antes de serem formuladas pela fala deliberada. Jacques Lacan, que reinterpretou Freud, assinala que o inconsciente se estrutura pela linguagem. Dentre tantas outras nuanças desse conceito, é possível dizer que aquele que fala muito sobre uma coisa seguramente tem um conflito com aquele tema. Um exemplo típico é aquele que nos bares propala seu exagerado desempenho com as mulheres e que na verdade tem, ou é provável que possa ter, uma dificuldade com elas. Através da fala, uma personagem expressa seu pensamento, seu sentimento, sua provável ação, sua vontade, seu desejo, seu medo, sua angústia, sua dor, seu sofrimento. O diálogo é uma forma, simples, curta, efetiva, de exposição dos mesmos. Os tipos de diálogo são: direto, indireto, indireto livre, interior. No diálogo direto ou convencional (ou discurso direto), o contista põe as personagens a falar diretamente (elas conversam entre si). É identificado pelo travessão ou pelas aspas (própria do modelo americano). Na maioria das vezes, marcado pelas expressões “ele disse”, “ela respondeu”. As aspas, muitas vezes, se confundem com a marcação do pensamento da personagem, por isso podemos preferir os travessões. Os escritores modernos, na sua maioria, tiraram essas marcações repetitivas, que só embaralham e interferem na psicologia do leitor, deixando que as personagens se manifestem sozinhas, sem interferência. Além de ser o mais comum, é, também, predominante no conto, porque permite ao narrador colocar o leitor diante dos fatos, como participante direto e interessado. A comunicação realiza-se de pronto entre o leitor e a narrativa. O diálogo direto registra da maneira mais literal possível a fala (real ou fictícia, conforme a natureza do texto) de um ou mais falantes, reproduzindo as próprias palavras deles ou criando suas palavras supostamente fiéis. Vejamos o exemplo, extraído do trecho inicial do romance A mão e a luva, de Machado de Assis: – Mas que pretendes fazer agora? – Morrer. – Morrer? Que idéia! Deixa-te disso, Estevão. Não se morre por tão pouco... – Morre-se. Quem não padece estas dores não as pode avaliar. 3. Elementos do conto - 55
José Lins do Rego usou o diálogo direto ou convencional fotografando a linguagem das personagens e não apenas se aproximando – o regionalismo tinha um forte compromisso com o documento. Não bastava registrar. Era preciso fotografar. Repetir as falas tal qual ditas pelas personagens. Graciliano Ramos, a seu turno, inventa por aproximação, recolhe a linguagem e não imita. O discurso direto é amplamente utilizado pelos romancistas modernos, por permitir melhor caracterização das personagens, ao tornar possível registrar, de maneira mais viva, os matizes da linguagem afetiva, as peculiaridades de expressão - gírias, modismos fraseológicos, maneirismos. 2. No diálogo indireto - discurso indireto (3), o contista resume a fala das personagens em forma narrativa, isto é, sem destacá-la de modo algum, transmitindo apenas a essência do pensamento a ela atribuído. Vamos dizer que a personagem conta como aconteceu o diálogo, quase que o reproduzindo. No conto, aparece menos e mesmo assim, quando se trata de diálogo secundário, que não vale a pena transcrever expressamente. Vejamos três exemplos extraídos de Vida e Morte, de Lima Barreto, em discurso direto, e vamos transformá-los em discurso indireto. Interrompi-o perguntando: - E o Gonzaga, como vai? No discurso indireto seria: Interrompi-o perguntando-lhe como ia o Gonzaga. O simpático informante (...) perguntou-me: Por que não se ouve a Secretaria de Propaganda, em Roma? Seria: O simpático informante (...) perguntou-me por que não se ouvia a Secretaria de Propaganda em Roma. (Perguntou:) – Quem acreditará em sua consciência? Seria: (Perguntou) quem acreditaria em sua consciência. 3. Diálogo indireto livre (ou discurso indireto livre), quando o contista passa imperceptivelmente da fala do narrador onisciente para a consciência da personagem. É a fusão entre autor e personagem (a primeira e a terceira pessoa narrativa); o narrador narra, mas no meio da narrativa surgem diálogos indiretos da personagem como que complementando o que disse o narrador. No conto constitui fecundo recurso expressivo. Em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, o discurso indireto livre é muito frequente e habilmente empregado. No trecho seguinte, os limites entre o indireto puro e o indireto livre estão nitidamente marcados A técnica e a arte do conto - 56
pelas interrogações, exclamações e as reticências: Se não fosse isso... An! Em que estava pensando? Meteu os olhos pela grade da rua. Chi! Que perfume! O lampião da esquina se apagara, provavelmente o homem da escada só botara nele meio quarteirão de querosene. Em todo o parágrafo, só há duas orações em discurso indireto puro: Meteu os olhos pela grade da rua e O lampião da esquina se apagara. Todo o restante está em discurso indireto livre. 4. Constitui diálogo interior (ou monólogo interior, ou fluxo de consciência) aquele que se passa dentro da mente da personagem: ela fala consigo mesma, antes de se dirigir a outrem. Vejamos o exemplo de Clarice Lispector, em Perto do coração selvagem: Fechar os olhos e sentir como uma cascata branca rolar a inspiração. De profundis. Deus meu, eu vos espero, Deus, vinde a mim, Deus, brotai no meu peito, eu não sou nada e a desgraça cai sobre minha cabeça e eu só sei usar palavras e as palavras são mentirosas e eu continuo a sofrer, afinal o fio sobre a parede escura, Deus, vinde a mim e não tenho alegria e minha vida é escura como a noite sem estrelas, Deus, por que não existes dentro de mim: por que me fizestes separada de ti? Embora raro, o diálogo interior pode ser empregado sem abalar a estrutura do conto, porque, na realidade, nele o narrador apenas transfere para o monólogo interior o diálogo que uma personagem travaria com a outra. Agora que já temos uma ideia, as personagens, o conflito, o diálogo, a nossa estória deve ser colocada num determinado tempo e num determinado espaço. 3.6. Tempo e Espaço Na abertura e sempre que necessário na estória é recomendável situarmos o tempo e o espaço para nossos leitores, para que as ações das personagens se passem num contexto melhor retratado. Ao longo do conto, as indicações de natureza temporal são sempre limitadas e vagas, não permitindo determinar com rigor a duração da ação ou a localização num contexto histórico preciso. Os contos tendem a cobrir períodos relativamente curtos de tempo: uma hora, um dia, uma estação, uma vida. O mesmo acontece relativamente ao espaço: uma casa, uma fonte, uma floresta. 3. Elementos do conto - 57
Na verdade, as vagas referências de espaço e de tempo aparecem apenas porque são exigências da narrativa, visto que nada acontece fora do tempo e do espaço. Não é o onde nem o quando que interessam, mas sim o que acontece - a ação. As próprias personagens são um mero suporte da ação, daí a sua caracterização estereotipada. Espaço e tempo fornecem um contexto para as personagens da estória e seus eventos. Não devemos precisar no texto o espaço e o tempo somente, mas essas entidades devem reagir com as personagens e influenciar no que acontece com elas. Quando isso ocorre, o leitor é colocado no interior da estória e aumenta seu envolvimento com tudo que acontece. O espaço no conto é o ambiente da estória - o lugar onde as personagens circulam, o local suficiente para que o enredo se organize. Na maioria das vezes, ele é quase sempre de âmbito restrito – uma casa, uma rua, um quarto de dormir, uma sala de estar, ou mais amplo, como uma vizinhança, uma cidade, uma região, mas pode também ser um planeta, um local verdadeiro, um lugar totalmente imaginado. Na medida em que a estória se movimenta de cena para cena, o local muda, mas sempre permanece dentro dos parâmetros do mundo dela. Uma boa estória é uma boa mistura de personagens, enredo e espaço. Ao identificarmos uma ou várias personagens e uma determinada situação, devemos fazer o jogo do “E se..” e vamos encontrar vários espaços ou ambientes para que a estória possa melhor se desenvolver. Se mudarmos a personagem de um local para outro, temos outras premissas e outras estórias. Se colocarmos a mesma personagem e a mesma situação em dez novos ambientes, provavelmente teremos dez diferentes estórias. O efeito da escolha do ambiente da estória é fundamental, porque há uma estreita interação entre a personagem e o ambiente. O local desenha a personagem, e a personagem desenha o ambiente. Assim como devemos construir nossas personagens como figuras tridimensionais para que pareçam mais reais para os leitores, também devemos construir nossos ambientes para que se tornem mais reais e vibrantes. O ambiente físico pode retratar tamanhos, formas, cores, texturas, aromas, sons. Para grandes ambientes, podemos incluir clima, paisagem, características geológicas e tudo aquilo que possa ter sido nele construído A técnica e a arte do conto - 58
pelo homem. Para pequenos ambientes, os móveis de uma sala, o tamanho das janelas, o ângulo de incidência da luz solar num quarto. O ambiente sociológico compreende as características culturais, econômicas e políticas do local e de seus habitantes típicos. Reflete a compreensão e as experiências do mundo de seus moradores e suas crenças e atitudes sobre pessoas e seus papéis sociais. O ambiente psicológico fornece muito da atmosfera local. A casa na esquina é deprimente; o bar do quarteirão é alegre, animado, barulhento; o local tem uma aparência extravagante, mas a cidade vizinha é pesada e sombria. Quando escrevemos uma estória, criamos um novo mundo e convidamos o leitor para entrar nele e aceitá-lo como verdadeiro. Isto é feito com maior verdade se, em vez de descrevê-lo com poucos ou muitos detalhes, conseguirmos mostrá-lo através das ações praticadas pelas personagens nele. O espaço estabelece o panorama físico e cultural do nosso mundo recém-criado e fornece o ambiente e o clima que circunscrevem as personagens da estória. O tempo no conto é quase sempre um curto lapso de tempo, o conflito se passa em horas ou dias, mesmo porque na maioria das vezes o passado e o futuro não interessam aos acontecimentos narrados. O tempo fornece uma quarta dimensão ao nosso ambiente e é tão importante como as três dimensões que o devem caracterizar. Dia ou noite, verão ou inverno, hoje ou duzentos anos atrás – é preciso usar o tempo para estabelecer uma atmosfera, fornecer complicações, influenciar as escolhas e ações das personagens. Na medida em que o tempo passa, as características dos ambientes mudam. Se situarmos nossa estória no passado ou no futuro, as características físicas, sociológicas e psicológicas do ambiente não são as atuais e devemos pesquisar como eram antes ou imaginar como serão depois. Quanto mais remota ou mais postergada a estória seja delineada, maior a dificuldade para sermos fiéis na concepção das três dimensões em que o ambiente necessita ser representado.
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3.7. Unidade dramática A UNIDADE DRAMÁTICA ou o enredo de um conto é o projeto do mesmo, da primeira até a última cena, uma a uma, do que acontece agora para o que acontece depois, através de unidades que se mesclam e convergem para um mesmo ponto, fazendo sempre o leitor supor que sabe o que vai acontecer, mas nunca lhe permitindo acertar, gradativamente, através de registros e mais registros, até o final da mesma. A maior conquista do escritor é quando o leitor começa a ler o conto e não consegue parar, indo até o final. O desdobramento da ação dramática pode ser representado graficamente por uma curva. A curva dramática
A curva dramática começa num traço horizontal reto, que representa um estado inicial de repouso ou equilíbrio. Num determinado ponto, ela começa a subir, há uma ruptura do equilíbrio inicial e uma intensificação crescente da ação em busca de um novo equilíbrio, que é representado pelo seu caráter ascendente. A curva finalmente atinge um ponto máximo, uma culminância, e cai novamente, detendo-se, porém, num patamar superior ao seu estado inicial. Ou seja: o sujeito vive uma experiência dramática que o transforma e que, depois de encerrada, o deixa num nível mais alto. A técnica e a arte do conto - 60
Vejamos a função de cada uma das partes da estrutura dramática ou da unidade dramática. A Exposição é a parte inicial da trama e fornece as informações necessárias para dar um chão ao leitor. Diz onde se passa a estória, quando, quem são as personagens principais, qual o gênero da obra, seu universo, sua realidade, seu estilo. O Ataque é um ponto da trama e assinala o início da ação principal. É a manifestação ostensiva do problema, o elemento determinante que exige tal ação, a primeira grande ruptura do equilíbrio. A Complicação é a parte da trama em que se desenvolve o confronto da ação com o problema ou obstáculo. Em termos de personagens, é o desenvolvimento do conflito central entre protagonista e antagonista. Chama-se, também por isso, conflito, luta. Trata-se do momento da ação dramática em que a tensão atinge o seu mais elevado grau, articulando-se geralmente com um ponto de viragem decisivo (turning point), na sequência do qual ocorre o desenlace. O Clímax é o ponto da trama que evidencia o final da ação, a consumação última do conflito, o ponto máximo da curva dramática. Podese ter uma crise excepcionalmente forte, mas, se ela não assinalar o fim da ação principal, não é ainda o clímax. A Resolução é a parte da trama que estabelece a restauração do equilíbrio, de preferência num patamar superior ao da exposição. É o desfecho da estória. Uma estrutura tradicional de estória pode ser distribuída em três atos, como na dramaturgia tradicional do teatro. O primeiro ato inclui a exposição, o ataque e o início da complicação. O segundo ato é constituído pela complicação. O terceiro ato é formado pelo final da Complicação, o Clímax e a Resolução. Os trabalhos de Syd Field (16, 17 e 18) estabeleceram um paradigma para a estrutura dramática. Ele verificou inicialmente que era comum que os roteiristas iniciantes dominassem, sem muita dificuldade, a Exposição e o Ataque, no início, e o Clímax e a Resolução, no fim, mas sempre lutavam com grandes problemas no desenvolvimento da Complicação, ou seja, no meio da estrutura, na sua parte quantitativamente maior. Para ajudar os roteiristas, Syd Field deu uma atenção particular à parte de Complicação, tentando resolver seus problemas mais cruciais 3. Elementos do conto - 61
através da técnica de estabelecer os principais picos da estória, suas principais peripécias e reconhecimentos. Para usar os termos de Aristóteles - suas crises, suas viradas, seus nós dramáticos mais decisivos, aos quais chamou de plot points, ou seja, pontos da trama. No seu primeiro livro Manual do Roteiro, determinou a necessidade de plot points decisivos, essenciais à progressão adequada da trama. O primeiro – chamado Plot Point 1, ou PP 1 -, no final do primeiro ato. Ele corresponde, na estrutura mítica de Christopher Vogler (em A jornada do escritor), à entrada do protagonista no Primeiro Limiar de sua jornada, sua entrada no Mundo Especial de sua aventura. O segundo – chamado Plot Point 2, ou PP 2 -, no final do segundo ato, como uma virada decisiva para empurrar a ação até o clímax, ou resolution scene. No seu segundo livro, Exercícios do roteirista, Syd Field introduziu novos Plot Points, sempre com o objetivo de ajudar os roteiristas a mover a ação, durante a complicação, através das viradas mais importantes e, assim, assegurar a progressão da trama. O mais importante desses novos pontos - o Midpoint – é colocado bem no meio da estória e relacionado ao que Christopher Vogler chama de Provação Suprema, na sua visão mítica da estrutura dramática. É o momento asfixiante em que a ação do herói parece ter sido perdida, e ele morre ou parece morrer. Syd Field ainda estabeleceu o Pinch One (ou Pinça 1), entre o PP 1 e o Midpoint, e o Pinch Two (ou Pinça 2), entre o Midpoint e o PP 2. O paradigma de Syd Field é constituído assim por três atos e os seus cinco plot points.
O primeiro ato ou apresentação constitui aproximadamente um quarto do roteiro e apresenta as personagens principais, qual a situação A técnica e a arte do conto - 62
inicial e qual a tensão principal. O assunto da estória deve ficar claro até o final deste ato. O segundo ato ou confrontação representa a metade do roteiro e mostra a personagem principal em ação envolvendo o espectador e superando os obstáculos cada vez mais difíceis para resolver. São eles, na ordem de acontecimento da estória: ponto de virada 1, pinça 1, ponto central, pinça 2, ponto de virada 2. Além desses pontos-chave, Syd Field destacou a importância da cena inicial, das primeiras dez páginas e da cena final. O ponto de virada 1 é uma mudança no rumo da estória que leva ao ato 2. A pinça 1 é uma cena, fala ou sequência que amarra a trama e a coloca em movimento. O ponto central é o meio do roteiro, por isso recebe esse nome. No ponto central acontece uma mudança de direção no ato 2. A pinça 2 é novamente uma fala, cena ou sequência que põe o final do ato 2 em movimento. Muitas vezes a pinça 1 pode ter alguma relação com a pinça 2. ato 3.
O ponto de virada 2 é a mudança no rumo da estória que leva ao
Luiz Carlos Maciel (19) faz uma síntese abrangendo a estrutura dramática tradicional e o paradigma de Syd Field. A estrutura básica tem três partes: Exposição, Complicação e Resolução. E cinco momentos decisivos: Ataque, PP 1, Midpoint, PP 2 e Clímax. A eles podemos acrescentar as duas pinças – Pinch One e Pinch Two.
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A tarefa elementar do roteirista e do escritor é ajustar sua trama a essa estrutura fundamental. Aristóteles afirma, na Poética, que a trama é a alma da tragédia e que as personagens são secundárias em relação a ela. Ou seja: a estória é o fundamento, as personagens se ajustam a ela. O perfil da personagem deve atender às exigências da estória, que é, assim, o elemento determinante da mesma. A ação é a espinha dorsal do drama, e a composição das personagens deve se subordinar a ela. Depois de se estabelecer a sucessão dos acontecimentos, devemos conceber personagens capazes de levá-la em frente. Lajos Egri, no seu livro The art of dramatic writing (13), diz que toda peça de teatro deve ter uma ideia inicial, ou premissa, e cita que vários outros autores (sempre querendo nomear a mesma coisa) a denominam de tema, tese, ideia raiz, ideia central, objetivo, propósito, força diretiva, assunto, proposta, plano, enredo, emoção básica e outros mais. Acrescenta que tudo tem um plano, uma proposta ou uma premissa. Cada segundo de nossa vida tem sua própria premissa, se estamos ou não conscientes dela naquele momento. Aquela premissa pode ser tão simples quanto respirar, ou tão complexa quanto uma decisão vital, mas está sempre lá. A premissa de cada segundo contribui para a premissa do minuto do qual faz parte, assim como cada minuto dá seu sopro de vida para a hora, e a hora para o dia. E assim, no fim, há uma premissa para cada vida. O Dicionário Internacional Webster diz que a premissa é uma proposição antecedentemente suposta ou provada, uma base de argumento. Uma proposição declarada ou assumida como levando a uma conclusão. Lajos Egri (13) na mesma obra examina algumas peças de teatro verificando se são construídas de uma premissa bem-definida. Em Romeu e Julieta, de Shakespeare, assinala o que a premissa é: o grande amor desafia mesmo a morte. Em King Lear: a confiança cega leva à destruição. Em Macbeth: a ambição desmedida leva à sua própria destruição. Em Otelo: o ciúme destrói a si próprio e ao objeto de seu amor. Ressalta que Shakespeare utiliza em cada uma de suas peças uma premissa bem-definida. Analisa em seguida cinco outras peças de vários autores e em algumas mostra que o autor não consegue interessar e comover seu público, porque usa várias premissas, ou constrói uma estória confusa, por não definir bem uma premissa. A técnica e a arte do conto - 64
Conclui que uma boa peça de teatro deve ter uma bem-formulada premissa. Nenhuma ideia, ou nenhuma situação, ou nenhuma grande personagem será forte o suficiente para levar o autor até a conclusão lógica final sem uma bem-definida premissa, que conduzirá a peça sem erro até o objetivo que a mesma espera alcançar. Uma boa premissa é uma concisa sinopse da estória. Traz outras interessantes premissas: a generosidade tola leva à pobreza; a honestidade derrota a duplicidade; o descuido destrói a amizade; a jactância leva à humilhação; a astúcia cava sua própria cova; a desonestidade leva à exposição; a dissipação leva à autodestruição; o egoísmo leva à perda dos amigos; a volubilidade leva à perda da autoestima. Enfatiza que, apesar de essas ideias anteriores constituírem somente declarações, elas contêm tudo que se requer de uma bem-construída premissa: personagem, conflito, conclusão. Assinala, porém, que mesmo quando se identifica uma boa premissa para nossa estória, o autor tem de realmente se convencer daquela verdade e persuadir os leitores. A premissa, sendo a concepção da estória, é como uma semente que se transforma numa planta que permanece contida na original semente. A premissa não traz em si as personagens e as forças em conflito necessárias para a formação e estruturação da estória, e é impossível denotar exatamente onde a premissa termina e a estória ou as personagens começam. A premissa ou qualquer outra parte da estória não tem sua vida própria separada. Todas as partes devem se misturar num conjunto harmonioso. Lajos Egri (13) considera livre a criação da personagem que, num segundo momento, deve gerar a trama, o plot. Para ele a personagem é a alma do drama, e a trama secundária em relação a ela e seu método é basicamente um método de composição da personagem. Ele polemiza diretamente com John Howard Lawson e contesta a sua técnica de criar a estrutura a partir do clímax. Egri não acredita em Clímax pré-estabelecido: o clímax deve ser uma ocorrência natural, imprevisível da ação da personagem. Se há a personagem, ela age; se ela age, o clímax acabará vindo. Diferentemente de Lajos Egri, que parte da premissa, da ideia na gênese de uma estória, e de John Howard Lawson, que parte do clímax, Samuel Selden, no seu livro An Introduction to Playwriting (20), acredita que o fundamento de tudo é o tema e a partir dele vão se estabelecer o problema, a ação e a premissa. 3. Elementos do conto - 65
Ele sugere um esquema, uma estrutura lógica de enredo, de unidade dramática, não necessariamente cronológica, que, como todo esquema, servirá para identificar cada um dos elementos dela e mostrar as relações entre eles. Esquema da expressão dramática
Em Romeu e Julieta, o tema é o amor juvenil. De posse desse primeiro fundamento, o escritor define o problema específico que vai levantar naquele universo. Em Romeu e Julieta, o problema específico é o ódio mortal entre as famílias dos enamorados. Esse problema vai ser o motor da ação dramática, e é ele (o problema) o gerador da ação, sendo esta o obstáculo ao objetivo da personagem. Visto de outro modo, a presença do problema exige uma ação que se propõe a resolvê-lo. A ação central de Romeu e Julieta é o esforço dos dois enamorados para ficarem juntos e assim realizar seu amor. A ação visa à união dos dois enamorados, devendo, portanto, superar o problema, ou obstáculo. Eles se servem de ajudantes (a aia e o frade), se casam em segredo, têm uma noite de núpcias e são obrigados a se separar. O confronto da ação com o problema leva a algum tipo de resolução, da qual pode ser extraída uma conclusão, ou uma premissa. A técnica e a arte do conto - 66
A premissa é, assim, o resultado do confronto entre o problema e a ação. É o sentido da estória, manifesto no extremo final da ação. Romeu e Julieta se resolvem no suicídio dos dois enamorados. A premissa é, portanto, que o amor dos jovens, vítima da loucura dos adultos, não se detém diante da própria morte. Os enamorados preferem morrer a serem separados. Samuel Selden resume, assim, a estrutura ou unidade dramática em exposição, ataque, complicação, clímax e resolução. O problema vai se manifestar no ataque; a ação se desdobra na complicação; a premissa se revela no clímax. Luiz Carlos Maciel (19), a seu turno, enfatiza a importância do clímax na estruturação da estória ao dizer que o poder do clímax é a chave para o desenvolvimento da estória dramática. O que acontece no clímax revela a solução encontrada para o conflito dramático e envolve, por isso, uma interpretação da realidade. Enquanto não se sabe qual é o clímax da estória, não se sabe qual é a estória. Ao se ter o clímax, se tem a estória. O fim da estória é realmente a graça da mesma e é a consumação da sua ação fundamental, o seu clímax, a materialização da premissa. Ressalta que a maneira mais prática de determinar a estruturação da estória (trama, plot, enredo) é estabelecer o clímax e erguer a estrutura a partir dele. O clímax é o ponto focal da trama e pode ser tomado na prática como o ponto original da estória, porque é ele que especifica a ação, que a particulariza. Ao estabelecermos o clímax, sabemos com clareza qual é a ação principal da trama da estória. O clímax não é o evento mais sensacional ou retumbante da estória; é, antes, o último do processo de ação; nele a ação se consuma e se acaba. Ele serve de norte magnético para a elaboração da estória. Por isso, conclui, é a primeira coisa a se estabelecer na estrutura da obra. Ernest Legouve resume numa frase famosa o poder do clímax: Você me pergunta como escrever um drama? É começando pelo fim. Percival Wilde explica como devemos fazer no exercício prático de se escrever um conto: - Comece no Fim da história e recue até chegar ao Início. Então comece de novo. O clímax materializa, num evento, a ideia fundamental do autor, sua intenção, ou mensagem, a moral da estória, a premissa. O clímax supõe o ataque. Antes do ataque, impõe-se a necessidade de uma exposição. Entre o ataque e o clímax, desdobra-se a complicação – ou seja, a trama propriamente dita. A complicação é uma maneira, um 3. Elementos do conto - 67
caminho, de ir do ataque ao clímax. Depois do clímax, só resta o desfecho. O primeiro poder do clímax, o fundamental, é determinar a trama. Ao se ter o clímax, que é o fim da ação-raiz, tem-se essa ação e, portanto, pode-se determinar o ataque. Sabemos as necessidades de exposição, se tivermos o ataque, a ação e o clímax. Se imaginarmos a exposição, o ataque e o clímax, podemos desenvolver naturalmente a complicação, o miolo da trama. O caminho é claro: sai-se do ataque e tem-se de chegar ao clímax. Ao possuirmos a exposição, o ataque, a complicação e o clímax, não temos dificuldade em determinar a resolução ou desfecho. É preciso somente se assegurar de que estas partes da estrutura estão conectadas por um nexo de causalidade e façam a estória avançar sempre, assegurando a progressão da trama. A ação dramática progride sem interrupções na sucessão temporal e se manifesta tanto pelo que as personagens fazem quanto pelo que elas dizem. Os motores do conto são assim os eventos e as personagens. Há contos que andam pela sequência de eventos que mantêm a estória acontecendo, um após o outro, fora da esfera de influência do protagonista e das personagens secundárias. Esses eventos mudam com quase tudo que pode ser incluído na estória – o espaço, o tempo, a ação, o ambiente, o clima, a atmosfera e mais importante - com as reações das personagens. A coisa mais essencial a respeito dos eventos da unidade dramática é que o protagonista e as personagens secundárias não precisam manifestar quaisquer mudanças drásticas na atitude, na opinião, na motivação ou em qualquer outra característica. Precisam somente reagir a todos os eventos, negociar ou não com eles, até o evento final do enredo, que forçará a resolução da estória. Um exemplo seria um grupo de personagens preso numa cadeia onde uma bomba é encontrada e está prestes a explodir. Cada um dos eventos subsequentes levará as personagens a reagir àquela situação que se revela. Há contos que andam pelas mudanças continuadas de atitudes das personagens, do protagonista e de todas as outras personagens da estória. O leitor quer ficar sabendo o que possivelmente vai acontecer em seguida. O herói pode agir por vingança, por sentimento de aventura, por desespero e fazer as coisas acontecerem. O autor deve permitir ao leitor que veja e compreenda a consequência das ações do protagonista antes da personagem. A técnica e a arte do conto - 68
É o que acontece com um homem que descobre, após a morte de sua mãe, que é filho de um bandido de expressão nacional e decide encontrá-lo. O protagonista e sua saga dirigem o enredo de local para local, de pessoa para pessoa, de situação para situação, necessárias para atingir seu objetivo. A estória se desdobra pelas ações persistentes da personagem principal e sua motivação interior. As personagens devem participar de um conflito. E os tipos de conflito na ficção são: o homem contra a sociedade, o homem contra o homem, o homem contra si mesmo, o homem contra a natureza. Na unidade dramática em que a personagem luta contra a sociedade, o protagonista é um indivíduo que vê o mundo diferentemente daqueles ao seu redor. Ou ele está de bom grado se colocando numa posição ao se opor fisicamente à sociedade na qual ele vive, ou trabalha. Exemplos: ele tem uma nova ideia, como uma nova máquina, ou uma nova cirurgia, ou um novo programa e todo mundo pensa que ele é louco. Ele é um escravo num governo opressor e pretende se libertar e a seus camaradas. Ele é erroneamente acusado de um terrível crime, e a comunidade inteira está à sua procura. Estes são tipos clássicos de estórias, que nunca falham em despertar os leitores a favor de seu herói, que é frequentemente o arquétipo do oprimido ou vítima de injustiça social. A unidade dramática em que a luta é de uma personagem contra outra personagem, ou a estória de dois rivais, ou duas dinâmicas personagens, cada uma representa uma posição antípoda em relação à outra – exército, filosofia, metodologia, religião, teoria científica, partido político. Exemplos incluem pai versus filho, mãe versus filha no dia-a-dia de uma casa situada num bairro de periferia ou num condomínio da elite financeira. Para a unidade dramática em que se constrói a luta da personagem contra si mesma, o escritor necessita de um melhor entendimento da psicologia humana e do comportamento social. É um pouco mais complexa que as anteriores. Quase sempre retrata as lutas internas de um protagonista que deve decidir sobre um determinado caminho. Pode ser uma escolha moral entre uma conduta política elevada e outra que induz à corrupção, entre a fidelidade marital e o adultério, entre poupar a vida de uma pessoa ou submetê-la. Este tipo de estória tem produzido alguns dos maiores tesouros do mundo literário, mas também constitui uma armadilha para os escritores jovens ou despreparados. A razão é a simples necessidade de colocar em cena um grande número de conflitos na 3. Elementos do conto - 69
dinâmica interna da psique humana. Diferentemente os dois anteriores podem facilmente ser terminados com abundância de ações externas. A unidade dramática que retrata a luta da personagem contra a natureza é talvez o mais velho de todos os tipos de enredos, já que eles refletem nossos desafios evolutivos mais precoces e triunfos. Esta estória está reforçada na nossa genética, porque nossos ancestrais repetidamente experimentaram tais dramas para sobreviver e nos tornar a espécie dominante e vitoriosa. Estas são estórias nas quais nossos protagonistas tentam escalar um pico impossível, defender os ursos, os tubarões, os animais em extinção, ou resistir à aproximação de furacão, erupção vulcânica, terremoto, meteoro. O conflito de mais sucesso na unidade dramática ocorre quando, sem costura, se podem combinar ação interna e conflito interno de uma alma torturada. O conflito, além de criar ação, movimento, mudança na estória, cria também mudanças no protagonista. Ele ou ela deve aprender a partir da experiência do conflito. As personagens devem ou se tornar mais fortes ou mais fracas (moral e fisicamente), crescer ou desaparecer, porque não há condições de sua evolução na estória. A complicação é que torna o conflito interessante. Não é apenas para a unidade dramática meramente estabelecer um problema e ter suas personagens fisgadas, presas. Não, as coisas devem se tornar complicadas. Devem parecer tão ruins quanto elas possam ser e então piorar justamente quando as personagens pensam que têm a situação sob controle, alguma coisa a mais deve dar errada, ou um problema inicial deve reaparecer pior. As complicações criam mudanças que tornam nossa estória interessante - mudanças nos sentimentos e nas ações dos personagens; alterações na ordem ou lógica dos eventos; alterações no desenvolvimento do conflito básico e na resolução, que deve encerrar com magia, inteligência, criatividade todo o conflito até então construído. A estrutura do enredo deve responder ao velho axioma que preconiza que ele tenha início, meio e fim. O início do conto é onde se estabelece tudo: as personagens principais, o espaço, o tempo e - o mais importante - o problema. Os leitores costumam se sentir mais confortáveis se a estória se iniciar do começo natural da narrativa ou onde realmente a verdadeira estória principia. O conto deve envolver de imediato o leitor. O bom começo é decisivo para a sorte do conto, e a presença de informações supérfluas ou redundantes pode comprometer o desenvolvimento da estória. A técnica e a arte do conto - 70
O contista experimentado sabe como principiar, cônscio de que as linhas de abertura condicionam tudo o mais. A novela e o romance enfrentam o problema do epílogo, o novelista e o romancista preocupam-se com o desfecho, ao passo que o contista há de saber como principiar. O meio do conto é onde se colocam todas as informações de que os leitores necessitam, e o problema levantado pelo conflito criado tende a se complicar mais. O meio é assim uma preparação para o fim. Desemboca no chamado ponto de ignição, onde alarmes indicam ao leitor, que agora já conhece toda a trama, uma solução boa ou não. O fim ou epílogo é o local onde se respondem todas as questões, se amarram quaisquer detalhes pendentes e as personagens enfrentam as consequências de suas ações. O conto tradicional apresenta um final, ou epílogo fechado, ou epílogo enigmático, trazendo sempre um desenlace surpreendente, denominado fechamento com chave de ouro. O epílogo fechado mostra como os conflitos foram resolvidos, as personagens alcançaram seus objetivos ou aceitaram o malogro e como os fios do enredo foram reunidos e enlaçados. Hoje em dia, ele tem pouca importância para alguns críticos e escritores, que o acham perfeitamente dispensável, sinônimo de anacronismo. Mesmo assim não há como negar que o final no conto é sempre mais carregado de tensão do que no romance ou na novela e que um bom final é fundamental no gênero. O conto moderno ou à Tchekhov, que é mais próximo da crônica, utiliza o epílogo aberto: a estória interrompe-se em pleno ar. Os conflitos não são resolvidos. O leitor supõe que a estória ultrapassa os limites ficcionais. As personagens continuam suas vidas. O desfecho aberto parece ser um ideal moderno. No conto, afirma Tchekhov, é melhor não dizer o suficiente do que dizer demais. Para não dizer demais, é melhor, então, sugerir, como se tivesse de haver certo silêncio entremeando o texto, sustentando a intriga, mantendo a tensão. É o que acontece no conto A missa do galo, de Machado de Assis, especialmente nos seus diálogos, que criam o suspense não exatamente pelo que as personagens dizem, mas pelo que principalmente deixam de dizer. Ricardo Piglia, comentando alguns contos de Hemingway (18981961), diz que o mais importante nunca se conta: - O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. É como contar uma estória como se estivesse contando outra. Como se o escritor 3. Elementos do conto - 71
estivesse narrando uma estória visível, disfarçando, escondendo uma estória secreta. Segundo Cristina Perí-Rossi, o escritor contemporâneo de contos não narra somente pelo prazer de encadear fatos de uma maneira mais ou menos casual, senão para revelar o que há por trás deles. Desse ponto de vista, a surpresa se produz quando, no fim, a estória secreta vem à superfície. No conto a trama é linear, objetiva, pois o conto, ao começar, já está quase no fim e é preciso que o leitor veja claramente os acontecimentos. Se no romance o espaço/tempo é móvel, no conto a linearidade é a sua forma narrativa por excelência. A intriga completa consiste na passagem de um equilíbrio a outro. A narrativa ideal começa por uma situação estável que será perturbada por alguma força, resultando num desequilíbrio. Aí entra em ação outra força, inversa, restabelecendo o equilíbrio, sendo este equilíbrio parecido com o primeiro, mas nunca idêntico. Em outras palavras: no geral o conto contém uma ordem. O conflito traz uma desordem, e a solução desse conflito (favorável ou não) faz retornar à ordem – agora com ganhos e perdas, e diferente da anterior. Enrique Imbert diz: - O conto é um problema e uma solução. Há vários tipos básicos de resolução no conto: o protagonista vence; o protagonista perde; o antagonista vence. O protagonista vencer é a mais simples, direta e antecipada solução para uma estória. O leitor quer que coisas boas aconteçam com ele, vibrando, se emocionando, sofrendo (essa é a aspiração do autor) com seu conflito e desempenho. O mocinho vai ganhar, e o bandido vai perder, e o leitor vai ter grande prazer em ver que o vilão tem o que merece. O protagonista perder leva o enredo numa direção completamente diferente até o fim da estória. Pode, porém, ser muito satisfatória para os leitores. O que precisamos saber quando perde é se o leitor acredita que, mesmo na derrota, o protagonista se torna uma pessoa melhor e fica numa melhor situação em relação à do começo da estória. Essa melhora final pode ser física (mais dinheiro, uma casa melhor, a cura de uma doença), sendo mais aceitável que a personagem principal fique melhor espiritualmente ou emocionalmente (amor verdadeiro, aceitação social, descoberta intelectual). Este final é um pouco traiçoeiro para se escrever, mas frequentemente mostra ser mais poderoso e muito memorável, porque não é o mais comum e previsível resultado.
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O antagonista vencer é sem dúvida a mais difícil resolução para se ter sucesso na estória e, portanto, é menos comum. O leitor em geral dificilmente aceita o bandido como o vencedor, a não ser que ele demonstre algum tipo de transformação ou revelação, encontre a causa de seu inferno e extermine-a como se arranca um tumor, ou no mínimo supere suas influências. Há algumas exigências básicas na construção da unidade dramática: direção da estória e pontos de mudança - reviravoltas, descoberta, reconhecimento, suspense. A unidade dramática deve ter um objetivo, um caminho, uma direção que o leitor possa um tanto perceber e antecipar. E, quando o leitor pensa que aquela direção é a obrigatória, o autor muda o curso e o surpreende. Deve ter pontos de mudança para bloquear ou postergar a narrativa: reviravolta, descoberta, reconhecimento, suspense. Deve ter reviravoltas - quando os eventos subitamente parecem se desviar de uma verdadeiramente boa para uma completamente horrível situação. Deve ter descoberta - quando as personagens tropeçam em alguma coisa totalmente insuspeita. Deve ter reconhecimento - quando o protagonista reconsidera ou relembra alguma coisa, que teria compreendido mais cedo (isto pode ser um dado que foi levado para o leitor, e talvez o leitor, que já o conhece, está esperando com grande antecipação para ver se seu herói finalmente entendeu). Deve ter suspense - a exigência final da unidade dramática e também a mais óbvia. Cria-se suspense mantendo o leitor sem equilíbrio e usando táticas de decepção, atraso, interrupção. Algumas artimanhas podem ser necessárias: distrair, enganar, seduzir, atormentar, desviar o leitor; apresentar múltiplos pontos de vista na narrativa através de percepções de mais do que uma visão da personagem; ou iniciar a narrativa justamente no meio de alguma ação ou predição incrível. Devemos ter cuidado com uma unidade dramática que não produz impacto, que não emociona, que não diverte, com artifícios, ações, personagens sem qualquer consistência, razão ou importância na estória. 3. Elementos do conto - 73
Devemos ficar atentos para não tirar o coelho da casaca. Exemplo: a estória termina com - foi tudo um sonho - quando não havia no enredo nada que racionalmente justificasse o final ou a estória por inteiro. O aprendizado da técnica e da arte da ficção é, de fato, tarefa para a vida inteira.
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4. Modos de organização do discurso no texto
Um conto ao ser escrito necessita de ferramentas básicas de organização do discurso no texto: principal, a narrativa ou narração; a descrição, sem dúvida costuma ser a seguinte em frequência e importância; a dissertação, poucas vezes; e a argumentação raramente. Cada um desses instrumentos discursivos possui uma função de base e um princípio de organização. Não devem ser vistos como tipos de texto, mas como tipos de operações que estruturam o discurso contribuindo para a sua organização (22). 4.1. Narração A narração ou narrativa é, em suma, um relato de um episódio, de uma peripécia do dia-a-dia, de um pequeno incidente, real ou fictício, no interior do qual se desenvolve uma intriga, um enredo, uma trama, evidentemente temperada com certa dose de fantasia (11). O relato desse acontecimento, real ou fictício, implica interferência de todos ou de alguns dos seguintes elementos: personagens, fato, circunstâncias. A estrutura da narrativa sempre responde as perguntas abaixo: O quê? O fato, a ação (enredo). Quem? As personagens envolvidas: protagonista(s), antagonista(s) e personagens secundárias. Onde? O lugar da ocorrência dos fatos. Como? O modo como se desenvolveram os acontecimentos. Por quê? A causa, razão, motivo de acontecimentos. Quando? A época, o momento em que ocorreu o fato. Por isso. Qual o resultado ou consequência?
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Vejamos um exemplo de uma estrutura simples de narrativa dado por Othon M. Garcia em Comunicação em Prosa Moderna (11), livro imprescindível para todos que pretendemos escrever qualquer tipo de texto em qualquer gênero. Porque não lhe quis pagar (o porquê) uma garrafa de cerveja, Pedro da Silva (quem – protagonista), pedreiro, de trinta anos, residente na rua Xavier, 25, Penha, matou (o quê) ontem (quando) em Vigário Geral (onde), com uma facada no coração, (como) a seu colega Joaquim de Oliveira (quem – antagonista). Sem dúvida, um exemplo com quase todos os elementos essenciais de uma narrativa, em linguagem objetiva e clara. Para escrevermos um conto ou uma novela a partir desse texto, precisamos apenas pormenorizar cada um dos elementos básicos, usar nossa imaginação e encontrar um epílogo, clímax, desfecho. Por exemplo, para quem, podemos imaginar como seria Pedro da Silva, procurando descrevê-lo, traçando um retrato físico e moral: estatura, idade, traços fisionômicos, hábitos, tiques nervosos, gênio, temperamento. Devemos colocá-lo falando (diálogos), reproduzindo sua fala comum e, se possível, com algumas gírias para caracterizá-lo como uma personagem mais verossímil, destacando-o em casa, com a família, na rua, no trabalho, nos divertimentos. Devemos fazer o mesmo com Joaquim de Oliveira, confrontando os hábitos, o caráter de um e de outro. Quem sabe representar um como bom filho, bom pai, responsável trabalhador de uma empresa qualquer, e o outro como vilão, rebelde, desordeiro, desajustado, mau filho, mau pai. Os dois também podem ser descritos como bons moços, apesar de ser sempre importante tirar partido de seus contrastes, destacando os possíveis conflitos de seus interesses. Talvez o encontro entre os dois e o diálogo evidenciando uma querela antiga, uma disputa por uma amante comum, um simples incidente que os coloca num confronto desnecessário possam constituir o início de nossa estória. Escrever uma estória medíocre, um dramalhão, uma peça excepcional, dependerá do estilo e da criatividade do autor. No onde e no quando, podemos imaginar a hora em que se deu o crime, descrever o local do mesmo, o aspecto do dia, ou da noite, as pessoas presentes, a posição dos protagonistas. O crime ocorreu num bar, em plena rua, na casa de uma das duas personagens. No o quê e no como, podemos descrever o imprevisto da cena. Não devemos contar tudo de uma vez, e sim estimular a atenção do leiA técnica e a arte do conto - 76
tor e mantê-lo em suspense. É preciso levar a narração a um ponto de saturação tal, que não seja mais possível adiar o desenlace ou desfecho. E o gesto fatal? A faca ou punhal na mão do assassino, o ato repentino de sacar a arma, a violência do golpe, a queda, o sangue em borbotões. O epílogo é a melhor forma de terminar a narrativa e não deve acrescentar nenhum fato novo depois do desfecho. A ordem no relato dos fatos ou dos acontecimentos é normalmente a cronológica, isto é, a da sua sucessão no tempo. Todavia, para sermos originais ou despertar mais interesse no leitor ou dar maior ênfase a certos incidentes ou pormenores, podemos começar, por exemplo, a estória por onde devia acabar, como se faz em muitos romances policiais. O ponto de vista tem aqui, assim como na descrição, importância primordial. Quem conta a estória? Um observador neutro, distante ou um coparticipante dos acontecimentos? Será uma personagem do primeiro plano ou uma figura secundária? Será um narrador onisciente e onipresente, uma espécie de testemunha invisível de tudo quanto ocorre, em todos os lugares e em todos os momentos, capaz de nos dizer não só o que as personagens fazem, mas também o que pensam e sentem? Devemos escolher naturalmente o ponto de vista que mais se adapte aos nossos recursos técnicos e à nossa imaginação criativa. Quando nos colocamos na pele de qualquer personagem, a narrativa é feita na primeira pessoa (eu, nós). Sendo apenas testemunha, usamos a terceira pessoa (ele, ela, eles, elas). No primeiro caso, relatamos apenas o que vemos; no segundo, podemos ser oniscientes e onipresentes. O enredo da estória, também denominado intriga, trama, urdidura, é aquela categoria da narrativa constituída pelo conjunto dos fatos que se encadeiam, dos incidentes ou episódios em que as personagens se envolvem, num determinado tempo e num determinado ambiente, motivadas por conflitos de interesse ou de paixões. É, em si mesmo, um artifício artesanal, estruturado por um nexo de causa e efeito entre as peripécias que se enovelam e caminham para um desfecho. Enredo é, em suma, o que acontece, a narrativa mesma. O enredo constituía a substância mesma do gênero de ficção, a sua categoria por excelência, até os fins do século XIX e a primeira década do XX. Escrever um conto, uma novela, um romance ainda era, acima de tudo, contar uma estória em que os incidentes se encadeassem de maneira consequente, entrosando-se até com certo rigor. O enredo era tudo, ou quase tudo, pelo menos até os últimos espasmos do realismo. 4. Modos de organização do discurso no texto - 77
Depois vem Freud, a Primeira Guerra Mundial, Kafka, Proust, Joyce, o surrealismo, a Segunda Guerra Mundial, e estoura o Estruturalismo. E vem o nouveau roman francês, um antirromance, um laboratório da narrativa, em que o tempo e o espaço constituem a única (ou a principal) obsessão do ficcionista, em que a descrição deixa de ser a serva da narração, em que a análise psicológica desce a uma profundidade abismal. E o enredo passa à condição de total subalternidade, sendo mesmo encarado com certo desprezo. Mas persistem os romances policiais, onde ainda se escrevem estórias que têm um começo, um meio e um fim e é nessas, de enredo clássico típico, que se podem distinguir, com maior ou menor nitidez, com maior ou menor freqüência, três ou quatro estágios progressivos da intriga - a exposição (menos frequente), a complicação, o clímax, o desenlace ou o desfecho. Na exposição, o narrador explica (ou explicava) certas circunstâncias da estória, situando-as em certa época e certa ambiência e introduzindo ou apresentando algumas personagens. A complicação é a fase em que se inicia propriamente o conflito, o choque de interesses entre o (os) protagonista(s) e o (os) antagonista(s). Salvo, evidentemente, o caso do nouveau roman, é por aí que em geral começam as narrativas não de todo desviadas do modelo tradicional. O clímax é o ápice da estória, o seu ponto de maior tensão, aquele estágio em que os conflitos entre as personagens centrais chegam a um ponto tal, que já não é possível procrastinar o desfecho. O desfecho ou desenlace é a solução mesma dos conflitos, é o momento da grande destruição trágica, da morte, das revelações de identidade, da solução dos mistérios, da união dos amantes, da descoberta e morte dos vilões. Em síntese, toda narrativa consiste numa sequência de fatos, ações ou situações que, envolvendo participação de personagens, se desenrolam em determinado lugar e momento, durante certo tempo. As circunstâncias e motivações da atuação das personagens e a configuração dos seus conflitos e antagonismos constituem situações dramáticas. O narrador é um elemento presente em toda narrativa, pois é ele quem conta a estória, guiando o leitor. Ele pode ser uma personagem da estória ou apenas um observador que vê tudo – ou quase tudo – e narra. É importante que o leitor saiba perceber as características do narrador de uma estória, pois, de modo geral, o narrador é quem orienta o leitor, brinca com sua imaginação, dá pistas sobre o desenrolar da estória e sobre as qualidades e defeitos das personagens. A técnica e a arte do conto - 78
O modo como ele descreve suas personagens pode ser objetivo ou subjetivo. Quando o narrador descreve subjetivamente suas personagens, ele demonstra o seu envolvimento afetivo com elas. Às vezes, o narrador decide agir apenas como observador neutro, que narra a estória imparcialmente, dizendo apenas aquilo que sabe e deixando o leitor ir construindo o seu próprio entendimento. O ponto de vista do narrador pode ser, portanto, em 1a pessoa, o que geralmente demonstra uma tendência subjetiva do narrador e o transforma normalmente em personagem, ou, ao contrário, em 3a pessoa, cuja tendência se orienta para uma descrição mais objetiva pelo distanciamento que a forma em terceira pessoa constrói. É rara a narração em 2a pessoa, mas, quando ocorre, mostra um narrador que deseja interagir com o leitor, simulando um diálogo, interrogando o leitor, solicitando sua opinião. A narração está necessariamente ligada a uma ampla estrutura que percorre todo um texto, desenvolvendo a sua intriga, ou seu enredo. Ela parte da apresentação das personagens, situando-as no tempo e no espaço, qualificando-as (através de descrições) para, em seguida, inseri-las numa sequência lógica de ações e envolvê-las em um plano de intriga e de relações. Obstáculos surgem, confrontos se revelam e caminham todos para um desfecho, cuja natureza proporá uma moral para a estória, geralmente dentro de uma estrutura arquetípica relacionando o bem e o mal. Portanto a estrutura da narrativa deve ser analisada tendo em vista uma complexidade de relações, e não apenas uma sequência de ações. O enredo é constituído pelos fatos que se desenvolvem, de maneira sequencial, na narrativa, formando incidentes, episódios e conjuntos de ações encadeadas e relacionadas de maneira causal, em que as personagens se envolvem motivadas por conflitos, interesses e paixões. O enredo é a trama lógica da narrativa. Na ficção moderna, o enredo perde parte de sua importância para a descrição psicológica e para a individualização de personagens. A ficção policial, entretanto, conserva e continua dando ao enredo um papel fundamental em suas estórias. A estrutura clássica da narrativa assemelha-se a um filme, sendo o gênero policial o exemplo mais prototípico: exposição da situação logo no início, complicação (um crime, a preparação de um crime); desenvolvimento rumo ao clímax, com a caçada ao criminoso; desfecho final, com 4. Modos de organização do discurso no texto - 79
a prisão do criminoso ou, ao contrário, com a surpresa de sua vitória. O tipo de desfecho, sua tendência para a vitória do bem ou do mal, proporá a moral da estória. A narração é o principal processo utilizado pela ficção (seja romance, novela ou conto), e de seu bom uso dependerá o interesse de quem lê. Mas constitui também o elemento-chave das reportagens jornalísticas e dos relatórios de viagem. A narração no conto consiste na exposição nele de fatos ou acontecimentos. Envolve, portanto, ação, movimento e evolução no tempo, como, por exemplo, a descrição de uma viagem, de um jantar, de um choque de veículos. Ela funciona no conto como condensação dos pormenores ligados ao passado, remoto ou próximo, que interessam ao desenvolver da ação, mas deve ser pouco usada, privilegiando-se o diálogo. 4.2. Descrição O ato de descrever (descrição) é tornar presente, reapresentar, imitar, de forma verossímil, lugares, ambientes, animais, coisas, pessoas, personagens, estados de espírito, impressões, sentimentos, através da indicação dos seus aspectos mais característicos, mais singulares, mais salientes, usando como veículo a palavra dita ou escrita. A descrição tem sempre o objetivo de informar, dar a perceber ao outro o mundo exterior tal como ele é ou tal como o observador o vê. A descrição faz surgir a realidade exterior através dos olhos de um sujeito observador que identifica seres e objetos, os nomeia e lhes atribui certas qualidades. Podemos identificar vários tipos de descrição: objetiva, subjetiva, estática, dinâmica, técnica, literária. A descrição objetiva pretende ser exata, precisa, rigorosa. O sujeito que observa procura descrever a realidade exterior tal como ela é ou parece ser. Os realistas Zola, Flaubert, Maupassant, Coelho Neto, Euclides da Cunha, Eça de Queiroz e Conan Doyle, nas novelas policiais, têm descrições objetivas ou realistas de ambientes e paisagens exuberantes. A descrição subjetiva determina uma impressão pessoal, uma interpretação, a simpatia ou antipatia daquele que descreve. O sujeito que observa pode descrever a realidade exterior tal como o sujeito a sente. A técnica e a arte do conto - 80
Reflete predominantemente o estado de espírito do observador, suas idiossincrasias, suas preferências que fazem com que veja apenas o que quer ou o que pensa ver e não o-que-está-para-ser-visto. Por exemplo, a descrição de uma personagem, de um lugar, de um conflito. A descrição estática ou de natureza fixa fornece uma visão de conjunto do objeto observado no que se refere à sua aparência, forma, cor, dimensão, intensidade. Por exemplo, a descrição de um móvel, de um utensílio doméstico, de uma indumentária. A descrição dinâmica ou exposição narrativa registra a indicação clara, por ordem cronológica ou lógica, das diversas fases de um processo em movimento. Por exemplo, o relato das várias fases de uma experiência científica. A descrição técnica registra o objeto observado numa linguagem basicamente denotativa, com palavras diretamente ligadas à sua significação, usadas no sentido real, no sentido do dicionário. Por exemplo, a descrição do projeto arquitetônico de um edifício - materiais a utilizar, a sua qualidade, consistência. A descrição literária privilegia a intenção estética, a subjetividade, a criatividade do escritor através de uma linguagem conotativa, ou seja, através de uma linguagem figurativa ou de extensão do sentido da palavra. Por exemplo, a descrição de uma personagem, de um conflito, de uma trama. Othon M. Garcia (11) diz que a descrição técnica deve esclarecer convencendo, enquanto à literária compete impressionar, agradando. No conto vamos utilizar a descrição para caracterizar personagens, objetos, lugares, ambientes principalmente. É fácil encontrá-la sem elementos narrativos, mas é muito difícil, senão impossível, existir uma narração que não tenha um mínimo de elemento descritivo. A descrição das personagens revela, direta ou indiretamente, as suas características físicas ou psicológicas, econômico-sociais, culturais ou morais. Vejamos a descrição de Capitu adolescente em Dom Casmurro, de Machado de Assis: “Catorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo”. 4. Modos de organização do discurso no texto - 81
A descrição é considerada a serva ou criada que ornamenta a narração, e, se retardar muito a ação, pode obrigar o leitor a uma pausa desestimulante. A exatidão e a minúcia não constituem a primordial qualidade da descrição, podendo mesmo representar um defeito. A finalidade da descrição literária é transmitir a impressão que a coisa vista desperta em nossa mente através dos sentidos. Ela é mais do que fotografia, porque é interpretação também, salvo quando se trata de uma descrição técnica ou científica. Na descrição é preciso captar a alma das coisas, ressaltando aqueles aspectos que mais impressionam os sentidos, destacando o seu caráter, a sua especificidade, as suas peculiaridades. É preciso saber selecionar os detalhes, saber reagrupá-los, analisá-los para se conseguir uma imagem, e não uma cópia do objeto, mostrar as relações entre as suas partes para melhor compreendê-lo no seu conjunto e melhor sentilo como impressão viva. Para conseguir isso é preciso saber observar, é preciso ter imaginação e dispor de recursos de expressão. E recurso de expressão não significa obrigatoriamente vocabulário aprimorado, exuberante, requintado. Podemos dizer quase tudo com um conjunto das palavras até mesmo corriqueiras, desde que tenhamos alguma imaginação para associações de ideias e sua expressão em linguagem figurada, sobretudo metáforas e metonímias. A descrição dos espaços em que decorre a ação é um dado fundamental para a compreensão cabal da estória narrada. Vejamos a descrição de uma casa camponesa que Graciliano Ramos faz em Viventes das Alagoas: “Baixa, de taipa, cheia de esconderijos, lúgubre. O teto chato, acaçapado, quase sem declive, é negro; é negro o chão sem ladrilho, de terra batida, esburacado e sujo; negras as paredes sem reboco, com o barro que as reveste a rachar-se, deixando ver aqui e ali o frágil madeiramento que serve de carcaça.” A descrição também dificilmente aparece assim, em estado puro, dentro de um texto – a não ser em trechos específicos. Vidas Secas, de Graciliano Ramos: “Na planície avermelhada, os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente, andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma somA técnica e a arte do conto - 82
bra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da caatinga rala.” Missa do Galo, de Machado de Assis: “Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal-apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé.” Nos dois exemplos anteriores, descrição e narração convivem no mesmo parágrafo – e, em alguns casos, no mesmo período. O retrato que a descrição subjetiva faz de uma paisagem não traduz a realidade do mundo objetivo, fenomênico, mas o próprio estado psíquico dela, onde se gravam as impressões esparsas captadas pelos sentidos, quase alheios ao crivo da razão ou da lógica. O resultado dessas descrições marcadamente subjetivas ou impressionistas é, com frequência, uma imagem vaga, diluída, imprecisa, em penumbra, nebulosa como os quadros impressionistas dos fins do século passado, mas rica de significados. Uma descrição pode ser comparada a uma fotografia e é, de maneira geral, fruto de observação de um estado de coisas, de um fenômeno ou de uma ação que se desenvolve no espaço. O tempo não é muito importante na descrição, embora possa ser um de seus componentes. A introdução do elemento temporal na descrição tende a transformá-la em uma narração. O modo como o escritor percebe o objeto observado, o ser, o mundo, constitui o ponto de vista da descrição e depende essencialmente de dois fatores: da posição física do observador e de sua atitude afetiva em face do objeto a ser descrito. A posição do observador, ou a perspectiva através da qual ele percebe o objeto observado, pode determinar a ordem na descrição dos detalhes. A descrição do objeto pode, por exemplo, ser panorâmica como se fosse feita pela perspectiva de quem sobrevoa uma região; pode partir de um ponto qualquer de uma região como quem a pé a descreve gradualmente à medida que se aproxima dela; pode partir da observação das características externas ou internas de um local. Pode também adotar a perspectiva de quem percorre todo um edifício, com a intenção de conhecê-lo em sua totalidade, ao percorrer os 4. Modos de organização do discurso no texto - 83
corredores, passando pelas salas, observando a posição dos móveis, a decoração das paredes, a iluminação dos corredores e das salas, a claridade ou obscuridade dos ambientes. O resultado será uma descrição detalhada e objetiva do local. Pode, ao contrário, adotar uma perspectiva diferente, sendo indiferente ao aspecto físico e estrutural de um ambiente, e concentrar-se apenas no aspecto humano, descrevendo as pessoas, as suas características, o que fazem. Não é de boa norma acumular todos os detalhes num só período. Devemos, ao contrário, oferecê-los ao leitor pouco a pouco, variando as partes focalizadas, associando-as, interligando-as. No retrato de uma personagem podemos começar a descrição por uma apreciação sumária, depois retratar os traços fisionômicos, não como uma descrição anatômica, e, sim, por exemplo: o tom de voz, o gesto, a expressão do olhar, a cor dos olhos, o feitio dos lábios, alguns contrastes evidentes, algumas expressões que possam traduzir o estado da alma do escritor. A ordem dos detalhes é muito importante. Não se faz a descrição de uma casa de maneira desordenada. Devemos nos colocar na posição de quem dela se aproxima pela primeira vez e começando de fora para dentro vamos caminhando em sua direção e percebendo pouco a pouco os seus traços mais característicos com um simples correr de olhos. Primeiro, a visão de conjunto; depois, a fachada, a cor das paredes, as janelas e portas, destacando alguma singularidade expressiva, algo que dê ao leitor uma idéia do seu estilo, da época da construção; e assim por diante, podendo, por exemplo, entrar na casa e descrever um ambiente, ou passar a retratar uma personagem, um conflito, um acontecimento significativo. Salientamos que percebemos ou observamos não apenas com os olhos, porém com todos os sentidos. Haverá sons, ruídos, cheiros, sensações de calor, vultos, acidentes, enfim, que evitarão que a descrição se torne uma fotografia pálida daquela riqueza de impressões que os sentidos atentos podem colher. Se entrarmos na casa, podemos examinar um objeto, o estilo da decoração, a posição dos móveis, a claridade ou obscuridade do ambiente, destacando o que chame de pronto a atenção (um móvel antigo, uma goteira, um vão de parede, um cão sonolento). Quase sempre a direção em que se caminha, ou se poderia normalmente caminhar rumo ao obA técnica e a arte do conto - 84
jeto, serve de roteiro, impondo uma ordem natural para a indicação dos seus pormenores. Podemos também optar pela descrição das personagens, sobretudo das mais complexas, por uma delineação gradativa delas, ao longo de toda a narrativa, pela acumulação dos traços físicos e psicológicos das mesmas, revelados em descrições breves e sumárias, nos contos, ou longas e detalhadas, nos romances - aparência física, gestos, atitudes, comportamentos, sentimentos, ideias. Com frequência, porém, muitas dessas descrições – principalmente no discurso narrativo de feitio tradicional – se concentram num só parágrafo, ou em parte dele. Nos parágrafos descritivos, o propósito do escritor deve ser primordialmente apresentar o objeto, a pessoa, a paisagem, através dos seus traços típicos, de tal forma que o leitor possa diferençá-los de outros semelhantes presentes na estória. Os pormenores não são relevantes por si mesmos: é inútil descrever uma mesa, enumerando-lhe as partes componentes (pés, gavetas, tampo), se essas partes nada apresentam de característico, isto é, se os seus aspectos são idênticos aos de qualquer outra mesa. A descrição pode ser um artifício importante para a argumentação, pois, através das estratégias de qualificação subjetiva do mundo, dos seres, dos objetos, o sujeito que descreve pode ter como objetivo influenciar o seu interlocutor orientando a sua maneira de ver e apreciar as coisas. Não só a qualificação subjetiva, mas também outros elementos de descrição podem criar uma imagem distorcida do mundo. O pensamento crítico deve sempre buscar identificar e avaliar a pertinência e a validade da descrição, mesmo quando ela se apresenta como aparentemente objetiva. Hoje, o uso mais corrente da descrição é em reportagem, relatório e em outros textos não ficcionais em que seja imprescindível registrar, para a finalidade do texto, os aspectos mais marcantes de alguma coisa, de alguém, de uma região. Mas, ela também continua sendo muito usada na ficção, para marcar um determinado cenário, ou a entrada em cena de alguma personagem relevante – embora com menos frequência do que em épocas anteriores à difusão da fotografia, do cinema e das artes visuais. A descrição no conto deve ser resumida e quase sempre se restringir aos caracteres próprios dos seres, animados ou inanimados, coisas, lugares, como, por exemplo, a descrição da natureza, de paisagens, de ambientes, das ruas, da cidade, das pessoas, do tempo, de objetos.
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4.3. Dissertação A dissertação é geralmente um trabalho escrito de considerável extensão sobre um tema pré-definido, normalmente para fins acadêmicos. Ela consiste na explanação ou discussão de conceitos ou ideias. Pode ser expositiva ou argumentativa (11). Na dissertação expositiva, o autor apresenta uma ideia, uma doutrina e expõe o que ele ou outros pensam sobre o tema ou assunto. Geralmente ele faz a amplificação da ideia central, demonstrando sua natureza, antecedentes, causas próximas ou remotas, consequências ou exemplos. Na dissertação argumentativa, o autor quer provar a veracidade ou falsidade de ideias. Pretende convencer o leitor ou ouvinte, dirige-se à sua inteligência através de argumentos, de provas evidentes, de testemunhas. Se a dissertação é objetiva, o tratamento dado ao texto é impessoal, com argumentação lógica partindo de elementos gerais e indo para os particulares. Na dissertação subjetiva, o autor dirige-se não só à inteligência, mas também, de modo pessoal, aos sentimentos de quem ele pretende convencer. Além da emoção, às vezes há ironia, sarcasmo, ridículo. São partes importantes da dissertação: introdução, desenvolvimento e conclusão. Exemplificamos, por meio de dois textos distintos, a dissertação. O primeiro, de Wilhelm Reich, no seu livro A Revolução Sexual (21): “A fim de aprender a finalidade e o sentido da vida, é preciso amar a vida por ela mesma, inteiramente; mergulhar, por assim dizer, no redemoinho da vida, somente então apreender-se-á o sentido da vida, compreenderse-á para que se vive. A vida é algo que, ao contrário de tudo criado pelo homem, não necessita de teoria, quem apreende a prática da vida também assimila sua teoria.” O texto expõe um ponto de vista (finalidade da vida é viver) sobre um assunto-tema (no caso, o sentido e a finalidade da vida). Além de apresentar um ponto de vista do autor, o texto faz também a defesa desse ponto de vista: onde ele defende os motivos que fundamentam a opinião de que a prática intensa de viver é que revela o sentido da vida. O segundo é de Clarice Lispector, em Descoberta do Mundo: “Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. (...) Hoje repito: é uma maldição, mas uma maldição que salva. Não estou me referindo a escrever A técnica e a arte do conto - 86
para jornal. Mas escrever aquilo que eventualmente pode se transformar num conto ou num romance. É uma maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso do qual é quase impossível se livrar, pois nada o substitui. E é uma salvação. Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada...” Num certo sentido, a dissertação constitui a escrita por excelência: afinal, ela é a exposição verbal de ideias, conceitos, opiniões ou argumentos – ou seja, a tradução de ideias em palavras. De uma nova descoberta científica até a opinião sobre um espetáculo, filme ou simples jogo de futebol, tudo é matéria para um texto dissertativo – ou expositivo, como também é chamado. E, nas mãos de um escritor imaginativo, ela pode se tornar mais um recurso para a criação de belos textos ficcionais. Diferentemente da narração (onde predomina a ordem cronológica), o processo dissertativo ou expositivo ou de explanação de ideias constitui uma espécie de suspensão da ordem cronológica no texto. A moderna prosa de ficção (mais propensa a quebrar regras e barreiras) costuma recorrer à dissertação, combinada à narração e/ou à descrição – e, algumas vezes, ao diálogo. O trecho a seguir, de Nelson Rodrigues, em o Óbvio ululante, dá um exemplo claro disso: “Por tudo que sei da vida, dos homens, deve-se ler pouco e reler muito. A arte da leitura é a da releitura. Há uns poucos livros totais, uns três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem. É preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia. E, em vez disso, o leitor se desgasta, se esvai em milhares de livros mais áridos do que três desertos. Certa vez, um erudito resolveu fazer ironia comigo. Perguntou-me: – O que é que você leu? Respondi: – Dostoievski. Ele queria me atirar na cara os seus 40 mil volumes. Insistiu: – Que mais? 4. Modos de organização do discurso no texto - 87
E eu: – Dostoievski. O sujeito, aturdido pelos seus 40 mil volumes, não entendeu nada. Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoievski. Ou uma única peça de Shakespeare. No texto de Nelson Rodrigues, a dissertação, a narração e o diálogo combinam-se de forma dinâmica e criativa para criar um texto rico e instigante. Mesmo sem ser um processo predominante na ficção, a dissertação está bastante presente nos autores contemporâneos, como o tcheco Milan Kundera. Em geral, costuma predominar na ensaística filosófica, nos editoriais e artigos jornalísticos, em monografias e teses universitárias, nas cartas em geral, nas crônicas literárias e esportivas e, enfim, nas petições jurídicas. Por tudo isso, é bom não menosprezar sua importância e aprender sua mecânica – por mais que nossas ambições sejam predominantemente ficcionais. 4.4. Argumentação A argumentação visa construir uma comunicação que possa persuadir ou convencer uma pessoa, um grupo, um auditório da validade de uma tese ou proposição (11). A dissertação é um tipo de discurso cujo objetivo é explicar ou explorar certo assunto sem, porém, incluir um posicionamento ou uma opinião. Como a argumentação sempre pressupõe uma tese defendida por um sujeito e outra tese, adversária da primeira e, portanto, a sua antítese, devemos sempre considerar que onde há argumentação há também debate, discussão de ideias, oposição. Nesse sentido, a estrutura básica do discurso argumentativo deve pressupor a existência de posições contra e a favor, explícitas ou implícitas, o que nos permite ampliar a primeira formulação e propor a seguinte estrutura do discurso argumentativo. A técnica e a arte do conto - 88
- Afirmação (tese, proposição): feita pelo sujeito sobre a verdade de algum fenômeno, seguida da análise de seus termos essenciais, que se contrapõe, explícita ou implicitamente, a uma outra concepção sobre o mesmo fenômeno. - Posicionamento: o sujeito explicita sua posição sobre o fenômeno posto em discussão, posição que pode demonstrar uma concordância, parcial ou total, com uma tese já existente, ou uma discordância, parcial ou total com a mesma. O posicionamento pode ser acompanhado, ainda, de uma avaliação que o sujeito faz. Nesse caso, a avaliação pode estar relacionada com algum dos cinco domínios de avaliação: domínio da Verdade (relativo ao verdadeiro ou falso), domínio da Ética (relativo ao Bem e ao Mal), domínio da Pragmática (relativo ao que é útil ou inútil), domínio da Estética (do belo e do feio) e domínio Hedônico (relativo ao prazer, ao que é agradável ou desagradável). - Quadro de problematização: insere a argumentação numa perspectiva social, econômica, política, ideológica, religiosa, científica, matemática, epistemológica, moral. Geralmente associado a um dos cinco domínios mencionados acima, o quadro de problematização explicita certa orientação que o sujeito que argumenta quer dar ao seu discurso. Trata-se de uma estratégia de perspectivação. Por exemplo, posso argumentar sobre a doença dentro de uma perspectiva econômica: o problema da doença é de ordem econômica. Posso situar o problema sobre uma perspectiva social: o problema da doença decorre de fatores sociais, tais como falta de educação formal, a origem social dos grupos, a discriminação racial. Posso situá-lo dentro de uma perspectiva ideológica: o problema da doença decorre de uma histórica política de direita capitalista e só será resolvido através de uma ampla política de esquerda. Posso também associar a doença ao espaço religioso: a doença é fruto da falência do espírito cristão e da má compreensão dos Mandamentos de Deus. Assim as possibilidades de problematização são bem diversificadas e dependem, basicamente, do tipo de leitor ou ouvinte ao qual a argumentação é dirigida. - Formulação dos argumentos: não se pode argumentar bem sem apresentar, em um determinado momento, argumentos que possam ser aceitos como plausíveis e aceitáveis pelo interlocutor ou pelo auditório. A formulação dos argumentos será, portanto, a parte da argumentação relativa aos tipos de provas, à lógica dos raciocínios e princípios de explicação e justificação que fundamentam a tese ou afirmação. - Conclusão: dedução ou inferência a que se quer chegar a partir dos argumentos apresentados e sua pertinência e adequação ao quadro de problematização apresentado. 4. Modos de organização do discurso no texto - 89
Enquanto atividade discursiva, a argumentação persegue a racionalidade e o ideal da verdade, visando à explicação dos fenômenos e dos problemas que interessam aos homens. Um ideal inatingível, pois, mesmo quando tais fenômenos são passíveis de uma explicação universal, eles são, todavia, percebidos através de filtros da experiência individual e social das pessoas, experiência determinada no tempo, no espaço, na cultura, assim como também através de filtros relativos de esquemas explicativos da mente dos seres humanos. Isso faz com que a busca da verdade seja, de fato, uma busca daquilo que seria mais verdadeiro (e não a verdade em si). Trata-se, portanto, da busca do verossímil, ou seja, daquilo que se apresenta como sendo mais aceitável por todos ou pela maioria. Outro aspecto a ser considerado na argumentação é que nem sempre o sujeito que argumenta se baseia em princípios éticos rígidos capazes de mantê-lo no seu compromisso com o mais verdadeiro. O sujeito que argumenta pode estar mais interessado em fazer prevalecer suas intenções de influência que em discursar em favor da verdade. Isso ocorre porque outra finalidade, não menos importante que a busca da verdade, parece interessar aos homens: a busca da influência, que visa ao ideal da persuasão, consistindo em trazer o outro para o seu universo de crenças, fazê-lo partilhar seus valores, seus princípios de explicação, seus ideais e opiniões. Na argumentação demonstrativa (cientifica, por exemplo), opiniões nem sempre são desejáveis, sobretudo quando revestidas de caráter moral: bom, ruim, mau, melhor, pior. Como o discurso argumentativo demonstrativo busca a explicação racional de fenômenos e problemas, dois tipos de operações são fundamentais em sua construção: - Indução: tipo de raciocínio que caminha dos fatos (dados) particulares para se chegar a uma conclusão ampliada (generalização). - Dedução: tipo de raciocínio que parte de uma verdade estabelecida (geral) para provar a validade de um fato particular. A argumentação retórica, não necessariamente racional, construída através do apelo aos valores e às crenças das pessoas, procura trazer o outro para dentro do universo do discurso, sem seguir lógicas explícitas de raciocínio, e tem como objetivo persuadir o interlocutor. A argumentação demonstrativa se apoia em fatos e verdades; a argumentação retórica se apoia melhor em valores, crenças e lugares comuns. A técnica e a arte do conto - 90
Se argumentar é a arte de convencer e persuadir, convencer é saber gerenciar informação, é falar à emoção do outro, é construir algo no campo das ideias. Quando convencemos alguém, esse alguém passa a pensar como nós. Persuadir é construir no terreno das emoções, é sensibilizar o outro para agir. Quando persuadimos alguém, esse alguém faz ou pode fazer algo que desejamos que ele realize. Muitas vezes, conseguimos convencer as pessoas, mas não conseguimos persuadi-las. Argumentar é assim a arte de, gerenciando informação, convencer o outro de alguma coisa no plano das ideias e de, gerenciando relação, persuadi-lo, no plano das emoções, a fazer alguma coisa que desejamos que ele faça.
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5. Voz narrativa (foco narrativo + ponto de vista)
“O quem, o que, o onde e o porquê de nossa estória” é relevante, mas tão importante quanto é “o como”: isto é, como contamos nossa estória (22). O como escrevemos o conto – o ponto de vista ou a perspectiva a partir da qual a estória é contada - afeta o leitor tanto quanto as personagens (o quem), o conflito (o que), o cenário (o onde) e o enredo (o porquê). Alguém necessita contar nossa estória, e, mesmo se esse alguém nunca aparece nela, a visão dele ou dela revela tudo. O ponto de vista serve como a lente de uma câmara para os leitores. A visão está limitada ao que o escritor focaliza – os leitores não podem ver nada além daquilo que ele coloca no texto. Muitas vezes, a lente pode ser uma grande angular, com grande área de visão, trazendo uma grande quantidade de detalhes a respeito de um grande número de personagens, períodos de tempo e eventos; outras vezes a lente será uma telefoto, focalizando quase uma única personagem, momento ou evento. E numa ou em outra perspectiva a visão pode estar nítida ou embaçada. O foco narrativo e o ponto de vista que escolhemos é o como vamos revelar nossa estória para os leitores e o tipo de narrador que teremos. O foco narrativo é a perspectiva a partir da qual uma história é contada e pode ser de 1a ou 3a pessoa. O ponto de vista é o olhar adotado pelo narrador para apresentar aos seus leitores um acontecimento, personagem ou espaço sobre o qual vai falar e que afeta o modo como a história contada é interpretada por seus leitores. Narrar escrevendo é contar uma estória através de um tipo de texto que apresenta o desenrolar de uma ação ou de uma estória, num certo período de tempo, com a participação de uma ou mais personagens. Uma boa estória deve ter um narrador bem definido e consciente com suas atribuições e suas limitações, porque o mesmo só pode contar a estória a partir do que viu, do que viveu, do que testemunhou, mas também a partir do que imaginou, sonhou, desejou. Por isso, narração e ficção praticamente nascem juntas (23). 5. Voz narrativa (foco narrativo + ponto de vista) - 93
O foco narrativo, ou voz narrativa, ou ponto de vista, ou ângulo visual também constitui a soma de todas as decisões que fazemos, consciente ou inconscientemente, sobre palavras, parágrafos, ritmo, estilo. É o que faz o que escrevemos parecer conosco (1). As personagens, o conflito, o enredo e o cenário, juntos, formam a estória. Foco narrativo é o como contamos a estória, é a maneira que combinamos ideias e linguagem para criar um efeito dramático ou extrair a resposta desejada do leitor (1). Cada escritor tem seu foco narrativo ou sua voz narrativa peculiar, seu natural e pessoal modo de expressar suas ideias. Um pode ser conciso, enquanto outro, loquaz. Um pode ser direto, o outro, insinuante. Os escritores podem escolher diferentes estilos – sério, grave, respeitável, formal, informal, rebuscado, atraente, viçoso. Laurie E. Rozakis, em seu livro Creative Writing (24), fornece um exemplo bastante elucidativo de foco narrativo. Um carro e um caminhão colidem. Além dos dois motoristas, o acidente é testemunhado por três passageiros do automóvel, quatro crianças brincando na calçada, um homem pegando sua correspondência, uma mulher com uma videocâmara amadora filmando o local e um homem sobrevoando a cena com um pequeno planador. Se perguntarmos a cada um deles o que presenciou, temos doze diferentes pontos de vista. Isso significa que provavelmente temos doze diferentes descrições do acidente. O agente de seguro ou o policial pode nos dizer que quem conta a estória e como ela contada é fundamental para a estória que vai emergir. O mesmo é verdadeiro na ficção. O foco narrativo determina o que vemos e como é interpretado. A atmosfera e mesmo o significado da estória pode mudar radicalmente dependendo do ponto de vista. Cleanth Brooks e Robert Penn Warren identificam quatro tipos de focos narrativos: 1. A personagem principal narra sua estória (narrador-protagonista). 2. Uma personagem secundária narra a estória da personagem central (narrador-testemunha). 3. O narrador, analítico ou onisciente, conta a estória (narradoronisciente). 4. O narrador conta a estória como observador (narrador-observador). Cada um dos focos apresenta simultaneamente vantagens e desvantagens para o escritor: ora favorecem, ora limitam a possibilidade de visualizar o panorama em que as narrativas transcorrem. A técnica e a arte do conto - 94
Não sendo nenhum deles completo e perfeito, o autor opta por um que lhe faculte realizar a narração da estória de maneira convincente. E se o foco narrativo se ajusta ao enredo, está satisfeita a condição fundamental nesse terreno, uma vez que há bons e maus contos empregando indiferentemente os vários pontos de vista: bons, quando se processa íntima adequação entre o ponto de vista e a intriga; e maus, quando há inadequação. Narrar é um exercício criador que pressupõe a ideia de ponto de vista. O conto é conto quando se estabelece uma coerência intrínseca entre a estrutura, o foco narrativo e o assunto. O foco narrativo é sem dúvida um elemento indispensável à arte da ficção, e devemos tirar o melhor proveito possível dele. Ele começa com a escolha da pessoa verbal. Há três diferentes tipos, denominados pessoas: o ponto de vista na primeira, na segunda e na terceira pessoa. Cada uma funciona de uma forma diferente. As vozes (ou pessoas verbais) mais utilizadas na escrita do conto são a primeira e a terceira, flexionadas no singular ou no plural, de acordo com as preferências ou necessidades de quem escreve. Primeira pessoa – O ponto de vista na primeira pessoa é um narrador falando diretamente para o leitor. Usamos o singular (eu), que dá ao texto uma dicção mais pessoal e intimista, ao passo que o chamado plural majestático (nós) costuma ser empregado nos artigos ensaísticos ou acadêmicos. O narrador é frequentemente, mas nem sempre, um participante da estória. Segunda pessoa – O ponto de vista da segunda pessoa é o ponto de vista do você. O escritor conta a estória como se o leitor a estivesse vivendo, por exemplo: “Você vai a uma loja na esquina perto de sua casa e encontra seu primeiro amor.” Alguns leitores não aceitam essa perspectiva porque se sentem como se tivessem sendo mandados pelo escritor. Terceira pessoa – O ponto de vista da terceira pessoa é o escritor falando. Não há limites para esse ponto de vista, e ele tem um potencial para ir a qualquer lugar, inclusive ao que pensam todas as personagens. Massaud Moisés explica que os focos em que a personagem principal narra sua estória e em que o narrador conta a estória como observador implicam análise interna dos acontecimentos, ao passo que os focos em que uma personagem secundária narra a estória da personagem central e onde o narrador, analítico ou onisciente, conta a estória dizem respeito à sua observação externa (3). 5. Voz narrativa (foco narrativo + ponto de vista) - 95
O narrador funciona como personagem da estória nos focos em que a personagem principal narra sua própria estória ou uma personagem secundária narra a da personagem central. O narrador se coloca fora dos acontecimentos quando conta a estória como observador, ou quando tem acesso a eles com igual facilidade como narrador analítico ou onisciente. 1. O foco narrativo onde a personagem principal (protagonista) narra sua própria estória na primeira pessoa, geralmente do singular, é um enfoque muito comum em literatura. São exemplos emblemáticos diversos romances do inglês Charles Dickens (1812-1870), como David Copperfield e Grandes Esperanças. Há vantagens e desvantagens nesta opção: de um lado, ela permite a análise interna dos acontecimentos do enredo, garantindo ao leitor uma irresistível proximidade; de outro, o campo de fabulação fica restrito ao narrador, que precisará estar presente em todas as cenas, com exceção dos episódios que lhe forem contados por outras personagens e que ele apenas registrará por necessidade narrativa. Dom Casmurro é um bom exemplo deste modelo de foco. 2. O foco narrativo onde uma personagem secundária narra a estória da personagem central (protagonista) também na primeira pessoa é um ponto de vista testemunhal, pois aqui o narrador costuma ser alguém que desempenha um papel menor na trama a ser contada. Aqui, a distância entre o leitor e a narrativa é bem maior, já que o interesse narrativo encontra-se deslocado: em vez de uma personagem principal falando de si mesma (suas venturas e desventuras, qualidades e defeitos), temos uma fabulação mais objetiva – embora não necessariamente equilibrada e discreta, pois o narrador-testemunha pode optar pelo enaltecimento do protagonista. Exemplo clássico e bem-sucedido desta modalidade de foco narrativo é dado pela série de romances policiais de Arthur Conan Doyle (1859-1930), em que o médico Dr. Watson narra, na primeira pessoa, as proezas de Sherlock Holmes. 3. O foco narrativo onde o narrador analítico ou onisciente sabe tudo e narra tudo, em geral na terceira pessoa, é o enfoque mais praticado – e o mais prestigiado – pelos clássicos da ficção literária – dos russos Lev Tolstoi (1828-1910) e Fiódor Dostoievski (1821-1881) ao nosso José de Alencar (1829-1877). Aqui, o narrador é ao mesmo tempo impessoal e onipresente, porque acompanha todas as personagens em todos os lugares e situações, invadindo sua privacidade, apresentando seus pensamentos e seus conflitos interiores. É, sob vários aspectos, um ponto de vista muito rico – na A técnica e a arte do conto - 96
medida em que abre múltiplas possibilidades para a estrutura narrativa do texto: qualquer personagem pode estar em cena, na hora necessária, sob o comando da mão firme do narrador. Os grandes romances da literatura universal que o digam: graças a este recurso, eles ajudam a compor um extenso painel da condição humana – de Guerra e Paz, de Lev Tolstoi, a As Minas de Prata, de José de Alencar. 4. Finalmente, o foco narrativo onde o narrador conta a estória na terceira pessoa como observador é um enfoque que procura combinar elementos dos dois anteriores (de um lado, a objetividade do narrador analítico; de outro, a descrição do testemunho). Aqui, reduz-se (ou elimina-se) a penetração psicológica, em favor da ação, numa narrativa mais linear e com menor complexidade. Alguns contos de Machado de Assis, como Cantigas de Esponsais e Noite de Almirante, são ótimos exemplos desta modalidade de enfoque. Certamente, cada foco narrativo traz implícitas algumas vantagens e desvantagens, favorecendo ou limitando a construção (pelo leitor) de uma visão panorâmica da obra. Mas o mais importante é ter consciência de que, como todas as grandes regras ou receitas, esta aqui também pode ser driblada ou desmentida – o que tem sido feito com muita frequência e talento pela literatura contemporânea. Qual o melhor foco narrativo numa prosa de ficção? Aquele que melhor se adapte às necessidades expressivas do texto permitindo que o autor conte uma boa estória, através de um enredo convincente, com personagens emocionantes, num ritmo atraente e num estilo se possível peculiar e interessante. Não existem ritmos melhores que outros: trata-se, apenas, de uma questão de adequação e de equilíbrio. O ritmo de um texto, de preferência, não deve ser vertiginoso nem monótono, mas combinar movimentos crescentes e decrescentes. Margareth Lucke (1) denomina foco narrativo a maneira artística com que uma estória é contada. Identifica dezessete qualidades que contribuem para torná-lo mais pleno e para ajudar o escritor a decidir como melhor apresentar a estória: “Escolha das palavras; Estrutura e arranjo das sentenças e parágrafos; Ritmo da linguagem; Grau de formalidade na língua; Uma estrutura de narrativa linear ou em camadas; Equilíbrio entre a ação, o diálogo, a descrição e a narração; Uso de detalhes; Nível de suspense; Ritmo da estória; A quantidade e tipo de humor; A capacidade de emocionar; Estilo regional ou cultural; Uso de figuras de imagem, 5. Voz narrativa (foco narrativo + ponto de vista) - 97
metáforas, gírias; Uso de símbolos; Tipos das alusões e das referências na estória; A visão de mundo ou cosmovisão implícita na estória; A consistência do foco narrativo”. Ao escrevermos ou depois de escrevermos um conto, se considerarmos com atenção essas dezessete questões, seguramente construímos nossa estória de uma maneira mais clara e poderosa. O fator mais significativo na escolha de um determinado foco narrativo é nosso protagonista. Ao contar a estória devemos ajustar o foco narrativo segundo um dos três caminhos abaixo delineados: 1. Acentuar a voz da personagem principal. O foco narrativo de primeira ou de terceira pessoa fala a partir do ponto de vista do protagonista, e sua voz é a voz da estória. A estória passa a ter sua linguagem e estilo, e isso reforça a intimidade entre a personagem e os leitores. 2. Contrastar a voz da personagem principal. Muitas vezes o caminho mais efetivo para caracterizar o protagonista, ou para oferecer a perspectiva desejada para ele e para os eventos dos quais ele participa, é usar uma voz para ele e outra bem diferente para as outras personagens. 3. Fazer a narração parecer objetiva. Descrever os eventos numa voz neutra permite que os leitores teçam suas próprias conclusões sobre o protagonista e a estória.
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6. Estilo e originalidade
Há uma ideia de que estilo é essa capacidade de acrescentar adornos a um texto, através do uso de um fraseado colorido, ou de construções sintáticas empoladas, ou de um vocabulário esdrúxulo. Em geral, os dicionários costumam dar o nome de estilo à forma característica e pessoal de expressão de cada autor, capaz de diferenciá-lo de todos os outros. Estilo é uma série de escolhas – palavras, comprimento e estrutura da frase, figuras de linguagem, tom, voz, diálogos e a estrutura global. Um escritor criativo pode mudar seu estilo em diferentes tipos de texto para se adaptar a diferentes públicos. O estilo depende da proposta, do público, da conveniência. O nosso estilo é a maneira com que nos expressamos a nós próprios com bastante regularidade para ele se tornar identificável e, assim, ser capaz de comportar uma descrição particular. O estilo é um reflexo de quem somos e de como interagimos com o mundo. Para desenvolvermos nosso próprio estilo, temos de ignorar um grande número de regras, ou no mínimo o suficiente delas para tornarmos nossa prosa interessante e única. Adquirir um estilo e uma voz narrativa determinada é um desafio em contínua transformação, que se apresenta com cada nova personagem e enredo. Não devemos nunca deixar o nosso estilo atropelar a necessidade de contar uma boa estória. Escritor não tem estilo. Quem tem estilo é a personagem (30). Bons textos não possuem somente um estilo, mas vários, utilizados na construção de personagens memoráveis e de enredos atrativos. Muito se escreveu sobre esse assunto no passado – quase sempre, para enfatizar sua importância dentro da arte da escrita. O romancista francês Anatole France, por exemplo, costumava repetir que o estilo tem três virtudes: clareza, clareza, clareza. E o inglês Jonathan Swift define estilo como a capacidade de colocar as palavras certas no lugar exato – o que vem reforçado pelo corolário de Voltaire: “Uma palavra fora de lugar estraga o pensamento mais bonito.” 6. Estilo e originalidade - 99
Já Machado de Assis (notável pela simplicidade do seu estilo) prefere dizer que o estilo é apenas o casamento entre palavras que se afinam. Em meio a este verdadeiro festival de definições sem fim, vale a pena destacar o comentário do escritor e professor de criação literária John Gardner. É um belo exemplo de bom senso e equilíbrio: “Sobre o estilo, quanto menos se disser, melhor.” De fato, as pessoas costumam exagerar a importância do estilo do escritor. Muitos autores se perdem num texto, e muitas vezes ao longo de sua carreira, procurando um estilo, quando devem estar buscando apenas escrever bem – com exatidão, verdade, beleza. Porque, no fim das contas, o estilo representa tão-somente o resultado, bem ou mal articulado, das palavras que escolhemos para produzir um texto – e isso depende sobretudo da capacidade de adequar a linguagem às suas necessidades de expressão. Além da preocupação com o estilo, outro fantasma atormenta o espírito do escritor: a busca da originalidade. Muitos pensam que ser original é a principal virtude de um escritor. Essa obsessão com a originalidade é recente na história das artes, porque somente no início do século XIX o Romantismo a acentua. Até então, a maioria dos artistas cuida pouco de parecer original, talvez por desconfiar de que os motivos e assuntos mais profundos e mais caros à arte não pertencem a ninguém em especial, à maneira de um privilégio. O escritor mineiro Eduardo Frieiro publica em 1932, em seu livro de ensaios A Ilusão Literária, da Editora Itatiaia, uma extensa lista mostrando como os maiores autores de todos os tempos costumam buscar seus temas na obra de seus colegas de ofício. Ressalta aí que Virgílio escreve suas epopéias (a Eneida em especial) inspirando-se na obra de Homero; o poeta e dramaturgo francês Corneille escreve seu épico Le Cid a partir de uma conhecida lenda espanhola (El Cid Campeador); todos os enredos de Shakespeare são extraídos de autores como Plutarco, Hollinshead e de diversos contistas populares italianos – sem falar de seus dramas e tragédias históricas, inspirados diretamente nos fatos; Miguel de Cervantes busca o tema de Dom Quixote num escritor italiano mal conhecido; a estória de Fausto, a obra-prima de Goethe, já é contada por Christopher Marlowe, no século XVI. A técnica e a arte do conto - 100
Entre os brasileiros, pode-se dizer que Castro Alves sempre faz eco ao enfático romantismo de Victor Hugo e o grande Machado de Assis busca muitos de seus enredos e tramas em romancistas ingleses cujos nomes se perdem com o tempo. Certamente, esta constatação não diminui em nada o mérito de nenhum desses autores. Esclarece, porém, que não precisamos nos preocupar muito ou essencialmente em ser originais, mas em escrever bem.
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7. Planejamento do conto
Antes de iniciar o texto de um conto, é recomendável - porque melhor, mais eficiente, mais seguro - fazer um esboço de itens e tópicos que podem servir para o início, o desenvolvimento, o fechamento do mesmo. Podemos, inicialmente, construir um esquema tipo árvore, cujo tronco é o tema central da estória, e os galhos principais, secundários, terciários e outros mais, os itens subordinados ou relacionados a esse assunto. Este procedimento permite ao escritor saber o seu conhecimento atual sobre o assunto escolhido ou proposto. Se não conseguimos compor uma árvore temática frondosa é sinal de que precisamos ler, pesquisar mais sobre o assunto, buscar mais informações pertinentes, pois estamos pobres de dados em quantidade e qualidade para usarmos e correlacionarmos no nosso fazer literário. Nesse caso, uma significativa coleta de dados se impõe, e, assim, a pesquisa nos livros de texto específicos, nas enciclopédias, na Internet e as nossas próprias contribuições devem ser armazenadas num banco de dados geral ou particularizado. Em seguida podemos usar técnicas de otimização do processo de escrita do conto para alcançarmos um acervo abrangente de dados e ideias. Isto posto, é interessante escrever um primeiro parágrafo de introdução, três parágrafos de desenvolvimento e mais um parágrafo de fechamento do conto. Ulteriormente, esses parágrafos podem ser acrescidos de outros tantos para conseguirmos o primeiro rascunho do texto. O planejamento traz racionalidade ao texto, e, muitas vezes, contarmos somente com a intuição e a espontaneidade nem sempre satisfaz aos critérios de coerência, complexidade, maturidade, que nos são exigidos sempre na técnica e na arte de escrever. Se assim procedemos, antes de escrever um conto, construímos um texto mais organizado, menos improvisado, mais interessante.
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8. Técnicas de otimização do processo de escrita do conto
Existem várias técnicas para aperfeiçoar o desempenho do nosso cérebro no processo da escrita de um conto: (1) Chuva de ideias, ou tempestade de ideias, ou Brainstorming; (2) Escrita automática; (3) Listagem; (4) Clustering; (5) Cavewriting; (6) Cortar e Colar; (6) Misturar e Compatibilizar. 8.1. O brainstorming O brainstorming (25), ou chuva de ideias, ou tempestade de ideias, mais que uma técnica de dinâmica de grupo, é um método que visa obter ideias para solucionar determinado problema através de um trabalho grupal. Este método baseia-se no pressuposto de que um grupo consegue gerar melhores ideias do que um único indivíduo. O principal resultado individual ou da sessão em grupo do método pode ser uma solução completa de um problema, uma lista de ideias para uma abordagem a uma solução subsequente, ou um plano para resolver um problema. O brainstorming origina-se em 1953 num livro denominado Applied Imagination, de Alex Osborn, um executivo de propaganda, e o instrumental é muito utilizado nos Estados Unidos da América, principalmente em publicidade, educação, negócios. É uma das técnicas mais populares e eficazes quando se necessita de respostas rápidas a questões relativamente simples. Pode ser realizado individualmente ou em grupo. No processo grupal, os participantes são encorajados e, frequentemente, exortados a compartilhar suas ideias com os outros membros do grupo logo que elas são geradas. Problemas complexos ou sessões de brainstorming com pessoas de características diferentes podem ser guiadas por um diretor. Ele é o líder, o coordenador, o facilitador da sessão. Sua função principal é catalisar a sessão e levá-la até seu final. 8. Técnicas de otimização do processo - 105
A ideia ou ideias obtidas devem ser comunicadas no momento em que vêm à cabeça, e, num processo contínuo, são estimulados o desenvolvimento e a expressão de outras novas. Assim, uma sessão de brainstorming é mais bem conduzida numa sala de tamanho regular, e os participantes costumam sentar em círculo para que eles todos possam ver cada um dos outros. Um flip chart, um quadro-negro ou escritas num computador ligado a um projetor frontal as tornam legíveis numa tela. A sala está livre de telefone, relógio ou qualquer outra coisa que possam distrair os elementos do grupo. Para aumentar a criatividade, o brainstorming tem quatro regras básicas: foco na quantidade - quanto maior o número de ideias geradas, maior a chance de produção de uma solução radical e efetiva; suspensão, inicialmente, do processo crítico, reservando a avaliação crítica para um estágio ulterior; combinação das ideias com a criação de uma nova melhor; e ideias incomuns são bem-vindas. Uma sessão rápida de brainstorming é muito bem indicada para a solução de problemas que exigem uma solução urgente. Numa primeira fase devemos determinar e especificar o problema que necessita uma solução. Os participantes do grupo devem conhecer o problema. Numa segunda fase devemos ou todos devem gerar o maior número de ideias quanto possível. Manter na mente as quatro principais regras básicas e registrar as boas ideias. Continuar por cinco a quinze minutos. Na fase final a melhor ou as melhores ideias devem ser selecionadas. Uma sessão completa pode ser delineada da seguinte maneira: A) Indicação do problema: uma das coisas mais importantes a ser feita antes da sessão é definir o problema. Ele deve estar claro, resumido, exposto de uma maneira completa e simplificada. Por exemplo: “Quais os serviços que os celulares não disponibilizam ainda, mas são necessários?”. Se o problema é muito marcante, o facilitador deve dividi-lo em componentes menores, cada um deles com sua própria pergunta. B) Criação de um memorando de fundo: representa o convite e a informação melhor definida para os participantes, mostrando o nome da sessão, a data, o horário, o local, o problema. O problema está descrito com suas questões, e alguns exemplos de ideias são fornecidos. As ideias A técnica e a arte do conto - 106
são as soluções para o problema e são usadas quando a sessão diminui o ritmo ou fica fora de controle. Os exemplos também dão aos participantes uma direção ou um sentido a ser seguido. O memorando é fornecido aos participantes no mínimo dois dias antes do evento para que os mesmos possam pensar no problema antecipadamente. C) Seleção dos participantes: o líder do brainstorming escolhe e recebe os participantes e uma pessoa que escreve a ideia ou as ideias. Muitas variações são possíveis, mas a seguinte composição é recomendada: o líder; cinco membros do projeto que já foram testados com sucesso em projetos anteriores e se mostram criativos; cinco convidados estranhos ao projeto, com afinidade pelo problema; e aquele ou aquela que escreve a ideia ou as ideias. D) Criação de uma lista de questões mais importantes: durante o brainstorming, a criatividade pode diminuir. Neste momento, o coordenador deve estimular a criatividade sugerindo uma questão orientadora. Por exemplo: “É possível combinar essas ideias?”, ou “Que tal mudar a perspectiva do enfoque?” É recomendável preparar uma lista de sugestões significativas antes da sessão. No processo de condução da sessão de brainstorming, o coordenador lidera a sessão e assegura que as regras básicas do mesmo sejam seguidas. As atividades de uma sessão típica são: Uma sessão de esquentamento, para acostumar os novos participantes a um ambiente com o processo de censura em suspensão provisória. Um problema simples pode ser levantado. Por exemplo: “Qual o melhor presente a ser dado a um pai de classe média por sua filha adolescente de quatorze anos?”, “O que deve ser melhorado no Microsoft Windows?” O coordenador apresenta o problema e dá uma primeira abordagem, se necessária. Abre o processo de participação dos componentes do grupo. Se nenhuma ideia aparece, sugere uma ideia para encorajar a criatividade. Cada participante apresenta a sua ou as suas ideias, e ela ou elas são escritas no lugar previamente escolhido pela pessoa indicada para essa tarefa ou teclada no computador, que está ligado ao projetor. Se há uma grande quantidade de ideias ao mesmo tempo, o coordenador manda escrever aquelas mais pertinentes numa sequência que julga a melhor. Essa seleção pode ser feita pela visualização da linguagem corporal dos participantes ou simplesmente perguntando ao grupo quais as melhores ideias. Os participantes são encorajados a melhorar a qualidade de uma 8. Técnicas de otimização do processo - 107
ou de várias ideias apresentadas. Quando o tempo combinado está próximo de seu término, o coordenador organiza as ideias baseadas no objetivo principal e nos objetivos secundários e estimula a continuação da participação do grupo. As ideias são arranjadas em grupos, classificadas, postas em determinadas categorias. A lista final é revista para assegurar que todos compreendam a ideia ou as ideias. Ideias repetidas ou muito parecidas ou impraticáveis são descartadas. O coordenador agradece a todos os participantes e pode dar a cada elemento do grupo um comentário de apreciação de seu desempenho. Os participantes que têm uma ideia, mas que não querem torná-la pública para o grupo ou que não se manifestam já no tempo oportuno, podem escrevê-la e apresentá-la ao coordenador ulteriormente. O elemento que escreve a ideia ou as ideias deve enumerá-las para que o coordenador, se quiser, possa usar o número para encorajar o grupo. Por exemplo: “Temos quarenta e quatro ideias agora, vamos alcançar cinquenta?” O elemento que escreve deve repetir a ideia com as palavras com que pretende escrevê-la, para confirmar com o indivíduo do grupo se fica bem expresso o significado que procurou dar à sua contribuição. Quando muitos participantes têm ideias parecidas, aquele que apresenta a mais pertinente deve ter prioridade no processo de escrita da mesma. Isto encoraja a elaboração das ideias mais significativas. O escritor pode usar o brainstorming, sendo ele mesmo o coordenador, o que escreve e o representante dos participantes, por uns quinze a trinta minutos, como uma ferramenta de otimização de seu processo de escrita do conto. 8.2. Escrita automática Escrita automática (26, 27 e 28) é o processo, ou produto, do ato de escrever, ou de falar, cujo material escrito aparentemente não vem da mente consciente do autor. As mãos do escritor formam a mensagem, ou a sua fala, geralmente em estado de transe, não consciente do que está escrevendo. Pode, também, estar consciente de seus circunstantes, mas não de suas ações e do conteúdo do texto produzido. Pode em estado de relaxamento falar e ser registrado num gravador. O escritor deve se colocar numa posição de relaxamento, sentado ou deitado, olhos fechados, e diminuir sua frequência respiratória, por exemplo, para duas ou três incursões respiratórias completas (inspiração e expiração) por minuto, inalando o ar pelo nariz numa inspiração proA técnica e a arte do conto - 108
funda, com retenção completa do mesmo dentro dos pulmões, e depois expiração lenta pela boca, com uma pausa entre cada incursão respiratória completa. A sua atenção deve se voltar para o processo respiratório ou para determinadas partes de seu corpo, começando nos pés e subindo até a cabeça. Isso faz com que a frequência da atividade elétrica cerebral caia de 12 ciclos por segundo, se registrada pelo eletroencefalograma, ritmo alfa, para uma frequência entre 4 e 7 ciclos por segundo, de sonolência ou de proximidade do sono espontâneo, ritmo teta. Isto é denominado atingir um relaxamento em alfa (apesar de a frequência cerebral estar em teta). Esse estado próximo à sonolência ou sono leve espontâneo predispõe o indivíduo a entrar num estado de relaxamento neuropsicossensorial, e sua capacidade paranormal é, então, ativada. Esta é a técnica de produção de estado de transe fisiológico. Nesse nível mental pode-se proceder à escrita ou à fala em nível alfa ou de transe fisiológico. André Breton (1896– 1966), escritor francês, poeta, teórico do surrealismo, foi o pioneiro do uso da escrita automática dentro do movimento surrealista e produziu vários textos importantes. As ideias de Hélène Smith, conhecida como a Musa da escrita automática, também influenciou o movimento surrealista. A escrita automática mais tarde ganhou popularidade com escritores e poetas como um meio de estimular o pensamento criativo e como uma técnica para superar o bloqueio do autor. Ela pode assim ser utilizada na fase de planejamento do conto. 8.3. Listagem Listagem é a produção de uma lista de ideias. Essas ideias não precisam ser hierarquizadas e podem ser escritas num papel ou através de um programa de edição de texto num computador e, ulteriormente, permitir o estabelecimento de padrões e conexões entre elas. A listagem privilegia o uso do lado racional ou esquerdo do cérebro humano, e, para aqueles escritores em que esse lado é muito dominante em relação ao lado emocional e ao lado prático, ela não constitui uma boa ferramenta de otimização da criatividade.
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8.4. Aglomeração, ou clustering Aglomeração, ou clustering (agrupamento de um número de coisas semelhantes), também chamada webbing, ou web writing (29), é uma atividade que gera ideias, imagens, sentimentos, a partir do lado emocional ou direito do cérebro em torno de uma palavra de estímulo, quebrando o pensamento, linear, lógico, aritmético, do lado racional, esquerdo, cartesiano, do cérebro humano. Nesse método, colocamos a palavra-chave no centro da página, dentro de um círculo, e à medida que as ideias fluem na nossa mente vamos escrevendo-as como uma palavra, ou uma frase, delineadas por círculos, e vamos relacionando-as através de linhas de conexão com a palavra-chave, ou com as outras secundárias, terciárias e assim por diante. Como no brainstorming ou na escrita automática ou livre, não há qualquer censura. Devemos escrever tudo que venha à nossa mente. Aglomeração é geralmente útil para produzir imagens. Fazemos uma lista individual ou em grupo e depois nos sentimos livres para relacionar os vários itens entre si da melhor maneira que nos atenda.
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8.5. Cavewriting Cavewriting é um processo para aumentar a criatividade inventado por Barry Lane e descrito no seu livro Writing as a road to self-discovery. Nessa abordagem misturamos palavras e desenhos. Desenhamos coisas relacionadas com o tema definido e escrevemos palavras, em qualquer lugar, na página. Como a aglomeração, ele quebra no cérebro racional a necessidade de ordem e controle, permitindo que o cérebro direito, intuitivo, emocional, estético, místico, responsável pela percepção extrassensorial ou paranormal funcione. Não devemos censurar nem os desenhos nem as palavras. Desenhamos tudo que venha à nossa cabeça sem muito ou nada pensar. Escrevemos palavras geradas espontaneamente dentro ou fora dos desenhos. É um processo muito bem realizado pelo cérebro infantil, e esse exercício tenta recuperar esse potencial perdido pela racionalidade, educação, cultura. 8.6. Cortar e colar Cortar e colar, ou copiar e colar, é um modo do usuário transferir texto, dados, arquivos, objetos, de um local para outro. O termo cortar e colar deriva da prática tradicional na edição de um manuscrito, no qual parágrafos são literalmente cortados de uma página com tesoura e colados em outra página. Esta era uma prática comum até o final da década de 1960. Tesouras de edição com lâminas longas o bastante para cortar uma página larga estavam disponíveis em livrarias. O advento de fotocopiadoras fez a prática mais fácil e mais flexível. O paradigma do cortar-e-colar foi extensamente popularizado pela Apple (1981) e pela Macintosh (1984) pelo uso combinado de uma associação da tecla control com a letra c para cópia, x para corte e v para colar. Estas combinações de teclas foram mais tarde adotadas pela Microsoft no Windows. Alguns ambientes permitem cortar e colar usando o mouse do computador por drag and drop, ou arrastar e colocar, por exemplo. Essa técnica é utilizada na literatura por William Burroughs, que escreve páginas inteiras, talvez mesmo estórias completas ou romances, e então literalmente corta as páginas em pedaços e as rearranja, algumas 8. Técnicas de otimização do processo - 111
vezes simplesmente jogando os pedaços das mesmas ao ar e os unindo de acordo como se postam no chão. Se estivermos bloqueados num pedaço da estória-texto, este pode ser um exercício libertador, dando-nos novos insights, diferentes caminhos, outras formas de arranjo do texto. Esse processo pode gerar justaposições interessantes que de outra forma não nos ocorreriam. 8.7. Unir e Compatibilizar Unir e Compatibilizar é um processo que relaciona palavras da coluna “a” com a coluna “b” ou “c” ou “n”. Esta pode ser uma forma divertida e interessante de buscar conexões, inter-relacionamentos, adequações entre palavras colocadas aleatória ou racionalmente, sobre um tema qualquer em duas ou mais colunas. Da correlação entre coisas aparentemente sem qualquer relação podem nascer ideias significativas. Alguns autores não utilizam essa abordagem por a entenderem arbitrária, insensata, simplista Se tivermos uma ideia para nosso conto, antes de iniciar o ato de sua escrita, é sempre melhor fazer um esboço de itens e tópicos, que podem servir para o início, o desenvolvimento, o fechamento do mesmo. Na medida em que uma única ideia quase sempre não é suficiente para se escrever uma estória, sendo apenas um fragmento da mesma, é preciso decidir o próximo ingrediente. Quando se sabe o que se quer juntar à ideia, a estória começa a nascer. Assim uma estória nasce quando duas ideias se mesclam. O próximo passo então é o pensar criativamente: “E se?” O “E se” descortina várias possibilidades de estórias. Segundo Edward De Bono, o raciocínio vertical é cavar cada vez mais fundo no mesmo buraco, enquanto raciocínio lateral ou criativo é tentar de novo em outro lugar. Em termos práticos, isto quer dizer que, se não encontramos respostas satisfatórias para determinados problemas (do jeito que estamos procurando), devemos procurá-las em outro lugar, de outra maneira, olhando sob outro ângulo e através de outras associações. E a chave para pensar lateralmente é usar o jogo do “E se?” - E, se em vez de dividir, eu multiplicar? - E, se em vez de pintar de verde, eu pintar de vermelho? - E, se em vez de ir por aqui, eu for por ali? A técnica e a arte do conto - 112
- E, se em vez de deixar aqui, eu puser ali? Este é o primeiro passo. Esta é a primeira regra para tirar nossa mente da mesmice do pensamento vertical. Devemos nos acostumar a pensar “E se?”, e as ideias começam a aparecer. Sem correr o risco de errar temos poucas chances de acertar! Reforçando o exemplo: no jornal diário de nossa cidade – sempre uma fonte significativa de ideias - podemos pegar um artigo interessante, isolar a situação básica, trabalhar a partir somente das manchetes e pensar “E se?” E desenhar uma nova estória. Para que a imaginação verdadeiramente voe, podemos experimentar com três ou mais cenários para cada pessoa, lugar, situação e desencadear o jogo do “E se?”
8. Técnicas de otimização do processo - 113
9. Tipos de contos
Todos os povos, em todas as épocas, cultivaram seus contos. Contos anônimos, preservados pela tradição, mantiveram valores e costumes, ajudaram a explicar a História, iluminaram as noites dos tempos. De Sherazade (uma voz de mulher que conta mil e um contos nas Mil e Uma Noites, fazendo, dessa forma, a compilação dos contos mais conhecidos no final da Idade Média) aos contistas contemporâneos, a narrativa curta tem sido observada com especial interesse. A fórmula de compilação e narração de contos até então mantida no ideário popular adotada nas Mil e Uma Noites foi largamente aceita e repetida por muitos autores nos anos subsequentes, como, por exemplo, o Decamerão, de Bocaccio. Aos poucos, novas modalidades de contos foram surgindo, diferenciando-se dos contos infantis e dos contos populares, regidos agora por uma nova maneira de narrar, de acordo com a época, os movimentos artísticos que essa época produziu e o estilo individual do autor/narrador. Luzia de Maria (31) introduz seu leitor na discussão das várias modalidades de conto. Começa por distinguir o conto como forma simples, expressão do maravilhoso, linguagem que fala de prodígios fantásticos, oralmente transmitidos de gerações a gerações, e o conto como formulação artística, literária, escorregando do domínio coletivo da linguagem para o universo do estilo individual de certo escritor. E surgiram os contos de humor, fantásticos, de mistério e terror, realistas, psicológicos, sombrios, cômicos, religiosos, minimalistas, estruturados de acordo com as técnicas da narrativa. Os contos podem ser agrupados em vários tipos, de acordo com a matéria. Carl Henry Grabo, pioneiro dos estudos sistemáticos do conto, classifica-os em: conto de ação, de personagem, de cenário ou atmosfera, de ideia, que transmite emoção. O conto de ação é o tipo mais comum, desde os tempos imemoriais de Mil e Uma Noites até os contos policiais e de mistério e suas encarnações mais recentes. 9. Tipos de contos - 115
O conto de personagem é menos frequente. O retrato do protagonista pode consistir no objetivo principal do contista, mas nunca logrará o grau de plenitude que somente alcança no perímetro do romance. Na literatura brasileira, Feliz Aniversário, de Clarice Lispector, exemplifica com perfeição esse tipo de conto. O conto de cenário ou atmosfera é menos frequente do que os dois tipos anteriores, notadamente o primeiro. Afonso Arinos abre Pelo Sertão com um exemplar – “Assombramento”. O conto de ideia é mais corriqueiro do que o de cenário ou atmosfera. O Alienista, de Machado de Assis, enquadra-se exemplarmente neste tipo de conto. O conto que transmite emoção geralmente vem mesclado ao de ideia. Personagens, ação, paisagem... Tudo converge para o intuito capital: despertar emoção. Por vezes, os expedientes usados lembram as narrativas de mistério ou de terror, como algumas de Edgar Allan Poe (O Gato Preto) ou as de Hoffmann.
A técnica e a arte do conto - 116
10. Ficha de avaliação do conto 1. Narrativa: breve ( ); média ( ); longa ( ). 2. Diálogo: predomina ( ); não predomina ( ). 3. Personagens: poucas ( ); muitas ( ). 4. Diálogo e personagens gravitam em torno de uma única ação, um só drama, um só conflito, constituindo uma única unidade de ação (unidade dramática), fruto da sequência dos atos praticados pelos protagonistas ou de acontecimentos dos quais participam? Sim ( ); não ( ). a) ação interna - o conflito localiza-se no plano mental? Sim ( ); não ( ). b) ação externa - as personagens se deslocam no espaço e no tempo? Sim ( ); não ( ). 5. Unidade dramática (identifica o conto) - Uma única ação ou conflito ou ainda uma única estória ou “enredo”? Sim ( ); não ( ). 6. Espaço (onde as personagens circulam) – Âmbito restrito? Sim ( não( ).
);
7. Tempo (o passado e futuro não interessam ao conto). Os acontecimentos narrados dão-se em curto lapso de tempo - segundos, minutos, horas, dias - e no presente? Sim ( ); não ( ). 8. Clima – Constituído por uma unidade de efeito ou de impressão dentro de uma estrutura harmoniosa com o intuito de causar no leitor uma só impressão – ódio, piedade, simpatia, ternura, indiferença etc., seja o seu contrário? Sim ( ); não ( ). 9. Início - Envolvente ( longo ( ).
); medíocre (
); ruim (
); curto
(
);
10. Personagens - Poucas ( ); muitas ( ); retratam-se bem os protagonistas ( ); perde muito espaço com as personagens coadjuvantes ( ). 11. Epílogo - Enigmático, interessante, pouco previsível, à Maupassant, desfecho ocluso, inesperado como um arremate de anedota ( ); aberto desfecho aberto ( ). 12. Divagações ( ). 13. Digressões ( ). 10. Ficha de avaliação do conto - 117
14. Linguagem - É direta, concreta, objetiva? Sim ( ); não ( ). Se existem metáforas, elas são de curto espectro e de imediata compreensão? Sim ( ); não ( ). 15. Diálogo (o conto deve ser tanto quanto possível dialogado, porque os conflitos estão mais nas falas ou pensamentos dos protagonistas do que nos atos ou gestos que são reflexos ou sucedâneos da fala). O diálogo constitui a base expressiva do conto? Sim ( ); não ( ). a) Direto (as personagens se falam diretamente com aspas ou travessão ou no conto moderno sem esses acidentes). O diálogo direto predomina no conto? Sim ( ); não ( ). b) Indireto (a fala dos personagens em forma narrativa). Existe diálogo indireto? Sim ( ); não ( ). c) Indireto livre (fusão da 3a e 1a pessoas narrativas). Existe diálogo indireto livre? Sim ( ); não ( ). d) Diálogo ou monólogo interior (passa dentro da mente da personagem; ela fala consigo mesma, antes de se dirigir a outrem, pois as palavras contêm vários níveis de consciência antes que sejam formuladas pela fala deliberada). Existe diálogo ou monólogo interior? Sim ( ); não ( ). 16. Narração - presença reduzida relativamente ao diálogo (relato de fatos ou acontecimentos; envolve ação, movimento e evolução no tempo, como, por exemplo, narração de uma viagem, de um jantar). Só interessa o passado remoto ou próximo ao desenvolver da ação. Existe diálogo indireto livre? Sim ( ); não ( ). 17. Descrição - deve ser resumida (enumeração dos caracteres próprios dos seres, inanimados ou animados e coisas, como, por exemplo, a descrição da natureza, de ruas, pessoas etc.). Existe descrição? Sim ( ); não ( ). 18. Trama, urdidura, enredo, a intriga - Ao principiar a narrativa, deve situar-se já na vizinhança do epílogo, de modo que se mostrem apenas os momentos contíguos ao clímax dramático (tudo o mais é irrelevante e de segundo plano). A trama se inicia próxima ao epílogo? Sim ( ); não ( ). 19. O ângulo do autor, o ponto de vista, a dimensão de seu olhar (elemento de especial importância na estrutura do conto, o foco narrativo). O ponto de vista do autor é pertinente e interessante? Sim ( ); não ( ). a) A personagem principal narra sua estória (análise interna)? A técnica e a arte do conto - 118
O narrador é personagem da estória - 1a pessoa do singular ou plural ( ). b) Uma personagem secundária narra a estória da personagem central? O narrador funciona como personagem da estória ( ). c) O narrador analítico e onisciente conta a estória (observador)? ( ). d) O narrador conta a estória como observador (análise .interna)? ( ). 20. O conto estabelece coerência intrínseca entre a estrutura, o ponto de vista e o assunto? ( ). 21. O conto pode ser classificado como: a) De ação - mais comum (Mil e Uma Noites, contos policiais, mistérios) ( ). b) De personagem (Feliz aniversário, de Clarice Lispector) ( ). c) De cenário ou atmosfera (Assombramento) ( ). d) De idéia (O alienista) ( ). e) Que transmite emoção (mesclado ao de ideia com personagens, ação, paisagem etc.), mistérios ou terror (O gato preto, de Edgard Allan Poe) ( ).
10. Ficha de avaliação do conto - 119
11. Lista de contos exemplares da literatura brasileira 1. Afonso Arinos: O Assombramento. 2. Alcântara Machado: A Apaixonada Elena; A Insigne Cornélia; A Piedosa Teresa; A Sociedade; Amor e Sangue; Apólogo Brasileiro sem Véu de Alegoria; Armazém Progresso de São Paulo; Artigo de Fundo; As Cinco Panelas de Ouro; Carmela; Corinthians vs Palestra; Gaetaninho; Guerra Civil; Lisetta; Miss Corisco; Monstro de Rodas; Nacionalidade; Notas Biográficas do Novo Deputado; O Aventureiro Ulisses; O Filósofo Platão; O Ingênuo Dagoberto; O Inteligente Cícero; O Lírico Lamartine; O Mártir Jesus; O Patriota Washington; O Revoltado Robespierre; O Tímido José; Tiro de Guerra Número 35. 3. Aluísio Azevedo: O Impenitente; O Touro Negro; França Júnior; Henrique Venceslau Sizenando Nabuco; Casa de Cômodos; Filomena Borges; A Giovani; Colaboração; Um fruto da época; Gasparoni; Do Vendeiro ao Poeta; Literatura Nacional; Rendas e Fitas; Hamleto. 4. Álvares de Azevedo: Solfieri. 5. Artur de Azevedo: 345; A “Não-me-toques”; A Água de Janos; A Ama-Seca ; A Conselho do Marido; A Dívida; A Doença do Fabrício; A Fiha do Patrão; A Filosofia do Mendes; A Marcelina; A Melhor Amiga; A Melhor Vingança; A Moça Mais Bonita do Rio de Janeiro; A Nota de Cem Mil-Réis; A Pequetita; A Polêmica; A ‘Réclame’; A Ritinha; A Tia Aninha; A Viúva do Estanislau; As Asneiras do Guedes; As Cerejas; Às Escuras; As Paradas; Assunto Para um Conto; Banhos de Mar; “Barca”; Black; Caiporismo; Cavação Chico; Comes e Bebes; Como o Diabo as Arma!; Conjugo Vobis; De Cima para Baixo; Denúncia Involuntária; Dona Eulália; Duas Apostas; Elefantes e Ursos; Em Sonhos; Encontros Reveladores; Fatalidade; História de um Dominó; História de um Soneto; História Vulgar; In Extremis; Ingenuidade; João Silva; Mal Por Mal...; Morta Que Mata; Na Exposição; Na Horta; O 15 e o 17; O Asa Negra; O Chapéu; O Cuco; O Epaminondas; O Espírito; O Galã; O Galo; O Gramático; O Jaó; O Lencinho; O Meu Criado João; O Palhaço; O Paulo; O Retrato; O Sá; O Sonho do Conselheiro; O Telefone; O Último Palpite; O Velho Lima; Octogenário; Os Compadres; Os Dez por Cento; Os Dois Andares; Paga ou Morre!; Pan-Americano; Paulino e Roberto; Piedade Filial; Plebiscito; Pobres Liberais!; Por Não se Entenderem; Poverina; Puelina; Quem Ele Era?; Questão de Honra; Sabina; Sova BemMerecida; Toc, toc, toc, toc.; Um Cacete; Um Capricho; Um Desastre; Um Don Juan de Província; Uma Aposta; Uma Carga de Sono; Uma Embaixada; Uma Por outra; Vingança; Vovô Andrade; X e Y. 11. Lista de contos exemplares da literatura brasileira - 121
6. Coelho Neto: O Duplo: O filósofo; A rosa azul; A bilha; O troco; A epiléptica; Os submarinos; Ninho do curió; Vitória régia; A mulata; As perdizes; A obra prima; Mamãe; A intenção; Os jasmins; Educação antiga; As cruzes; O perfume; Experiência; Ilusão; Ferrabrás; Indefesa; A santa casa; O gato e o passarinho; A noiva do Donato; O datilógrafo; O milagre; A surpresa; As folhas; As jacobitas; A chácara; Manias; Feminice; Chaves e fechaduras; O monstro; A festa dos ovos; Aparências; A coberta; A derradeira morada; A punição; O nababo; A confissão; Política; O amigo; A lição; Os gêmeos; As camisas; O sonâmbulo; O ambicioso; O sovina; Cerimônias nupciais; A pedra dos namorados; O porco; Revelação; Resposta difícil; O tropeiro; Parábolas; A adúltera; Obediência; As loções miraculosas; A vingança; Altruísmo; Modas; Os suspensórios; A baronesa; A fome no amazonas; Os “reddis”; Fortunato; O limo; A virgem; Melhoramentos; A caçada; A manicura; Mocidade; A pérola; Os médicos; O bravo dos bravos; O pé e o sapato; O patrão; As “gaffeuses”; Os horrores da guerra; Pavores de enfermo; O Elefante; O rio Purús; Represália; O prêmio; A cidade indiscreta; O ladrão; O prestígio do “rouge”; A festa da inteligência; Consequências do protocolo; Os colchetes; O vestido; Convenientes do ciúme; Miopia; O sapateiro; Entre os Papuas; As “meninas”; Elas; Barba de bode; O triunfador; A cornucópia; O milagre de São Benedito; O leilão; Lâmpadas e ventiladores; Militarismo; Apólogo sertanejo; As garrafas; Pele curta; Malitia sexus; Madame London Bank; Efeitos do tanino; Zurtz; A chuva luminosa; Pedras preciosas; O bravo; São Filomeno; O javali de Calydon; Cefalalgia; Os olhos que comiam carne; Autos e taxis; Gigolô. 7. Inglês de Souza: O Baile do Judeu. 8. Lima Barreto: A Biblioteca; A Doença de Antunes; A Nova Califórnia; Como o Homem Chegou; Miss Edith e Seu Tio; Numa e a Ninfa; O Cemitério; O Falso Dom Henrique V; O Feiticeiro e o Deputado; O Homem que Sabia Javanês; O Jornalista ; O Pecado; O Único Assassinato de Cazuza; Porque Não Se Matava; Sua Excelência ; Um e Outro; Um Músico Extraordinário; Uma Noite no Lírico. 9. Machado de Assis: A Carteira; A Cartomante; A Causa Secreta; A Desejada das Gentes; A Igreja do Diabo; A Inglesinha Barcelos; A Mulher de Preto; A Vida Eterna; Adão e Eva; Almas Agradecidas; As Academias de Sião; Cantiga de Esponsais; Como se Inventaram os Almanaques; Confissões de Uma Viúva Moça; D. Jucunda; D. Paula; Diana; Entre Santos; Felicidade pelo Casamento; Frei Simão; Idéias do Canário; Linha Reta e Linha Curva; Longe dos Olhos; Luiz Soares; Marcha Fúnebre; Mariana; Miss Dollar; Missa do Galo; Noite de Almirante; O Alienista; O Anjo das Donzelas; O Cônego; O Diplomático; O Enfermeiro; O Rei dos Caiporas; O Sainete; O Segredo de Augusta; Onda; Os Óculos de Pedro Antão; Possível e Impossível; Suje-se Gordo!; Tempo A técnica e a arte do conto - 122
de Crise; Trio em Lá Menor; Um Apólogo; Um dia de Entrudo; Um Homem Célebre; Uma por Outra; Uns Braços; Viver! 10. Medeiros e Albuquerque: O Soldado Jacob. 11. Paulo Barreto (João do Rio): Dentro da Noite; Emoções; História de Gente Alegre; Duas Criaturas; Coração; Aventura de Hotel; O Monstro; O Bebê de Tartalana Rosa; A Parada da Ilusão; Uma Mulher Excepcional; A Mais Estranha Moléstia; O Carro da Semana Santa; D. Joaquina; A Menina Amarela; A Amante Ideal; A Aventura de Rozendo Moura; Penélope. 12. Raymundo Magalhães: O Lobisomem. 13. Raul Pompéia: 14 de Julho na Roça; 50$OOO de Gratificação; A Andorinha da Torre; A Batalha dos Livros; A Cruz da Matriz; A Mona do Sapateiro; A Pomba e a Estrumeira; A Tona D’Água; Amor de Inverno; Antes e Depois; As Festas de Reis de Minha Prima; Caricaturas Reais - Estou Roubado; Caricaturas Reais - O Piano; Caricaturas Reais - Um Vizinho Original; Cavaleiros Andantes; Clarinha das Pedreiras; Comércio de Flores; Como Nasceu, Viveu e Morreu a Minha Inspiração; Conto de Fadas; Correspondências Íntimas I; Correspondências Íntimas II; Decotes de Quinze Anos; De Madrugada; Dia de Gala; É Morto Pulcinella!...; Fora de Horas; História Cândida; Idílio Retrospectivo; Maladetto Francesco; Mocinha; Milina e o Turco; Niente; No Mar; O Fruto da Formosura; O Hino Auriverde; Olhos; O Perfume dos Bolos; Os Gatos e os Cães; O Mal de D. Quixote; O Modelo do Anjo; Os Parricidas; O Tapacurá de Cendi; Quase Tragédia; Rogério, O Rude; Tílburi de Praça; Último Castelo; Violeta. 14. Thomaz Lopes: O Defunto.
11. Lista de contos exemplares da literatura brasileira - 123
12. Decálogo do perfeito contista, de Horácio Quiroga
I - Crê em um mestre - Poe, Maupassant, Kipling, Tchecov - como em Deus. II - Crê que tua arte é um cume inacessível. Não sonhes alcançá-la. Quando puderes fazê-lo, conseguirás sem ao menos perceber. III - Resiste o quando puderes à imitação, mas imite, se a demanda for demasiado forte. Mais que nenhuma outra coisa, o desenvolvimento da personalidade requer muita paciência. IV - Tem fé cega não em tua capacidade para o triunfo, mas no ardor com que o desejas. Ama tua arte como à tua namorada, de todo o coração. V - Não comeces a escrever sem saber desde a primeira linha aonde queres chegar. Em um conto bem-feito, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância das três últimas. VI - Se quiseres expressar com exatidão esta circunstância - “Desde o rio soprava o vento frio”, não há na língua humana mais palavras que as apontadas para expressá-la. Uma vez dono de tuas palavras, não te preocupes em observar se apresentam consonância ou dissonância entre si. VII - Não adjetives sem necessidade. Inúteis serão quantos apêndices coloridos aderires a um substantivo fraco. Se encontrares o perfeito, somente ele terá uma cor incomparável. Mas é preciso encontrá-lo. VIII - Pega teus personagens pela mão e conduza-os firmemente até o fim, sem ver nada além do caminho que traçaste para eles. Não te distraias vendo o que a eles não importa ver. Não abuses do leitor. Um conto é um romance do qual se retiraram as aparas. Tenha isso como uma verdade absoluta, ainda que não o seja. IX - Não escrevas sob domínio da emoção. Deixe-a morrer e evoque-a em seguida. Se fores então capaz de revivê-la tal qual a sentiste, terás alcançado na arte a metade do caminho. X - Não penses em teus amigos ao escrever, nem na impressão que causará tua história. Escreva como se teu relato não interessasse a mais ninguém senão ao pequeno mundo de teus personagens, dos quais poderias ter sido um. Não há outro modo de dar vida ao conto. 12. Decálogo do perfeito contista, de Horácio Quiroga - 125
13. História do conto
O conto é tão antigo quanto o homem. Sua origem se esconde num passado remoto, impreciso, objeto de inúmeras especulações. Quem, onde, quando ele se inicia ninguém pode dizer, mas deve ter começado nos estágios mais primitivos do desenvolvimento do ser humano. Nesse tempo provavelmente há somente uma finalidade na mente do narrador: a alegria de dizer e de ouvir uma estória. Não é possível precisar o início do conto, provavelmente, num tempo em que nem sequer existe a escrita. As estórias são narradas oralmente ao redor das fogueiras das habitações dos povos primitivos – geralmente à noite. Por isso o suspense e o fantástico o caracterizam originalmente. O conto remonta aos mitos arianos, em circulação na pré-história da Índia, tida como o nascedouro do povo indo-europeu, e alguns estudiosos acreditam que o seu aparecimento ocorre alguns milhares de anos antes de Cristo (4). Os gregos produzem relativamente muito pouco na prosa até a época de sua decadência e mostram pouca vontade para usar a forma concisa e unificada do conto. Deixam, porém, contribuições valiosas como: o episódio entre Afrodite e Mercúrio, na Odisséia; os amores de Orfeu e Eurídice, nas Metamorfoses, de Ovídio; A Matrona de Éfeso, de Petrônio; A Casa Mal-Assombrada, de Plínio; O Moço, O Sonho, de Apuleio; as fábulas de Esopo e Fedro. A Odisséia, de Homero, provavelmente do século VIII a.C., continua a narração da guerra de Tróia, iniciada parcialmente na Ilíada. O protagonista é o grego Ulisses, filho e sucessor de Laerte, rei de Ítaca e marido de Penélope e um dos heróis favoritos de Homero, que já aparece na Ilíada como um homem perspicaz, bom conselheiro, bravo guerreiro. A Odisséia narra as viagens e aventuras dele em duas etapas: A primeira - os acontecimentos que, em nove episódios sucessivos, afastam o herói de casa, forçado pelas dificuldades criadas pelo deus Posêidon. A segunda - mais nove episódios, que descrevem sua volta ao lar sob a proteção da deusa Atena. É também desenvolvido um tema secun13. História do conto - 127
dário, o da vida na casa de Ulisses durante sua ausência e o esforço da família para trazê-lo de volta a Ítaca. Compõe-se de 24 cantos em verso hexâmetro (seis sílabas), e a ação se inicia dez anos depois da guerra de Tróia, em que Ulisses luta ao lado dos gregos. A ordem da narrativa é inversa: tem início pelo desfecho, a assembléia dos deuses, em que Zeus decide a volta de Ulisses ao lar. O relato é feito, de forma indireta e em retrospectiva, pelo próprio herói aos feaces povo mítico grego que habita a ilha de Esquéria. Hábeis marinheiros, são eles que conduzem Ulisses à Ítaca. A Odisséia é estruturada em quatro partes: Na primeira parte (cantos I a IV), Atena vai a Ítaca animar Telêmaco, filho de Ulisses, na luta contra os pretendentes à mão de Penélope, sua mãe, que decide enviá-lo a Pilos e a Esparta em busca do pai. O herói, porém, encontra-se na ilha de Ogígia, prisioneiro da deusa Calipso. Na segunda parte, Calipso liberta Ulisses, por ordem de Zeus, que atende aos pedidos de Atena e envia Hermes com a missão de comunicar a ordem. Livre do jugo de Calipso, que dura sete anos, Ulisses constrói uma jangada e parte, mas uma tempestade desencadeada por Posêidon lança-o na ilha dos feaces (canto V), onde é descoberto por Nausícaa, filha do rei Alcínoo. Bem recebido pelo rei (cantos VI a VIII), Ulisses mostra sua força, sua destreza, em competições esportivas que se seguem a um banquete. Na terceira parte (cantos IX a XII), o herói passa a contar a Alcínoo as aventuras que vive desde a saída de Tróia: sua estada no país dos Cícones, dos Lotófagos e dos Ciclopes; a luta com o ciclope Polifemo; o episódio na ilha de Éolo, rei dos ventos, onde seus companheiros provocam uma violenta tempestade que os arroja ao país dos canibais, ao abrirem os odres em que estão presos todos os ventos; o encontro com a feiticeira Circe, que transforma seus companheiros em porcos; sua passagem pelo país dos mortos, onde reencontra a mãe e personagens da guerra de Tróia. Na quarta parte, o herói volta à Ítaca, reconduzido pelos feaces (canto XIII). Apesar do disfarce de mendigo, dado por Atena, Ulisses é reconhecido pelo filho, Telêmaco, e por sua fiel ama Euricléia, que, ao lhe lavar os pés, o identifica por uma cicatriz. Assediada por inúmeros pretendentes, Penélope promete desposar aquele que conseguir retesar o arco de Ulisses, de maneira que a flecha atravesse doze machados. Só A técnica e a arte do conto - 128
Ulisses o consegue. O herói despoja-se em seguida dos andrajos e faz-se reconhecer por Penélope e Laerte. Segue-se a vingança de Ulisses (cantos XIV a XXIV): as almas dos pretendentes são arrastadas aos infernos por Hermes, e a estória termina quando Atena impõe uma plena reconciliação durante o combate entre Ulisses e os familiares dos mortos. A concepção da Odisséia é predominantemente dramática, o caráter de Ulisses - marcado por obstinação, lealdade, perseverança em seus propósitos -, funciona como elemento de unificação que permeia toda a obra. Nela aparecem fundidas ou combinadas algumas lendas pertencentes a uma antiquíssima tradição oral com fundo histórico. Há forte crença de que a Odisséia reúna temas oriundos da época em que os gregos exploram e colonizam o Mediterrâneo ocidental, daí a presença de mitos com seres monstruosos no Ocidente, para eles ainda misterioso. Pela extrema perfeição de seu todo, a Odisséia tem encantado o homem de todas as épocas e lugares. Na era moderna considera-se que ela completa a Ilíada como retrato da civilização grega e, juntas, testemunham o gênio de Homero, estando entre os pontos mais altos atingidos pela poesia universal. Ovídio, nas Metamorfoses, conta a estória dos amores de Orfeu e Eurídice: - Orfeu, filho da musa Calíope e esposo da linda Eurídice, é o mais talentoso músico que já viveu. Quando toca sua lira, os pássaros param de voar para escutar, os animais selvagens perdem o medo, as árvores curvam-se para pegar os sons no vento. Ele ganha a lira de Apolo, seu pai. Aristeu tenta seduzir Eurídice, que recusa suas atenções, e ele passa a persegui-la. Ao tentar escapar, ela tropeça em uma serpente, sendo picada e morta. Orfeu, transtornado de tristeza, leva sua lira até o Mundo dos Mortos, para tentar trazer de volta sua amada. A canção de sua lira, pungente, emocionada, melancólica, convence o barqueiro Caronte a levá-lo vivo pelo rio Estige. O som de seu instrumento adormece Cérbero, o cão de três cabeças, que vigia os portões. Finalmente, Orfeu chega ao trono de Hades. O rei dos mortos fica irritado ao ver que um vivo entra em seu domínio, mas a agonia na música de Orfeu o comove, e ele chora lágrimas de ferro. Sua mulher Perséfone implora-lhe que atenda ao pedido de Orfeu. Hades permite a volta de 13. História do conto - 129
Eurídice ao mundo dos vivos, desde que Orfeu não olhe para sua amada, até que ela alcance novamente a luz do sol. Orfeu parte pela trilha íngreme que leva para fora do escuro reino da morte, tocando músicas de alegria e celebração enquanto caminha, para guiar a sombra de Eurídice de volta à vida. Ele não olha uma só vez para trás até atingir a luz do sol. Mas, então, se vira para se certificar de que sua esposa o esteja seguindo. Por um momento ele a vê perto da saída do túnel escuro, perto da vida outra vez. No entanto, enquanto ele olha, ela se torna de novo um fino fantasma, soltando um grito final de amor na brisa que sai do Mundo dos Mortos. Orfeu perde-a para sempre. Em total desespero, ele torna-se amargo, recusa-se a olhar para qualquer outra mulher, não quer se lembrar da perda de sua amada. Furiosas por terem sido desprezadas, mulheres selvagens chamadas Mênades caem sobre ele, frenéticas, despedaçam-no. Jogam sua cabeça cortada no rio Hebrus, e ela flutua, ainda cantando: - Eurídice! Eurídice! Chorando, as nove musas reúnem seus pedaços e os enterram no Monte Olimpo. Dizem que, desde então, os rouxinóis das proximidades cantam mais docemente do que os outros, porque Orfeu, na morte, se une à sua amada Eurídice. Quanto às Mênades, que tão cruelmente matam Orfeu, os deuses não lhes concedem a misericórdia da morte. Quando elas batem os pés na terra, em triunfo, sentem seus dedos se espicharem e entrar no solo. Quanto mais tentam tirá-los, mais profundamente eles se enraízam. Suas pernas tornam-se madeira pesada, e também seus corpos, até que elas se transformam em silenciosos carvalhos. E assim permanecem pelos anos, batidas pelos ventos furiosos, que antes se emocionavam ao som da lira de Orfeu, até que por fim seus troncos mortos e vazios caem ao chão. Petrônio, na Matrona de Éfeso, conta a estória de uma matrona tão honesta, que de países vizinhos vêm mulheres para conhecê-la. Ela perde seu esposo e não vai ao enterro do marido atrás do corpo dele, nem com cabelos em desordem, nem golpeando o peito nu ante os olhos de todos, como é costume entre os gregos. Logo após enterrá-lo, se põe a velar o corpo e a chorar dia e noite. Seus pais e familiares não conseguem fazê-la desistir desta atitude, que, levada ao desespero, a faz morrer de fome. Até os juízes desistem A técnica e a arte do conto - 130
do intento ao se verem rechaçados por ela. Todos lamentam a atitude da mulher de se deixar consumir desde há cinco dias por inanição. Uma serva muito fiel a acompanha, compartilha com ela seu lamento, renova a chama da lamparina, que ilumina o sepulcro, quando a mesma começa a se apagar. Na cidade não se fala em outra coisa que não seja dessa abnegação, e homens de todas as condições sociais a homenageiam como exemplo verdadeiro de castidade e amor conjugal. Neste tempo o governador da cidade ordena crucificar vários ladrões perto da cripta onde a matrona chora sem parar a morte do marido. Durante a noite seguinte à crucificação, um soldado, que vigia as cruzes para impedir que alguém tome os corpos dos ladrões para enterrálos, nota uma pequena luz que pisca entre as tumbas e percebe o lamento de alguém que chora. Levado pela natural curiosidade humana, quer saber quem está ali. Vai até a cripta e descobre uma mulher de extraordinária beleza, fica paralisado de medo, crendo estar frente a um fantasma ou a uma aparição. Mas, quando vê o cadáver, vai-se desvanecendo sua própria impressão, dando-se conta de que está ante uma viúva que não encontra consolo. Leva à cripta sua magra refeição de soldado e começa a exortar a sofrida mulher para que não se deixe dizimar por aquela dor inútil ou que se permita encher seu peito com lamentos sem sentido. - A morte – diz – é o fim de todo ser vivente. O sepulcro é a última morada de todos. No seu discurso continua usando tudo o que alguém pode dizer para consolar uma alma sofrida pela dor. Os conselhos de um desconhecido exacerbam o padecer da mulher; passa a golpear o peito mais duramente; arranca mechas de cabelo; arremete-as sobre o cadáver. O soldado não desanima, insiste, tentando que a mesma prove de sua ceia. Após algum tempo, a serva, tentada pelo odor do vinho, não resiste ao convite e estende a mão ao que se lhe oferece e, quando recobra as forças com o alimento e a bebida, começa a atacar a resistência de sua ama: - De que te serve tudo isso? – O que ganhas em te deixar morrer de fome ou enterrada, entregando sua alma antes que o destino te peça? Os despojos dos mortos não pedem loucuras semelhantes. Voltes à vida. Deixes de lado teu lado de mulher e gozes o que seja possível da luz do 13. História do conto - 131
céu. O mesmo cadáver que está aí tem que te bastar para que vejas quão bela é a vida. Por que não escutas um conselho de um amigo que te convidas a comer algo e não te deixas morrer? Finalmente a viúva, esgotada pelos dias de jejum, deixa sua obstinação e come e bebe com a mesma ansiedade com que se comporta anteriormente sua serva. Sabemos que um apetite satisfeito produz outros. O soldado, entusiasmado com seu primeiro êxito, procura derrotar a virtude da matrona com argumentos semelhantes aos que a afastam do jejum a que se submete. - Não é tão mal acabado ou odioso este jovem – declara a serva e acrescenta: - Vais resistir a um amor tão doce? Perderás os anos da tua juventude? Por que vais esperar mais tempo? A matrona, depois de haver satisfeito as necessidades de seu estômago, não resiste à sedução do soldado. Ele sente-se vitorioso. Deitam-se juntos não somente naquela noite, mas nos dias seguintes, deixando bem fechada a porta da cripta, de modo que, ao passar por lá um familiar ou um desconhecido, acredite que a fiel mulher tenha morrido sobre o cadáver de seu esposo. O soldado, fascinado pela formosura da mulher e pelo seu misterioso amor, compra tudo de melhor que suas condições permitem e, ao cair da noite, leva ao sepulcro. Mas eis que os parentes de um dos ladrões, notando a falta de vigilância noturna, roubam seu cadáver e o sepultam. O soldado, ao encontrar no dia seguinte uma das cruzes sem o morto, temeroso da punição que o aguarda, conta o ocorrido à viúva: - Não, não – ele diz – não espero o castigo. Minha própria espada deve se adiantar à sentença do juiz e deve castigar meu descuido. Peço-te, minha amada, que, uma vez morto, me deixes nesta tumba. Coloque seu amante junto ao teu marido. Mas a mulher, tão compassiva quanto virtuosa, lhe responde: - Que os Deuses me livrem de chorar a morte de dois homens que mais amei! Antes crucificar o morto que deixar morrer o vivo! Ditas essas palavras, manda retirar o corpo de seu esposo do sepulcro e coloca-o na cruz vazia. O soldado usa o engenhoso recurso e no dia seguinte o povo admirado pergunta-se como um morto pode subir até a cruz. A técnica e a arte do conto - 132
Confia teu barco aos ventos / Jamais, porém, teu coração a uma mulher / Porque as ondas são mais firmes / que a fidelidade da mulher. / Não há qualquer mulher boa / ou se alguma vez existiu / não compreendo como algo mal/ possa ser bom alguma vez. As fábulas (do latim fari – falar e do grego phao – contar algo) de Esopo e Fedro constituem uma narrativa de natureza simbólica de uma situação vivida por animais que aludem a uma situação humana e têm por objetivo transmitir certa moralidade. A apresentação de uma exemplaridade espelha a moralidade social da época. Essa moral é fechada, inquestionável. A não-mudança implementada pelas fábulas retrata uma preocupação com a manutenção da ordem estabelecida. Oferece, então, um modelo de comportamento maniqueísta, onde o certo deve ser copiado e o errado, evitado. A presença dos animais deve-se, sobretudo, ao convívio mais efetivo entre homens e animais naquela época. O uso constante da natureza e dos animais para a alegorização da existência humana aproxima o público das moralidades. Apresentam similaridade com a proposta das parábolas bíblicas. Algumas associações entre animais e características humanas, feitas pelas fábulas, mantêm-se fixas em várias estórias e permanecem até os dias de hoje: leão, poder real; lobo, dominação do mais forte; raposa, astúcia e esperteza; cordeiro, ingenuidade. A proposta principal da fábula é a fusão de dois elementos: o lúdico e o pedagógico. As estórias, ao mesmo tempo em que distraem o leitor, apresentam as virtudes e os defeitos humanos através de animais. Acreditam que a moral, para ser assimilada, precisa da alegria e distração contida na estória dos animais que possuem características humanas. Desta maneira, a aparência de entretenimento camufla a proposta didática presente. A fabulação ou afabulação é a lição moral apresentada através da narrativa. O epitímio constitui o texto que explicita a moral da fábula, sendo o cerne da transmissão dos valores ideológicos sociais. Este tipo de texto já aparece no século XVIII a.C., na Suméria. Nascido no Oriente, vai ser reinventado no Ocidente pelo grego Esopo (séc. V a.C.) e aperfeiçoado, séculos mais tarde, pelo escravo romano Fedro (séc. I a.C.), que o enriquece estilisticamente. Entretanto, somente no século X, começa a ser conhecida a fábula latina de Fedro.
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Esopo, fabulista grego antigo, provavelmente vive entre 620 e 560 a.C. e é um escravo libertado da Frigia que relata fábulas personificando animais, transmitidas de forma oral. Esopo permanece mais como personagem legendária que histórica. Ao francês Jean La Fontaine (1621/1692) cabe o mérito de dar a forma definitiva a essa espécie literária mais resistente ao desgaste dos tempos, a fábula, introduzindo-a definitivamente na literatura ocidental. Embora escrevendo para adultos, La Fontaine tem sido leitura obrigatória para crianças de todo o mundo. Podemos citar aqui algumas fábulas de La Fontaine: O Lobo e o Cordeiro, A Raposa e o Esquilo, Animais Enfermos da Peste, A Corte do Leão, O Leão e o Rato, O Pastor e o Rei, O Leão, o Lobo e a Raposa, A Cigarra e a Formiga, O Leão Doente e a Raposa, A Corte e o Leão, Os Funerais da Leoa, A Leiteira e o Pote de Leite. As fábulas de Esopo, contadas e readaptadas por seus continuadores, como Fedro, La Fontaine e outros, são parte de nossa linguagem diária. Estão verdes, dizemos quando alguém quer alcançar coisas impossíveis - o que é a expressão que a raposa usa quando não consegue as uvas... Esopo nunca escreve suas estórias. Conta-as para o povo, que por sua vez se encarrega de repeti-las. Mais de duzentos anos depois da morte de Esopo é que as fábulas são escritas e se reunem às de vários Esopos. Em outros países além da Grécia, em outras civilizações, em outras épocas, sempre se inventam fábulas que permanecem anônimas. Assim, podemos dizer que em toda parte a fábula é um conto de moralidade popular, uma lição de inteligência, de justiça, de sagacidade, trazida até nós pelos nossos Esopos. Três exemplos: A Formiga e a Pomba: - Uma Formiga vai à margem do rio para beber água e, sendo arrastada pela forte correnteza, está prestes a se afogar. Uma Pomba, que está numa árvore sobre a água, arranca uma folha e a deixa cair na correnteza perto dela. A Formiga sobe na folha e flutua em segurança até a margem. Pouco tempo depois, um caçador de pássaros vem por baixo da árvore e se prepara para colocar varas com visgo perto da Pomba, que repousa nos galhos alheia ao perigo. A Formiga, percebendo sua intenção, dá-lhe uma ferroada no pé. Ele repentinamente deixa cair sua armadilha, e isso dá chance para que a Pomba voe para longe a salvo. Moral da estória: quem é grato de coração sempre encontra oportunidades para mostrar sua gratidão. A técnica e a arte do conto - 134
A Galinha e os Ovos de Ouro: - Um camponês e sua esposa possuem uma galinha que todo dia sem falta bota um ovo de ouro. Supondo que dentro dela deve haver uma grande quantidade de ouro, eles a matam para que possam pegar tudo. Então, para sua surpresa, veem que a galinha em nada era diferente das outras galinhas. Assim, o casal de tolos, desejando enriquecer de uma só vez, acaba por perder o ganho diário que tem assegurado. Moral da estória: quem tudo quer acaba ficando sem nada. As Lebres e as Rãs: - As lebres, animais discretos por natureza, se sentem oprimidas com tamanha timidez. Como vivem a temer a tudo e a todos, o tempo todo, resolvem dar um fim às suas angústias. Então, de comum acordo resolvem pôr fim às suas vidas, concluindo que com isso resolvam todos os seus problemas. Combinam que vão pular do alto de um penhasco, para as águas profundas de um lago. Assim correm todas de uma só vez para a beira do penhasco. Várias rãs que repousam à beira do penhasco, ao escutar o barulho das pisadas das lebres, tomadas pelo susto, fogem pulando dentro d água em busca de segurança. Ao ver o desespero das rãs em fuga, uma das lebres diz às suas companheiras: Não façam isso que estão pretendendo, amigas. Sabemos agora que existem criaturas mais medrosas que nós. Moral da estória: é uma ilusão e egoísmo julgarmos que apenas nós temos problemas e que estes são os maiores do mundo. Os romanos, conquistadores dos gregos, seguem os passos de seus predecessores e produzem pouco nas narrativas curtas. No Oriente, As Mil e Uma Noites é a mais monumental compilação de contos do final da Idade Média. Esses contos são a mais traduzida e conhecida literatura árabe depois do Corão. As estórias “Ali Babá e os 40 Ladrões”, “Aladim e a Lâmpada Maravilhosa”, “Simbá, o Marujo” são hoje tão populares como quando são vertidas aos diversos idiomas europeus. Sua influência é perceptível desde Boccaccio e Chaucer. Mas, já antes deles, um extraordinário escritor espanhol, o infante Dom Juan Manuel, inclui em seu Livro de Exemplos mais de um conto árabe, extraído de As Mil e Uma Noites, então reconvertidos da tradição oral. Sherazade, a mágica personagem das Mil e Uma Noites, é o exemplo mais expressivo de sobrevivência através da arte de contar estórias. Graças à sua habilidade, livra-se da sina imposta pelo sultão, conquista o seu coração e faz jus a ser feliz para sempre. Conta a lenda que o sultão Schahriah descobre a infidelidade de sua esposa, manda decapitá-la e resolve nunca mais passar por aquela situação. Desiludido com a traição 13. História do conto - 135
de sua esposa, decide, dali por diante, não dar a nenhuma mulher a chance de repetir o feito. Sempre que desposa uma nova virgem, esta é morta no dia seguinte. Desta forma, ele jamais é traído. Chegando a sua vez de desposar o sultão e sabendo do destino das mulheres que com ele se casam, Scherazade decide não se render sem lutar pela vida. Na fatídica noite, ela inicia uma fantástica estória. Seu esposo fica fascinado com tal narrativa, querendo logo saber o seu desfecho. Scherazade, que é muito esperta, nunca termina o relato, deixando para o dia seguinte a continuação. Essa estória perdura por mil e uma noites, até quando o sultão se vê apaixonado pela narradora e a absolve da morte. E eles vivem felizes para sempre. A trama tecida noite após noite por Sherazade leva muitos escritores - desde Dom Juan Manuel, Boccaccio, Chaucer - a tentar uma imitação buscando alcançar o encantamento árabe. Da Índia antiga lembramos as seguintes obras, de autor desconhecido: Panchatantra (ou cinco livros) e Jataka, duas coleções de fábulas e estórias baseadas nas da Panchatantra. Dos fabulistas e contistas hindus, fica a notícia de um deles, Somadeva, do século X a.C., autor de Oceano de Histórias. Durante o período medieval o conto conhece uma época áurea, com o aparecimento de Giovanni Boccaccio, com Decamerón, em 1353, Margarida de Navarro, com Heptâmeron, Chaucer, com Canterbury Tales, mas seus autores não são conscientes de um padrão de narrativa curta no sentido em que o conto é depois definido e praticado por Poe e Maupassant. Giovanni Bocaccio, escritor italiano nascido em Toscana (1313– 1375), autor de Decamerón – o primeiro livro de contos da literatura universal –, expõe nele 100 contos narrados por três homens e sete mulheres, todos igualmente jovens, que deixam a cidade e se refugiam numa belíssima propriedade no campo, não muito distante, com seus respectivos criados, fugindo da peste bubônica de 1348, que afeta a Itália, como de resto a Europa, causando graves estragos. O cortejo fúnebre é, então, o acontecimento social mais frequente, tornado tão comum a ponto de vulgarizar-se, e, àqueles a quem não abandonou um último anseio de vida, a fuga é a única saída. Os jovens saem às tardes e, sob as sombras das árvores do campo e a paz dos cantos dos pássaros, narram suas estórias sempre com um tema didático ou moral, como é característico da literatura da Idade Média, para divertir e ilustrar a classe plebeia.
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As dez personagens passam as tardes, reunidas no prado verde, tecendo narrativas oralmente. Assim, elas ao longo de dez dias, cada uma assumindo um relato, compõem as cem narrativas do Decamerón, às quais não faltam o lado popular dos antigos contos folclóricos e o tempero constituído pela maliciosa ironia do estilo boccacciano. Estes livros, a Divina Comédia, de Dante Alighieri, os escritos de Petrarca anunciam já o que se chama mais tarde Renascimento, rompendo com a tradição de escritos místicos predominantes na época, apresentando o ser humano como é, uma pessoa com virtudes, sofrimentos, glórias. Seus desejos internos exteriorizam-se - o lascivo, o engano, grandes amores -, enfim, o ser humano nu, não faltando em determinadas ocasiões o cômico e também o trágico. Miguel de Cervantes (1547-1616), romancista, dramaturgo, poeta espanhol, criador de Dom Quixote, obra mais famosa da literatura espanhola, revoluciona a literatura ao utilizar recursos como a ironia e o humor. Embora a reputação de Cervantes se apoie quase que totalmente nas aventuras do cavaleiro das ilusões, Dom Quixote e seu fiel escudeiro, sua produção literária é considerável. Nasce em Alcalá de Henares, uma cidade perto de Madri, em uma família da baixa nobreza. Seu pai é médico e passa a maior parte de sua infância se mudando de uma cidade à outra, enquanto procura por emprego. Após estudar em Madri (1568-1569), vai para Roma a serviço de Guilio Acquavita. Em 1570 se torna soldado, participa na batalha de Lepanto (1571) e durante a batalha é ferido na mão, o que o deixa aleijado da mão esquerda. Cervantes tem muito orgulho da sua participação na famosa vitória e do apelido que ganha - El Manco de Lepanto. Em 1575, parte com seu irmão Rodrigo, na embarcação El Sol, para a Espanha. O navio é capturado pelos turcos, e os irmãos são levados para Algers como escravos. Cervantes passa cinco anos como escravo, até que sua família consegue juntar dinheiro suficiente para pagar seu dono. Cervantes é então liberado em 1580. Em 1584 casa-se com a jovem Catalina de Salazar y Palacios. Durante os próximos 20 anos leva uma vida nômade, trabalhando também como coletor de impostos. Vai à falência e é preso pelo menos duas vezes (1597 e 1602) por irregularidades fiscais. Entre os anos de 1596 e 1600 vive primeiramente em Sevilha. Em 1606 se estabelece em Madri, onde permanece até o resto de sua vida. 13. História do conto - 137
Além do romance Dom Quixote, escrito em duas partes (1605-1615), escreve Calatea (1585), Novelas exemplares (1613), Viagem ao Parnaso (1614) e Os trabalhos de Persiles e Segismunda (1617). Morre em 23 de abril de 1616. Boccaccio é o mestre da prosa vulgar italiana falada pelo povo ou vulgo, e nos séculos XVI e XVII, graças à sua influência, o conto é largamente cultivado, sobretudo na Itália, na Espanha, na França. No século XVIII, refletindo um ambiente em que só a poesia e a prosa doutrinária podem se desenvolver, a ficção em prosa permanece arredia, mas surgem na França Piron, Marmontel e Hamilton, liderados por um dos mestres do conto: Voltaire. Mestre na arte da ironia, exerce-a com inteligência incomum. Sua obra-prima Candido não é um romance e, sim, uma fábula com uma moral em cada página. Desde o final do século XVIII o conto popular mereceu a atenção daqueles que se propunham a estudar as manifestações folclóricas, manifestações espontâneas do povo, isentas do verniz da erudição. Contudo o estudo que causou estrépito maior nos círculos universitários é o trabalho de um russo, Wladimir Propp – complementado, posteriormente, por alguns outros especialistas no assunto –, e que traz, na verdade, o selo de século XX. Propp constatou que as personagens dos contos, variando em idade, sexo, características gerais etc., realizam, em estórias distintas, ações idênticas ou equivalentes, ou que os vários elementos dos contos populares permanecem idênticos em narrativas diversas, ou seja, permanecem invariantes. Tal fato comprova uma estrutura comum a todos os contos folclóricos, uma linguagem fluida e transparente, sendo o que importa é a mensagem a ser transmitida e nada chama a atenção para a linguagem como manifestação artística em si mesma. Por outro lado, o conto como experiência literária, que começa a adquirir autonomia a partir do Romantismo, é um gênero muito controvertido. Exatamente porque a criação de um único indivíduo, inscrevendo-se entre realizações artísticas, o conto, tal como o romance e a poesia modernos, é uma forma igualmente aberta a experimentalismos e inovações, ganhando sempre como arte e esgueirando-se, cada vez mais, de concepções fechadas, normativas e estanques. Os séculos XVIII e XIX fazem da Espanha uma terra baldia literária. O grande conto espanhol que percorre o mundo em palcos e cinemas A técnica e a arte do conto - 138
é escrito por um francês - Prosper Mérimée, que no conto Carmen situa a ação na Andaluzia, mas o escreve em Paris. Os franceses têm de esperar todo o século XIX para que, afinal, surja um dos maiores contistas de todos os tempos, Guy de Maupassant, assombroso autor de sucessivas obras-primas do gênero. Maupassant tem Gustave Flaubert como mestre e Émile Zola como mentor. Mas nenhum dos dois, embora tanto Flaubert como Zola tenham escrito contos memoráveis, consegue superar o discípulo nascido para o conto. Sua influência é enorme em toda parte e tem seguidores ou verdadeiros plagiadores na Inglaterra, nos EUA, na Rússia. Algumas de suas estórias de cunho filosófico e satírico – “Zadig”, “Cândido, o Ingênuo”, “Micrômegas”, “A Princesa da Babilônia” – conferem à narrativa breve a vitalidade antes somente conseguida pelos escritores medievais. O século XIX inaugura-se com uma decidida preferência para a ficção, e o conto vive uma época de esplendor. Ele passa a ser considerado uma forma artística e a ser vastamente cultivado. Abandona o estágio de formas simples, paredes-meias com o folclore e o mito, para ingressar numa fase em que se torna produto estritamente literário. Mais ainda: ganha estrutura e andamento característicos, compatíveis com sua essência e seu desenvolvimento histórico, e transforma-se em pedra de toque para não poucos ficcionistas. Washington Irving, americano, nascido em Nova York, escritor de contos, ensaísta, poeta, biógrafo, colunista, é considerado o pai do conto americano. Começa a construir uma forma literária nova, e, somente por prescindir de uma definição precisa do que seja o conto, não lhe é atribuída a honra de ser o fundador do conto moderno. A publicação de obras no gênero cresce consideravelmente na segunda metade do século XIX: consolida-se o reinado do conto, a dividir a praça com o romance. Na França, onde o conto se aclimata como em parte alguma, grandes contistas avultam nessa quadra: Balzac (1799–1850), autor da Comédia Humana, de A Correspondência, o cultiva excepcionalmente em Contes Drôlatiques (contos jocosos), seguido de Flaubert (1821–1880), autor de Trois Contes, um dos maiores escritores ocidentais, reconhecido como um dos mestres do realismo. Seu livro mais famoso, Madame Bovary, provoca um processo, por ser uma obra considerada execrável. O processo termina com a absolvição do autor em 7 de fevereiro de 1857. O texto fala da traição feminina no casamento. Temos ainda Maupassant (1850-1893), escritor e poeta francês, com predileção para situações psicológicas e de 13. História do conto - 139
crítica social com técnica naturalista: além de romances e peças de teatro, deixa trezentos contos, todos obras de grande valor. Maupassant empresta ao conto uma fisionomia que passa a ser aceita por gerações de imitadores. Talvez seja viável informar que Machado de Assis foi um desses notáveis leitores de Maupassant - mestre, iniciador de uma linhagem e de um tipo de conto (à Maupassant), que deixa obras-primas modelares - Bel Ami, Mademoiselle Fifi e Bola de sebo, as mais famosas. A Pensão Tellier e O Horla podem ser considerados seus contos mais significativos. Além de Maupassant, outros se dedicam ao conto, embora sem o mesmo brilho: Alphonse Daudet, Charles Nodier, Theóphile Gautier, Stendhal, Prosper Mérimée e tantos outros. Fora da Literatura Francesa, ainda se destacam no século XIX Edgard Allan Poe (1809-1849), que inventa com três contos - Os Crimes da Rua Morgue, O Mistério de Marie Roget, A Carta Roubada - a literatura policial (as estórias de crimes e detetives), que são o conto e o romance de mistério. Podemos considerar seus seguidores e discípulos Arthur Conan Doyle, escritor inglês, (1859–1930), criador de As aventuras do Sherlock Holmes, Dashiell Hammett, Raymond Chandler, Agatha Christie; Nicolai Gogol (1809–1852), considerado, juntamente com Poe, o introdutor do conto moderno; Anton Tchekhov (1860–1904), tido como o paradigma dos contistas russos, que escreve duzentas e quarenta e duas estórias repletas de notas de mistério e misticismo, próprios da alma eslava; e Hoffmann (1776-1822), que se notabiliza com seus Contos Fantásticos, muito lidos durante aquele século. Nesse período, muitos contistas, entre eles Arthur Machen, Saki, Roald Dahl, quase todos anglo-saxões, fazem do conto seu habitat, que é como uma casa mal-assombrada desperdiçando a tradição realista iniciada por Chaucer. Todos seguem o ditame de Poe, que estabelece que o conto é uma narração curta em prosa ou uma peça literária que requer de meia a uma hora e meia ou duas de leitura. Na Irlanda, Sheridan le Fanu destaca-se como contista de mistério e terror e sua coleção In a Glass Darkly é um dos clássicos do conto de terror como horror. Seu correspondente na América do Norte é mais tarde H.P. Lovecraft, um precursor da ficção científica, gênero praticamente inventado por H. G. Wells na Inglaterra. A ficção científica encontra no conto sua forma perfeita para uma arte imperfeita. Ressaltamos que todos os mestres do conto de horror anglo-saxão têm também em Poe seu antecessor primordial. A técnica e a arte do conto - 140
Rudyard Kipling (1865-1936), talvez o maior contista inglês de todos os tempos, é para a Inglaterra o que Maupassant foi para a França e Tchekhov para a Rússia: um contista natural. Começa publicando em jornais indianos e, quando afinal vem para Londres, então o centro do universo literário, tem apenas vinte anos. Em 1907 ganha o Prêmio Nobel de Literatura. Kipling cultiva todas as modalidades do conto, do monólogo à conversa, sendo alguns de seus contos feitos inteiramente de digressões, como queria Sterne, mas também de invenções memoráveis, e muito antes que Conrad ou Somerset Maugham tenham descoberto o exótico do Oriente, ele o vive, por ter nascido em Bombaim. É na Rússia que Maupassant encontra um rival extraordinário, Anton Tchekhov, que começa contando anedotas e piadas na imprensa e acaba transpondo seus principais contos para o teatro, com uma arte inesperada. Tchekhov é um admirador de Tolstoi, que escreve contos como relatórios de guerra e é contemporâneo de outro mestre cultivador da forma breve, Ivan Turgueniev. Mas a influência maior no autor de A Dama do Cachorrinho e A Cigarra é, evidentemente, Maupassant. De Tchekhov derivam Gorki e todos os contistas russos do início do século XX, que parecem brotar da terra russa. Outro seguidor de Tchekhov é, na Inglaterra, Somerset Maugham (1874-1965), famoso romancista e dramaturgo britânico, mestre do conto inglês e mundial. Continua sendo um autor com uma popularidade que se estende aos palcos e às telas: várias obras-primas do cinema, como A Carta (do diretor William Wyler, de 1940), se baseiam em seus contos. Somerset Maugham, em seus contos exóticos, é influenciado pelas narrações dos costumes indígenas e habitantes das ilhas do Pacífico, e ele tem influência sobre outros contistas, sobretudo evidente nos contos urbanos de John Cheever e John Updike, típicos produtos da revista The New Yorker. James Joyce (1882-1941), escritor irlandês expatriado, escritor notável, grande contista, é considerado um dos autores de maior relevância do século XX. Autor de Dublinenses (contos) e dos romances Retrato do Artista Quando Jovem, Ulisses, Finnicius Revém. Seu livro The Dead é uma obra-prima e um dos grandes contos escritos em inglês. No século XX, Franz Kafka (1883-1924) inventa a fábula com moral teológica ou metafísica e surge como um dos escritores mais originais, 13. História do conto - 141
podendo ser lido com verdadeiro deleite literário. Sua influência se faz sentir em escritores judeus, como Isaac Bashevis Singer, em escritores thecos, como Milan Kundera. Bruno Schulz, judeu como Kafka, seu sucessor, polonês, assassinado por um tenente nazista, apenas por estar parado numa esquina sem fazer nada, mostra uma delicada originalidade em Lojas de Canela: uma visão da vida judia numa cidadezinha da Polônia, que oscila entre a magia e um doce realismo. Franz Kafka, romancista, contista, é um dos maiores escritores de língua alemã do século XX, um ícone da Literatura Ocidental. Metamorfose e O Processo são suas principais obras. O adjetivo kafkiano passa a denotar circunstâncias mundanas, absurdas, irreais, do tipo encontrado geralmente na sua obra. O conto americano do século XX nada deve a Maupassant, mas sim a Tchekhov. Seu renascimento lembra mais Twain do que Poe e começa como ocorre com Twain, com uma literatura regional que pula as fronteiras do Meio-Oeste para chegar a Nova York e daí ao mundo. Seu pioneiro Sherwood Anderson (1876 - 1941) é autor de Winesburg, que contém uma nova visão do mundo adolescente num lugarejo de Ohio, e sua linguagem é entre ingênua e sábia. É patrocinador de William Faulkner e modelo de Ernest Hemingway. Faulkner (1897-1962) é famoso como romancista, poeta, mas escreve meia dúzia de contos memoráveis. Graças a Anderson publica seu primeiro romance. É considerado um dos maiores escritores norte-americanos do século XX. Prêmio Nobel de Literatura em 1949, ganha, posteriormente, o National Book Awards de 1951 com Collected Stories e o prêmio Pulitzer em 1955 por A Fable. Utiliza a técnica de fluxo de consciência consagrada por James Joyce, Virgínia Woolf e Thomas Mann. Faulkner narra a decadência do sul dos EUA, interiorizando-a em suas personagens, a maioria delas vivendo situações desesperadoras no condado imaginário de Yoknapatawpha. Por muitas vezes descreve múltiplos pontos de vista (não raro, simultaneamente) e impõe bruscas mudanças de tempo narrativo. Hemingway (1899-1961), escritor norte-americano, trabalha como correspondente de guerra em Madrid durante a Guerra Civil Espanhola, e a experiência inspira uma de suas maiores obras, Por Quem Os Sinos Dobram. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, se instala em Cuba. É mais contista que romancista e um artista que renova a prosa moderna americana com seus diálogos sofisticados, que são de uma maestria ainda atual. A técnica e a arte do conto - 142
Seu conto Os Assassinos, em que apenas com o diálogo se oferece uma amostra do mal sob a forma de uma conversa aparentemente aleatória, revela uma violência que nunca se faz. Desse breve conto parte a renovação do romance policial com Hammett e Chandler. Dos grandes escritores americanos do século XX, Scott Fitzgerald (1896–1940) é o único que frequenta a universidade, mas nunca chega a se formar. John Steinbeck (1902-1968), autor de A Leste do Paraíso e As Vinhas da Ira, e William Faulkner são autodidatas e contistas respeitáveis, mas, à exceção de Hemingway, cultivam o romance e com ele se notabilizam. Fitzgerald, festejado pela crítica com O Grande Gatsby, é favorecido pelo cinema em produções coloridas e em preto-e-branco, com Alan Ladd, o perdedor nato, e com Robert Redford. Devemos ler seu conto O Diamante do Tamanho do Ritz, que faz parte de seu livro Contos da Era do Jazz, e suas coletâneas All the Sad Young Men e Taps at Reveille. Depois de sua morte, são publicados dois volumes de contos, Afternoon of an Author e The Pat Hobby Stories, uma compilação surpreendentemente leve para um tema dolorosamente autobiográfico: as aventuras e desventuras de um escritor de aluguel em Hollywood, onde o autor morre. Faulkner, como Fitzgerald, também é alcoólatra e, como Fitzgerald, também vai a Hollywood e serve ao diretor Howard Hawks. Mais esperto ou mais duro de domar, Faulkner vai a Hollywood, mas, assim que recebe seu dinheiro, volta correndo para Oxford. Não para a universidade inglesa, mas para o pobre povoado do Mississipi onde nasce e morre no mais profundo e racista Sul. Ao contrário de Fitzgerald e Hemingway, Faulkner é um reacionário público e um liberal privado. Dessas tensões são feitos não apenas seus romances, mas os muitos contos que ele escreve. Alguns de seus romances, como Palmeiras Selvagens, Desça, Moisés, são feitos de contos mais ou menos longos, entre os quais algumas obras-primas, como O Urso. Outras de suas narrações breves, como A Rose for Emily e Barn Burning, constam de todas as antologias e integraram a seleção feita pelo próprio Faulkner em suas Selected Stories. William Faulkner chega a publicar um livro de contos detetivescos. Chama-se Knight’s Gambit, e seu fio condutor é uma atividade que ninguém associa ao narrador de Enquanto Agonizo e O Som e a Fúria: o xadrez. Tão contraditório quanto Faulkner é John Steinbeck: inicialmente, comunista; depois, liberal; e, mais tarde, um dos defensores mais ferrenhos do presidente Johnson e da Guerra do Vietnã. 13. História do conto - 143
Além de seus grandes êxitos novelísticos, como Vinhas da Ira, obraprima popularizada em todo o mundo por John Ford, Steinbeck escreve e publica muitos contos, e seu segundo livro, Pastagens do Céu, é uma coleção de contos. Seus contos O Cavalinho Vermelho e seus contos longos, como Ratos e Homens e A Pérola, são obras-primas do gênero novela, que parece ter sido inventado pelos escritores americanos, de Henry James, com A Volta do Parafuso, a Hemingway, com O Velho e o Mar. Outro escritor contemporâneo desses autores é um jornalista e um contista nato: o risonho e frágil Ring Lardner (1885–1933), que influencia todos os mestres do humor americano que o sucedem. Seu verdadeiro nome, Ringgold Wilmer Lardner, nasce no Michigan, filho de uma família abastada, com pouca apetência pelo estudo, faz uma passagem meteórica por uma faculdade de engenharia, passa por uma série de empregos, centra-se no jornalismo, onde colabora em mais de uma centena de jornais, com mais de quatro mil artigos, num estilo jocoso e satírico. Em 1914, começa uma longa colaboração com The Saturday Evening Post, onde aparece a maioria de seus contos em que se destacam os melhores reunidos em The Love Nest e Round Up. Autor extremamente popular e amado, pelo seu humor corrosivo sempre mitigado por um olhar simultaneamente terno e cúmplice sobre as personagens, mesmo as mais ridículas e mesquinhas. Lardner embarca numa missão impossível - criar o conto de humor absurdo -, adquire tuberculose, se autodestrói com o álcool e morre em 1933. Lardner, contudo, tem colegas de mérito, como James Thurber, Robert Benchley, Dorothy Parker e John O‘Hara, talvez o maior mestre entre eles. Outro grande contista contemporâneo, Vladimir Nabokov (18991977), escreve contos perfeitos que, curiosamente, são quase todos publicados pela primeira vez na revista New Yorker. Acaba de sair no Brasil o livro Os contos completos de Vladimir Nabokov, e entre eles há pelo menos meia dúzia de obras-primas do gênero. Nasce numa família da antiga aristocracia russa em 1899, mas a instabilidade produzida pela revolução bolchevique em 1919 obriga-o a abandonar a União Soviética. Estuda em Cambridge e licencia-se em literatura russa e francesa. Muda-se para Berlim, onde inicia sua produção literária e intenso trabalho como tradutor. Em 1926, publica seu primeiro romance, Maria, acolhido com interesse e consideração. Foge dos exércitos nazistas e, após uma estadia em Paris, chega em 1940 aos A técnica e a arte do conto - 144
Estados Unidos, onde se dedica ao ensino em várias universidades. Embora continue a escrever na sua língua materna, começa também a escrever em inglês e publica o seu primeiro romance nesta língua em 1941, The Real Life of Sebastian Knight. Publica em 1955 o polêmico - porque lida com o problema da pedofilia - romance Lolita em inglês. A partir de 1958, o sucesso alcançado pelos seus livros lhe permite se dedicar inteiramente aos seus principais interesses, a literatura e a entomologia. Três dos maiores contistas cubanos - Hernández Catá, Carlos Montenegro, Lino Novás Calvo - nascem na Espanha: em Castela e na Galícia, respectivamente. Lino Novás é o verdadeiro criador do chamado realismo mágico. Aparece pela primeira vez num conto dele, Aquella Noche Salieron los Muertos, muito antes que Alejo Carpentier formule sua teoria estética do real maravilhoso. Horacio Quiroga, considerado o fundador do conto sul-americano, nasce na cidade de Salto, no Uruguai, no último dia de 1878. Vive durante muitos anos em Buenos Aires, onde conhece Jorge Luiz Borges e Leopoldo Lugones, entre outros escritores da época. Tem uma existência trágica, patente na sua obra, marcada pela falta de meios econômicos, matrimônios turbulentos, suicídios e mortes acidentais, incluindo a do seu melhor amigo com uma bala disparada num acidente de caça. Perde o pai, quando este caça patos na fronteira do Uruguai com a Argentina. Seu padrasto suicida-se pouco depois. Casa-se e, não muito depois da lua-de-mel, é a vez de sua esposa se suicidar. Casa-se mais uma vez, sua nova mulher sobrevive a ele. Doente de câncer da próstata, Quiroga escolhe o suicídio. Horacio Quiroga era um dependente de morfina e da literatura de Poe. Um de seus livros de conto, Anaconda encontra-se dividido em duas partes distintas. Na primeira reúne contos em que a natureza se apresenta como força contrária aos desejos humanos. Na narrativa que dá título à coletânea, os répteis reúnem-se para impedir o estabelecimento de um laboratório em plena selva. O Simum, Glória Tropical, O Yaciyateré ou A Noite partilham a mesma raiz de confronto entre o homem e a natureza. Os contos presentes na segunda parte abordam temáticas variadas mantendo o recurso obsessivo e delirante ao efeito do pavor, da surpresa e do humor. Outro se chama A Galinha Degolada, e no conto que dá título e tom ao volume, dois irmãos gêmeos, ambos idiotas, têm uma linda irmãzinha. Mas os dois irmãos veem - ou melhor, observam - a mãe degolar uma ga13. História do conto - 145
linha para o jantar. Eles provam que a imitação é a mãe da experiência e cortam o pescoço da irmãzinha. Outro escritor expressivo de contos é Adolfo Bioy Casares (19141999), escritor argentino, muitas vezes associado a Jorge Luis Borges só porque são amigos e colaboram em empresas narrativas. Bioy, porém, continua escrevendo depois da morte de Borges e é cada vez mais individual e distinto, não apenas no porte, mas na escritura. Sua narrativa cria um mundo de ambientes fantásticos regidos por uma lógica peculiar e marcados por um realismo de grande verossimilhança. Escreve a mais comovente e perfeita estória de amor da literatura em espanhol do século XX. Chama-se A Invenção de Morel, e embora alguns a chamem de romance, é uma novela ou conto longo. Jorge Luis Borges (1899-1986), escritor, poeta, ensaísta, argentino, mundialmente conhecido por seus contos (31), estuda e vive na cidade suíça de Genebra, onde fica sepultado, por opção pessoal. Sua obra se destaca por abordar temáticas como filosofia (e seus desdobramentos matemáticos), metafísica, mitologia e teologia, em narrativas fantásticas onde figuram os delírios do racional, expressos em labirintos lógicos e jogos de espelhos. Ao mesmo tempo, Borges também aborda a cultura dos Pampas argentinos, em contos como O morto, Homem da esquina rosada, O sul. Lida com campanhas militares históricas, como a guerra argentina contra os índios durante a presidência, entre outros, do escritor Domingo Faustino Sarmiento; trata-as, porém, como pano de fundo para criações fictícias, como em História do Guerreiro e da Cativa. E rende homenagem à literatura pregressa de seu país em contos em que se apropria do mitológico Martín Fierro: Biografia de Tadeo Isidoro Cruz, O fim. Entre seus contos mais conhecidos e comentados, citamos A Biblioteca de Babel, O Jardim de Veredas que se Bifurcam, Pierre Menard, Funes, O Memorioso, O Zahir, A escrita do Deus, O Aleph. A partir da década de 1950, afetado pela progressiva cegueira, Borges passa a se dedicar à poesia, produzindo obras notáveis como A cifra, Atlas, Os conjurados, sua última obra. Também produz prosa - Outras Inquisições, ensaios - O livro de contos Areia. Borges é um ávido leitor de enciclopédias. Em uma memorável palestra sobre O Livro em 1978, Borges comenta a felicidade em ganhar A técnica e a arte do conto - 146
a enciclopédia alemã Enzyklopadie Brockhaus, edição de 1966. Lamenta não poder ver as letras góticas nem os mapas e ilustrações, entretanto sente uma relação amistosa com os livros. Sua preferida era a IX edição da Britânica, como diz em uma das inúmeras entrevistas que dá. É um escritor excepcional. Ele sozinho, em sua remota Buenos Aires, faz do conto toda uma literatura e até mais, uma teoria literária. São contos não para ler, e sim para reler, recordar, memorizar e sempre nos assombrar. Não só com sua cultura e seu humor, mas também com sua arte narrativa. O oportunismo político o priva do Prêmio Nobel que ele tanto almeja. A Literatura brasileira tem sua história dividida em duas grandes eras, que acompanham a evolução política e econômica do país: a Colonial e a Nacional, separadas por um período de transição correspondente à emancipação política do Brasil. Antes do descobrimento do Brasil, os índios possuíam, naturalmente, seu arsenal de lendas e mitos, transmitidos de pais a filhos, do mesmo modo que o conto popular. Os primeiros portugueses devem, também, ter trazido seus contos. A Era Colonial abrange o Quinhentismo (de 1500, ano do descobrimento, a 1601), o Seiscentismo ou Barroco (de 1601 a 1768), o Setecentismo (de 1768 a 1808) e o período de Transição (de 1808 a 1836). A Era Nacional, por sua vez, envolve o Romantismo (de 1836 a 1881), o Realismo (de 1881 a 1893), o Simbolismo (de 1893 a 1922), o Modernismo (de 1922 a 1945). A partir de então, entra-se na fase da contemporaneidade da literatura brasileira. O Quinhentismo é a denominação genérica de todas as manifestações literárias ocorridas no Brasil durante o século XVI, correspondendo à introdução da cultura européia em terras brasileiras. Nele demonstra-se o momento histórico vivido pela Península Ibérica, abrangida por uma literatura informativa e uma literatura dos jesuítas, como principais manifestações literárias no século XVI. A literatura informativa, também chamada de literatura dos viajantes ou dos cronistas, reflexo das grandes navegações, empenha-se em fazer um levantamento da terra nova, de sua flora, fauna, de sua gente. É, portanto, uma literatura meramente descritiva e, como tal, sem grande valor literário. O melhor exemplo da escola quinhentista brasileira é Pero Vaz de Caminha, que escreve a Carta a El Rei Dom Manuel sobre o descobrimento do Brasil. O texto, além de seu inestimável valor histórico, é um 13. História do conto - 147
trabalho de bom nível literário, que mostra o duplo objetivo dos portugueses em suas aventuras marítimas: a conquista dos bens materiais e a propagação da fé cristã. A principal preocupação dos jesuítas é com o trabalho de catequese, objetivo que determina toda a sua produção literária. Mesmo assim, do ponto de vista estético, é considerada a melhor produção literária do Quinhentismo brasileiro. Além da poesia de devoção, os jesuítas cultivam o teatro de caráter pedagógico, baseado nos trechos bíblicos, e as cartas que informam aos superiores na Europa sobre o andamento dos trabalhos na colônia. Seu principal representante é o Padre José de Anchieta (1534-1597), que vem para o Brasil em 1553 e, no ano seguinte, funda um colégio no planalto paulista, a partir do qual surge a cidade de São Paulo. Ao realizar exaustivo trabalho de catequese, José de Anchieta deixa grande herança literária: a primeira gramática do tupi-guarani; várias poesias no estilo do verso medieval; e diversos autos (segundo modelo deixado pelo poeta português Gil Vicente), que agregam à moral religiosa católica os costumes dos indígenas, sempre com a preocupação de caracterizar os extremos, como o bem e o mal, o anjo e o diabo. O Barroco no Brasil tem seu marco inicial em 1601, com a publicação do poema épico Prosopopéia, de Bento Teixeira (1561-1600), que introduz o modelo da poesia camoniana em nossa literatura. Uma das principais referências do Barroco brasileiro é Gregório de Matos Guerra (1623-1696), poeta baiano que cultiva com a mesma beleza tanto o estilo cultista (linguagem rebuscada, extravagante) quanto o conceptista (linguagem que explora o jogo de ideias, de conceitos). Embora Gregório de Matos mexa com as estruturas morais da época e a tolerância de muita gente, ninguém angaria tantas críticas e inimizades quanto o Padre Antônio Vieira (1608-1697), autor de invejável volume de obras literárias, inquietantes para os padrões da época. Politicamente, Vieira tem contra si: a pequena burguesia cristã (por defender o capitalismo judaico e os cristão-novos); os pequenos comerciantes (por defender o monopólio comercial); e os administradores e colonos (por defender os índios). Essas posições, principalmente a defesa dos cristãonovos, custam a Vieira uma condenação da Inquisição, e fica preso de 1665 a 1667. A obra do Padre Antônio Vieira pode ser dividida em três tipos de trabalhos: profecias, cartas e sermões. A técnica e a arte do conto - 148
O termo Barroco denomina genericamente todas as manifestações artísticas dos anos de 1600 e início dos anos de 1700. Além da literatura, estende-se à música, pintura, escultura, arquitetura da época. O Arcadismo no Brasil começa no ano de 1768, com dois fatos marcantes: a fundação da Arcádia Ultramarina e a publicação de Obras, de Cláudio Manuel da Costa (1729-1789). A escola setecentista desenvolve-se até 1808, com a chegada da Família Real ao Rio de Janeiro, que, com suas medidas político-administrativas, permite a introdução do pensamento pré-romântico no Brasil. Pode-se dizer que a falta de substitutos para o Padre Antônio Vieira e Gregório de Matos, mortos nos últimos cinco anos do século XVII, constitui também um aspecto motivador do surgimento do Arcadismo no Brasil. Suas características no país seguem a linha européia, com a volta aos padrões clássicos da Antiguidade e do Renascimento; a simplicidade; a poesia bucólica, pastoril; o fingimento poético; o uso de pseudônimos. Quanto ao aspecto formal, a escola é marcada pelo soneto, os versos decassílabos, a rima optativa, a tradição da poesia épica. O Arcadismo tem como principais nomes: Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), José de Santa Rita Durão (1722-1784), Basílio da Gama (1740 -1795). O Romantismo tem início no Brasil em 1836, quando Gonçalves Magalhães (1811-1882) produz o texto Ensaio sobre a História da Literatura no Brasil, espécie de manifesto romântico, publicado em Paris, na Niterói - Revista Brasiliense. No mesmo ano, lança o livro, de poesias românticas, intitulado Suspiros Poéticos e Saudades. É difícil precisar o momento em que surgiu entre nós o primeiro conto com características genuinamente literárias. Mas, durante as primeiras décadas do século XIX, mais precisamente a partir de 1830/1840, aparecem com certa frequência na imprensa cotidiana produções muito próximas do gênero. Isto significa dizer que o conto, em sua feição literária, surge entre nós quando aqui se firmam os ecos do Romantismo, movimento artístico que já varre na época de ponta a ponta a velha Europa. O livro Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, publicado em 1855, pode ser considerado a primeira expressão verdadeiramente literária do conto brasileiro. Esse conto lembra a estrutura do Decameron, de Boccacio: um grupo de pessoas reunidas numa taverna narra, cada uma, estranhas estórias que trazem a marca de um romantismo exacerbado, 13. História do conto - 149
em que o senso do mistério, a atmosfera macabra, satânica e uma profunda descrença na vida – componentes do indefinível e vago mal do século – constroem o cenário. Podem ser identificadas três gerações no Romantismo brasileiro: geração nacionalista ou indianista, geração do mal do século e geração condoreira. A primeira, geração nacionalista ou indianista, é marcada pela exaltação da natureza, volta ao passado histórico, medievalismo, criação do herói na figura do índio, sentimentalismo, religiosidade, destacandose Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias (1823-1864) como seus principais autores. A segunda, geração do mal do século, também chamada geração byroniana, é impregnada de egocentrismo, negativismo boêmio, pessimismo, dúvida, desilusão adolescente, tédio constante. Seu tema preferido é a fuga da realidade, que se manifesta na idealização da infância, nas virgens sonhadas, na exaltação da morte. Os principais poetas dessa geração foram Álvares de Azevedo (1831-1852), Casimiro de Abreu (18391860), Junqueira Freire (1832-1855) e Fagundes Varela (1841-1875). A terceira, geração condoreira, caracteriza-se pela poesia social e libertária e reflete as lutas internas da segunda metade do reinado de D. Pedro II. O termo condoreirismo é consequência do símbolo de liberdade adotado pelos jovens românticos: o condor, pássaro que habita o alto da cordilheira dos Andes. Seu principal representante foi Castro Alves (18471871), seguido por Tobias Barreto (1837-1889), Sousândrade (1833-1902). Duas outras variações literárias do Romantismo merecem destaque: a prosa e o teatro romântico. Cronologicamente, o primeiro romance brasileiro é O filho do Pescador, publicado em 1843, de autoria de Teixeira de Souza (1812-1881). Mas, por se tratar de um romance de trama confusa, que não serve para definir as linhas que o romance romântico segue na literatura brasileira, considera-se A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), publicado em 1844, como o primeiro romance brasileiro. Entre os principais autores do Romantismo em prosa brasileiros encontram-se Bernardo Guimarães (1825-1884), Franklin Távora (18421888), José de Alencar (1829-1877), Manuel Antônio de Almeida (18311861), Alfredo D’Escragnolle Taunay, o Visconde de Taunay. No teatro, destacam-se Martins Pena (1815-1848) e Paulo Eiró (1836-1871).
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No que se refere ao conto, no Brasil, com a abertura representada pela proposta literária do Modernismo, tantas são as discussões acerca do que é ou não é conto que o escritor paulista Mário de Andrade (18931945) começa o primeiro conto do livro Contos Novos ironizando: - Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade. O Realismo reflete as profundas transformações econômicas, políticas, sociais, culturais, da segunda metade do século XIX. O Brasil também passa por mudanças radicais tanto no campo econômico quanto no político-social, no período compreendido entre 1850 e 1900, embora com profundas diferenças materiais, se comparadas às da Europa. A expressão Realismo é uma denominação genérica da escola literária, que abriga três tendências distintas: romance realista, romance naturalista e poesia parnasiana. Considera-se 1881 como o ano inaugural do Realismo no Brasil, com a publicação de dois romances fundamentais, que modificam o curso da literatura brasileira: Memórias Póstumas de Brás Cubas, com autoria de Machado de Assis (1839-1908), o primeiro romance realista de nossa literatura, e O mulato, de Aluísio Azevedo (1857-1913), considerado o primeiro romance naturalista do Brasil. O romance realista é exaustivamente cultivado no Brasil por Machado de Assis, um dos mais importantes escritores brasileiros. Suas principais obras incluem também Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó. Trata-se de uma narrativa preocupada com a análise psicológica e com a crítica da sociedade a partir do comportamento de determinadas personagens. A narrativa naturalista é marcada pela forte análise social, a partir de grupos humanos marginalizados, valorizando o coletivo. Tal estilo foi cultivado no Brasil por Aluísio Azevedo e Júlio Ribeiro (1845-1890). Destacam-se ainda entre os naturalistas os escritores Adolfo Caminha (1867-1897), Domingos Olímpio (1850-1906), Inglês de Sousa (1853-1918), Manuel de Oliveira Paiva (1861-1892). Raul Pompéia (1863-1895) também pode ser incluído nessa relação, mas seu caso é muito particular, pois seu romance O Ateneu ora apresenta características naturalistas, ora realistas, ora impressionistas. O Parnasianismo é a manifestação poética do Realismo, embora ideologicamente não mantenha todos os pontos de contato com os romancistas realistas e naturalistas. Seus poetas estão à margem das grandes transformações do final do século XIX e início do século XX. A poesia 13. História do conto - 151
parnasiana preocupa-se com a forma e a objetividade, sendo sua forma fixa representada pelos sonetos com rimas ricas, métricas, perfeitas. Entre os principais autores parnasianos encontram-se: Olavo Bilac (1865-1918), chamado o Príncipe dos Poetas; Raimundo Correa (1859-1911); Vicente de Carvalho (1866-1924); Alberto de Oliveira (1857-1937). O Simbolismo, em termos genéricos, reflete um momento histórico complexo, que marca a transição para o século XX e a definição de um novo mundo, consolidado a partir da segunda década deste século. Tem início no Brasil em 1893, com a publicação de dois livros: Missal (prosa) e Broquéis (poesia), ambos do poeta Cruz e Sousa (1863-1898). O início do Simbolismo não pode ser entendido como o fim da escola anterior, o Realismo, pois no final do século XIX e início do século XX, três tendências caminham paralelas: Realismo, Simbolismo, PréModernismo. É a Semana de Arte Moderna, em 1922, que traça, de forma definitiva, novos rumos para a literatura do Brasil. Além de Cruz e Sousa, também se destaca o escritor Alphonsus de Guimarãens (1870-1921), como representante do simbolismo na literatura brasileira. Apesar de não constituir o pré-modernismo uma escola literária, por apresentar individualidades muito fortes, estilos às vezes antagônicos - como é o caso de Euclides da Cunha (1866-1909) e Lima Barreto (1881-1922), percebem-se alguns pontos comuns entre as principais obras pré-modernistas: são inovadoras, apresentando ruptura com o passado e com o academicismo; primam pela denúncia da realidade brasileira; acentuam o regionalismo; difundem os tipos humanos marginalizados - o sertanejo nordestino, o caipira, os funcionários públicos, o mulato; e traçam uma ligação entre os fatos políticos, econômicos, sociais, contemporâneos, aproximando a ficção da realidade. Lima Barreto torna-se presença frequente na imprensa dos princípios do século XX, retratando com desconcertante honestidade intelectual a vida suburbana carioca. De tal modo que seus textos revelam a patética condição de vida da gente miúda dos bairros pobres do Rio de Janeiro, fazendo a crítica de nossa apatia, a denúncia de nossa omissão e macaqueação dos modelos estrangeiros, que são até hoje de uma atualidade admirável. Os contos de Lima Barreto, reunidos no livro Histórias e Sonhos, em 1920, formam, ao lado de seus romances, uma literatura de combate, revelando sempre a revolta do autor contra os grandes e sua expressiva simpatia pelos humildes. O seu estilo direto e sem rodeios, destes que se chamam subversivos, porque vão fundo nas mesquinharias e “dão nome aos bois”, até hoje constitui uma espécie de desafio para A técnica e a arte do conto - 152
qualquer escritor que se proponha fazer a sátira da situação social e política do Brasil. Lima Barreto significa uma abertura para o Modernismo, pelo vigor de sua crítica e pelo ângulo escolhido por ele para retratar a gente de sua terra. Podemos dizer que o Pré-Modernismo começa em 1902, com a publicação de dois livros: Os sertões, de Euclides da Cunha, e Canaã, de Graça Aranha (1868-1931). Os escritores desse período acabam produzindo uma redescoberta do Brasil, mais próxima da realidade, e pavimentam o caminho para o período literário seguinte, o Modernismo, iniciado em 1922, que acentua de vez a ruptura com o que até então se conhece como literatura brasileira. Além dos autores já citados, também se destacam Monteiro Lobato (1882-1948), Augusto dos Anjos (1884-1914), Raul de Leoni (1895-1926), como expoentes do pré-modernismo na literatura brasileira. O Modernismo, como tendência literária, ou estilo de época, tem seu prenúncio com a realização da Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo, nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922. Idealizada por um grupo de artistas, a Semana pretende colocar a cultura brasileira a par das correntes de vanguarda do pensamento europeu, ao mesmo tempo em que prega a tomada de consciência da realidade brasileira. Em sua primeira fase, abrangendo o período de 1922 a 1930, o movimento modernista apresenta-se mais radical. Simultaneamente procura o moderno, o original, o polêmico; o nacionalismo se manifesta em suas múltiplas formas. Entre os principais autores dessa primeira fase do Modernismo, que continuam a produzir nas décadas seguintes, destacam-se Mário de Andrade (1893-1945), Oswald de Andrade (1890-1954), Manuel Bandeira (1886-1968), Antônio de Alcântara Machado (1901-1935), Cassiano Ricardo (1895-1974), Guilherme de Almeida (1890-1969), Menotti Del Picchia (1892-1988), Plínio Salgado (1901-1975). Em sua segunda fase, no período que vai de 1930 a 1945, o movimento registra a estreia de alguns dos nomes mais significativos da poesia e da prosa brasileira. Na poesia destacam-se Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Cecília Meirelles (1901-1964), Murilo Mendes (1901-1975), Jorge de Lima (1895-1953), Vinícius de Moraes (1913-1980), Augusto Frederico Schmidt (1906-1965). Na prosa, Érico Veríssimo (19051975), Graciliano Ramos (1892-1953), Jorge Amado (1912-2001), José Lins do Rego (1901-1957), Marques Rebelo (1907-1973) e Rachel de Queiroz (1910-2003), entre outros. 13. História do conto - 153
O conto dos escritores modernistas é essencialmente urbano, e eles propõem, na literatura como um todo, a renovação das formas, a ruptura com a linguagem tradicional, a renovação dos meios de expressão. O Pós-Modernismo insere-se no contexto dos extraordinários fenômenos sociais e políticos de 1945, o ano que assiste ao fim da Segunda Guerra Mundial e ao início da Era Atômica. O mundo passa a acreditar numa paz duradoura, mas logo depois se inicia a Guerra Fria. A prosa brasileira, tanto nos romances como nos contos, aprofunda a tendência em busca de uma literatura intimista, de sondagem psicológica, introspectiva, com destaque para Clarice Lispector (1925-1977), que, em 1944, publica seu primeiro livro, o romance Perto do Coração Selvagem, e que se revela posteriormente grande contista em Felicidade Clandestina, Laços de Família, A Imitação da Rosa, A Legião Estrangeira, e para Guimarães Rosa, que em 1946 publica Sagarana e segue com Primeiras Estórias, Tutaméia: Terceiras Estórias, Estas Estórias (edição póstuma) e Grande Sertão: Veredas, essa, uma das maiores obras da Humanidade. Luzia de Maria (31) assim descreve o texto do genial escritor: ... Um texto que revitaliza todos os recursos da expressão, que faz poesia escrevendo prosa, que reinventa a língua e inaugura a poética a partir de um extraordinário domínio do idioma e de um profundo conhecimento da gente que habita o Brasil interiorano e esquecido... Com Guimarães Rosa, o regionalismo adquire uma nova dimensão, com sua produção fantástica e sua recriação dos costumes e da fala sertaneja, penetrando fundo na psicologia do jagunço do Brasil central. Na poesia, ganha corpo, a partir de 1945, uma geração de poetas que se opõe às conquistas e inovações dos modernistas de 1922. Essa geração de escritores nega a liberdade formal, as ironias, as sátiras modernistas e parte para uma poesia mais equilibrada e séria. A preocupação primordial é quanto ao restabelecimento da forma artística. Esse grupo, chamado de Geração de 45, é formado, entre outros poetas, por Lêdo Ivo (1924), Péricles Eugênio da Silva Ramos (1919) e Geir Campos (1924). O final dos anos 40, no entanto, revela um dos mais importantes poetas da nossa literatura, não filiado esteticamente a qualquer grupo e aprofundador das experiências modernistas anteriores: João Cabral de Melo Neto (1920). Contemporâneos dele, e com alguns pontos de contato com sua obra, destacam-se Ferreira Gullar (1930) e Mauro Mota (1912-1984). A fase Contemporânea inicia-se nas décadas de 60 e 70, quando as influências exercidas pela imprensa escrita, revistas, televisões levam o A técnica e a arte do conto - 154
conto a um ponto de praticamente perder sua identidade: sendo quase tudo, passa a ser quase nada. Procura-se evitar rebuscamentos na linguagem, a narrativa é mais objetiva, a frase torna-se mais curta, a comunicação mais breve. As obras e os movimentos literários dessa época refletem um momento histórico caracterizado inicialmente pelo autoritarismo, por rígida censura, enraizada autocensura, mas de produção cultural bastante intensa em todos os setores. Na poesia percebe-se a preocupação em manter uma temática social e um texto participante. No romance, ao lado da produção de Jorge Amado e Érico Veríssimo, conserva-se o regionalismo de Mário Palmério (1916-1994), Bernardo Élis, Antônio Calado (1917), Josué Montello (1917), José Cândido de Carvalho (1914) e José Mauro de Vasconcelos (1920-1984). A prática literária revela-se excelente exercício de reflexão sobre a situação do Homem no mundo, sobre a situação do intelectual-escritor na sociedade, sobre a situação do operário frente ao sistema capitalista, sobre a situação do Brasil no plano mundial. Essa preocupação com o social, com as relações entre os homens no mundo contemporâneo, comprova uma extensa lista de contistas, para os quais o desamparo do homem sem nome na sociedade moderna é a razão maior de cada página. O modo violento de narrar, escolhido por Rubem Fonseca; a elaboração crítica da tragédia doméstica, em Dalton Trevisan; a exploração dos submundos, presente em João Antônio; a configuração alegórica de um universo despoetizado, nos textos de Victor Giudice e Moacyr Scliar; o inventário crítico da sociedade de consumo, em Roberto Drumond; a descrição do baixo mundo noturno feita por Ignácio de Loyola Brandão; a marginalização das personagens de Edilberto Coutinho ou a documentação do mundo proletário filtrada na atmosfera dos bares de subúrbio pelos contos de Jefferson Ribeiro de Andrade; o patético drama da sobrevivência nas zonas rurais de periferia rompendo das páginas de Deonísio da Silva ou de Domingos Pellegrini Jr. – dentre tantos outros – representam, todos eles, expressões distintas e diversas de uma mesma denúncia social. Alargando o nível da inquietação para o plano do existir, nos deparamos com os textos de Hélio Pólvora, Sérgio Sant´Anna, Adonias Filho, com a profundidade filosófica captada sob a questão da incomunicabili13. História do conto - 155
dade pelos textos de Luís Vilela, com o realismo fantástico de José J. Veiga e Murilo Rubião ou, ainda, Breno Accioly, com seu modo peculiaríssimo de devassar o mistério nas fronteiras da razão e da insanidade. Osman Lins arquiteta a narrativa quase como decorrência do próprio tecido criado com a experimentação da linguagem, espécie de aventura ao sabor das palavras, a escritura como desvendamento do mistério num plano existencial. E é mais ou menos por aí que correm as experiências de um Autran Dourado ou Nélida Pinõn, juntando a esse aspecto a dimensão mítica de seus textos; ou as experiências de Samuel Rawet, Josué Montello e Lygia Fagundes Telles agudizando, todas elas, a exploração das sutilezas psicológicas e, ainda, Salim Miguel e Caio Fernando Abreu, preocupados ambos com a criação de uma atmosfera, de um clima, diante do qual avulta a dimensão da pequenez humana. Destacamos ainda com importantes produções literárias contemporâneas os escritores Adélia Prado (1936), Augusto Boal (1931), Augusto de Campos (1931), Autran Dourado (1926), Caio Fernando Abreu (19481996), Carlos Heitor Cony (1926), Chico Buarque de Holanda (1944), Dalton Trevisan (1925), Décio Pignatari (1927), Dias Gomes (1922), Domingos Pellegrini Jr. (1949), Eduardo Alves da Costa (1936), Edla van Steen, Esdras do Nascimento (1934), Fernando Sabino (1923), Geraldo Ferraz (1906), Gianfrancesco Guarnieri (1934), Haroldo de Campos (1929), Hilda Hilst (1930), Ignácio de Loyola Brandão (1937), João Ubaldo Ribeiro (1941), José Lino Grünewald (1931), José J. Veiga (1915), José Paulo Paes (1916), Lourenço Diaféria (1933), Luiz Fernando Veríssimo (1936), Luiz Villela (1943), Lia Luft (1938), Lygia Fagundes Telles (1923), Márcio Souza (1946), Marina Colassanti (1937), Mário Chamie (1933), Mário Quintana (1906-1994), Mauro Gama (1938), Millôr Fernandes (1924), Moacyr Scliar (1916), Nélida Piñon (1935), Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), Osman Lins (1924-1978), Paulo Leminski (1944-1989), Paulo Mendes Campos (1922), Pedro Nava (1903-1984), Plínio Marcos (1935), Renata Pallotini (1931), Ricardo Ramos (1929), Ronaldo Azeredo (1937), Rubem Braga (1913-1990), Rubem Fonseca (1925), Samuel Rawet (1929-1984), Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto, 1923-1968), Thiago de Mello (1926). Ressaltamos ainda o trabalho do sociólogo Gilberto Freire (19001987), mestre em estilo, pioneiro da escola de sociólogos brasileiros, que foi o autor da obra Casa-Grande e Senzala, estudo que demonstra grande percepção da sociedade brasileira. Edgard Alan Poe, um dos primeiros teóricos do gênero conto, há mais de cento e vinte anos diz: - Temos necessidade de uma literatura A técnica e a arte do conto - 156
curta, concentrada, penetrante, concisa, ao invés de extensa, verbosa, pormenorizada... É um sinal dos tempos... A indicação de uma época na qual o homem é forçado a escolher o curto, o condensado, o resumido, em lugar do volumoso.
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Referências
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18 Quatro roteiros, Syd Field. Objetiva, Rio de Janeiro, 1997. 19 O poder do clímax – fundamentos do roteiro de cinema e TV, Luiz Carlos Maciel. Record, Rio de Janeiro, 2003. 20 An Introduction to Playwriting, Samuel Selden. Appleton-CenturyCrofts, Nova York, 1946. 21 A Revolução Sexual, Wilhelm Reich, Rio de Janeiro, Zahar, 1974. 22 A fórmula do texto – redação, argumentação e leitura, Wander Emediato. Geração Editorial. 2ª. edição, São Paulo, 2005. 23 O foco narrativo, Ligia Chiappini Moraes Leite. Editora Atica, 10a. Edição, 7a. Impressão, São Paulo, 2005. 24 The Complete Idiot´s Guide To Creative Writing, second edition. Laurie E. Rozakis. Alpha, a member of Penguin Group (USA) Inc. 2004. 25 http://en.wikipedia.org/wiki/Brainstorming 26 http://www.crystalinks.com/automatic_writing.html 27 http://www.prairieghosts.com/auto_writing.html 28 http://www.prairieghosts.com/auto_writing.html 29 http://olc.spsd.sk.ca/DE/PD/instr/strats/webbing/index.html 30 Os segredos da ficção – um guia da arte de escrever narrativas. Raimundo Carrero. Agir. Rio de Janeiro. 2005 31 O que é conto. Luzia de Maria. Editora brasiliense. São Paulo, 2004.
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