PRIMEIROS CONTOS

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Primeiros Contos



Carlos Vieira

Primeiros Contos

Revisão: Kênia Érica Cunha Nicácio

Belo Horizonte • 2011


Ficha Catalográfica Bibliotecário: Carlos Fernando Silva CRB 2587 V657

Vieira, Carlos Primeiros contos/ Carlos Vieira; colaboração: João Batista Xavier, Ulisses Martins Goulart. Belo Horizonte: Fundac-BH, 2010 103 p. ; 21 cm. ISBN 978-85-85477-35-6 1. Romance Brasileiro.

I. Miguelin

II. Título

2. Ficção

CDD 869.93

www.fundac.org.br

Diagramação e arte da capa: Josemar Lucas


Uma obra de ficção literária em que as personagens, os fatos, os conflitos são fictícios e sem quaisquer relações com eventos, pessoas ou situações da vida real.



Aos meus irmãos Whelther Vieira de Almeida (Maria Helena Avelino Vieira ”in memoriam”) e Hedda Vieira Teixeira (Roberto Maluf Teixeira) com estima e admiração.



Apresentação

Este quinto livro: “Primeiros contos”, editado pela Fundac-BH (Fundação Cultural de Belo Horizonte), www.fundac.org.br, responsável também pela publicação do “Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha”, “Manual de sobrevivência do ser humano”, “Miguelin – caipira, mineiro, contador de estórias”, “A técnica e a Arte do Conto” é consequência natural do trabalho do escritor Carlos Vieira, autor que desmistifica o conto uma forma textual, que – supostamente - só escritores profissionais dominam. Conto significa invenção, ficção, plano, projeto, olhar atentamente para, contemplar, ver, divisar, narração sintética, curta, oral ou escrita, verdadeira ou fabulosa, obra literária de ficção, monocrômica, de um fato da vida, que focaliza um único conflito e apresenta a sua solução, num breve espaço de tempo. Sua função é emocionar, divertir, informar nossos leitores; examinar algum aspecto da natureza humana; procurar explicar o que está por trás de nossos pensamentos, sentimentos, comportamentos. Esta obra que, desejamos seja primeira duma série, revela um pouco de todos os conceitos passados em “A técnica e a arte do conto”, também do nosso autor, Carlos Vieira, que procura retratar a alma e o linguajar do caipira mineiro, principalmente, nas suas duas sagas regionalistas anteriores: “Miguelin – caipira, mineiro, contador de estórias” e “Chichico Venâncio e sua adorável Lalinha”. Conto é também, para Massaud Moisés, da Universidade de São Paulo, uma narrativa breve, concisa, densa, na qual o diálogo predomina, com poucas personagens, em torno dum conflito único, constituindo uma unidade de ação, fruto da sequência dos atos praticados pelos protagonistas ou de acontecimentos dos quais participam. Existem, nele, concentração do espaço e do tempo e uma ação simples, desenvolvida de forma mais ou menos linear. O conflito pode ser de natureza externa, quando as personagens se deslocam no espaço e no tempo, ou interna - conflito no plano mental. “PRIMEIROS CONTOS” documenta vivos costumes, ideias, mentalidades, decisões e julgamentos, acerca de personagens que tornam a leitura ainda mais divertida. Esta literatura que entretém é, ainda, especialmente aqui, o mineirês...”.


Carlos Vieira desnuda, neste compêndio de quase fábulas, o amor pelas letras, agora, acompanhadas pelo ilustre leitor. Que esta obra – expressiva - encante-o e seja perene. Bom proveito, Primeiros Contos são (já)... todos seus. A Editora


Sumário

1. Ato falho . ............................................................................... 13 2. O avarento . ............................................................................ 17 3. O cavalo milionário do fazendeiro mineiro e a éguinha do caipira vizinho ............................................. 21 4. O freguês de velório ............................................................. 27 5. Sá Maria e a égua moura . .................................................... 29 6. A fábrica de linguiça de carne de burro ............................ 33 7. A amizade sincera . ............................................................... 41 8. O burrinho Capricho ............................................................ 47 9. Medo de baratas .................................................................... 49 10. O cidadão Roque Hudson da Silva, vulgo Dinho Boiola . ................................................................................... 53 11. Comer, coçar, fornicar – cuidado, se começar é difícil parar ................................................................................. 57 12. A velha morada da Curupaiti 359 .................................... 65 13. O Sô Bode e a Sá Onça . ...................................................... 71 14. O beijo de despedida .......................................................... 83 15. A (só com h, depois do novo acordo ortográfico) história do menino e da venda de seu macaquinho . ..... 89 16. Luiz Ambrósio – a rigidez em pessoa ............................. 103 17. Alípio de Souza e sua busca por liberdade de expressão ................................................................................. 111 18. Vai trabalhar, vagabundo! ................................................ 121 19. A espera . ............................................................................. 127 20. Coronel Segurança S.A. . ................................................... 133



Ato falho

A expressão ato falho – lapsus linguae, lapso de linguagem – é usada, frequentemente, para indicar um erro verbal, um engano de pequena gravidade, mas capaz de revelar o inconsciente, segundo Freud. O Eclesiástico 20:18 afirma “Lapsus falsae linguae quasi qui pavimento cadens” ou “o deslize da língua que erra é como quem cai ao chão”. Se não, vejamos: - Quem é? - Nunca o vi mais gordo! - Como? Ele a cumprimentou, sorrindo, e você o retribuiu... - Isto já me ocorreu muito, meu amor. Uma pessoa me cumprimenta, eu retribuo, e não me lembro de quem se trata? - Estranho, né? - Estranho... o quê? - Um cara lhe cumprimenta de cara tão boa, você o retribui com um sorriso, e não o conhece? - Meu amor, o que está havendo? Não to lhe entendendo? Que é isto? Eu amo você, meu amor - abraçou o marido, com ternura. - Vou ao banheiro primeiro, enquanto você vai trocar os seus sapatos. - Ok, encontro-o depois, na livraria. Despediram-se - com um tímido beijo na boca - e rumaram para direções opostas. Antônio e Bernadete, raramente, iam juntos ao shopping e a outros lugares. Os dez anos de casados, a cada ano, os individualizavam e seus desejos se opunham, diametralmente. O marido era um psiquiatra, intelectual por natureza, dissidente de tudo e de todos, apesar de haver granjeado entre seus pares, respei- 13 -


to, reconhecimento, autonomia. O convívio social, para ele, era uma necessidade dolorosa, avesso que era a todo o tipo de convivência: familiar, profissional, social. Era como, bem sabia, uma personalidade esquizóide, bem adaptada. Construíra uma brilhante carreira, apesar do temperamento, emocionalmente, alienado, introvertido, com violentas oscilações de humor. Como bom obsessivo, tinha profundo medo do amor, quase tanto quanto do ódio e, sempre que possível, se escondia no seu mundo essencialmente conceitual. Neste recanto, procurava, na atividade literária e artística, um puro prazer estético, mas também aí se refugiava da ansiedade das exigências conflitantes dos contatos diários com as outras pessoas, e da sua alienação. Seu sentimento, de falta de sentido das coisas e da futilidade do mundo, se confrontava com o da maioria das pessoas do seu meio, que, diferentemente dele, necessitavam da interação com os outros, para encontrarem significado e importância, na vida. É claro que pouquíssimas pessoas que apresentam um padrão de isolamento social - durante toda a vida - e indiferença pelas atitudes e sentimentos dos outros (características principais da chamada personalidade esquizóide) possuem um grande talento criativo - qualquer que este seja. Antônio era, porém, uma dessas raras exceções. Herdara do pai o amor ao trabalho, e sua vida era hospital, consultório e casa. A esposa, dedicada mãe do André, de cinco, e da Bianca, de quatro anos, era, fundamentalmente, seu oposto – uma pessoa prática em tudo, e visceralmente afetuosa. Deleitava-se e se aprazia com a vida: família, amizade, compras, vestuário, turismo (quando possível) e a sonhar muitos sonhos, ainda não realizados. Vinte e cinco anos os separavam na idade e, apesar de gozarem de aparente saúde, os anos começavam a pesar no relacionamento deles, principalmente para o marido - que completaria, agora, sessenta anos. Alcançada a entrada do banheiro masculino, Antônio mudou, de repente, a trajetória e se encaminhou para a saída do shopping, que dava acesso ao estacionamento. Passos rápidos fizeram-no alcançá-lo, rapidamente. Ali chegando, varreu rapidamente, com o olhar, os carros estacionados e, estacou, divisando - já na saída - seu algoz, que num Chevrolet preto deixava o estacionamento. Fixou a placa: SPX 3030. Pensou: “por um triz, o sacana”.

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Deu meia volta, e se deparou com sua mulher, saindo pelo mesmo portão. Arguiu: - Ué, o que você está fazendo aqui? - To cortando caminho, meu amor. Vou pagar meu cabeleireiro, que fiquei devendo, na semana passada. Lembrei, só agora. Não gosto de ficar devendo nada. E você? 3030?

- Você conhece um Chevrolet preto, placa de São Paulo, SPX - Não. Por quê?

- Resolvi vir atrás daquele sujeito que lhe cumprimentou com aquela cara boa. Quando cheguei aqui, ele já estava saindo. - O quê? Você veio atrás daquele cara? Você tá ficando doido! - Isto, queria conversar com ele e saber como, e de onde ele lhe conhece. - Que isso, Chuchuzinho?! - replicou Bernadete, ruborizada e desconcertada, procurando refazer sua fala equivocada, mudando de adjetivo e de tom: Que é isso, meu amor? Isso já tá me ofendendo. O que você quer com tudo isso? Abraçou, novamente, o marido, com ternura, beijou-o no rosto e, de novo, serenou-o com seu irresistível: - Amo você, meu amor! Outra vez, ambos ameaçaram continuar suas trajetórias précombinadas. Antônio, porém, ainda interpelou sua mulher: - Amor, seu cabeleireiro não é deste lado do shopping, não?! É na saída do outro lado! - Óh, amor, que cabeça! É mesmo! – respondeu Bernadete, sorrindo, displicentemente. Encontro-o na livraria, em uma hora, tá? Tchau. - Até. Antônio estava perplexo, furioso, paralisado. Ficou ainda um bom tempo vendo sua mulher se distanciar: firme, célere, decidida a trocar seus sapatos. Encaminhou-se para a livraria. De repente, novo impulso e do telefone, do corredor mesmo do shopping, discou 9 3 --- ---. - 15 -


Do outro lado, Bernadete – prontamente - atendeu: - Oi. - Chuchuzinho... - Ôh, cara louco! Você me cumprimenta, perto do meu marido e ainda sorrindo para mim. Ele ficou uma fera. Foi até ao estacionamento, para saber de onde você me conhecia... - Filha da puta... Aos circunstantes daquele dia, no shopping, menos privilegiados pelos pormenores dessa história, ficou apenas marcada a cena de um sujeito de cabelos grisalhos que, desvairadamente, batia - de frente - a cabeça, na parede ao lado do telefone público. Eu, especialmente, sei que o mesmo deu entrada, uma hora após, na emergência de um Hospital Psiquiátrico da cidade e, recebeu o diagnóstico de Transtorno Paranóide Agudo.

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O avarento

Ernesto era, essencialmente, mão-fechada, sovina... um legítimo pão-duro. Apesar de a frugalidade ser reconhecida como uma grande sabedoria, sobretudo, quando praticada pelos nossos ancestrais e, principalmente, se nos deixam uma boa herança, quando se vão desta vida para uma melhor, a nossa personagem não orientava seu excessivo apego ao dinheiro, sua esganação, sua mesquinhez, por essa proverbial virtude. Como o pródigo rouba seus herdeiros, roubava a si. Gostava de gabar, aos seus familiares e amigos, que sua roupa passava por três fases: nova, usada e remendada e, exultante, sempre declarava que quem dá o que tem, a pedir vem. Acreditava que o homem é o que ele tem, ignorando que as melhores coisas da vida são gratuitas, como: o amor, a amizade, a saúde. Vivia no ter e o ser, se algum dia experimentou... logo se cansou, se amesquinhou, ou se capitulou. Sabemos que esbanjar, malbaratar, gastar desenfreadamente no popular: torrar o dinheiro - também tem seus males, talvez maiores que os da avareza, porque se não se tiver comedimento no uso do dinheiro, um dia de muito... poderá ser véspera de pouco. Porém, certamente que a virtude sempre está no meio, como nos dizem os indianos, e o difícil é fugir de ultrapassar os limites que podem ser impostos por nossa índole, por nossa criação, por nossa cultura. Não é meu papel aqui, no entanto, crucificar nossa “mão de ferro”, porque sei que o detentor dela, dentre tantos outros fatores, foi o produto de uma infância muito sofrida, carente de tudo, vítima de um pai perdulário, do assédio constante de cobradores bravos à sua porta e, em suma, da grande falta de recursos materiais, educacionais e mesmo morais. Eis que, por volta de seus sessenta anos, Ernesto já tendo uma vida estável, uma família criada, um bom provimento na caderneta de - 17 -


poupança (segundo ele, para um momento de necessidade aguda e premente), viu-se numa situação inusitada: a perspectiva de um negócio que poderia, se vitorioso, enriquecê-lo por várias e várias gerações. Bateu-lhe, naturalmente, uma compreensível cautela, porque como bom mineiro que era, (dizem pilheriando), sabia que mineiro só arrisca quando tem certeza, ou só escreve carta depois de receber a resposta e até mesmo só marca reunião depois do acordo. Ora, a precaução em excesso traz consigo o risco da imobilidade, da passividade, da acomodação, e caminha para a estagnação da vida. E, ao seguir o adágio não seria o primeiro a abraçar o novo nem o último a abandonar o velho, sua cautela podia distanciá-lo daquele que chega à frente e bebe água limpa. Ora, a própria prudência exige um pouco de ousadia, diz o senso popular, porque quem não petisca dá mostras de que não... arrisca. Ernesto mostrava-se, ultimamente, sorumbático, macambúzio, amargurado, e um pensamento obsessivo martirizava-o: - Cuidado! Não há nada pior que se arrepender, no futuro, de não haver tentado uma coisa que – hoje – se assinala grande perspectiva de ser, estupendamente, vitoriosa. E eu concordo, porque, afinal viver é correr risco, é experimentar a si e a vida, é sonhar o quase impossível. Nesta altura, já devem estar pensando os leitores: - Mas que negócio é este, tão promissor? Que oportunidade é esta que faz deste sexagenário, comedido, um atormentado por uma decisão? Será algo escuso, um jogo de azar, alguma coisa que aguça a cobiça de homens poderosos, sem lei, ambiciosos. Sou uma das testemunhas de que Ernesto não era um ser humano pusilânime, indeciso, poltrão e, suas origens e seu histórico de vida atestavam muitas batalhas renhidas, vencidas com o destino, a sorte e as vicissitudes do cuidado responsável duma família numerosa. Era católico praticante, de comunhão semanal. Herdara da mãe a fé, como a bondade do coração, e - do pai - o empenho e a regularidade, no trabalho, como se fosse um desses relógios automáticos que, sem dar corda, funciona sem parar um só instante, e por um tempo indefinido. O tempo... passou a ser para ele um suplício, uma punição, uma tortura, porque sofria, no presente, o peso pela necessidade daquela - 18 -


decisão futura. O hoje parecia eterno. E, nenhuma situação, nenhum sentimento, nenhuma aspiração aprisiona mais do que a eternidade. Conselhos? Procurou com a esposa, companheira fiel e amorosa, desde os vinte anos de idade; com o padre da paróquia local; com um amigo fraterno, delegado de polícia, que ele considerava imensamente experiente e sábio. A quem mais apelar? A Deus? Não se contavam mais as súplicas, as preces e mesmo algumas promessas feitas por Dona Nininha, sua esposa. À ciência dos homens? Mesmo sem muito ânimo de início, por recomendações de vários amigos, havia mesmo contratado a assessoria de uma empresa da capital, apesar de homem simples, pouco educado academicamente e, (não se esqueçam), muito comedido nos gastos. Não havia, realmente, alguém que o pudesse orientar, faltando - tão somente - sua dolorosa decisão. Ninguém suportava mais aquela situação – família, amigos e, principalmente, ele próprio. Parece até que sua ansiedade de longa data já resultava num início de depressão. Passou a perder peso, não dormir reparadoramente, ter dificuldade de se levantar pela manhã. Seu semblante, a cada dia, se tornava mais fechado e triste. Fugia dos amigos e familiares, e se isolava no quarto, chegando mesmo a faltar a alguns compromissos inadiáveis, com o conseqüente sentimento de inutilidade, desamparo e culpa. Mas, como tudo um dia clama por um fim, deu-se o inesperado. Sua mulher preocupada o acorda - numa manhã de segunda-feira - aos empurrões, e lhe admoesta, severamente, de que já está muito atrasado para o trabalho, e que o mesmo estava se contorcendo e gemendo como se estivesse passando mal. Que alívio! Apesar de suado, da cabeça aos pés, corpo todo dolorido, e com sua eterna e rebelde enxaqueca, Ernesto constata que todo aquele impasse havia sido um sonho. Levanta-se, toma seu remédio contra enxaqueca, vai até ao banheiro, veste-se com sua melhor roupa, serenamente, despede-se da - 19 -


esposa e, deixa sua casa rumando para mais um novo dia de trabalho, estabilidade e comedimento.

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O cavalo milionário do fazendeiro mineiro e a éguinha do caipira vizinho

Olha, não posso - verdadeiramente - assegurar que esta nossa história constitua-se fato real, podendo ser, mesmo, um mero produto de uma mente criativa qualquer, contudo, se passa no interior das Minas Gerais e data de pouco tempo. Certo é que o filho de um rico fazendeiro, após sua graduação universitária, foi para a América do Norte se especializar. No Arizona, Texas, cidade próxima da fronteira México e Estados Unidos, além das atividades escolares formais, dedica-se, nos tempos livres, à equitação e ao convívio com os amantes dos cavalos. Sabe-se que a região é conhecida, mundialmente, pela criação, comércio e exportação de excelentes raças de equinos. Não demora muito e se realiza uma inseminação artificial, produto do cruzamento da melhor égua (da fazenda do pai) com um embrião de dez mil dólares, transportado via aérea da terra do Malboro. Nasce um cavalo que o fazendeiro extasiado não cansa de exclamar: “a coisa mais linda do mundo”. Adjacente à verdadeira sesmaria, do pai do nosso pós-graduando, vive um caipira, na altura dos trinta anos, com sua mãe septuagenária e viúva, num litro de terra, meio abarrancada, exprimida entre o terreno do coronel e um caudaloso rio local. Nosso valente minifundiário resiste a todo o tipo de proposta de sair dali para uma área maior e, infinitamente, mais valorizada - por motivos que só Deus dimensiona. O cavalo de dez mil dólares, e de mais de dois metros de estatura, vai crescendo e, talvez pela proximidade ou força do destino, se enamora da única éguinha (baixa, esquálida, anêmica) do caipira que a ele serve – conformadamente - tanto no transporte da cana, da ração e (não se pasme) quanto das necessidades pervertidas do seu dono carente de outras possibilidades de expressão da libido. - 21 -


Voltando ao que interessa ou aos protagonistas principais: o cavalo e a éguinha, com o tempo vai se adensando o apego entre os dois enamorados. No entanto, a livre manifestação das suas intimidades é obstaculizada por uma cerca, que não permite uma relação, corpo a corpo, vis-à-vis, dos dois amantes, mesmo porque a diferença de quase um metro e meio entre eles, por si, dificulta ou mesmo torna essa eventualidade, praticamente, impossível. Como, para os amantes, porém, qualquer obstáculo é, antes de tudo, mais um convite ao estreitamento do affaire que um empecilho formal, os dois se cheiram pela cerca, mesmo. E, ora o cavalo escorrega, ora a éguinha resvala, visto que, como anteriormente dito, o terreno é íngreme, de forte declive, escarpado. O caipira, lá de baixo, sentado à frente da sua casinha, fica quase sempre expectante à cena demorada. No íntimo, creio, mesmo que inconscientemente, perturbam-no um pouco: desejo e ciúme. Os amantes, entretanto, prosseguem o namoro, alheios ao mundo, às convenções, às malícias e possíveis projeções humanas. O filho do fazendeiro acaba a pós-graduação em Marketing, e retorna ao seio familiar e comunitário, de origem. Ao chegar, por ser mais interessado na vida cavalar, ou seja, a referente aos eqüinos e, talvez, pela convivência estreita com seu cavalo milionário, passa a notar que a barriga da éguinha do vizinho está crescendo. Chega mesmo a perguntar a ele se ela foi coberta, e intriga-se – imensamente – quando o caipira nega qualquer movimento ostensivo da parte dele, no sentido de propiciar a prenhez do animal. Essa inoportuna averiguação do filho do fazendeiro acirra as defesas paranóides do caipira e, defensivo, um dia dirige-se à sua mãe e desabafa: - Mãe, aquela égua tá ficando barrigudinha. E eu não sou; mas ela vai ganhá um cavalinho. Si fô machu, é da senhora, mais si fô éguinha, é minha - a mãe dá de ombros e nem se apercebe da nítida evidência da preferência do seu filho pelo sexo feminino e, até mesmo, do seu complexo de culpa reprimido em relação à bestinha. Nasce um cavalo. Parece que não foi feito pela natureza, mas pelo pincel de um artista genial, tal a sua formosura, o equilíbrio das linhas e a sua força, toda reconhecida nele, por um simples olhar. O filho do fazendeiro, por sua vez, reporta-se, irritado, ao pai: - 22 -


- Pai, a égua do caipira ganhou um cavalo que dá de dez a zero no nosso. - Esse cavalo, então, é nosso filho. Não é dele, não. - Vamos tomar o cavalo dele, pai? nosso.

- Claro. Vamos fazer o DNA. Se for filho do nosso cavalo, já é

O veterinário não demora. É feito o DNA. Está confirmado: o cavalo é filho da cavalgadura de dez mil dólares e da éguinha do caipira. O pequeno proprietário é chamado, oficialmente, à fazenda do latifundiário: - Pois é... O exame mostrou que aquele cavalo da sua éguinha é nosso. - Não é, não sinhô. É da minha égua. - Ôh rapaz, to falando que é minha propriedade. - Não. Não é, não. Não é propriedade do sinhô, não. Propriedade do sinhô é essa terra, sua. Aquele cavalo não é propriedade de ninguém, não. É bicho, é animal. - ... - ... - ... - ... E assim o diálogo continua, sem qualquer conclusão prática, porque o caipira, como à sua terrinha, defende, com todas as forças, seu cavalinho, recém-nascido: - Vamos à Justiça, então - conclui rispidamente o fazendeiro. - Tá bom. Eu vô conversá com a dona Justiçia. Como ela é muié, ela vai me entendê. O fazendeiro e seu filho se entreolham, e seus rostos denunciam: - Ele é tão bobo, que não sabe nem o que é justiça. Eis o caipira impaciente, ansioso, perdido, na ante-sala da audiência, no Fórum, no dia marcado e, sem querer apelar para estere- 23 -


ótipos, porque realmente é a pura verdade, com seu cigarrinho, seu pacotinho de palha e fumo, seu saquinho de farinha. Às muitas mulheres, que passam pelo corredor, pergunta: - Escuta, moça. A dona Justiçia demora? Eu to aqui, desde cedo. - Dona Justiça? - É. Eu fui chamado aqui para conversá com a dona Justiçia. - ... De repente, chegam o fazendeiro, seu filho e o advogado contratado. Passam pelo caipira, sem o cumprimentar. O caipira, mesmo assim, vai ao encalço deles e interpela o fazendeiro: - Ôh, sinhô. A dona Justiçia já vai me chamá, agora? - Ôh, homem, deixa de ser bobo, sô. Fica quieto, aí. Com um pequeno atraso, infinitamente menor que o habitual da Justiça institucional, a audiência foi iniciada. Numa pequena sala, o Juiz se posta magistral no seu lugar, ao lado... a secretária, e, de frente deles, uma grande mesa, onde de um lado se colocam os três fortes contendores, e, do outro, o solitário caipira. O Juiz dá uma leve lida no processo, (quem sabe, já havia estudado-o, assim esperamos), e dá a palavra ao advogado. Este apresenta o fazendeiro, sua importância para a região, decorrente das suas: estirpe, genealogia e tradição, suas propriedades, naturalmente, ganhas com um trabalho diuturno e digno e, finalmente, traz a história do embrião de dez mil dólares, do cavalo maravilhoso, e apontando o caipira, denuncia: - Este vizinho, em questão, sem pagar, o que seria natural, pelo cruzamento de um animal de tão nobre pedigree, conseguiu que sua égua fosse coberta pelo cavalo, em questão, e o produto: um cavalo mais maravilhoso, ainda, é o que meu cliente está aqui reivindicando o direito de posse, senhor meritíssimo. Foi dada a palavra ao caipira. Não entendendo o brilhante discurso do causídico, pergunta ao Juiz onde estava a dona Justiçia, porque havia sido chamado para conversar com ela. O Juiz, experiente já na sua longa magistratura e no convívio com as mais diversas categorias de pessoas, logo entende a dificuldade ali evidente e explica: - 24 -


- Não, meu filho. A Justiça é uma lei que dá o direito a quem tem, e tira de quem não tem. Você tem de me contar é a história desse cavalo e dessa égua. Prontamente entendido, o caipira, então, esclarece: - Ôh, doutô! Compração: o sinhô é uma égua. E eu sou um cavalo. O sinhô entra no cio e fica me esfregando, me oferecendo, me tesando. Aí o sinhô encosta a bunda na cerca e eu planto o ferro no sinhô. Aí nasce um cavalinho. De quem é o cavalo? É do sinhô, dono do cavalo, ou é do sinhô, dono da égua. O Juiz, já não suportando mais nenhum dos dois lados da pugna, vocífera: - É da puta que o pariu, filho da puta. Racha todo mundo fora daqui!

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O freguês de velório

LÁ EM CORONEL FABRICIANO, tem um cara, o Gilberto Cabeção, meio retardado, mas muito popular e querido pela população, em geral. Sua característica principal: o amor pelos velórios. Um amor, realmente, imponderável, compulsivo, constrangedor mesmo e sem discriminação, de qualquer ordem, pelas condições do falecido. Pobre, feio, rico, bonito, remediado... É morrer alguém na cidade ou nos arredores, que ele é um dos primeiros a chegar. Eis que morreu um fazendeiro importante em Timóteo, cidade próxima, a oito quilômetros. Cabeção, duro - como sempre, e não conseguindo carona, foi a pé mesmo. Chegou pela madrugada, lá pelas duas horas. Na sala da casa principal da fazenda, muita gente em volta do defunto, o quintal apinhado de concidadãos em conversa animada, e a viúva preparando mais uma rodada de café. Estava muito frio e o Cabeção, muito à vontade, logo ao chegar, já inquiriu: - Ôh, gente! Alguém, aí, trouxe pinga? Sem resposta, continuou: - Ôh, gente! Tá muito frio! Ocês trata de colaborá, aí, cada um, com um dinheirinho pra comprá uma garrafa de pinga, e a gente se isquêntum pouco. Não demorou quase nada. Arrecadou uns cinco reais. A viúva, vendo aquela movimentação foi saber o que estava acontecendo. Ficou constrangida e argumentou: - Olha, Gilbertinho, se ocê tivesse me falado, eu mesmo lhe daria o dinheiro pr´ocê comprar a garrafa de pinga, sô! Ele, em tom compreensivo, retrucou: - 27 -


- Não precisa dá nada, não, Dona Mariinha. A senhora já fez sua parte: já entrô com o defunto. Deixa que o resto, eu mermo me viro. Dez horas da manhã, começou a sair o enterro da casa do falecido, rumo ao cemitério. Cinco quilômetros. Seis distintos amigos carregam, de início, o caixão; e, logo vão alternando essa deferência com outros parentes, amigos e, mesmo, grande número de habitantes da cidade. O filho mais velho foi na frente, carregando uma cruz, costume do interior das Minas Gerais. Não é que o Gilberto Cabeção, que naturalmente havia usado a maior parte da garrafa de cachaça para esquentar a si, se roga o direito de carregá-la. Trôpego, cambaleante, falante, começa a tentar tomá-la das mãos do consternado e indefeso primogênito, e de outros, que depois intercederam, ajudando-o. Tal era o ímpeto da sanha de ser o portador da cruz, que só foi contido depois de esmurrado, chutado, empurrado, até ser projetado ao solo. Não se deu por vencido: - Óia, ocês enfia essa cruz e esse defunto naquele lugá. Lá em Coronel Fabriciano, tem defunto muito melhor do que esse, viu?!

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O saco, a sá malvina e a égua moura

O SENHOR BELO ME CONTOU que, por volta de 1955, com doze anos de idade, na sua terra natal, Bom Jesus do Galho, era muito conhecida a Sá Malvina. Uma velha que andava pelas ruas, sem destino e sem pouso, como uma alucinada, chocalhada pelas crianças e desprezada pelos adultos. Havia caído no fogo, na infância, queimado todo o rosto e, principalmente o lado direito, onde se destacavam um olho murcho, pequeno, horripilante, e uma orelha escura, macilenta, enrugada. Andava sempre com um pano, velho, encardido, como um meio chapéu, tentando, sem muito êxito, cobrir as suas deformidades. Quando uma criança começava a ser inconveniente, o pai falava: - Vou dá ocê pra Sá Malvina - e era o que bastava para acalmá-la. O senhor Belo morava junto aos pais, às cinco irmãs e aos seis irmãos, numa pequena fazenda onde se produzia de tudo: café, arroz, feijão, milho, mandioca, farinha... Orgulhoso da sua infância, esclareceu-me: - A minha mãe fazia a calça da filha, o sutiã. Não se falava naquela época em menstruação, e sim em regra. O pai não deixava a filha casar menstruada. - É? - Não deixava, não. Muitos casamentos foram adiados, por essa simples circunstância. As mulheres tinham de dez a quinze filhos, em suas casas, com parteiras ou sozinhas, sem recurso médico-hospitalar. Alguns morros tinham, no seu topo, um cruzeiro. As pessoas punham pratinhas no pé dele, para pagar promessas e ninguém ousava mexer. Não havia os ladrões de hoje, exceto os de galinha, café e cavalo. Continuou: - A cada quinze dias, porém, era preciso ir à Caratinga, distante vinte e duas léguas, para pequenas compras ou trocas. Num dia, fui buscar macarrão e bacalhau (e outros gêneros básicos) porque estava - 29 -


vesprando a quaresma. Antigamente, as fazendas forneciam rapadura, querosene, gordura, macarrão, aos seus colonos, em troca de horas de seus serviços. Naquele tempo, não existia dinheiro. Lembro, nitidamente, que levei sacos com bandas de porco como moeda para trocar pelo que necessitávamos. Quis saber o trajeto. - Saí de Bom Jesus do Galho, passei por Sapucaia, Barreirinha, e cheguei a Caratinga, no início da tarde. Sessenta quilômetros. Comerciávamos com um amigo do meu pai, de nome Justino Barbosa, dono dum armazém de secos e molhados. Detalhista, prosseguiu a relatar: - Não existia arame. A cerca era feita por escravos de uma vala de três metros de largura, e dois de fundura. Nesse buraco, cercando a fazenda, plantavam bambu, que impedia que os bois passassem. Era comum também, nas pequenas comunidades, o costume de cada vez um vizinho matar um boi e distribuir a carne com todos os outros. E, como se fosse combinado, todo mundo comia carne, cada hora vindo de uma das fazendas. Não aproveitavam a barrigada do boi morto (era jogada fora ou dada para fazer sabão), o couro, o chifre, colocado na horta para proteger as plantas. O engenho (ou engenhoca) era feito de madeira com prego dobrado, para fazer o friso da moenda. Não se fazia rapadura. Secava-se um pouco a garapa e guardavam o melado, para que não se azedasse. A broa de fubá era feita de soro de queijo, melado, ovos, bicarbonato e fubá. Era uma broa de encantar qualquer um. Prosseguiu o relato da sua aventura: - Naquele dia, na viagem de volta, choveu muito. Parei na fazenda do Bastião Berto, num local chamado Córrego da Sobra. Esperei a chuva passar. A mulher dele insistiu que eu trocasse minhas roupas e fui obrigado a vestir as roupas de adulto do fazendeiro. Com medo do meu pai me repreender (ele era muito severo), apesar da noite avançada, quase onze horas, avisei: - Dona Lia, eu tenho que ir embora. Papai não pode me buscar. - Passa a noite aqui meu filho. É muito perigoso você subir a serra, nesta hora. - Agradeci. Saí da fazenda. Peguei uma mata. Comecei a subir a serra da Raminha. No alto dela tinha um cruzeiro. Todo mundo tinha medo de passar no pé dele, à noite. Diziam que o lugar era amaldiçoa- 30 -


do. Eu montava uma égua por nome Moura – por causa da mesma cor da frutinha, de mesmo nome, que quando amadurece, fica cinza com umas pintinhas vermelhas. Daí a algum tempo a égua começou a gemer. Percebi que ela estava sentindo muito peso. Na minha frente, surgiu um vulto branco. Pensei: o que essa Malvina está fazendo aqui, essa hora, meu Deus? A Malvina era vista por todas as partes, andando com sua mochila, e era vista dormindo ao relento, em qualquer lugar. Gritei: - Ôh, Sá Malvina, o que está fazendo aí, essa hora? Deixe-me passar, que estou com pressa! Passar... como? A égua bufava, sapateava no chão, elevava - de tempos em tempos - a cabeça e se inclinava para trás, sustentada somente pelas patas traseiras, como se (assustada) não quisesse ou pudesse prosseguir. Eu apertava os pés na barrigada dela, batia na sua cabeça, e nada. De repente, o tempo fechou todo. Uma nuvem começou a passar e deixava-se ser atravessada por uma claridade, vinda da lua cheia. No momento seguinte, tudo escurecia, novamente. Apavorado, gritei: - Sá Malvina, me deixa levar esse saco da senhora. Ele deve estar pesado. Falei assim, como uma estratégia, tentando estabelecer alguma comunicação com ela. Deu certo. O vulto deu meia-volta e veio se encaminhando para mim. Entregou-me o saco. Mas que saco pesado! Peguei-o, sem qualquer maldade e o coloquei entre minhas pernas, na cabeça do arreio. A égua ficou mais assustada ainda. Tentei devolver o saco porque realmente estava muito pesado. Novamente, gritei: - Ôh, Sá Malvina, toma esse saco, de novo, aqui, porque está muito pesado. Não estou aguentando. Desta feita, nada consegui. O vulto foi, cada vez mais, andando rápido, distanciando, afastando-se da nossa frente. Desesperado: - Ôh, Sá Malvina pega esse saco, aqui. Não vou levar isso mais, não. Está muito pesado! - 31 -


Quando eu e a mula atingimos o pé do cruzeiro, o vulto, como que por encanto, desapareceu - subitamente - e a égua, aí, se soltou e cavalgou em desabalada velocidade, a mil por hora. Em pouco tempo, chegávamos à fazenda, onde meus pais me esperavam... ansiosos. O prezado leitor deve estar, como eu, curioso sobre esse saco pesado, do destino que foi dado a ele, o que continha. Perguntei, então, ao meu amigo, senhor Belo: - E o saco? Que fim foi dado a ele? Marotamente, me respondeu, de pronto: - Ah, sabia que o senhor ia perguntar sobre o meu saco. E, com o indicador, apontou-o: - Ora, eu o trouxe aqui, uai. Continuo com ele, até hoje, uai. Ah! Ah! Ah! E seu rosto se iluminou com um sorriso largo, debochado, vitorioso.

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A fábrica de linguiça de carne de burro

NA ZONA DA MATA das Minas Gerais, precisamente no Vale do Rio Doce, na década de 1950, vivia um fazendeiro de uma inteligência invulgar, e de uma grande capacidade inventiva. Antônio Batista Neto, conhecido como capitão Totonho Neto, era muito poderoso, e sua fazenda, talvez, a maior na época de toda a região. Recebera, inicialmente, quase todo o patrimônio como herança paterna e, por sua vez, durante toda uma vida, de luta diária e tenaz, havia acrescentado a parte reservada à sua mãe. Ali vivia, desde o nascimento, e nessa época, em companhia da esposa Dondina e das sete crias - três filhas e quatro filhos. Era respeitado, pelas plantações de café e de cana. Mas, sua paixão verdadeira era a pecuária. Como nada é perfeito, porém, toda a família convivia com um osso duro de roer – o filho caçula Chichico Neto, que padecia de um evidente déficit de inteligência. Tecnicamente, era um limítrofe, ou uma pessoa com quociente de inteligência entre o normal inferior e o deficiente mental. Naturalmente que essas pessoas, dependendo do meio social, das posses financeiras dos pais, do acompanhamento responsável de um ou de vários membros da família, dos desdobramentos do destino e das vicissitudes do dia-a-dia, podem conseguir desfrutar uma vida simples, porém, de boa qualidade. Infelizmente, essa não tinha sido, até então, a sorte do nosso personagem. O capitão, dona Dondina e os seus irmãos nunca se omitiram no cuidado amoroso e continuado com o Chichico Neto, tanto na ajuda aos seus afazeres escolares, quanto no acompanhamento, passo a passo, da sua vida, fornecendo-lhe feedbacks significativos, oportunos e frequentes. Apesar desse esforço motivador sério, conseqüente dos familiares, ele não conseguiu completar a educação primária e nenhum tipo - 33 -


de atividade profissional. Dentro do universo mesmo da fazenda se adaptou e persistiu. Seu pai sentiu-se, então, na obrigação de propiciar ao filho mais que uma fonte de renda, um trabalho, que o pudesse dignificar e inseri-lo socialmente. Dotado de uma excepcional capacidade inventiva, construiu um projeto de uma fábrica de linguiça de carne de burro, com características especiais para seu filho. Tal era sua adequada engenharia, que bastaria ao jovem apertar um botão no início do processo ou na entrada do curral de burros e, depois de um processo industrial de meia hora somente, conseguia-se, na outra extremidade do sistema, o produto final, ou seja, a lingüiça de carne de burro. Não se necessitava, praticamente, tocar nos animais e se exigia um número extremamente reduzido de empregados. Mandou construir todo o sistema estrutural em São Paulo, e instalou a fábrica, sem dar conhecimento ao Chichico Alvarenga e mesmo a qualquer dos outros membros da família. Tudo pronto, chamou seu filho e... Antes, porém, quero aqui fazer um pequeno comentário sobre a inteligência humana, mesmo sabendo que isso possa ser tomado, por algum leitor mais impaciente ou crítico, como uma digressão não tão necessária ao desenvolvimento dessa história, assumo, entretanto, sem medo, o risco. O que é a Inteligência humana? Visto por uma perspectiva histórica, pode-se dizer que, no início do século XX, as autoridades francesas solicitaram a Alfredo Binet e Pierre Simon que criassem um instrumento para a identificação de crianças com um retardamento intelectual que, no futuro, viesse a prejudicar as chances das mesmas no ensino formal. Eles estabeleceram, para tal, uma sequência de tarefas com dificuldade variando, desde as muito fáceis, que mesmo crianças muito jovens poderiam realizar, até as muito difíceis, que apenas adultos poderiam completar. Com base nessa sequência de tarefas, produziram o conceito da Idade Mental de um indivíduo (criança) como sendo a idade em que a maioria das crianças poderia resolver a tarefa mais complexa que o - 34 -


indivíduo, avaliado, era capaz de resolver. Assim, se um menino ou menina pudesse chegar a resolver somente até as tarefas que se esperaria que um sujeito de 10 anos de idade pudesse resolver, a Idade Mental desse menino ou menina seria de 10 anos, independente da idade real da criança (chamada de Idade Cronológica) situar-se acima ou baixo desse valor. De posse desta sequência de tarefas e do conceito de Idade Mental, foi criado o conceito de Quociente de Inteligência, definido como a razão entre a idade mental e a idade cronológica, multiplicando-se o resultado por 100, para evitar o uso do ponto decimal. Assim, uma criança com idade mental de 12 anos e idade cronológica de 10 anos teria um quociente de inteligência de 120, enquanto que uma criança com a mesma idade mental, porém com idade cronológica de 12 anos, teria um de 100 e outra, com idade cronológica de 16, possuiria um de 75. O Quociente de Inteligência surgiu como um prático indicador quantitativo da precocidade ou retardamento de uma criança, em relação à sua idade. Aquelas com quociente ao redor de 100 estariam dentro do desenvolvimento normal, aquelas acima de 100 seriam precoces e as abaixo de 100, retardadas, com o valor específico fornecendo uma medida da maior ou menor defasagem entre idade e intelecto. Algum tempo depois de criado, o quociente de inteligência de Binet e Simon foi levado aos EUA, onde foi revisto e transformado na Escala de Inteligência de Stanford-Binet. Posteriormente, surgiram vários outros testes do mesmo gênero, cada um com suas variações específicas, inclusive com variações nos valores da media e do desvio padrão, mas todos dentro do mesmo paradigma básico de comparação estatística entre o indivíduo e a população da mesma idade. Houve, também, a ampliação do espectro de aplicação do teste, para incluir a avaliação de indivíduos adultos. Durante várias décadas, o QI foi considerado como a única e perfeita medida da inteligência humana, abrangendo a totalidade do potencial intelectual de um indivíduo. De fato, inúmeros estudos apontavam para uma clara relação entre o nível de QI e o sucesso acadêmico e profissional. Como conseqüência, disseminou-se - rapidamente - seu emprego nas escolas, universidades, instituições gover- 35 -


namentais e empresas privadas, particularmente nos EUA, sendo o teste usado tanto para acompanhamento quanto para seleção. Thorndike, porém, na década de 1920 distinguiu outros tipos de inteligência: a prática - revelada ao nível das atividades concretas, envolvendo a manipulação de objetos e agendas; a social ou emocional - responsável pelos comportamentos na relação social; a abstrata ou conceptual - manifestada nas capacidades de compreensão, raciocínio, resolução de problemas e tomadas de decisão. A partir do final dos anos 70, diversos pesquisadores começaram a apontar várias falhas ou lacunas dos testes de QI, quanto à capacidade de abranger a totalidade das faculdades intelectuais de um ser humano nos diversos contextos e situações, como as limitações do potencial, em termos de prever o futuro sucesso pessoal e profissional. O QI, no entanto, continuou sendo uma medida expressiva da capacidade de lidar com uma lógica formal aplicada ao conhecimento acadêmico, num contexto escolar ou abstrato, e requisito imprescindível para atividades como: pesquisa científica, trabalho acadêmico, para utilizar a alta tecnologia, realizar cálculos e estimativas, escrever ensaios e artigos, realizar palestras, fazer avaliações e auditorias etc. Naturalmente, não media os fatores motivacionais, emocionais e ambientais, necessários ao sucesso, em qualquer atividade, tampouco os requisitos intelectuais associados a empreendimentos em contextos culturais diferentes dos mencionados. O teste de QI considera infradotadas as pessoas com quociente de inteligência igual ou menor de 74, abaixo da media entre 75 e 89, medianas entre 90 e 110, acima da média - entre 111 e 125 e superdotadas as de QI igual ou maior de 126. Ressalta-se que cidadãos listados no American Men of Science registram quocientes de inteligência em torno de 140; alunos diplomados Cum Laude, nas melhores pós-graduações, em torno de 150, e os grandes gênios do passado em torno de 180. Howard Gardner, psicólogo da Universidade de Harvard, em 1985, cunhou a Teoria das Inteligências Múltiplas, como uma alternativa para o conceito de inteligência humana, identificando a inteligência lógico-matemática, a espacial, a musical, a sinestésica, a interpessoal e a intrapessoal. Postulou que essas competências intelectuais são relativamente independentes, tendo sua origem e limites genéticos próprios e subs- 36 -


tratos neuroanatômicos específicos e dispõem de processos cognitivos, próprios. Segundo ele, os seres humanos dispõem de graus variados de cada uma destas inteligências, e combinações e organizações diferentes das mesmas, além de se utilizarem dessas capacidades intelectuais para resolver problemas e criar produtos. Ressalta que, embora estas inteligências sejam, até certo ponto, independentes uma das outras, elas raramente funcionam... isoladamente. Na sua teoria, Gardner propõe que todos os indivíduos, em princípio, têm a habilidade de questionar e procurar respostas, usando todas as inteligências. Todos os indivíduos possuem, como parte da sua bagagem genética, certas habilidades básicas em todas as inteligências. A linha de desenvolvimento de cada inteligência, no entanto, será determinada tanto por fatores genéticos e neurobiológicos quanto por condições ambientais. Ele propõe, ainda, que cada uma destas inteligências tem sua forma própria de pensamento, ou de processamento de informações, além de seu sistema simbólico. Estes sistemas simbólicos estabelecem o contato entre os aspectos básicos da cognição e a variedade de papeis e funções culturais. A noção de cultura é básica na Teoria das Inteligências Múltiplas (de Gardner). Com a sua definição de inteligência humana como a habilidade para resolver problemas ou criar produtos que são significativos em um ou mais ambientes culturais, sugere que alguns talentos só se desenvolvem porque são valorizados pelo ambiente. Afirma que cada cultura valoriza certos talentos, que devem ser dominados por uma quantidade de indivíduos e, depois, passados para a geração seguinte. Segundo ele, cada domínio ou inteligência pode ser visto em termos de uma seqüência de estágios: enquanto todos os indivíduos normais possuem os estágios mais básicos em todas as inteligências, os estágios mais sofisticados dependem de maior trabalho ou aprendizado. Em 1995, o psicólogo Daniel Goleman, no seu livro “Inteligência Emocional” retoma uma nova discussão sobre o assunto da inteligência humana, trazendo o conceito da inteligência emocional como a maior responsável pelo sucesso ou insucesso das pessoas.

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Destaca que a maioria das situações de trabalho é envolvida por relacionamentos entre as pessoas. Desta forma, aqueles com qualidades de relacionamento humano: afabilidade, compreensão e gentileza têm mais chances de obter o sucesso. Goleman destaca o óbvio: que não só a razão influencia nos nossos atos, mas a emoção também, responsável por nossas respostas e tem grande poder sobre as pessoas. Destaca, ainda, o controle do temperamento, a adaptabilidade, a persistência, a amizade, o respeito, a amabilidade e a empatia como habilidades emocionais, importantes para que uma pessoa alcance seus objetivos, seja feliz e obtenha sucesso na vida. Apresenta vários níveis de Inteligência Emocional: 1. O autoconhecimento emocional - conhecimento de si, de seus sentimentos, fundamental para que o homem tenha confiança em si (autoconfiança) e conheça seus pontos fortes e fracos; 2. O controle emocional – ou capacidade de gerenciar os próprios sentimentos, na medida em que controlar seus próprios sentimentos implica em se dar bem em qualquer lugar e em qualquer ato; 3. A automotivação – ou capacidade de realizar, colocando as emoções a serviço de uma meta e realizando tudo o que planeja, pois tem consciência de que todos os problemas são contornáveis e resolvíveis; 4. A empatia - ou saber se colocar no lugar do outro, perceber e captar o sentimento do outro, sugere que a calma é fundamental para que isto aconteça. Os problemas devem ser resolvidos por meio de conversas claras. As explosões devem ser evitadas, para que não se prejudique o relacionamento com os outros; 5. A aptidão social – ou a capacidade de lidar com emoções do grupo. Saber trabalhar em equipe é fundamental no mundo atual. Sendo os sentimentos mais fortes do homem a tristeza, a alegria e a raiva, é fundamental saber lidar com eles. As pessoas que sabem controlar suas emoções são aquelas que obtêm mais sucesso na vida. A influência dessa teoria, na educação humana, foi altamente positiva, pois chamou a atenção para o fato de que as escolas não devem preocupar-se apenas com a inteligência de cada aluno, mas com o desenvolvimento da sua capacidade de se relacionar bem com os outros e consigo. - 38 -


Nos últimos quarenta anos, oportunamente, as neurociências (principalmente a neuropsicológica), formularam uma teoria, dividindo o cérebro humano, estrutural e funcionalmente, em três cérebros - o reptílico, o límbico, e o cortical (cérebro triúnico), ou em três processos mentais fundamentais: o racional, o emocional e o prático. Estes três processos mentais, apesar de distintos, interdependentes e dinamicamente interligados, são sempre usados globalmente. Mas, a cada momento, um deles está no comando, em predomínio sob os demais, orientando nossa ação e recebendo colaboração simultânea em proporções diferentes dos outros dois, de uma forma complementar ou opositiva. Apesar de estes três cérebros ou três processos mentais terem características próprias, constituem um sistema funcional complexo, simultâneo, interdependente e possível de cultivo, ou seja, de melhorar a quantidade e a qualidade de seu desempenho. Assim, é necessário entender a inteligência não como a otimização de uma inteligência específica qualquer (seja racional, emocional ou prática), mas, sim, como o produto do uso das três em conjunto e separadamente, de acordo com a necessidade de cada uma, para o momento e a tarefa necessária para se atingir o fim almejado. É preciso também compreender a possibilidade de cultivar cada uma das três principais inteligências, por mecanismos e processos específicos para cada uma delas e que se deve sempre procurar atingir um nível proporcional entre elas, não privilegiando o cultivo ou uso de uma delas em detrimento das outras duas. Voltando ao fio da meada, o pai orgulhoso chamou seu filho e foi aonde a fábrica de linguiça de carne de burro havia sido, recentemente, instalada. O diálogo que se seguiu foi, mais ou menos, assim: - Filho, agora você vai poder provar sua inteligência e capacidade administrativa. Eu construí uma fábrica para que você toque a vida, com mais segurança no futuro e de maneira menos cansativa. - Ôh, Pai, que bom! - E como nossa fazenda é, estritamente, voltada à pecuária, resolvi botar uma fábrica de linguiça de carne de burro para que, nela, você trabalhe e administre. - Que maravilha! - 39 -


- O equipamento chegou de São Paulo, na semana passada, e a fabrica terminou de ser instalada... hoje. - Que bom! - Vamos começar aqui no curral de burros. Olha o sistema é muito simples. Primeiramente, você toca os burros e os bota neste curral. Depois, cada burro passa naquela estação de lavagem, ali, e toma um banho demorado. Em seguida, recebe um choque elétrico e é morto. Passa para o setor que tira o couro. A esteira leva o burro até a dessossadeira, onde é desossado, esquartejado e acaba nos ganchos de dessossamento. A carne, ainda na esteira, vai até essa máquina que separa a gordura e leva para a máquina de encher lingüiça. Lá embaixo, o único funcionário necessário, munido de cordinhas, coloca tripas na boca do cano de saída daquela máquina e começa a encher as linguiças. - Que maravilha, Papai! O pai continua entusiasmado: - Assim, filho veja que, sem você tocar no animal, durante todo o processo, basta apertar o primeiro botão, lá no curral, onde o burro entra e, dali a meia hora, ele está saindo aqui no final do processo, sob a forma de lingüiça. - Que maravilha pai! - Gostou mesmo, meu filho? - Uma maravilha! Posso fazer uma pergunta, pai? - Pode, filho. - Pai, quer dizer que eu coloco o burro lá e saí a linguiça aqui. Então, se eu comprar bastante lingüiça, e colocar aqui, tirarei o burro lá, né? O pai não perde sua fleuma: - Meu filho, acho que não. O único lugar onde enfiei uma lingüiça e saiu um burro foi na... da sua veneranda mãe.

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A amizade sincera

Alegre, comunicativo, expansivo - em linhas gerais - assim era o Ernesto. Nunca o vira triste, nem em ocasiões esperadas como a da perda de seres queridos, nos revezes da vida, ou naqueles períodos em que tudo dá errado. Há seres humanos que nascem inteiros, por natureza. De repente, porém, ei-lo cabisbaixo, sorumbático, abatido, perdido em si. Isolado. Pensativo. Logo, questionei sua esposa sobre a mudança de comportamento dele: - Que eu saiba, não houve nada, não. Tá tudo bem. A um colega seu de trabalho que encontrei, inadvertidamente, na rua, sem denunciá-lo, diretamente, procurei saber como ia o ambiente de trabalho e o desempenho dele, lá: - O Tavares - seu nome de família - que eu saiba tá bem. Algum problema? - Não. Não o vejo há muito tempo. - Ah. Eu, que me considerava seu amigo querido, se não seu mais constante, maior e fiel admirador, o interpelei, certo dia, pela manhã, e ele – prontamente - desabafou: - To muito contrariado, amigo. Vou, mesmo, é ver se me aguento. Surpreso, acrescentei: - Que isso, Ernesto? Alguém lhe sacaneou? - Ninguém. O problema é comigo. - Como assim? De saúde? Você fez alguma coisa? Dinheiro? estava ansioso e carente por uma explicação. - Não vejo saída, amigo. Passo na sua casa no final do dia. Prometo que lhe conto tudo. - 41 -


Insisti, ainda segurando-lhe pelos braços. Inútil. Abaixou a cabeça, deu-me as costas e partiu célere. Fui, amargurado, para o Hospital. Meu melhor amigo passando por um problema grave e nem, mesmo, podia saber como ajudá-lo. Pensei: - Estranho. O que será? Devo procurar a Ernestina e avisá-la; ou a algum amigo do seu serviço e pedir para ficar de olho no seu comportamento, protegê-lo, se necessário, sem o mesmo saber; ou ter com ele, de novo, e insistir para que me esclareça, agora mesmo, porque eu quero participar do problema e ajudá-lo. Não consegui, de pronto, decidir. O dia transcorreu, para mim, pesado, arrastado, amargurado. No final da manhã, liguei para o consultório do Ernesto, procurando-o. Sua secretária confidenciou-me: - Não veio trabalhar, hoje, até agora. Tive de desmarcar todas as consultas. Dona Ernestina também acabou de ligar e ficou muito preocupada. Passei a filosofar sobre a comunicação humana. Não me interessei pelos aspectos estruturais, funcionais ou mesmo linguísticos do tema. Prendeu-me a precariedade da condição humana, na sua expressão relacional. Como no século XXI, passada a fase dos tambores, do telégrafo e do rádio e, atingida a possibilidade da comunicação em tempo real de todos os humanos por todo o planeta, o homem ainda, às vezes, no âmbito do relacionamento interpessoal, interfamiliar, intersocial, não consegue se fazer compreender? Uma particularidade, porém, me dava tranqüilidade: tantas situações eu e Ernesto havíamos enfrentado juntos, nesses trinta anos de amizade, tantos segredos tínhamos já compartilhado, tantos sonhos ousáramos sonhar em comum, que ele, seguramente, sabia que meu coração, assim como meu entendimento e, mais ainda minhas mãos, estariam à sua disposição para o que desse e viesse. Pela minha cabeça, passaram num relance tantas lembranças. Nossa primeira experiência sexual aos quatorze anos, com a mesma parceira, nosso ingresso na Medicina aos dezessete, após a guerra do vestibular - concorrendo com colegas que já haviam feito um ano de - 42 -


cursinho dentro da faculdade – o então denominado pré-médico da Federal de Minas Gerais, nossos amores frustrados e intempestivos, nossa separação na residência médica, quando escolhemos especialidades diferentes, nossas dificuldades de sobrevivência na Grande São Paulo, durante essa última fase, e tantos outros momentos e segredos que são somente privilégios de uma amizade verdadeira. No início da noite, uma chamada de celular, que logo identifiquei meu amigo e, que se perdeu assim que atendi, após um breve intervalo. Retomei – imediatamente - a ligação: fora da área de serviço ou desligado. Inquietei-me mais ainda. Um seqüestro? E ele estava tentando estabelecer uma comunicação? Um último aviso desesperado? Uma tentativa de me avisar que não podia me encontrar naquela noite? Liguei para o consultório – ninguém atendia. Nova tentativa pelo celular: sem sucesso. Liguei para Ernestina: - Estou desesperada. Até agora, ninguém conseguiu falar com ele. Não foi trabalhar o dia inteiro. Ninguém sabe dele no Hospital. Seus colegas não o viram também. É muito estranho! - E os meninos não sabem dele, também? - Não. Tá todo mundo preocupado. - Ele lhe falou de algum problema que possa estar passando? - Não, e com você? - Também não. Não quis preocupá-la. Tranquilizei-a, e disse que passaria a procurá-lo. Combinamos nos falar, novamente, se algum dado novo aparecesse. Despedimo-nos. Passei a tentar comunicação com o Ernesto, pelo celular, a cada cinco e a cada dez minutos, e andei pela cidade como a procurar, em um palheiro, uma agulha. Passei no Hausmussen – nosso recanto de sábado pela manhã, após a visita médica do Hospital, onde vários amigos e colegas se encontravam para estreitar laços de amizade e para jogar conversa fora. Passei na casa da Sueli (uma sua antiga amante) mesmo ninguém tendo atendido ao chamado telefônico. Sou obrigado a confidenciar esse segredo antigo, já muito desfeito, por ter caído no domínio público, inclusive no da Ernestina. Quem sabe uma recaída? - 43 -


Passei no Minas Tênis Clube, unidade 2 e, até na unidade 1, que há muito não freqüentávamos, por ter ficado longe das nossas novas residências. Liguei para casa, em torno das vinte e uma horas. Minha filha Milena atendeu. - Cadê sua mãe? - Saiu. Deixou um bilhete pr´ôce. - Diz, se ela chegar, que vou demorar. Estou procurando o tio Ernesto, que deve estar em apuros. - O quê? - Depois lhe conto. Tchau. - Tchau. Continuei a caçada. Liguei para alguns colegas comuns. Nada. Ninguém o havia visto hoje. Liguei para Ernestina: - Toninho, o Ernesto me abandonou, confidenciou-me chorando. - O quê? - Isso mesmo. Acabou de sair de casa. - O quê? - Foi viver com outra mulher? - Quem? - Não quis me contar, soluçando. - Eu vou aí. Desliguei. Passei antes em casa, a meio caminho. Queria compartilhar com a Mariana a separação da Ernestina e do Ernesto. Subi ao segundo andar. Passei no quarto de Milena e ela já estava dormindo. Fui até meu quarto. Mariana não havia chegado ainda. Em cima da cama, um bilhete: Toninho, Perdoe-me. Estou tomando uma decisão muito penosa, sentida e definitiva. Há dois anos, vivo um conflito doloroso. Eu e o Ernesto nos apaixonamos. Estamos partindo para vivermos juntos. Que você


nos perdoe. Tentamos resistir, de todas as maneiras, por consideração e amor por você. Você não merece isso. Seja feliz. Mariana. Acordei Milena. Ela já sabia de tudo. Fomos juntos para a casa da Ernestina. E, a partir daí, Ernestina e eu fomos estreitando nossa relação. Há dois anos, vivemos juntos, ao lado de Milena, André e Marcos, uma prazerosa relação e, por que não dizer, um grande amor.

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O burrinho capricho

UM FAZENDEIRO TINHA UM BURRINHO, que apesar de sua longa serventia, não valia mais nada; nada mesmo – miúdo, decrépito, sonolento, já com suas duas orelhas caídas, olhos remelentos, um verdadeiro velhinho lá no pasto. Seu nome: Capricho. Apesar da menos-valia do seu animal de estimação e da sua atual longa fase de parcos ganhos materiais, ele era, por todos reconhecido, dono de uma valentia sem-fim e pela beleza, simpatia e sensualidade da sua amada esposa. Eis que um dos seus compadres, dos mais íntimos, vizinho de terra, há muito alimentava o desejo de querer cantar a bela comadre. E, há muito, vinha à ela se insinuando (aproveitando as ausências esporádicas do compadre) com pequenos presentes da sua horta, com palavras cada vez mais gentis e mesmo, às vezes, com inoportunas declarações do encantamento que a mesma causava à sua pessoa. O dia chegou. O coronel havia se ausentado, para negociar um gado; o compadre, aproveitando a situação, visitou a comadre. Sem muitas delongas, chegou e foi declarando seu desejo, há tanto, premeditado, protegido, encalacrado. A comadre não titubeou: - Ôh, compadre. Pode esperar, aí. Meu marido tá pra chegar. Vou perguntar pra ele. Que desastre! O compadre ficou sem lugar, ansioso, transtornado, antevendo as conseqüências do seu ato. Imaginou a reação natural de um marido traído pela mulher e pelo amigo. Pensou: - To morto. Ele vai me matar. Passou a arrazoar com a comadre as prováveis funestas consequências da sua despropositada denúncia. Por mais que tentasse, não conseguia, e mais sua ansiedade crescia. O fazendeiro chegou. Retirou o chapeu, o colete; as esporas, jogou-as num canto da sala. Cumprimentou o compadre, que então parecia mais um bicho acuado. Beijou a esposa que foi logo anunciando: - 47 -


por.

- Ôh, meu bem. Você não sabe o que o compadre veio nos pro-

- O quê? Conhecia bem seu amigo e suas trapaças e já foi se inquietando, mas sua esposa logo o tranqüilizou: tos.

- Ele veio aqui propor comprar o Capricho por quinhentos conO compadre não esperou: - Vim propor, não. Tá aqui os quinhentos contos.

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Medo de baratas

TRÊS RAZÕES, EU CREIO, foram fundamentais para Maria decidir se casar com José. A primeira delas, talvez a mais importante, era seu exagerado medo de baratas. A visão de um exemplar do pequeno inseto, em qualquer lugar e circunstância, liberava-lhe uma reação extrema de repulsa, que beirava o pânico, semelhante àquela, talvez, que um ser humano pode denunciar numa situação de ameaça de morte. Seu rosto sempre exprimia todo o seu horror; dava alguns passos para trás, para se distanciar (ao máximo) do perigo, e implorava a quem estivesse por perto, mesmo à uma criança, que matasse o feroz inimigo. A segunda razão era a de que ela acabara sua graduação em Administração de Empresas, em São Paulo, na São Camilo, o que apenas consolidara sua posição de membro da diretoria da empresa em que trabalhava, onde todos reconheciam e elogiavam suas exemplares qualidades de executiva. A última era: ao voltar à sua casa, no interior das Minas Gerais, por ocasião das festas de fim de ano, seu noivo, também conceituado médico, após cinco anos de espera, e ainda de luto pelo falecimento da mãe, precisava e insistia no matrimônio por todas as razões possíveis – sincero amor, necessidade de companhia, exigências do exercício da sua profissão. Claro que a mãe de Maria, verdadeira fã do genro, exerceu também uma inquestionável parcela de positiva contribuição com seu aconselhamento, quando a mesma presenciou a cena da filha desesperada por uma baratinha que aparecera, sem ser convidada na sala de espera, quando José se despedia de Maria numa noite de domingo. - Minha filha, você tem de casar com esse rapaz. Não vejo como você pode protelar tanto esse casamento com uma pessoa tão especial. Olha o jeito com que ele atendeu a seu pedido e matou aquela barata! Pra mim, é uma prova cabal do amor dele por você e do seu empenho para se casar contigo. Acreditem que um acontecimento tão, aparentemente banal, de pouca monta, ridículo para alguns, mesmo, instigou, no subconscien- 49 -


te, ou no consciente, alguma força misteriosa e três meses passados, eis Maria e José confirmando, perante Deus, amor e compromisso, numa cerimônia que marcaria historicamente o calendário festivo, local. Eu que acompanhei, desde o início do namoro, os pormenores daquela união, inclusive tendo estado presente à cena decisiva - a morte da baratinha - um exemplo intangível de covardia, dada a força exercida pelo noivo apaixonado esmagando com o sapato da noiva a indefesa intrusa, me perguntei como aquela barata doméstica pôde representar um perigo tão aterrorizante àquela bela, talentosa e altaneira senhorita. Após a linda cerimônia de casamento, na matriz local, celebrada pelo bispo regional e acompanhada por familiares dos noivos, amigos e expressiva parcela da sociedade foram para a festa de cumprimentos dos recém-casados. Eis que lá, pelo meio da recepção, divisei um colega do noivo, psiquiatra, e apesar do mesmo já denotar alto teor alcoólico, e também achar que um psicanalista, talvez, fosse mais bem indicado, porque deve ser muito mais afeiçoado à leitura e mais comprometido com esses pequenos senões do ser humano - como o medo de baratas - eu me arrisquei a arguí-lo sobre o tema em questão. Fui até muito bem recebido na minha curiosidade e me pareceu muito clara sua explicação, apesar da sua voz muito arrastada e de ter se agarrado à minha gravata nova, durante toda a explanação: - Olha, senhor Justino, são mistérios do inconsciente. Uma mulher, como essa, é neurótica - claro que não havia nomeado a noiva como detentora daquela peculiaridade, ainda mais em atenção ao dia das suas núpcias. Ela tem fobia, uma das reações de defesa ou de adaptação do neurótico. O neurótico se defende pela fobia, pela ansiedade ou pela depressão. Fobia é um temor ou aversão exagerada de confronto a situações, objetos, animais ou lugares. Caracteriza-se pelo pavor desmedido de quem a tem, que mesmo sabendo do caráter ridículo ou inofensivo dos seus medos, não consegue controlar-se. Acrescentou, logo: - As baratas são insetos de hábito noturno, durante o dia, escondem-se em frestas de muros, embaixo de pedras ou em esgotos. A grande maioria das baratas é terrestre, porém existe uma pequena parcela de representantes aquáticas. À noite, elas deixam seus esconderijos, em busca de alimentos. Por isto, é comum encontrarmos estes insetos, nas nossas cozinhas ou em lugares com resíduos e/ou detritos orgânicos. Existem, no mundo, cerca de vinte espécies de baratas - 50 -


domésticas, e, no Brasil, a mais comum é a Periplaneta Americana. O medo natural, de baratas, se justifica por habitarem regiões inóspitas (esgotos, monturos etc) e por transmitirem várias moléstias ao homem, além de poderem contaminar nossos alimentos. Não é raro, à noite, elas roerem também os lábios humanos, no canto da boca, principalmente de crianças, ocasionando uma erupção conhecida como “herpes blattae”. Porém, a existência deste repugnante inseto justifica sua importância ecológica, como recicladora da matéria orgânica. Finalizou triunfante: - Li, alhures, que as mulheres além de terem medo das baratas subirem pelas suas pernas e quererem entrar num lugar que o senhor sabe onde, elas, as baratas, por serem nojentas, e virem de lugares sombrios e escuros, representam magicamente uma ameaça contundente às defesas neuróticas delas por poderem despertar cenas traumáticas infantis ou desejos, há muito, reprimidos e perigosos. Apesar de o médico ter vomitado no colarinho da minha camisa, porque pronunciou todo o seu discurso, além de agarrado à minha gravata, com a boca ao pé do meu ouvido esquerdo, como se me confidenciasse um autêntico segredo, fiquei realmente surpreso pela sua sábia e coerente resposta. Três anos se passaram. O casal, cada um a seu turno, progrediu na profissão. Uma moderna residência foi construída, e já estavam preparando o primeiro herdeiro ou herdeira, quando, sem muita explicação, o marido começou a não querer matar barata que, venturosamente, se insinuasse à visão da sua esposa. Chegou mesmo, algumas vezes, de maneira infeliz, a propor que a mesma procurasse uma ajuda psicológica para resolver aquele desconforto que já começava a angustiá-lo, também. Maria, prontamente, aceitou a sugestão e começou a fazer uma análise com um psicanalista da capital, muito bem conceituado e nomeado por algumas das suas melhores amigas. Dois anos após, Maria se divorciou de José, na medida em que aprendeu a conviver com as baratas, guardando ainda uma razoável dose de repulsa pelas mesmas, mas já sem a necessidade de sacrificálas, muito menos da maneira impiedosa com que costumava fazer. Mudou-se para São Paulo, seis meses após o falecimento da sua mãe. José? Casou-se com uma prima, de jeito manso e costumes caseiros, apesar de apresentar todos os medos do mundo – elevador, - 51 -


altura, de ladrão, ser abandonada, falar em público, da morte – nunca evidenciara o mais leve temor por baratas.

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Cidadão Roque Hudson da Silva, vulgo: Dinho Boiola

ROQUE HUDSON DA SILVA, nome de registro. Dinho Boiola, apelido. Dinho, porque amado pelas crianças, era assim por elas nomeado. Boiola, porque discriminado pelos adultos que classificaram sua exuberância, sua extroversão e seu modo efeminado por este epíteto. Ninguém ficava triste, perto do Roque Hudson da Silva. Desde pequeno, sua extrema capacidade de comunicação envolvia todas as pessoas – velhas, adultos, crianças – e sua exagerada disponibilidade para o próximo fizeram-no uma figura pública e presente, em quase todos os eventos e lugares da sua pequena cidade. Aos dez anos, no meio do quarto ano primário, teve de abandonar a escola, pela morte inesperada e acidental do pai, pedreiro, em queda livre de um andaime e iniciar a carreira de engraxate. Passou, diariamente, a deixar sua casa na periferia, antes do alvorecer e, junto à mãe, andava quase dez quilômetros até ao centro da cidade – ela para trabalhar como empregada doméstica do Juiz de Direito. Ele, para conquistar seus clientes em frente à rodoviária local. Filho único de pais simples, amorosos e acolhedores, viveu uma infância tranqüila. A falta do pai foi logo substituída pela amizade e pelos conselhos do senhor Zé Pereira, que tinha uma sapataria perto da rodoviária, onde ficava esperando sua mãe, no final da tarde, para ambos retornarem a casa. Acredito que o afeto e o interesse do sapateiro eram dirigidos a ambos – Dinho e sua mãe – porque viúvo e solitário o mesmo, às vezes, se insinuava para Dona Clotilde, com olhares de bicho pidão. O tempo passou, e Dinho Boiola foi morar com o senhor Zé Pereira, pois sua mãe se amasiou com um cabo da Policia Militar reformado, que abandonando sua família, deu assim, à sua amada, evidente prova do seu bem-querer, possuído - muitas vezes - por violentos ataques de raiva que acabavam, eventualmente, em imerecidas agressões físicas a ela. - 53 -


Nosso protagonista aprendeu, com louvor, a técnica e a arte de como lidar com os sapatos, passou a estudar durante a noite, completou o segundo grau e se tornou um sócio e filho do protetor amigo. Ambos preocupavam-se com a sorte da Dona Clotilde, quando avisados por outros (ela nunca confidenciou, nem reclamou nada) das tristes cenas de covardia e brutalidade encenadas pelo militar, quando alcoolizado. A esposa do Juiz foi a primeira a fazer alguma coisa concreta, no sentido de ajudar sua empregada. Pediu ao delegado de policia, amigo do seu marido, que desse uns conselhos ao agressor. - Doutor, amo minha Clotilde. Tenho de parar é com essa bebida miserável. Foi avisado que, numa próxima investida do seu furor, seria detido, sem piedade. Dito e feito. Ficou preso numa cela, trazido pelos seus antigos companheiros de farda, por três dias - na primeira vez, por quinze na segunda e por um mês, na terceira, sendo que, nessa oportunidade, passou depois da bebedeira a cooperar na administração da cadeia. Eis que surge um inesperado. O senhor Zé Pereira defende-se de uma visita noturna na sua sapataria e luta com o ladrão, mata-o para se defender - com um estilete do seu ofício. Preso em fragrante, apesar de evidente seu ato em defesa própria, aguarda o julgamento na cadeia pública, com os privilégios que sua pessoa merecia dos homens da lei. O senhor Zé Pereira compartilhava, com o cabo Antônio Constâncio, muitas semelhanças: ambos eram homens de reconhecidos serviços prestados à comunidade, quando das suas vidas úteis profissionais, os dois tinham a mesma idade e índole no bom trato para com as pessoas. O primeiro sofria da solidão por haver perdido a esposa, da falta de filhos naturais e de uma companheira efetiva. Ao outro sobravam os filhos que se mantiveram amigos, tinha uma mulher serena e de boa índole, mas o álcool enquanto maior inimigo. Os dois ficavam livres, durante o dia, e, à noite, se recolhiam à cadeia pública e à proximidade, e até talvez ao afeto comum – Dona Clotilde – com o tempo, se não fraternos, ao menos se fizeram confidentes e cúmplices no cuidado do Dinho Boiola e de sua mãe. O - 54 -


sapateiro, com a sabedoria que lhe era peculiar e muita paciência, foi o segundo a fazer o militar procurar ajuda para se libertar da bebida, guiado por um propósito íntimo e oculto de defender aquela que fora, há muito, amada e desejada. Ia me esquecendo de dizer que o nosso Roque Hudson da Silva, já com seus vinte e um anos, não era mais incomodado com o apelido preconceituoso, porque - apesar de não ter tido ainda nenhum relacionamento amoroso ou afetivo com quaisquer das inúmeras pretendentes que lhe assediavam - e que com o tempo se tornavam boas amigas, mas muito mais ainda, creio eu, pelo seu atual porte físico volumoso, corpulento, avantajado, que - naturalmente - não mais convidava o próximo a lhe fazer gracinha. Sua voz assumira um tom mais viril, seus trejeitos se dissimularam, ao longo do tempo, e mesmo sua sociabilidade se restringira. O agora Dinho se tornara um cidadão comum, de segundo grau escolar, de profissão: sapateiro, e refém das mesmas vicissitudes do cotidiano, que todos os cidadãos de vida simples vivem, por opção ou por não haverem tido oportunidades de sonhar sonhos e alcançar posições privilegiadas. E como quem avisa amigo é, a terceira pessoa que veio a se confrontar com o Antônio Justino foi o próprio Dinho, numa infeliz tarde de domingo, quando foi visitar sua mãe e presenciou o amante alcoolizado e enfurecido montado em cima dela, na sala de visitas, a esmurrá-la. Sem muita dificuldade retirou o agressor, com murros e pontapés, e ouviu o que, há muito, não ouvia: - Seu viado, fudido! O cidadão Roque Hudson da Silva, hoje, está preso na cadeia da cidade natal, por homicídio, com o agravante de ter separado a cabeça da vítima, do seu corpo - todo perfurado por um facão caseiro. Cumpre a pena máxima que a esses crimes hediondos é reservada. E como a opinião pública tem suas próprias razões, que só Deus pode compreender, tendo de ouvir, todo dia, de alguns cidadãos que transitam na rua próxima à sua cela, a nova provocação: - Ôh, Dinho Boiola! - Ôh, Dinho bandido!

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Comer, coçar, fornicar? Cuidado, se começar é difícil parar...

- Ângela! - Quem é? - Eu! - Um momento. Passos na escada, do segundo para o primeiro andar da casa. Abre-se a porta da frente. - Homem doido! Que cê ta fazendo aqui? Tá bêbado, de novo, né? - Vim te vê. Quero-te agora. - Olhe, cê tá passando dos limites. Não faz assim, não! Eu já lhe pedi. Vai, lhe encontro na Sueli, à tarde. Vá! Voz no segundo andar... - Ângela, quem tá aí? - To subindo, amor. Quarto do casal, minutos depois. - Quem era? - Tadeu. Um saco! Enche a cara e vem desabafar comigo. Não agüento mais. - Estranho... - O quê? - Esse indivíduo ter a liberdade de vir aqui, numa hora dessa, falar com você! - Ôh, amor! Ele acostumou na campanha, né? Cê que deu muita intimidade pra ele, lembra? Mas, hoje fiquei assustada também. Amanhã eu falo com a Sueli. Quer um cafezinho, amor? - Não, obrigado. - 57 -


- De nada. Vamos dormir, que amanhã o dia tá cheio. O bicho vai pegar! Boa noite, amor. - Boa noite. Ângela deita-se de lado e dá as costas ao marido. Aquela situação, ultimamente, era quase uma rotina. Até o acidente da mãe dela, ele a puxava, com carinho, pelo braço e ela sempre correspondia. Pensou: - Nunca neguei fogo. Mais reflexiva: - Quase todo mundo, na rua, me elogiando... As mulheres... Os homens... Parece que... Ultimamente, parece até... Parece que todo homem qué me pegar. Arnaldo tá doente. Só pode ser. Não gosta mais de mim? Não. Outra? Não. Se fosse, eu já tava sabendo. Mas e eu? Também... mudei. Não o procuro mais. Cansei. Assim ficou melhor. Olha o bandido. Já tá dormindo e roncando. Filho da puta! Eu devia é... Uma voz entra pela janela do quarto: - Ôh, Ângela! Eu te amo, sua desgraçada! Ângela! - Nossa, ele não foi embora ainda! Num átimo, a televisão e o ar condicionado são ligados. A porta é fechada. Ainda se ouve, à distância, com muito menor intensidade: - Ôh, Ângela. Sua desgraçada! Passos, escada abaixo. A porta da frente abre-se e é fechada, por fora. - Não tenho outro jeito, pensa Ângela. Projeta-se para Tadeu, os dois caem e se enroscam na grama do jardim frontal da casa, lado oposto do quarto do casal. Meia hora, talvez quase uma, passos... escada acima. Ângela percebe que o marido dorme, profundamente. Vai ao chuveiro. Água fria. - Merda. Tenho que lavar meu cabelo, de novo. Termina o banho, rapidamente. Troca a camisola. Vai à varanda. Senta e começa a fumar um cigarro. Lembra, mais uma vez, aquele - 58 -


primeiro dia. - Puxa, cinco anos... já! Foi tudo muito de repente. A campanha do prefeito – vitoriosa por sinal, e a gente bem que colaborou... Visitando os eleitores na periferia. Ele gentil, se insinuando, cada dia, mais. Eu, deprimida. Ele me escutando, se disponibilizando, me amparando. Fomos nos tornando confidentes, cúmplices. Um dia, aceitei um carinho no carro. Aconteceu. Resisti, nas outras vezes. Fui deixando. Começou a ficar perigoso. Tentei fugir um tempo. Ele não deixou. Passou a me procurar - insistentemente. Quando conseguia ficar a sós comigo, me abraçava, me beijava, me comia com paixão, obsessão, loucura. Passei a ter muito medo. Estava ficando tudo muito perigoso. Não adiantava resistir mais. Pedi, insistentemente, pra ele me deixar em paz. Aí que não adiantou mais, mesmo. Ele vinha pra frente aqui de casa e ficava horas me esperando, até que eu saísse. Pelo celular, ia insistindo: - Desça, que te quero agora - e eu descia. Ângela acende outro cigarro no que está acabando. Da varanda, vê as luzes do bairro, e com o olhar acompanha, eventualmente, algum carro que passa pela rua principal, a duas quadras da sua casa. - Fui ao médico. Psiquiatra. Ele me disse: - Isso é paixão. Igual dependência de droga. - Quis saber quem era ele. Eu não falei. Perguntou se havia contado para alguém – amiga, família... - Disse que ninguém sabia. Mas, a Sueli sabe. Ela guarda segredo. - Repetiu, pra mim, várias vezes na consulta, é paixão. É droga. É relação perigosa. Às vezes, uma situação interminável. - Mostrou-se muito interessado no meu caso. - Remédio não adianta, deixou bem claro. Sugeriu psicoterapia. - No fim da consulta, disse: Sei que você não vai voltar mais aqui. Nunca ninguém volta numa circunstância dessas. Seu vínculo com ele se tornou muito forte. Tá sujeito ninguém conseguir mais interceder. E se você não voltar aqui, eu não posso ir atrás de você, sabe? - E eu não voltei mesmo. Voltar pra quê? O barulho do ar condicionado interrompe-se, bruscamente. - 59 -


Acende-se a luz do quarto do casal. Ângela sorri: - Três horas, pensa. Arnaldo é igual relógio. Acorda todo dia, nessa hora, pra mijar. Ela sabe que ele sempre vem, em seguida, pra varanda, quando não a encontra no leito. Vem fumar um cigarro; juntos. Aí sobram carícias, carinhos e quase sempre... sexo. Fica excitada: - Ele sempre gosta de me comer mais é aqui mesmo. É sempre muito carinhoso, preocupado com meu prazer, muito paciente. A relação é sempre muito diferente uma da outra, sem pressa, prazerosa. Sorri, lembrando Tadeu: - Um animal. Seu desejo é o de um bandido – vem para matar ou morrer. Come rápido, como se tivesse faminto, sempre com voracidade, não mastiga. Chega e vai lambendo, chupando, mordendo, amassando e entra... Ah, como entra! Até o fundo. Devo esclarecer, aos leitores, que Arnaldo e Ângela era um casal admirável. Seis anos, já, de casados. Ambos de famílias abastadas. Ângela, à qual a natureza foi pródiga, quando lhe distribuiu beleza, inteligência, candura, amabilidade, simpatia, é muito mais rica do que o marido. Trinta e três anos. Socióloga, doutora na Sorbonne, leciona Ciências Políticas numa das Faculdades locais. Respeitada, tanto pela excelência do desempenho acadêmico, quanto pelo envolvimento na política local. Uma especialista natural no contato com o povo, no trabalho de campo, na conscientização ideológica das pessoas pobres da periferia. Arnaldo, quarenta anos, advogado, administrador de parte da fortuna da sua família, principalmente do setor imobiliário e de laticínios. Seu sorriso constante, além de anunciar sua felicidade, inspira aos outros: confiança, intimidade, liderança. Ambos de formação evangélica, íntimos pela grande amizade entre as duas famílias se conhecem e se relacionam, desde muito jovens. Houve um início de namoro, quando Ângela se graduou, um intervalo no período de mestrado e doutorado, e - logo que ela retornou para a cidade natal - não demoraram a ficar noivos e se casarem. Não sei se vem ao caso, até mesmo para caracterizar a pureza do casal, antes do casamento, lembro que, há menos de um mês da - 60 -


cerimônia nupcial, num momento de intimidade, Arnaldo disse à Ângela: - Tem uma coisa que quero te pedir. - Diga, amor. - Pode ser uma bobagem minha? - Não importa. O que é? - Acho você tão linda, tão sublime! Uma princesa... - Meu bonitão! E aí? - Deixa eu te ver, totalmente, nua? Incontinente, Ângela fechou a porta do quarto, na sua casa, e se despiu. Peça por peça, com toda a naturalidade. Arnaldo se mantinha numa distância de dois a três metros, admirando-a. Olhou-a de frente, por trás, de cada lado, e ficando, novamente, mais perto da amada... beijou-a na testa e, abraçando-a ternamente, disse: - Ângela, você é tão sublime, tão linda, tão maravilhosa! Você me ama? - Amo, e pra sempre, amor. Arnaldo foi pegando, cada uma das peças de roupa de Ângela, do chão e dando a ela para a mesma se vestir. E como se houvessem combinado, abriram a porta do quarto e, de mãos dadas, foram dar uma boa caminhada pelas ruas próximas. Os dois estavam felizes, amorosos, serenos. O casamento celebrou aquele amor, seis meses após. Três anos se passaram. O relacionamento do casal e o comportamento de cada era uma dessas exceções de excelência em que não conseguimos encontrar um senão no caráter, no temperamento e no trato, entre eles e o próximo. Aí veio o falecimento da mãe da Ângela. O veículo dirigido pelo cunhado dela transitou, excessivamente, veloz numa estrada asfaltada, quando iam duma das fazendas da família à capital da Bahia, desgovernou e projetou-se... morro abaixo. A mãe dela saiu pela janela e, horas depois, foi encontrada morta, com fraturas múltiplas e o rosto, totalmente, desfigurado. O pai da Ângela, após o resgate e de haver recebido os primeiros socorros, num hospital próximo, foi levado de avião para Belo - 61 -


Horizonte (politraumatizado, com fraturas nas costelas, hemorragia pulmonar e insuficiência respiratória). Permaneceu quase um mês no CTI, num hospital de renome nacional, dois no quarto, e, quase três, em tratamento ambulatorial. O outro casal não apresentou nenhum dano físico, relevante. Ângela, apesar de ter herdado do pai a coragem, a determinação, a facilidade de comunicação com as pessoas, pela sua legítima espontaneidade, tinha - da mãe - o colo, o aconchego, a proteção. Era difícil saber qual das duas era mais terna e bonita. O luto pela mãe e o acompanhamento dedicado, durante a recuperação do pai, apesar do apoio irrestrito do marido, tornou a relação dos dois um tanto melancólica. Ela, muito sensível, fragilizada, quem sabe, um pouco deprimida, após a recuperação do pai, voltou a visitar os eleitores, sempre em pequenos grupos de elementos do partido de esquerda que, há muito, se filiara, e que se propunha, nesta época, e com chances reais, conseguir a prefeitura local, depois de quase vinte anos de comando de partidos mais de direita ou centro-direita. Então, conheceu o Tadeu e sua irmã Sueli, e o relacionamento entre eles e o Arnaldo foi se estreitando. Algum tempo havia se passado, desde o despertar do marido, e Ângela estranhou ele não ter vindo ainda para a varanda. Ia se encaminhar ao quarto, o telefone tocou e Arnaldo atendeu. Relaxou-se, novamente. Não demorou muito – um estampido no quarto. Em segundos, alcançou o quarto do casal. - Meu Deus, quê isso, amor? Arnaldo, com um revólver na mão direita e a esquerda comprimindo a região do coração, estava agonizante, caído ao lado da cama. - Quê que cê fez, amor? – suplicando uma resposta. - O vizinho.... ligou... Você está me traindo... Com Tadeu... Viu vocês dois... da casa dele. - Não! Não é bem assim. Eu quero lhe explicar, amor! - Você disse... que ia ... me amar... (...) Para... sempre. Ângela, já ao lado do marido, de joelhos, em prantos, beija sua testa. Pega o revólver da mão dele, se afasta quase dois metros, sentase encostada na parede e atira no próprio peito. O marido, já sentindo a respiração quase impossível, quem sabe num último gesto de amor,


rasteja até o corpo de Ângela, pega novamente o revólver, se distancia o máximo possível dela rolando seu corpo e se deita de lado com a arma voltada para seu peito. A perícia criminal parece que acudiu à nobreza de Arnaldo e foi talvez também influenciada pelo grande poder financeiro e pela tradição da família de Ângela. Realmente, não houve muito empenho na determinação da verdade. A conclusão do laudo foi lacônica e direta – o marido havia matado a mulher e suicidado. O pai de Ângela suportou a vida, ainda três anos, e faleceu de morte súbita, talvez de um infarto agudo do miocárdio. A dependência por álcool do Tadeu levou-o primeiro a perder a clientela – era psicólogo. Em pouco tempo, desenvolveu uma cirrose hepática e teve sua primeira internação por hemorragia digestiva de ruptura de varizes do esôfago. Sua esposa, com suas duas filhas, foi morar com os pais dela, até porque chegou a não ter a mínima condição de sobrevivência para ela e as meninas. Tadeu, cada vez mais, foi sendo assumido por sua irmã Sueli, pela necessidade de constante assistência médica e pela tentativa de sua aposentaria por invalidez física e mental, aos quarenta e três anos. A segunda hemorragia digestiva inundou-lhe os pulmões, e morreu nos braços da irmã de anemia e insuficiência respiratória aguda. Ah, ia me esquecendo: o vizinho delator morreu de velhice, sempre guardando - em segredo - seu imenso amor, nunca declarado por Ângela.

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A velha morada da Curupaiti 359

ONTEM, EU VOLTEI à velha casa da Curupaiti, 359, onde minha família de origem viveu - o Sô Ataíde, a Dona Iracema, meus irmãos, eu, e alguns parentes que moraram conosco por algum tempo por ajuda. Ali, primeiro e último refúgio dos nossos pais do casamento até falecerem, cresci, formei e mandei-me, no início da minha vida adulta. Meu pai foi o primeiro a partir, para sempre - quase duas décadas. Minha mãe, há cinco anos, no dia anterior da tragédia do 11 de setembro do World Trade Center. Quando perdemos nossos pais, e já somos maduros na idade, dois sentimentos logo nos assaltam. O primeiro é que somente aí passamos a perceber que também vamos morrer, ou que aquela pretensa imortalidade, mais própria da juventude que - até então, veladamente - nos acompanhava, não é mais possível. O segundo é que sem esses dois, pai e mãe, elementos fundamentais da formação das nossas cabeças, apesar de ausentes, para sempre, continuam nas nossas razões, sentimentos e ações, no diaa-dia. São, sem dúvida, duas ausências que permanecem conosco, eminentemente, presentes; sempre. Parei o carro na frente da casa, e não desci. Fiquei olhando aquela, ontem, nossa querida morada, ponto de partida para nós, filhos, para o mundo dos homens, e demorei-me a observar e pensar nossa vida anterior, na perspectiva do hoje. Interessante. Não, assustador. Na parede frontal dela, entre as duas janelas, e em cima da porta da frente, duas placas anunciavam que ali se instalaram duas instituições de prestação de serviço - um laboratório de análises clínicas e uma clínica de acupuntura. Um misto de perplexidade, desconforto e saudade me perturbou, e realmente não sei dizer qual destas sensações era a maior. - 65 -


Um sem número de impressões foi se aninhando na minha mente, de todos os matizes, tamanhos e significações. Lembrei minha mãe lavando roupa no tanque da varanda dos fundos, e eu chegando, anunciando exultante: - Passei - e era em medicina (e na federal) aos dezessete anos. Ingente vitória para a época, e mesmo agora, para um jovem de periferia, de classe média. E ela, emocionada: - Eu sabia. Temos de ir a Roças Grandes pagar a promessa para Santo Antônio. Veio à lembrança as personagens daquele retrato de família, em frente ao portão da garagem, que guardo até hoje: meu pai, à paisana, sorrindo, minha mãe com seu habitual vestido cinza listrado, minha tia Tereza, meu primo Beto, meus dois irmãos, Welther e Hedda, e eu com quatorze anos, segurando com uma das mãos o cinto e sorrindo, despreocupado e maroto. Vejo-me saindo - em desabalada - pela porta da frente e me encaminhando para a residência do Doutor Clodoaldo Avelino, distante seis quarteirões, em busca de socorro para meu pai encontrado desmaiado, após ouvirmos um barulho surdo, e eu e meu irmão termos arrombado a porta do banheiro. Acompanho-me, correndo por todo o percurso, chorando, desesperado, cruzando no caminho com um bonde em direção oposta, e pedindo a Deus (interiormente e em seguida ao médico), após - com muito custo - ele me ter atendido à sua porta, para socorrê-lo e salválo. Mais tarde, no Hospital São José, o diagnóstico de insuficiência da supra-renal, pelo uso imoderado de corticóide para um eczema inguinal bilateral, hipotensão e queda ao solo. Era adolescente e, por horas, achei que havia perdido meu querido pai. A casa era a mesma. A pintura da parede frontal, também. Nela, o enfeite de pedras de ardósia... preservado. As grades das janelas não mudaram. Os moradores, porém, outros, indiferentes aquele passado para nós tão importante e ainda tão vivo em minha memória. Quem sabe que no quarto que nasci, cresci e me formei, um profissional da acupuntura agora desempenha sua função e a sala de estar da frente é sua sala de espera? - 66 -


Bem provável que no quarto dos meus pais, cozinha, varanda e quarto dos fundos, clientes são atendidos para análises clínicas de seus sangues, urinas, fezes e de tantas outras secreções humanas. Mas, como pode tanta indiferença, tanta insensibilidade, tanto desrespeito mesmo, de todos dali e das coisas do mundo com nossa família e com nosso passado? Um homem de meia-idade, cabelo grisalho, vestido de branco dos pés ao pescoço, sai da casa e do passeio, e pelo vidro aberto do carro, me pergunta: - Precisa de alguma coisa? Esperando alguém? - Não, obrigado – respondo balançando a cabeça, lentamente e com cara de poucos amigos. Apesar das vinte horas passadas do dia, as luzes ainda estão acesas, e - pela janela da frente – vislumbro, eventualmente, algumas pessoas em movimento, lá dentro. Penso: - Vou entrar. Fico indeciso: - Mas para quê? O tempo passou. A realidade é outra. O que me adianta dizer para essas pessoas que agora transitam tranqüilamente pela casa, que ali cheguei feliz após o encontro com minha primeira namorada, que ali fiz minha primeira poesia e minha primeira música ao violão, que também ali nossa família se reunia, no dia das mães e no dia após o natal? Sentávamos à mesma mesa, nos mesmos lugares, comíamos a mesma comida, feita pela nossa mãe, sempre seguida do mesmo pudim de leite e encerrado pelo mesmo saboroso e cheiroso café. Não, eles vão morrer de rir. Ligo o rádio do carro. Procuro e sintonizo a AM em 850 Kilociclos. A mesma que, muitas vezes, meu pai e eu ouvíamos, baixinho, na sala de estar, até quase a metade da madrugada. Ele a conferir as contas da Tesouraria Geral da Policia Militar de Minas Gerais, acendendo um continental no outro, e eu a estudar aqueles livros dispendiosos, na época, para nosso poder aquisitivo, grossos, com cheiro de novo, de Anatomia, de Fisiologia, de Bioquímica do primeiro ano do curso médico. - 67 -


Lembro-me do João Leão, do Fernando, seu irmão, e do Zé Nico da Dona Geralda, meus colegas do Grupo Escolar Professor Morais, no bairro Padre Eustáquio, da capital mineira. O João foi ser engenheiro, casou-se, desquitaram-se, seus cabelos já estavam todos brancos na última vez que o encontrei, há dez anos. Sua gargalhada larga e fácil, porém, era a mesma. O Fernando não quis passar do segundo grau, seu casamento vingou, criou família, na época, duas meninas, hoje, devem estar já beirando a menopausa. Que calamidade! O Ninico, da Dona Geralda, não passou do primário. Foi caminhoneiro. Meu olhar dirige-se para a rua de baixo - Olinto Magalhães – hoje, única via de retorno do bairro para carros e ônibus para o centro da cidade. Na esquina, ainda funciona o bar do Sô Arnaldo da Dona Geralda, com outro proprietário, desde a morte de ambos, há quinze anos. Dona Geralda, minha mãe de leite, e amiga da minha mãe. O passeio do bar, que dava para a Curupaití, era o ponto de encontro, meio século antes da patota que ali viu televisão, pela primeira vez, e dali partia para as partidas de futebol de meia nas ruas próximas, para as disputas de futebol de botão, principalmente, na casa do Lincoln e para as descidas em carrinho de rolimã, no morro do aeroporto próximo – ONTA. Eu, então com dez anos, era talvez o mais novo da turma. Revejo a Dona Maria, minha avó materna, que morreu de derrame cerebral, aos noventa e quatro anos de idade e até então plenamente lúcida e cruzeirense doente, sob meus cuidados, já como médico recém-formado, no Hospital Militar. O amor pelo Cruzeiro, do meu irmão mais velho e meu, nasceu a partir dela. O cruzeiro desta época era o de Tostão, Dirceu Lopes e Piazza, e quantas vezes ela nos acompanhou ao Mineirão! Ela era como uma madrinha no bairro do time. As paredes do seu quarto eram repletas de retratos dos jogadores, individualmente ou de suas formações campeãs. Assistia a todos os programas esportivos da época, durante a semana e aos jogos, sozinha, trancada no seu quarto, pela Guarani, ajoelhada, com o terço na mão, rezando - inclusive no intervalo - e ouvíamos do lado de fora pedidos desesperados do tipo: - Ôh, Santo Antonio fica com o Raul no gol! Ôh, Virgem Maria, ajuda o Tostão a marcar este pênalti! Ôh, São - 68 -


Judas, não deixa o Cruzeiro perder! E, parece que naquela época, todos os santos dos Céus conspiravam a seu favor e do Azul Celeste. Se o resultado era desfavorável, no dia seguinte, ia a pé da nossa casa até a da tia Onésima – dez quarteirões - e por toda a Rua Padre Eustáquio ouvia sempre das mesmas pessoas conhecidas provocações: - Ôh, Cruzeiro! E recebiam, em alto e bom som: - Vai à merda, seu filho da... Todos a conheciam e recebiam o nome da mãe, em meio a deliciosas gargalhadas. De novo, o homem de roupa branca voltou e: - Você não é o Carlinhos da Dona Iracema? - Sou. - Ôh, Carlos, imagino por que você deve estar parado aí e pensando. Sou o Geraldo, filho do Zé farmacêutico. Meu pai comprou a casa, você sabe? - Sim. - Eu minha mulher nos formamos em Fisioterapia e Farmácia, e trabalhamos juntos aqui. Vamos descer? - Grato, Geraldo. Recomendações ao seu pai. Vim de Coronel Fabriciano, para um Congresso de Psiquiatria que começa amanhã no Minas Centro, e antes de ir para a casa do meu irmão, na Pampulha, vim rever (de longe) nossa casa e matar um pouco da saudade. - Pois é, Carlos, fique tranqüilo. Nós sempre gostamos e admiramos muito seus pais. Dona Iracema e Sô Ataíde continuam aqui conosco, em memória, vivos. - Grato, Geraldo. Até. - Até. Arranquei o carro e, na esquina, ainda olhei - por mais uma vez - a nossa casa da Curupaiti, 359.

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Sô Bode e a Sá Onça

ERA, UMA VEZ, um bode - pedrês, violento, sagaz – que, há muito tempo, nos rincões das Minas Gerais, entendeu de se mudar de perto da cidade, onde vivia com sua família - Dona Cabra e sete cabritinhos, três machos e quatro fêmeas - para o meio de uma floresta próxima. O motivo era o processo de industrialização rápido, decorrente da implantação de uma usina siderúrgica na região, que passara a beneficiar suas ricas jazidas de minério em produção de aço. Este processo trouxe consigo uma irrupção de violência generalizada contra os moradores, e contra a fauna, e a flora, começando mesmo a dizimar a maior parte dos animais silvestres, ali existentes. - Aquele tempo bucólico, singelo, puro, das minhas infância e adolescência, quando pastava – livremente - por toda a região, junto a meus pais e amigos, representa (hoje) uma tão somente mera e saudosa recordação, concluiu o bode com muita tristeza, certa feita, após muito pensar. Não podemos esconder que nosso caprino era como outro Capra aegagrus hircus qualquer, nas suas características básicas: mamífero, quadrúpede, ruminante, herbívoro, chifres ocos ou cavicórneos, fedorento, por exalar um odor muito forte, ruim, nauseabundo, de suas glândulas localizadas na base de seus chifres, orgulhoso dos seus pelos compridos sob o queijo, que pareciam mais um cavanhaque ou uma barba, mantida sempre limpa, penteada. Esse, em particular, era descendente da espécie Bezoar, encontrada no Mediterrâneo e Oriente Médio, principalmente na ilha de Creta. E se quisermos ser detalhistas, acadêmicos, aproveitando o trabalho profícuo de Lineu, de 1758, ousamos até a afirmar que o bode em questão pode, mesmo, ser classificado como do reino animália, do filo chordata, da classe mammalia, da ordem artiodactyla, da família bovidae, da subfamília caprinae, do gênero Capra, da espécie Capra aegagrus e da subespécie, já anteriormente nomeada, Capra aegagrus hircus. - 71 -


Mas, felizmente, ele não mais encarnava o papel descabido, atávico, injusto, de bode expiatório, que seus antepassados egípcios assumiram quando os antigos Hebreus os espantavam para o deserto, na festa da expiação, depois de os haverem carregado de todas as iniqüidades e maldições que se queriam afastar do povo. Felizmente, os políticos - de hoje - haviam por mérito, direito, e com muito mais propriedade, os substituído desta penosa sina. Seu proprietário, fazendeiro de muitos alqueires e de muitas lidas, sempre o seduzia, dizendo que achava muito melhor lidar com cabras, cabritos e bodes do que com o gado: - Eles são muito amorosos, se aconchegam, facilmente, na gente, e não carecem de amarrar ou apear. Sua satisfação, porém, logo se via arrefecida, porque ele vinha, em seguida, com um rosário de altercações não muito lisonjeiras: - Mas êta, bicho arisco! Vive buscando jeito de ultrapassar as cercas, com vários fios. Cerca, pra eles, tem de ter sete arames, se não, não segura. Sim, isso ele admitia: se cabra é um bicho que gosta de liberdade, bode – então - nem se fala. E sempre emendava: - A gente tem que ficar esperto com eles, porque o bode não pode ficar perto das cabras, seu cheiro forte compromete a qualidade do leite. Se um bode escapa e chega perto das cabras que estão sendo ordenhadas, é prejuízo, na certa – todo o leite está perdido. Ninguém consegue beber. Foi por estes e outros senões que o nosso personagem quis partir e não demorou a iniciar a concretização do seu sonho: acordava cedinho, e com seus três filhos machos, se encaminhava para um local da floresta, que, a uma primeira vista, se enamorou, pelo seu panorama bonito, clima ameno, pela exuberância de cores e matizes, e principalmente por ser banhado por um córrego de águas mansas, cristalinas. Logo, demarcou uma área no cume de um monte, fez uma derrubada, limpou tudo direitinho, tirou uns esteios e os deixou empilhados para iniciar a armação de uma nova moradia. Um pequeno intervalo de tempo, porém, dificultou uma sua segunda ida ao local, preso que ficou por obrigações, anteriormente, agendadas e que se mostraram prementes ao sustento e manutenção da sua família. - 72 -


Eis que uma onça pintada, manhosa, maliciosa, e não menos arguta, por questões de segurança, ao sentir sua vida ameaçada, após a covarde matança do seu esposo, dos seus três filhos, e de um vizinho e amigo, também se encantou com o sonho de uma moradia mais segura, distante, imune à sanha daqueles predadores fanáticos, vorazes, inconscientes, de um clube de caça e pesca, recém-fundado, da cidade vizinha. E para não me acusarem, logo de início, que privilegiei mais o bode do que a onça, nesta história, sou obrigado também, mesmo sabendo que pode parecer não muito simpático para alguns leitores mais apressados, a classificar esse Felídeo, raro, ágil caçador, e à beira da extinção no nosso país, como manda a ciência dos homens: reino animália, filo chordata, classe mammalia, ordem carnívora, família Felídea, gênero Panthera, espécie onça, nome vulgar onça pintada. E se permitem um pouco mais de informação sobre este animal, acrescento algumas das suas características. O mesmo é o único membro da família dos “grandes gatos” (felinos) que vive no Continente Americano. A onça-parda também vive nas Américas e é quase do mesmo tamanho que a onça pintada, mas ela é classificada como pequenos gatos, porque não pode rugir ou urrar. Os outros seis membros da família dos grandes gatos são: o leão, o tigre, o leopardo, o leopardo das neves, a Cheeta e o Guepardo. As outras vinte e sete espécies de pequenos gatos incluem: o gato-do-mato, o gato leopardo, o lynx, gato bob, a jaguatirica e o gato de Geoffroy. Maiores do que os leopardos, as onças-pintadas possuem uma larga e grande cabeça, além de poderosas patas. Elas podem medir de sessenta e oito a setenta e seis centímetros de estatura (sem incluir a cabeça) e pesar de cinquenta e sete a cento e treze quilogramas. As onças-pintadas podem rugir ou urrar, mas – geralmente - emitem grunhidos, rosnam e até miam. As onças-pintadas são, geralmente, amarelo-pardas com manchas pretas, denominadas de rosetas, mas elas também podem ser pretas com manchas pretas. São de hábitos noturnos e possuem um excelente sentido de audição e olfato. São excelentes nadadoras, escaladoras de árvores e se locomovem com muita facilidade pelo solo. - 73 -


Vivem de uma dieta rica de pequenos e grandes animais, como: porcos-do-mato, capivaras, antas, veados, macacos, tartarugas, sapos e peixes que caçam nos rios e matas. Os filhotes permanecem com as mães (geralmente) até aos três anos de idade, quando eles começam a formar suas famílias. Semelhantes aos gatos domésticos, marcam seus territórios com urina e arranhões nas árvores. São consideradas espécies vulneráveis ou ameaçadas de extinção, devido à caça predatória, pela sua pele e a destruição dos seus habitats. Vivem, aproximadamente, vinte anos, atingem a maturidade dos três aos quatro anos de idade, se reproduzem durante todo o ano, com período de gestação entre noventa e três e cento e cinco dias, produzindo de um a quatro filhotes de cada vez, atingem o peso de trinta e seis a cento e cinqüenta e oito quilogramas, e seus filhotes pesam de setecentos a novecentos gramas. Pernas para quem tem, e a onça não demorou a encontrar o mesmo lugar do nosso bode, e divisando os esteios deixados ali por ele, disse: - Opa, Deus tá me ajudando. Óia, que coincidência. Este tanto de pau, assim, já tirado. Eu vô é fincá esses pau aqui e fazê uma casa. Incontinente, a onça furou uns buracos no chão e sentou os esteios, naquele mesmo dia. Ficou perto duma semana, ali, e deixou a construção - praticamente - precisando só do telhado. Na semana seguinte, os três cabritinhos e o nosso vigoroso bode se deparam com a cena inusitada de uma casa, quase completamente, acabada, e como eram muito tementes a Deus, não demoraram a agradecer a providência divina: - Óh, Deus, não merecemos tamanha graça! Entusiasmados pelo pretenso milagre, sentiram-se mais animados ainda e, em poucos dias, acabaram a casa, e ainda fizeram uma dispensa, um grande fogão, e um reservatório de água drenada de uma nascente próxima. Quase um mês transcorreu, e numa manhã, eis que o bode e a família, já prontamente instalados e felizes, esperam, ao redor do fogão, Dona Cabra preparar o almoço. De repente, eis que aponta a onça, lá em cima no espigão, e percebe aquele barulho danado, medonho, exultante, que (naturalmente) - 74 -


era o de uma família em íntima confraternização, e, vem, pé ante pé, e do lado de fora, pela janela da cozinha, se anunciando: - Uai, Sô Bode, essa casa aí é minha! - Minha o quê, home? - Minha, porque fui eu quem construiu, sô! - Óia, home, o que sei é que tamém construí. Dona Cabra, de pronto, se apresenta: - Óia, Sá Onça, tem um trein atrapaiado nesse entremeio e nóis percisa discutí isso, com mais calma. - Uai perfeitamente, minha senhora. Sou todo ouvido. - Meu marido com certeza trabaiô muito nessa casa. É mió ôces dois conversá direitinho, logo, e se entendê. Chamou o Bode, de lado, e sussurrou: - Óia, marido, ocê percisa ir lendo a bula pra ele logo, falá com ele assim - bem determinado, porque ocê sabe que a primeira imperssão é... a que fica. O bode e a onça se distanciaram, um pouco, da casa, conversaram e ficou tudo esclarecido: - Óia, home, eu vim pr´aqui; eu derrubei essa mata; tirei esteio; deixei. - Óh, só, eu cheguei; achei isso aberto; o esteio tirado; eu fui, finquei. - Ah! - Dava de sorte que o dia que eu vinha, ocê não vinha. - Tá tudo explicado! A tensão, como que por encanto, se amainou um pouco, e os dois puderam mesmo se olhar, um o outro, se não com um pouco mais de compreensão, com um pouco menos de arrogância, de defesa, de medo. - Tá convencido? A casa é de nóis dois, né, sô? - É. Não tem outro jeito, né, home. - Ocê trabaiô, eu trabaiei tamém. - 75 -


- Então nóis tem que fazê uma combinação. - Nóis temo é de ficá junto. E aí veio essa solução provisória, se bem que lógica, um tanto temerária, posto que aqueles dois poderiam, eu penso, como agora, eventualmente, se capitularem à razão, mas fatalmente, quando menos esperassem, seriam dominados por seus instintos predatórios, defensivos, irracionais, como é regra acontecer nos animais. - É. Então, a metade da casa é minha, a outra metade é sua. - Certo, home. - Vamo, então, dividi a casa. Sua famíia é grande? - Não, eu sô sozim nesse mundo. Meu marido e meus dois fíios morrero numa emboscada, faz tempo, dois ano. - Então, eu vô dá ôce um quarto bastantinho bom e despôis, se percisá, nóis faiz mais uma puxada. - Não tem percisão, não, sô. Um quarto me basta. Eu fico mermo mais tempo é fora, mermo. Costumo í em casa é só pra dormi, mermo. - Tá bem. E a onça começou a sonhar, redentoramente: - Eu vou sê muito feliz aqui. Lá onde tô, tá uma confusão danada: eles dá um tiro daqui, um tiro d‘acolá – uma perseguição tremenda. To muito incomodado; aqui nesse centro de mata eu sei que vô vivê é sussegado. E assim, sem delongas, os últimos detalhes foram tratados: - Óia, home, tem uma coisa mais: ocê respeita minha famíia, que nóis respeita ocê. - Certo, sô. - E tem o seguinte: o que eu arrumá... ocê come, e, o que ocê arrumá, nóis come tamém. - Tá combinado. Nóis fica assim, disse a onça, encerrando aquela primeira conversa. lou.

Não demorou muito, e a tensão entre o bode e a onça se insta-

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No dia seguinte, a onça saiu e logo divisou um bando de caprinos que – serenamente - pastavam nas imediações. Meia hora após, entra inopinadamente na sua recém conquistada residência, e joga um grande bode morto na sala com o pescoço denunciando uma única mordida, que ainda sangrava. - Óh, sô, limpa aí, pra nóis comê. Todos presentes na casa se entreolharam e a tensão se transformou em susto, pânico, terror. Nem o bode, nem a Dona Cabra, muito menos os cabritinhos se prestaram, na ocasião, a inquirir, à Onça, o quando, o onde, e o porquê daquele ato inusitado. A Dona Cabra, porém, mantendo a calma, a malícia, a serenidade que Deus lhe atribuiu - naturalmente, levantou-se e fingindo-se satisfeita, respondeu: - Dona Onça, que bom, não é que nóis já temo comida pra muito teimpo! Vô, logo, é prepará e acondicioná essa carne. Durante quase uma semana, o clima se manteve carregado entre os moradores daquela casa, que apesar de erigida para fugir da violência dos homens e da sua sociedade, se transformara num campo de batalha, imerso em intolerância, agressividade e na mais completa impossibilidade de solidariedade entre seus ocupantes. Mas, o leitor pode argumentar ou mesmo se perguntar: como é possível a convivência entre forças tão animais, tão irracionais, tão irrazoáveis, mesmo quando premidas pela necessidade de segurança e de manutenção da sua sobrevivência, e mesmo quando se vêem colocadas numa situação de diálogo espontâneo ou obrigatório? Respondo: não é possível. A circulação da energia no universo é independente da vontade dos homens, dos animais, dos vegetais, dos minerais, e vida pressupõe... evolução, e evolução pressupõe competição, manutenção, reprodução, persistência da manifestação desta energia em todos os lugares, níveis e condições. Esta luta tenaz, instintual, automática, determinada pelos humanos e animais, a apropriação de bens e valores (comida, sexo, dinheiro; território, coisas, pessoas; amor, beleza, amizade; família, trabalho, instituições; saber, poder, segurança; educação, comunicação, lazer etc.)... e esse condicionamento, inexorável, de tudo o que é visível e invisível, leva-nos – todos - a matar ou morrer, perder ou ganhar, por ou dispor. - 77 -


E sempre o mais sensível, capaz, o mais inteligente, vai comandar o jogo, vai se apropriar da maior ou da melhor parte dos recursos, das produções, e das instituições disponíveis. E sempre vai direcionar o sentido do movimento da circulação e da evolução da energia do universo para onde seu nariz apontar, com um discurso ditatorial, no qual só ele fala e não escuta a ele e a ninguém, sempre competindo com uma pequena parcela, que em tudo e em todo o momento se opõe, dinamicamente, e levando todos - ele, a pequena parcela crítica e a maioria inconsciente - para onde e como ele desejar, sempre, à última finalidade. Mas voltando à nossa história, passado algum tempo, o bode, caminhando pela floresta, encontra uma armadilha que, provavelmente, alguns homens haviam fabricado para pegar onça. Pensou: - Tá aí, minha resposta pra aqueile gato miseráve. E, a partir de então, voltava, três a quatro vezes ao dia, a aquele agora útil, engenhoso, admirável artefato construído pela inteligência humana, para se cientificar se algum Felídeo fora capturado. E quanto mais passavam os dias, e o bode e sua família, tinham de comer, querendo ou não, aquela “saborosa” carne de carneiro - e na presença da onça, se deleitando, voraz, orgulhosa, altaneira - mais o desejo de vingança se impunha na mente do nosso caprino. Pensava, obcecado: - Ôh, homo, ocê vai me pagá direitim; ocê vai vê; mais dia, menos dia... ocê espera! Mais alguns dias se passaram, e eis que chega na armadilha - e – lá, se depara com uma onça presa, se debatendo, atemorizada. Mas, sua alegria logo se esvai, porque apesar de ter à sua frente um espécime indefeso, a mesma ainda de nada valia, por que viva, faminta, desesperada, metia medo até numa distância segura. Disse para si: - O negócio, agora, é... rezá, para esses homo não voltá a tempo, e esse bicho podê morrê, e de fome, porque como é que vô matá ele mermo nessas circunstância? Gastou ali um bom tempo a pensar possibilidades de execução desta sua presente inimiga mais feroz, mas também a sua maior - 78 -


e mais provável arma contra a ignomínia, o opróbrio, a desonra, perpetrada por aquela outra, agora sua velha, detestável, e inconveniente condômina. Tudo foi pensado e deixado de lado: truques, ardis, artimanhas; técnicas, instrumentos, objetos; projetos solitários, com a ajuda e comunhão da família, e mesmo de amigos; preces, oferendas, despachos. Não, nada, nada mesmo, lhe pareceu, mesmo, um pouco factível, provável, exequível. Acreditem que o bode voltou à sua casa e inventou para sua esposa uma missão na cidade, onde, por força de compromissos assumidos anteriormente, deveria gastar um bom tempo. Voltou e ficou de tocaia, espreitando toda a agonia da onça que caminhava, inexoravelmente, à morte por imobilidade e inanição e, como se lembram, como era muito religioso, pedindo ao Superior para que os homens, agora mais que nunca, tivessem algum contratempo e não voltassem tão logo à armadilha. Quarenta longos dias e noites se passaram, e a onça, numa madrugada, quando a lua cheia, majestosa, iluminava o terreno desmoitado, lavrado, arroteado, da clareira - no meio da mata - deu o último suspiro. O bode exultante abriu a armadilha, amarrou a onça com cipós, pelas patas, pelo pescoço e rabo, e, em segredo, com a ajuda, então conseguida, dos três filhos queridos, puxou o animal ao terreiro da casa e chamou a onça, sua desafiante. - Óh, homo, isso aqui é pra nóis comê, hein? Ocê se apressa a tirá o couro desse gatão, e prepará a carne dele, porque a que ocê arranjô deu só até onte, hein? A onça - meio cismada com aquele feito do bode - pensou três vezes, mas não conseguiu permanecer silencioso, e arguiu: - Ôh, sô, aonde ocê arrumô essa onça? - Eu não sei. Eu matei. - Matô com o quê? - Com um gravenutinho que tenho aí. - Mas, com um gravenutinho? - É, com um gravenutinho. Mas, hoje de manhã, tamém tava - 79 -


naqueles dia... Ôh, sá Onça, eu vô avisá ôce, hein? O dia que eu tivé de quinze pra dezesseis... Que ocê vê eu saí, aqui no mei do terreiro, gritando, berrando, dando cabeçada em tudo que tivé na minha frente... Enquanto não miná água no meu corpo, pra mode deu moiá minha barba... Eu não sussego... Eu não sussego... Eu não sussego... - Ôh, sô, é mermo? É bom eu sabê! - Uai, ocê tá meio assulerada? - To não, sô. - Isso é pra nóis comê, mermo, sá Onça! - Hoje mermo nóis vai começá a comê esse bicho aí. É bom eu sabê que posso contá com ocê, tamém, pra sustentá nossas barriga, né? A Dona Cabra não gostou nada. Suspeitou logo pela manhã, o ardil, o estratagema intentado pelo marido. Chamou-o, como de costume, a um canto: - Oi, marido, adonde ocê qué chegá? Qué usá a merma arma do inimigo? - E não? - Não. Contra a força bruta não há resistência, é perciso paciençia, o tempo certo, e sê é mais astuto. - Eu quero, mermo, é vê a cara desta gata miseráve comendo e gostando, sem gostá, de comê uma sua companheira. O clima da casa nada mudou nos dias seguintes, apenas se inverteu a sensação de insatisfação entre os dois ferrenhos contendores, quando - à mesa - risonho, dominante, despreocupado, o bode dava bocadas cheias na carne bem preparada pela Dona Cabrita, e se dirigia, insistentemente, à Onça: - Ôh, sá Onça, ocê tá meia constrangida. Não tá gostando da carne? Mastiga esse trein dereito. A Onça manteve a calma, por muito tempo, mas - finalmente não agüentando mais, ainda à mesa, se defendeu: - Ôh, sô Bode, eu esqueci de lhe dizê que o dia que eu amanhecê meio buzinada, e saí aí pro terreiro e dar um berrado, um ronco, um rosnado, ocê não corre, não. Eu não faço nada a ninguém. - 80 -


O bode não se intimidou: - Ôh, sá onça, pois é, eu tamém. O dia que eu tivé de quinze para dezesseis, eu pulo em cima de casa, eu pulo em cima de barranco, em cima das pessoas, pulo pra ali, pulo pra lá, pulo pra acolá, enquanto não miná água no meu corpo, sá Onça, eu não sussego. Eu tenho que miná água pra mode d´eu moiá minha barba. Eu tenho de moiá minha barba. Eu moiando minha barba, eu tô feito. Na primeira lua cheia, a Onça cumpriu a palavra. Saiu para o terreiro e deu um urro, tão estonteante, que estremeceu toda a natureza em volta, a casa, e os cabritinhos, que - com medo - entraram para debaixo das camas, intimidados, atemorizados, assombrados. Dona Cabra, pasmada, atônita, estupefata, sofrendo (fundo no coração) o terror dos filhos, se encaminhou até eles para confortá-los. O Bode foi à janela presenciar o triste espetáculo e, sentindo sua liderança ameaçada, não se conteve e, num átimo, se viu também no terreiro a dar cabeçadas, a pular aqui, a pular lá, a pular acolá. A Onça, a seu turno, a cada salto do bode, alterava o ritmo, o compasso e a intensidade de seu contracanto, e a lua - lá de cima - serena, a tudo cismava. A valente felina, mais por displicência que por medo, foi o primeiro a silenciar, como Dona Cabra acabava de deixar a casa, à ela se dirigiu: - Minha senhora, dá água pro sô Bode, pra moiá a barba dele. - Ôh, sá Onça, ele tá começando... agora. Pode deixá. Enquanto não miná água no corpo dele, pra ele moiá aquela barba dele, ele não sussega de jeito nenhum. Hei, ali, agora, só Deus. O bode continuava sua função, sua demonstração, sua performance desesperada. Pulava daqui, pulava dali, pulava acolá. A Onça reiterou seu conselho: - Minha senhora, dá água pra ele pra moiá a barba dele e vê se ele sussega. E o Bode, cada vez, parecia mais doido. Vinha até perto da Onça, freiava, deixava uma mijada, que ora a atingia, ora se inscrevia no chão demarcando o terreno à volta dela, e voltava para trás. - 81 -


E, novamente, repetia os mesmos passos, como se fosse uma cena - magistralmente marcada. E a coreografia se repetia, estereotipada, exuberante, ameaçadora. E aí aconteceu o imprevisível, o nunca esperado, o de todos insuspeitado: o Bode veio como se viesse, para não voltar mais, envergou para o lado da Onça e lançou a urina para molhar sua barba, mas aquela urina fedendo bateu na cara da Onça, e ela saiu em desabalada correria e, mais nunca ou até hoje, pasmem, não havia voltado àquela casa.

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O beijo de despedida

- Isso é pr´ôce, amor. - O que é isso? - Um cartão. Pro seu aniversário, amanhã. - Você diz nele que me ama? – sorrindo, comecei a abrir o envelope. - Não, não abre, agora, não! Deixa pra abrir só amanhã – ela instou suplicante. Aqueles que, ali passavam, presenciaram um beijo e um abraço, apaixonados, apesar do lugar, para nós, pouco propício – o pátio da Universidade - quase ao meio-dia, e ao término das aulas daquela manhã. Lembro de tudo, como fosse hoje; foi definitivo, nosso último dia. Aqueles dois olhos verdes – tristes - naquela cara de boneca tão perfeita e singela - e aquele beijo, enfim, não roubado, consentido, participado. Minha insinuação a ela – porque não dizer, mesmo, minha sedução consciente – fora escamoteada de início, depois incisiva, desesperada, por fim. Dois anos se haviam passado, seis meses de namoro, e só aquele beijo me dava, naquele momento, subitamente, a sensação de senhor, de proprietário, de cidadão, daquela boca deliciosa, daquele corpo desejado, e aquela nova perspectiva, agora, promissora, arrebatadora, inexaurível. Senti-me pasmo, porque o momento ali vivido suplantava tudo - pensado, experimentado, intuído. Êxtase não era – estava bem acordado; sentia-me feliz, sereno, inteiro – uma verdadeira criança. Minhas mãos não sabiam o que pegar, meus braços o que abraçar, minha alma o que mais sentir. Éramos - um - de tão colados, por aquele abraço e beijo, ungidos. A sua boca, molhada, gostosa, macia, um prazer, até então, desconhecido para mim. Meus olhos, fecha- 83 -


dos, para aumentar a concentração, para exaltar os outros sentidos, ou quem sabe, para, pela dimensão do olhar, não conspurcar aquele quadro divino. - Você, agora, é minha e eu sou seu – denunciei, de pronto, a alegria daquela minha tão sonhada posse e, talvez, a insegurança de uma possível perda, que, já em mim, teimava em querer se insinuar. Pensei: Diabo! Por que o amor traz já (implícito) na sua posse, a perda, e um misto de alegria e tristeza? Por que os homens não conseguem ser deuses e demônios, ao mesmo tempo? Por que as nossas crianças não têm, além do pai e da mãe, um terceiro sujeito, uma alternativa, outra possibilidade, que entre o finito e o infinito crie o relativo - que sendo punitivo, seja também acolhedor, que, ao ser amável, seja irônico, que - sendo ordeiro - seja (por que, não?) um perfeito bandido. Por que essa mesmice nas pessoas, esse gosto ou não gosto, essa uma coisa ou outra? Uma hora depois, chego a casa. Denise esperava-me com a mesa ainda posta. Meus pais já haviam almoçado e saído. Com o seu jeito espontâneo, foi logo anunciando: - Fala com sua mãe que fiquei sabendo, somente agora, que preciso de uma folga amanhã, para ir ao colégio do André. Êta, menino levado! Não sei mais o que fazer com ele? dele.

- Isso passa, fique calma - tentei interceder - Faz parte da idade - Ah, ia me esquecendo. A Marta acabou de ligar... - É? Eu acabei de me encontrar com ela.

Fui até o escritório e fiquei admirando aquele pequeno pedaço de papel, e - num abrir e fechar d´olhos - revivi a nossa trajetória até ali. Marta foi minha aluna, nos seus dois primeiros anos do seu curso de Administração de Empresas, e, nos dois últimos anos, passamos a nos relacionar mais intimamente. Creio que comigo aprendeu a tirar os pés do chão, a desenvolver um discurso, sem o compromisso de um fechamento, a pensar o indizível, o inefável, o que nos dá esperança. De temperamento colérico, natureza prática, taurina com ascendente em touro, escolhera, a meu ver, certo a futura profissão - líder por natureza, compassiva, responsável, empreendedora, interativa, amável em tudo e com todos. Dois meses a distanciavam da formatura. - 84 -


Minhas aulas de filosofia, de imediato, não a comoveram, contoume, um ano depois; e quanto a mim, seu professor, um sentimento ambivalente logo lhe assaltou, porque me mostrando sempre, crítico, irreverente, malicioso, se sentiu abalada na sua formação evangélica rígida, apesar de comigo, desde o início, se sentir próxima, íntima, acolhida. Da minha parte, sua beleza (mais que tudo), seu jeito terno, seu olhar lânguido me perturbaram desde o nosso primeiro encontro. Pensei: - Que coisa mais linda. Que petisco. Que gostosura! Nove anos separavam nossas idades. Eu, então, com trinta e três anos, doutor em filosofia, recémchegado de Londres, onde morei oito anos, fugido do regime militar, por militância franca, preso na época do seqüestro do embaixador americano, e solto, seis meses após, por influência de amigos do meu avô paterno, militar da alta patente do glorioso exército brasileiro. Filho único de pai médico e de mãe abastada, culta, politizada, vivera infância e adolescência pródigas em recursos materiais, bons livros e viagens internacionais de intercâmbio e de estudo. Marta, filha de pais pobres, de nível educacional primário, nasceu, cresceu e ganhou o mundo, sempre solidária, participativa, responsável pelos seus seis irmãos, todos reféns da falta das necessidades, as mais básicas possíveis. Essas dificuldades, porém, nunca abalaram sua determinação, seu arrojo, sua alegria de viver. Quando a conheci, duas de suas irmãs e um de seus irmãos já haviam se casado, seu pai já havia falecido há dez anos, e ela assumira sua mãe e um casal de irmãos, ainda infantes, como seus dependentes para o sustento e a manutenção. Essa diferença de padrão de vida e de formação intelectual, política, religiosa, entre nós dois e entre nossas famílias, em vez de nos dificultar o diálogo, de nos tornar estrangeiros um para o outro, de nos distanciar, fez-nos mais próximos, mais solidários, mais cúmplices. Meus pais sempre receberam Marta com verdadeiro carinho; primeiro, como amiga, depois, como namorada. Papai, então, sempre, a protegia, a estimulava, a compreendia, mais do que a todos, e quando possível, exortava comigo suas inúmeras qualidades, se preocupava com suas necessidades, e parecia mesmo que a adotara como uma filha. - 85 -


Mamãe mantinha uma devida distância, como de resto tratava todo mundo, apesar do tom – para com ela - sempre acolhedor, simpático, amigável. A mesma aceitação eu não recebera, desde o primeiro momento, da sua mãe. Seis meses antes, logo no início do nosso namoro, visitei-a. Fiquei com ela sozinho e, apesar de sua simplicidade no trato, quis saber sobre mim, minha família, minhas intenções futuras. Não demorou muito e passei a sentir uma interdição, aparentemente intransponível, mais na sua postura, no seu rosto, nos seus gestos, do que na sua fala cuidadosa, evasiva, simplória mesmo. Sentia que meus argumentos não a convenciam, parecia que meu amor não bastava, minha insistência no namoro a aborrecia. Primeiro ela obstou nossa diferença social; refutei com serenidade e determinação. Não satisfeita, objetou a diferença das nossas idades; mostrei-lhe que a maturidade da sua filha em muito sobrepunha sua idade cronológica. Apelou, finalmente, com a importância do papel da filha no amparo a ela e aos seus dois filhos menores. Lembrei-lhe que, com nossa união, todos seríamos uma nova, maior, e mais promissora família. Nunca mais voltamos os dois, por precaução, inteligência, bom senso talvez, aquele necessário diálogo. Saí dali com a certeza de que precisava usar outras estratégias, outras armas, outras formas de luta, e de que ela seria, mesmo, uma forte, incansável, perigosa, por que não dizer, inimiga. A nossa relação amorosa, aparentemente, de ambas as partes, em nada se dificultou, se modificou, se sentiu abalada. Abri o cartão; não resisti. “Meu amor, peço a Deus que sempre lhe cubra com toda a proteção, saúde, paz, e o amor. Não sei como posso lhe dizer o imenso amor que tenho por você, a graça de lhe ter encontrado, o privilégio de viver com você o dia-a-dia. Perdoe-me, primeiro, por estar hoje abalada, pesarosa, pensativa, por ter ficado sabendo uma coisa, que não devo lhe revelar ainda, sobre minha família. Um golpe para mim, impiedoso, certeiro, quase mortífero. Perdoe-me, mais uma vez, por não poder compartilhá-lo, ainda. - 86 -


Olhe, você me ensinou muitas coisas fundamentais nesse nosso convívio, algumas relevantes e transformadoras, e dentre elas, nunca me capitular aos problemas, às vicissitudes, aos valores impostos pelos outros na minha vida. E, por isto, tenho certeza que vou logo superar este choque e voltar menos perdida, mais reparada, restabelecida. Estou indo de ônibus para Belo Horizonte, para ficar alguns dias, na casa de uma tia, para pensar, refletir, avaliar tudo sozinha, mas levo a certeza do quanto eu amo você e do quanto você é essencial na minha vida. Beijos da sua... Martinha” Lidos os primeiros parágrafos, já me encaminhei para o carro, em direção à rodoviária. Dez minutos, o trajeto percorrido, e ainda perplexo, atônito, atordoado, encontrei a plataforma deserta. Parei num lugar proibido, e dirigi-me ao guichê de passagens. Logo, encontrei Mariana, amiga fiel de Marta. - Há dez minutos, ela partiu. Ficou esperando sua ligação. - Que ligação? - Ora, ela ligou daqui para sua casa. Esperou. Perdeu seu ônibus. - Óh! - Ligou novamente e Denise disse que lhe havia dado o recado. Não entendeu por que você não ligou. Pegou um ônibus de outra empresa. - Vou de carro tentar alcançá-la no caminho. - Não, não vá. Dá um tempo. Ela precisa... Com muito custo, após muito insistir, Mariana me confidenciou e compreendi, afinal. Marta ficara sabendo que não era filha da sua mãe, e sim de uma sua tia, que - grávida de um homem casado - não a pudera assumir, e abandonada, deprimida, sem recursos, a entregara para sua irmã criar como filha. - E sua mãe só lhe contou agora. Velha desprezível! - Não, não foi Dona Nininha que contou. Ela recebeu uma carta anônima e pressionou sua mãe, até ela lhe contar tudo. - Que dia? - 87 -


- A carta tem uma semana. A verdade, hoje - pela manhã. Voltei para casa, sufocado, abafado, aflito. O celular de Marta nunca mais atendeu. Uma semana depois, criei coragem e procurei sua mãe. Os vizinhos disseram que há alguns dias havia partido, levando os dois filhos. Para onde, ninguém sabia. Dez anos já são passados. Nunca mais a vi. Quase tudo mudou na minha vida. Minha antiga soberba, irreverência, minha natural alegria, deu lugar à indiferença, a um ser insípido, ensimesmado, poltrão, apático, vencido. Volto, hoje, do funeral do meu querido pai. Minha mãe, minha pobre mãe, junto ao corpo dele sendo encomendado, em prantos, abraçada comigo, me disse: - Meu filho, Marta era sua irmã, seu pai não sabia que era ela que ele havia rejeitado, ao se formar em Medicina. Eu, não tive outro jeito. Fui eu quem mandou aquela carta anônima. Perdoe-me.

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A história do menino e da venda do seu macaquinho

Quem me contou essa história foi a Dona Maria, minha avó materna. Maria de que mesmo? Não me lembro mais, com certeza. O sobrenome da minha mãe é Almeida, então, Maria Almeida. O resto, depois eu lembro. (Uma boa maneira quando a gente esquece algo é falar: - Eu esqueci. Isso retira a tensão do cérebro voluntário, e o automático fica buscando na memória. De repente, quando a gente acredita mesmo que esqueceu, o esquecido é lançado - subitamente - na consciência, de novo). Mas minha avó materna morreu, com noventa e quatro e eu tinha vinte e cinco anos. Lá se vão trinta e cinco anos. Como o tempo passa depressa! Nessa época, não sabia essa coisa de que para contar bem uma história, é preciso precisar o lugar e o tempo em que ela se passou. Mas, foi nas Minas Gerais, porque, (ah, lembrei o nome dela!) Dona Maria Augusta de Almeida, só conheceu duas cidades. Pará de Minas, sua cidade natal e a capital mineira. Chegou e instalou uma pensão perto do quartel do 5º. Batalhão de Infantaria, no Bairro Floresta, e foi aí que meu pai conheceu minha mãe, sua filha caçula. Ele era soldado da gloriosa Polícia Militar de Minas Gerais. Desculpem-me, mas, um pouco de história é fundamental. E como minha avó materna veio para a capital mineira, aproximadamente aos trinta anos de idade, exatamente quando Curral Del-Rei passou a se chamar Belo Horizonte, em 1906, acho relevante conhecermos um pouco essa mudança da capital mineira de Ouro Preto para Belo Horizonte. No entanto, como sei que o leitor não gosta dessas digressões dentro do conto; acha que está sendo enganado, se não vamos direto ao assunto proposto no título do mesmo, ou sua vida e seus afazeres não lhe reserva tempo para ouvir uma boa história e, ao mesmo tempo, recordar um pouco da história da sua cidade ou pátria, me capitulo. Convido-o, porém, prezado leitor que, ao final do conto, não perca a interessante história da mudança da capital mineira, repito, de Ouro Preto para Belo Horizonte. - 89 -


Sem mais delonga, o certo é que, certa feita, minha avó materna me contou que todo menino é curioso e não pode ver uma coisa diferente. A mãe do Joãozinho, atarefada na lida daquele dia, chamou-o, deu-lhe um dinheiro e disse: - Meu filho, vá à feira comprar isso aqui – mostrou-lhe uma lista de muitos itens. Ele pegou o dinheiro, e foi. Devo acrescentar que Joãozinho, apesar da tenra idade, nove anos, miúdo, inquieto, esperto como um cabrito, não gostava de estudar. Seguia a mesma história de vida do seu pai. Mas, era excelente comerciante – unicamente - por graça de Deus, porque outros fatores não o ajudavam – pobreza, pouca escolaridade, falta de contato com mestres da arte de comercializar. Por isto, a confiança cega da sua mãe nele. Quando precisava comprar ou vender qualquer coisa, era com ele. Antes de chegar à feira, porém, Joãozinho, logo na entrada da mesma, encontrou um homem vendendo um macaquinho. O macaquinho pulava, subia no ombro, na cabeça do seu dono, abraçava seu pescoço, comia banana, fazia caretas, trejeitos, micagens. Ele ficou atônito, extasiado, inquieto, admirando o simiozinho – um nosso ancestral, segundo Darwin. O homem, doido para vendê-lo, passou-o para o ombro do menino. Este não aguentou. - Quanto o senhor quer no macaquinho? - Tanto – era um pouco mais do que o dinheiro dele. Joãozinho passou a praticar sua primeira regra da sua esmerada técnica de comprar. Sabia que, oferecendo dez por cento a menos, e em alguns casos, cinqüenta por cento, dependendo da situação, levaria o primata. Tentou cinqüenta. Viu que o homem assustou. Foi diminuindo, devagarzinho, chegou aos trinta por cento. Seu dinheiro só dava para vinte por cento. Negociou. Negociou. Negociou. Nada. O vendedor estava inflexível. Passou para a segunda regra. Desistiu. Deu de ombros, teatralmente. O vendedor aceitou. - 90 -


Joãozinho todo alegre, voltou para casa, pulando, sorrindo, entusiasmado, com sua prenda. Logo ao chegar à casa, uma atroz decepção: - Meu filho, o quê que é isso? Cadê as compras? - Ôh, mãe, eu não aguentei. Olha que macaquinho bunito! Eu comprei eile. - Meu filho, onde ocê tá com a cabeça? Volta e devolve esse danado desse macaquinho – e brigou sério com o menino. Ele tentou uma ou duas de suas razões. Não obteve sucesso. - Volta, que eu não quero esse danado desse macaquinho. Eu quero minhas compras. Volta já. Vamos! Lá vai o Joãozinho, de volta para a feira, devolver o macaquinho ao vendedor dele. Procurou em todo lugar. Não o encontrou. Pensou: - E agora. Se eu voltar vou levar uma boa surra. Tentou oferecer o macaquinho para as pessoas da feira. Oferecia para um, não queria. Oferecia para outro, não queria. Tentou muito. Em vão. Voltou ao local da compra e procurou levantar alguns dados dos feirantes sobre o homem do macaquinho. Era novo na praça, ninguém sabia nada de relevante que pudesse ajudá-lo a localizá-lo. Passou a andar pelas casas próximas, batendo, e oferecendo o macaquinho. Andou muito, muito, muito mesmo. Até que chegou numa e - ao bater na porta - notou que a mesma estava encostada, aberta. Entrou e foi procurando por alguém, até que entrou, num quarto, e se deparou com um casal enamorado, totalmente nu, se acariciando. mem.

Não titubeou. Chegou perto da cama e cutucou o pé do ho- O senhor quer comprar um macaquinho?

- Ôh, menino safado! Como é que você vai entrando assim, sem ser convidado. Não quero comprar macaquinho, coisa nenhuma. Sai pra lá – e foi puxando o Joãozinho, pela gola da camisa, para fora do quarto. - 91 -


Nisto, a mulher levanta-se, olha pela janela, e divisa o marido na calçada chegando a casa. Sem outra opção, busca o amante e o menino, e os coloca dentro do guarda-roupa do quarto do casal. O marido chegou, e vendo a mulher em trajes menores, pensa que a mesma já o estava esperando. - Ôh, amor – abraça-a, beija-a, e a transporta para o leito nupcial. A tarde de amor se inicia. Mas dentro do armário, com seu aguçado espírito de comerciante, até também pelas necessidades (talvez do momento), Joãozinho passa para a terceira regra da sua própria técnica e arte de vender - ofereça sua mercadoria sempre, sempre, em qualquer que seja a situação - e empurra o macaquinho para os braços do companheiro de confinamento, e em voz baixa, mas firme: - Compra o macaquinho? - Psiu! – o homem responde, com o indicador na boca e o coração quase saindo pela boca. - Compra o macaquinho, moço! nho.

- Psiu! – com a outra mão, tentando afagar a cabeça do Joãozi- Compra o macaquinho, senão eu grito.

- Tá bom – balançando a cabeça e procurando dinheiro no bolso da calça, ainda por amarrar. Lá fora, o amor não tem pressa. Daí a pouco: - Ôh, moço, dá o macaquinho pra mim? - Mas, você me vendeu o macaquinho! - sussurrando. - Vendi. Mas, quero ele, de novo, agora. Lá fora, o amor se regozija, geme, se contorce. - Ôh, moço, deixa de ser mal. Me dá o macaquinho? - Toma – fazendo o nome do pai. Não satisfeito com a quantia do dinheiro auferido na venda do macaquinho, Joãozinho continua.


- Moço, me compra o macaquinho? - Não é possível! - Eu vou gritar. O macaquinho é novamente comprado. E, assim, a transação se fez por muitas e muitas vezes, e o menino conseguiu uma quantia considerável de dinheiro. Finalmente, o amor se deu por satisfeito. Passado algum tempo, a mulher em voz alta: - Ôh, amor, eu preparei para você uma torta de morangos. Vamos pra cozinha? Batida a porta do quarto, os dois saem do guarda-roupa, pulam a janela e ganham a rua. Joãozinho, com seu macaquinho, põe-se em debandada. O homem ainda se refazendo da tensão, acaba de vestir sua camisa, coloca suas meias, calça seus sapatos, e, resignado, lembra – sabiamente - que é melhor quando se vão os anéis e ficam-se os dedos. Joãozinho feliz volta à feira. O dinheiro dá para todas as compras e ainda sobra uma boa quantia. Chega à casa, exultante, e anuncia: - Ôh, mãe, to com as compras, to com o macaquinho e com um bom dinheiro. - Mas, como meu filho? - Uai, deu para comprar tudo e ficar com o macaquinho. - Joãozinho, o quê que ocê feiz, meu filho? Tentou se explicar o inexplicável, o impossível; a verdade veio logo à luz. Tudo foi contado à mãe pelo filho, tintim por tintim. - Meu filho, isso é chantagem, isso não pode, isso é coisa errada. - Pois é mãe, agora não tem jeito mais. Como é que vou achar o homem da mulher ou o homem do macaquinho? A mãe decidiu rápido. - Meu filho, você vai já agora, procurar o padre, confessar, e dar ele esse dinheirinho para Nossa Senhora das Dores ajudá a lhe perdoar. Você cometeu um pecado grave. - 93 -


- Tá bom, mãe. Mas, ocê me deixa ficar com o macaquinho, né? - Não. Não pode. - Deixa mãe? - Tá bem, fica. - Outra coisa, mãe. Deixa eu levar comigo o macaquinho na igreja? - Meu filho, igreja não é lugar de macaquinho não, sô. - Ôh, mãe, deixa. Eu peço o padre para benzer o macaquinho tamém, mãe. - Meu filho, leva primeiro o dinheiro. Outro dia, ocê pede o padre para benzê esse danado desse macaquinho. - Ôh, mãe, deixa? - Tá bom. Ocê parece seu pai. Quando quer uma coisa... Joãozinho chega à Igreja e se depara com uma fila enorme para a sagrada confissão. Pegou o último lugar. Impaciente, passado pouco tempo, tem a ideia de furar a fila, explicando sua situação aos colegas pecadores. Não consegue fácil comover os outros penitentes, sedentos que estão pela redenção dos seus pecados. Sua história de macaquinho não se mostra, na verdade, tão razoável e, é de início... preterida, desprezada, rejeitada. Mas, todos já conhecemos a obstinação do nosso Joãozinho, e ele vai, de um a um pecador, tentando encontrar aquele um pouco mais sensível. Eis que o padre, já um pouco cansado da exaustiva escuta confessional, sai (um pouco) do confessionário para se resfolegar, espichar o corpo, se refazer. Nisto, divisa, de pronto, na fila, o menino e o macaquinho. Levando as mãos à cabeça, e já tentando escapar, grita: - Some, some, some, seu desgraçado! Não. Não. Eu não quero comprar, mais, esse seu macaquinho do diabo, não! mos?

Então, agora a nossa história, anunciada anteriormente? Va-

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Sabe-se que em 1701, o bandeirante João Leite da Silva Ortiz, à procura de ouro, chegou à Serra de Congonhas, hoje, Serra do Curral. Não encontrou o precioso metal, mas se deparou com uma bela paisagem, de clima ameno e próprio para a agricultura. Resolveu ficar: construiu a Fazenda do Cercado, onde desenvolveu uma pequena plantação e criou gado. A fazenda progrediu e, logo, atraiu outros moradores e um arraial começou a se formar ao seu redor. Viajantes - que por ali passavam, conduzindo o gado da Bahia às minas - fizeram da região um ponto de parada. O povoado foi batizado de Curral del-Rei e, como pediam proteção à Nossa Senhora da Boa Viagem, ela se tornou a padroeira local. Aos poucos, o Curral del-Rei foi crescendo, apoiado na pequena lavoura, na criação e comercialização do gado, na fabricação da farinha. Instalaram-se algumas poucas fábricas, ainda primitivas, na região: produzia-se algodão, fundia-se ferro e bronze. Das pedreiras, extraía-se granito e calcário. Frutas e madeiras eram vendidas para outros locais. Assim, apoiado na atividade agrícola e pastoril e no trânsito constante de tropeiros, o Curral del-Rei havia se desenvolvido e se tornado um importante centro de abastecimento e produção. A decadência da mineração permitiu que o arraial se expandisse. Das trinta ou quarenta famílias existentes, no início, saltou para a marca de dezoito mil habitantes. Elevado à condição de Freguesia, mas ainda subordinado a Sabará, o Curral del-Rei englobava as regiões de Sete Lagoas, Contagem, Santa Quitéria (Esmeraldas), Buritis, Capela Nova do Betim, Piedade do Paraopeba, Brumado Itatiaiuçu, Morro de Mateus Leme, Neves, Aranha e Rio Manso. Vieram as primeiras escolas. O comércio se desenvolveu. No centro do arraial, os devotos ergueram a Matriz Nossa Senhora da Boa Viagem. Este ciclo de prosperidade, contudo, durou pouco. As diversas regiões que constituíram para o arraial foram se tornando autônomas, separando-se dele. A população, rapidamente, diminuiu e a economia local entrou em decadência. - 95 -


No final do século XIX, restavam, ainda, mais de quatro mil habitantes. A rotina deles era simples e monótona. Começava cedo, no trabalho de casa ou na lavoura, e terminava às dezenove horas, quando muitos já começavam a se recolher. Durante o dia, a Farmácia Abreu era ponto preferido para o bate-papo. À noite, as mulheres faziam novenas, enquanto os homens improvisavam um botequim no Armazém Esperança. Vez ou outra, uma serenata fazia as janelas se abrirem. Apenas nos finais-de-semanas, o arraial ganhava vida, quando os moradores das redondezas vinham ouvir a missa ou visitar parentes e fazer compras. Em datas especiais, o arraial tornava-se mais alegre: Festas Juninas, no Natal ou no Dia da Padroeira; os festejos eram certos. A Proclamação da República, em 1889, trouxe aos curralenses a esperança de transformações e a ideia de Curral Del-Rei ser a capital do Estado - uma possibilidade, já, muito provável. Para entrar na era que, então, se anunciava, abandonando o passado monárquico, os sócios do Clube Republicano do arraial propuseram a mudança do nome para: Belo Horizonte. A discussão, porém, sobre a mudança da capital mineira era ideia muitíssimo antiga. A primeira tentativa de transferir a sede do governo a uma cidade, diferente de Ouro Preto, datava de 1879, quando os inconfidentes planejaram instalar a capital da sua república em São João Del Rei. Depois disto, mais quatro tentativas, todas fracassadas, foram feitas. Assim é que esta questão só foi considerada, após a Proclamação da República, por setores da elite agro-exportadora que assumiram o poder político. Eram grupos emergentes, ligados à cafeicultura da Zona da Mata e Sul de Minas, que assumiram a bandeira da mudança da capital, contra os interesses consolidados da região mineradora, em processo de estagnação e decadência econômica. Uma série de fatores favorecia a ideia da mudança. Em primeiro lugar, para se destacar o novo cenário republicano, Minas Gerais precisava mostrar-se – politicamente - unida e forte. A construção de uma nova capital, localizada no centro geográfico do Estado, poderia facilitar o equilíbrio das diversas facções políticas que, então, disputavam o poder. - 96 -


Os republicanos, também, desejavam promover o progresso de Minas Gerais, tornando-o um Estado industrializado e moderno. Ouro Preto não oferecia condições adequadas para o crescimento econômico esperado. Os transportes e as comunicações eram dificultados pelo relevo acidentado da cidade, e as estruturas de saneamento e higiene não comportavam mais um aumento da população. Mas, em vez de uma simples transferência da capital, a construção de uma nova cidade ganhou força. A construção de uma nova capital, planejada de acordo com as novas exigências, era a solução para o problema do crescimento. Outro fator contribuiu para fortalecer a ideia de mudança. Ouro Preto, cidade histórica, guardava - na arquitetura - uma série de símbolos e marcas do passado colonial que os republicanos queriam enterrar. Com suas ruelas e becos, suas igrejas barrocas e suas casas, porões e senzalas, a velha capital lembrava os anos da dominação portuguesa, das conspirações e da escravidão. Uma nova cidade, planejada segundo os valores modernos, seria o símbolo de uma nova era. Uma cidade, ordenada, funcionando como um organismo saudável foi o objetivo dos engenheiros e técnicos que idealizaram Belo Horizonte. Para alcançá-lo, era necessário projetar uma cidade física e socialmente higiênica, livre de doenças, também livre de desordens e revoluções. O projeto criado pela Comissão Construtora, finalizado em maio de 1895, inspirava-se no modelo das mais modernas cidades do mundo, como Paris e Washington. Os planos revelavam algumas preocupações básicas, como as condições de higiene e circulação humana. Dividiram a cidade em três principais zonas: a área central urbana, a área suburbana e a área rural. No centro, o traçado, geométrico e regular, estabelecia um padrão de ruas retas, formando uma espécie de quadriculado. Mais largas, as avenidas seriam dispostas em sentido diagonal. Esta área receberia toda a estrutura urbana de transportes, educação, saneamento e assistência médica. Abrigaria, também, os edifícios públicos dos funcionários estaduais. Ali deveriam, ainda, instalar os estabelecimentos comerciais. Seu limite era a Avenida do Contorno, que naquela época se chamava de 17 de Dezembro. - 97 -


A região suburbana, formada por ruas irregulares, deveria ser ocupada, mais tarde, e não recebeu, imediatamente, a infra-estrutura urbana. A área rural seria composta por cinco colônias agrícolas com inúmeras chácaras, e funcionaria como um cinturão verde, abastecendo a cidade com produtos hortigranjeiros. A implantação de tão grandioso projeto tinha, porém, uma exigência: a completa destruição do arraial que ali se localizava e a transferência dos seus antigos habitantes para outro local. Rapidamente, os horizontinos tiveram suas casas desapropriadas e demolidas, sendo-lhes oferecidos novos imóveis a um preço muito alto. Sem condições de adquirir os valorizados terrenos da área central, eles foram empurrados para fora da cidade, indo se refugiar em Venda Nova ou em cafuas na periferia. A capital, traçada pela Comissão Construtora, era um lugar elitista. Seus espaços estavam reservados aos funcionários do Governo e aos que tinham posses para adquirir lotes. Acreditava-se que os problemas sociais, como a pobreza, seriam evitados com a retirada dos operários, assim que a construção da cidade estivesse concluída. Mas, na prática, não foi isso o que aconteceu. Belo Horizonte inaugurou-se às pressas, estando ainda inacabada. Os operários, aglomerados em meio às obras, não foram retirados e, sem lugar para ficarem, como os horizontinos, formaram favelas na periferia da cidade. A primeira, a do Leitão - ficava nas proximidades do atual Instituto de Educação, em plena Avenida Afonso Pena. Essa massa de trabalhadores, não considerada cidadã legítima de Belo Horizonte, revelava o grau de injustiça social existente nos seus primeiros anos de vida. Em 1891, o presidente do Estado, Augusto de Lima, formulou um decreto, determinando a transferência da capital para um lugar que oferecesse condições precisas de higiene. Adicionada à Constituição Estadual, a lei provocou muitos protestos da população ouropretana. Os mineiros dividiram-se entre os mudancistas, favoráveis à nova capital, e os não-mudancistas. Cada grupo fundou seu jornal, promovendo reuniões e debates. Augusto de Lima Júnior, governador interino de Minas, em 1891, dizia que Belo Horizonte tornara-se o cérebro de Minas; mas, o - 98 -


coração continuava em Ouro Preto. O governo estadual, enfrentando estas disputas, criou uma Comissão de Estudos para indicar, dentre cinco localidades (Barbacena, Paraúna, Juiz de Fora, Várzea do Marçal, Curral del-Rei), a mais adequada à construção da nova cidade. O Congresso mineiro, a quem cabia a decisão final, votou a favor de Belo Horizonte. Assim, em 17 de dezembro de 1893, a lei n.º 3 foi adicionada à Constituição Estadual, pelo presidente de Minas Gerais, Afonso Pena, determinando que a nova sede do governo fosse erguida, em Curral Del-Rei, chamando-se Cidade de Minas. No prazo máximo de quatro anos, a capital deveria ser inaugurada. A lei criava, ainda, a Comissão Construtora, composta de técnicos responsáveis pelo planejamento e pela execução das obras. Em sua formação, estavam alguns dos melhores engenheiros e arquitetos do país, chefiados por Aarão Reis. A capital, inicialmente, chamada de Cidade de Minas, foi inaugurada, dia 12 de dezembro de 1897, por Bias Fortes, presidente de Minas (1894-98), por uma exigência da Constituição do Estado. Entretanto, parte das construções não havia sido concluída, e algumas de suas ruas e avenidas eram apenas abertas no meio do mato. A crise econômica, que tomava o país e o Estado, muitas obras paralisou, e à espera, de recursos, ficou a nova capital. O comércio e a indústria ligada à construção civil, que tinham se desenvolvido bastante nos anos anteriores, agora enfrentavam dificuldades. A cidade não se industrializou no ritmo em que se esperava e permaneceu sem atividades econômicas expressivas, durante anos. Os trabalhadores foram os mais prejudicados e os que não perderam o emprego tiveram seus salários atrasados, durante meses. Tudo isto contribuiu para tornar a capital uma cidade entediante e sem graça. Sua aparência, inacabada e empoeirada, dava a impressão de abandono. As ruas e avenidas largas demais - para uma população não muito numerosa - pareciam estar sempre vazias. Para piorar a situação, as diversões eram poucas e não conseguiam espantar a decepção e a tristeza dos primeiros habitantes. - 99 -


Na área central, a Rua da Bahia era território da elite. Nela, ficava o único teatro da cidade o Soucasseaux, uma espécie de um barracão coberto de zinco, onde se apresentavam companhias de teatro e música e onde se improvisava um botequim. Nessa rua, também ficavam os principais bares e cafés, onde os homens falavam de política e da vida. Ao anoitecer, a rua virava palco para o footing (moças e rapazes desfilavam, trocando olhares, numa espécie de namoro bem comportado). Na tentativa de espantar o tédio, os jovens fundavam clubes como o Rose, o Violetas, o dos Jardineiros do Ideal, o Santa Rita Durão, e Elite. Além de festas e bailes, estes Grêmios tinham a intenção de promover a literatura. Outros clubes eram criados, durante os carnavais, e os mais famosos foram os Matakins, os Diabos de Luneta e os Diabos de Casaca, que promoviam festas, desfiles de carros alegóricos, batalhas de confetes, serpentinas e, é claro, lança-perfume. O Parque Municipal (na época quatro vezes maior) era muito frequentado, nos finais-de-semanas. Ali, a sociedade encontrava espaço para praticar esportes, passear ou fazer piqueniques, enquanto bandas tocavam retretas. Também era lá que as paróquias comemoravam datas religiosas, com quermesses e barraquinhas. A população pobre e os operários, contudo, não tinham acesso a estes lazeres. Preferiam os botequins nos bairros, os jogos de bola e a tômbola, uma espécie de bingo, no qual os prêmios não valem dinheiro. É que eles viviam em locais distantes do centro, e sua condição financeira os impedia de participar das diversões pagas. Além disto, na área central eles eram alvo fácil da polícia, que, por causa de um simples passeio, podia prendê-los, alegando vadiagem. Minha avó materna, dona de pensão, era uma dessas moradoras de parcos recursos materiais. Mas, minha mãe, então adolescente, era dama de companhia da mulher do Zé dos Lotes, figura lendária, dono de quase tudo em Belo Horizonte – de muitas casas e de muitos lotes. Lembro-me de um retrato; nele, minha mãe aparece acompanhando o casal, num Ford, da época, na Praça da Estação. Eles, no - 100 -


banco da frente do moderníssimo carro, e ela no de trás - alegre, feliz, orgulhosa. Ele era uma figura mitológica, dono de quase tudo – de muitas casas e de muitos lotes. Nas duas primeiras décadas deste século, Belo Horizonte viveu, alternadamente, períodos de grande crise e surtos de desenvolvimento. As fases de maior crescimento corresponderam aos anos de 1905, 1912-13 e 1917-19. Aos poucos, pequenas fábricas começaram a funcionar na cidade, ampliou-se o fornecimento de energia elétrica, retomaram as obras inacabadas, expandiram as linhas de bonde, criaram praças e jardins, e a cidade arborizou-se. O número de empregos cresceu e a Capital passou a atrair mais habitantes. A vida social também começou a se agitar, com a substituição do teatrinho Soucasseaux pelo elegante Teatro Municipal (1909) e com a inauguração de diversos cinemas. Frequentar os cine-teatros - Colosso, Comércio, Familiar, Progresso, Bijou e Paris - tornou-se não só uma obrigação para os belo-horizontinos, como um pretexto para encontros e conversas. Nesta época, quando cinema fazia muito sucesso, nasceu o gosto do belo-horizontino pela moda, com famosas costureiras, imitadoras dos vestidos das atrizes renomadas. Foi também, no crescimento da cidade, que trabalhadores começaram a lutar contra as injustiças sociais. A primeira grande greve ocorreu, em 1912, e paralisou a cidade, quinze dias. Liderado por trabalhadores da construção civil, que defendiam uma jornada de trabalho de oito horas, o movimento teve apoio da maior parte da população. Mobilizando-se pelas greves, os operários conseguiram ser reconhecidos como cidadãos, assegurando seu direito de reivindicar melhores condições de trabalho, educação, transporte, saúde e moradia. No decorrer do século XX, a cidade se desenvolveu mais que o esperado, excedendo os limites planejados da avenida do Contorno e, mesmo, as fronteiras municipais. Graças à criação das áreas metropolitanas, em torno das capitais, na década de 1970, a Grande Belo - 101 -


Horizonte compreende, hoje, trinta e trĂŞs municĂ­pios, todos em franco desenvolvimento. sil.

Belo Horizonte, em 2006, era a terceira cidade referĂŞncia do Bra-

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Luiz Ambrósio - a rigidez em pessoa

O pai de Isabela era a rigidez em pessoa. Devia ter, lá, suas razões - mesmo o louco, o insensato, o ignorante, tem sua lógica. Como a natureza faz uma árvore, um inseto, um animal, desenvolver uma carapaça, uma couraça, uma pele espessa, para se defender dos predadores, a esquelética proteção do senhor Luiz Ambrósio, o protegia, sem dúvida, mais de si e da sua incapacidade de amar, do que dos outros, ou do mundo, e o tornava uma pessoa de pouca mobilidade, previsível, fácil de ser conjeturado. No ser humano, nada dissolve mais a couraça do caráter, as defesas neuróticas, muito bem estruturadas, a tendência a se comportar sempre da mesma maneira para o bem ou para o mal, do que as carícias bem feitas pelos cuidadores, principalmente entre os três e os cinco anos de idade de uma criança, dizem os especialistas. Freud ressaltou o complexo de Édipo, denunciando que o menino deseja, sexualmente, a mãe nesta fase da vida. Está sujeito, porém, a ter esquecido que o colo da mamãe (e, quem sabe, do papai, também) é gostoso, é morno, é quente, e a sensação de ser acolhido em coisa viva, além de ser irresistível à natureza humana, é fator determinante na formação e na estruturação da nossa identidade e personalidade. No entanto, a mãe e o pai, se intimidam, tanto quanto o filho e a filha, porque a cultura, o senso popular, e a religião, tendem a ameaçá-los, contundentemente - aos primeiros com o perigo do incesto, e aos segundos, com a exclusão compulsória do seu grupo masculino e feminino. Luiz Ambrósio, assim, estava fadado a se defender, sendo um perfeito compulsivo - controlador e sedutor, concomitantemente. E, como nossas emoções, reprimidas ou defensivas desde a infância, começam a moldar nossa estrutura física, quando adulto, sua parte superior do corpo se tornou mais larga, predominando sobre a inferior. - 103 -


Seus ombros eram muito mais largos do que sua pelve. Claro que não chegava a ser um triângulo com a base desenhada, mas parecia. Andava com pernas que pareciam fracas e quase incapazes de sustentar o que se lhe vinha de cima. Era como se estivesse amarrado, pela cintura, e naturalmente seu diafragma, constrito, lhe outorgava um padrão respiratório de pouco consumo de ar, como um asmático em crise, estimulando - exageradamente - sua capacidade mental, tornando-o muito atento aos meios de controlar e dominar as pessoas, as situações, e o meio ambiente, à sua volta. Seus olhos eram, sempre, atentos e desconfiados. Sua cabeça, muito erguida, pescoço - muito estendido, peito estufado, ora o fazia parecer orgulhoso - para alguns que pouco o conhecia, ora lhe emprestava um ar de nobreza que, pessoalmente, não suspeitava ou reconhecia. O medo de ser usado, de ser controlado, de depender do próximo, e sua tendência de estar sempre por cima dos demais, talvez denunciasse a dificuldade que teve em se identificar com um pai sedutor e com uma mãe - com total incapacidade de lhe dedicar carinho - fisicamente, e que sabia como ninguém, alternadamente, o agradar e o rejeitar, como uma maneira de afastá-lo, por medo de emocionar e capitular-se a ele. Seu coração, fechado, defensivo, insensível, desde cedo, o protegeu, como sua capacidade de oprimir e atormentar todos aqueles que se lhe cruzassem o caminho, principalmente aqueles que, potencial e ostensivamente, o ameaçavam, o interditavam, na mais insignificante que fosse das suas necessidades do dia-a-dia. Investiu, sempre, muito na suas imagem e motivação, mais vital era a do poder e a da necessidade de controlar e dominar, ter êxito, estar por cima de tudo, de todos, da vida. Seu principal medo: a traição. Não confiava em ninguém. Qualquer um era, na verdade, um potencial traidor e/ou inimigo. Recebeu - desde cedo - responsabilidades maiores do que caberiam a alguém da sua idade e foi estimulado a crescer, rapidamente. Seu medo de não suportar o pesado fardo, de que precisava carregar sua deficiente ligação energética com a terra (sem “grounding” - 104 -


diriam os especialistas), o fez se sentir fraco, isolado, vulnerável, estimulou-o a enfrentar a vida de maneira, sempre, agressiva. Sempre, esperou a traição das suas parceiras, e - por via das dúvidas - muito cedo, se antecipava e as traia primeiro. Sempre assumiu mais incumbências do que podia administrar. Correu, continuamente, contra o tempo, vivendo sempre um futuro que nunca chegou, ou, se chegou, nunca o bastou, porque necessitava e queria mais e mais – um perfeito saco sem fundo. Teimosia, vingança, contradições manifestas faziam parte dele, porque estava sempre... no ataque. Deixar de controlar o outro, as situações, a vida – impensável! Viver o presente, parar de correr rumo ao futuro, confiar no outro e em si, conviver com a insegurança própria da vida, deixar de transformar a existência num constante campo de batalha – impossível, também. Seu medo básico? A imperfeição. Sua dificuldade maior – a incapacidade e a recusa em conhecer a si, pois tudo, nos outros e no mundo, sempre foi falso, mecânico, uma possível preparação de um golpe futuro à sua pessoa. Armado, como um cavaleiro medieval - com sua imponente armadura, seu cavalo, e a lança pontuda - achava o mundo sério demais e achatava a sua vida e a do próximo. E, como todo bicho muito cascudo (tartaruga, besouro...) morria de medo de cair de costas, e sua casca, cada vez mais, o oprimia, o limitava, o sufocava e a vida era um perfeito suplicio, principalmente quando as situações fugiam às suas expectativas, ou não respondiam ou não se moldavam à sua forma estereotipada e especial de reagir. Nem de longe, suspeitava que sua iluminação, libertação, e a fluidez seria viver e deixar os outros viver; que seu ideal maior seria, em vez de uma estrutura rígida, o desenvolver de um organismo sem estrutura fixa, e até mesmo sem princípios, sem nada rígido, apto a mudar muito e a mudar sempre, para se tornar um ser humano plástico, amoldável, vivo. Somente o amor, entendido como aceitação e harmonização das diferenças das pessoas, das situações, do mundo, poderia o retirar do seu mundo de sombras cinzentas, vazias, inexpressivas. - 105 -


Só deixando de ser, sempre, igual – na repetição de todos os seus ideais, comportamentos, papeis – poderia descobrir e sentir sua individualidade, libertando-se da prisão perpétua de ser, sempre, igual a ele e de não poder experimentar ser outro ou um ninguém, por toda a eternidade. Aqueles que desfrutavam da sua intimidade reconheciam suas inúmeras qualidades – bom cidadão, bom pai, bom pagador – mas se ressentiam, porque era uma pessoa sem diálogo – nenhum, nenhum, nenhum – principalmente, com seus familiares. Sugiro que não percamos mais... tempo em tentar explicar sua estrutura, seu arcabouço, sua postura. Deixemos esta tarefa para os cientistas, que gostam de também ter sua razão para tudo, mas sua história de vida atestava, desde o nascimento, muitos impasses, embaraços, empecilhos. Seu pai abandonou sua mãe, quando ele, ainda imberbe, tentava suas primeiras proezas, neste mundo dos homens, dos poderes religioso e político, da cultura. Dizem que existem filhos que não se importam, que não tomam partido, que não se revoltam, num impasse difícil como este. Luiz Ambrósio foi um deles. Arregaçou as mangas, trabalhou com afinco, escolheu sua amada e formaram uma família – ele e suas queridas: esposa e filha. Isabela foi criada como uma princesa. Cuidados, carinhos, proteção, não lhe faltaram nem um pouquinho. Acredito que, até mesmo na maioria das vezes, seus pais excederam na forma e na medida. Mas, ela cresceu como quase todas as moças na vida, e seus quinze anos foram festejados com muita pompa, festa, requinte. No dia seguinte, procurou o pai, e apreensiva foi, sem cuidado ou preparo, anunciando: - Papai, eu estou querendo começar a namorar. - O quê? rado.

- É, estou pedindo sua autorização para poder ter meu namo- Minha filha, você não acha que é muito cedo? - Não, papai. Acho que já estou ficando para titia. - 106 -


- E os seus estudos? Sua carreira? Sua vida? - Papai, todas as minhas colegas já estão namorando. - Olha, acho que cada coisa tem seu tempo, minha filha. Espera mais um pouquinho. Que tal esperar seus dezoito anos? Eu mesmo e sua mãe... - Ôh, papai, os tempos – hoje - são outros. - Não são, não, minha filha. O mundo sempre foi e será o mesmo: difícil, ameaçador, corrompido. - Mas, eu sei o que quero, papai. Já tenho os meus sonhos, minhas ilusões, minha vida. - Minha filha, eu sonho, para você, um homem de verdade. Nesta idade, é impossível. - O que é um homem de verdade, papai? - Olha, tem que ser trabalhador, em primeiro lugar. Não pode ter vícios. Não pode fumar, beber, jogar. Tem que ser religioso... - E se eu encontrar um rapaz, assim? - Você já está namorando, minha filha? - Não. Claro que não. Como é possível? - Eu vou falar com sua mãe. Depois conversamos. Isabela, no mesmo dia, no colégio, confidenciou com Eduardo. - Dudu, conversei - ontem - com o papai sobre o nosso namoro. - Você falou com ele? - Não, estou preparando o terreno. Ele ficou assustado. Achou que eu devo esperar mais três anos. - Nossa, nem pensar. Que é isso? - Ele falou que meu namorado não pode fumar, beber... - Eu já sei toda a lista. Ser trabalhador, religioso, não fumar, não beber, não jogar, não deixar de escovar os dentes... - Não brinca. Você já parou de fumar? - Já. Não fumo, nunca mais. - 107 -


- Bom. Então falta somente parar de beber, arranjar um emprego, e voltar para a Igreja. - Vou trabalhar com meu pai, de manhã. - Ele ficou de conversar com mamãe e me dar a resposta. Uma semana após, Isabela teve a sua primeira decepção amorosa na vida. Os pais de Dudu, sem qualquer explicação, mudaram-se da cidade. Roubo? Fuga? Novas oportunidades? Ficou sabendo por uma colega sua, que era meio apaixonada por ele desde a quinta-série. Ela sabia, mas como havia aprendido com o pai que é melhor ter o inimigo bem perto, sob controle, do que longe, fazia que não sabia, e convivia bem com ela, como uma inocente. Mas, sua decepção foi a de que o pretendente nem se deu o luxo de se despedir. A vida seguiu seu curso inexorável. Seu pai não se manifestou mais, e tudo ficou como se não houvesse havido qualquer pedido da parte dela. Fez o vestibular. Passou. Começou a fazer Direito. Enamorou-se de outro colega do segundo ano. Começaram a namorar escondido. A mesma lista de predicado Fo, sobejamente, levantada para o novo namorado, apesar de ela saber que o mesmo não correspondia a nenhuma das exigências do seu pai, e ainda tinha mais alguns inúmeros defeitos, um pouco irreconciliáveis. Isabela, porém, deixou tudo muito claro: - Olha, você vai falar para o papai que você não fuma, não bebe, não joga, é muito religioso e está trabalhando. Certo? Você vai falar só coisa boa. - Certo. Foi marcado, oficialmente, o dia em que o Mateus ia conhecer seus futuros sogros e seria submetido à tão insólita, extraordinária, desusada, sabatina, do senhor Luiz Ambrósio, em defesa da honra, segurança e felicidade da sua filha querida. Chegaram, um pouco, ansiosos, os pais de Isabela, devidamente paramentados, os receberam à porta. Mãe e filha sentaram-se no sofá maior, na sala de visita, e o senhor Luiz Ambrósio e o Mateus se colocaram, téti-a-téti, em duas poltronas menores. O interrogatório, sem quaisquer prolegômenos, foi iniciado: - 108 -


- Senhor Mateus, não é? - Sim, senhor. - Minha filha já deve ter lhe falado que, para eu deixar o senhor namorá-la, o senhor tem de satisfazer, irrestritamente, alguns itens iniciais. Ela lhe falou? - Falou, sim senhor. - Mas, eu vou repetir. Para o senhor namorar minha filha, o senhor não pode fumar, não pode beber, não pode nem pensar em jogar - qualquer tipo de jogo, inclusive na loteria federal e na esportiva, e - muito menos - cartas, nem de brincadeira, sem valer dinheiro, tem que ser religioso e estar trabalhando, além, naturalmente, de prometer cumprir todas as regras próprias de um cidadão de bem, respeitador dos costumes, da ética, e – principalmente - da moral, costumeira, habitual, consuetudinária. O senhor entendeu? O senhor tem essas qualidades? - Sim, senhor. - Então? O senhor deve falar com suas palavras. - Olha, o senhor falou que não pode fumar, já vou adiantando, eu não fumo. O senhor falou que não posso beber, eu não bebo, aliás, eu nunca bebi. O senhor falou que não posso jogar, eu não jogo, a não ser (de vez em quando) umas peladinhas, por aí. Sou, desde o berço, de estreita formação religiosa, católico qual o senhor. Quanto ao trabalho, deve o senhor saber que estou acostumado, desde o início da adolescência, a trabalhar. Inclusive, sou eu quem sempre pagou minha formação acadêmica. - Muito bem. O senhor falou sobre as suas qualidades, mas... todo mundo tem defeito. O senhor não pode ser uma exceção. O senhor deve ter algum defeito! - Olha, senhor Luiz Ambrósio, realmente estaria mentindo, se não dissesse que também não tenho algum defeito. Sou humano como qualquer outro ser humano. - E qual é o defeito que o senhor tem? - Olha, senhor Luiz Ambrosio, na verdade, o único defeito que eu, realmente, tenho, é a tendência de falar uma mentirinha, de vez em quando. Mas, somente quando absolutamente necessário. - 109 -


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Alípio de Souza na busca da liberdade de expressão

Alípio de Souza tinha um costume, um hábito, digamos um reflexo, mesmo, condicionado - não se sabe quando nem por que - de peidar e arrotar, sem o devido respeito do onde e do com quem estivesse dividindo o pedaço. Mais seu automatismo era mais peidar que arrotar. E, como se não bastasse seu ato inusitado, sempre, tinha a coragem de anunciar, destacar, denunciar, sim, o fato, em tom de pilhéria: - Olha, minha gente, alguém peidou no recinto! Senhor respeitável, adiantado na idade, próspero na profissão, cidadão digno, de inúmeras qualidades de caráter, família bem constituída, porém, refém dessa inusitada idiossincrasia. Mas sua atitude não ficava barata, não, e seu problema, ou melhor, as consequências do seu atávico gesto começavam na sua própria casa. Sua esposa, fiel e dinâmica companheira, mãe de três filhos menores, nunca cedeu. Conformara-se ou, mesmo, se capitulara à livre expressão do, para ela, inoportuno pum dele. E, sempre, admoestava, censurava, reprimia-o, com objeção, repulsa, indignação. Quantas vezes ele tentara explicar o que sempre fazia mais aumentar a raiva dela, que seu singelo traque não trazia qualquer resquício de desrespeito, provocação, contestação ao lugar ou, mesmo, às pessoas, presentes. Era – simplesmente - mais uma das suas expressões, um ato, legitimamente, espontâneo, que havia incorporado, ao longo da existência, e que, ele tinha certeza, seguradamente, devia encontrar respeito, aceitação, autonomia, em algum outro ambiente cultural do planeta. Certa feita, fora a um congresso no Japão, e voltara menos culpado, porque presenciara, nos restaurantes, por toda a Tóquio, os cidadãos locais arrotando, tranqüilamente, durante ou após as refeições. - 111 -


Apesar de mais encorajado, na volta, sua defesa agora mais embasada por um exemplo cultural concreto – os japoneses arrotam, livremente, durante e após seus repastos - não conseguiu, nem mesmo, atenuar a cólera, a repulsa, a aversão ostensiva da mãe dos seus filhos. Nas suas reuniões no trabalho, nos eventos sociais que, porventura, participava, e mesmo em casa de amigos íntimos, sua atitude estranha, peculiar, extemporânea, também não conseguia passar despercebida e sempre causava estranheza ou, no mínimo, gerava uma reação de desdém, de escárnio, de zombaria. Sua esposa, reiteradamente, não concordava, principalmente, quando ele - diante do filho caçula, de três anos - não se continha, e, segundo ela, dava um mau exemplo, e, cada vez, de forma mais calorosa e incisiva, explodia em sérias altercações, admoestações, intimidações, inclusive com ameaças de represálias, desprezo, separação conjugal, sempre, alicerçada nos mais comezinhos princípios da boa educação e dos bons costumes. Devo esclarecer, para um leitor menos tolerante, que Alípio de Souza era vegetariano, há quase duas décadas, e, portanto, não comia carne, açucares, ou outros alimentos que pudessem impregnar seus flatos com aquele odor ofensivo, característico. Isto posto, seu peido podia incomodar, mais pela surpresa e pela explosão acústica repentina que por outros efeitos deletérios quaisquer. Além disto, como seu hábito - esclareceu, anteriormente - primava pela espontaneidade, com o tempo, grande parte das pessoas acabava por se acostumar com ele ou não lhe emprestando qualquer significado mais expressivo. O assunto, a querela, o mal entendido, entretanto, a cada dia, suscitava mais sofrimento do nosso protagonista – herói, vítima, ou outra coisa qualquer – e, ultrapassando a esfera pessoal, familiar, grupal, espalhou, agigantou, vulgarizou-se, mesmo, ganhando foro, dimensão, domínio, de coisa pública. E, como tudo o que alcança tamanho interesse, acabou se traduzindo na opinião do povo, por várias compreensões de inúmeros e interessantes matizes. De início, ultrapassou o âmbito da opinião pessoal, monolética, da esposa de Alípio de Souza e de outros tantos intransigentes, portadores de um discurso reducionista, ditatorial, perverso – não é permi- 112 -


tido peidar, em público, sob qualquer motivação ou circunstância. Ora, tudo é relativo, sabemos muito bem, e, no mínimo, o tema deveria ser submetido à consideração de outras variáveis, não é, mesmo? Passou, depois, além da dialética, ou da situação inicial de que alguém pode pensar somente uma coisa ou outra, um pode ou não pode, estruturado por Marx, no discurso do senhor e do escravo, como expressão do real, tese imprópria, maniqueísta, que foi redimida por Hegel, com sua proposta dos três elementos – a tese, a antítese, e a síntese. Claro, não podemos reduzir tudo à, simplesmente, certo ou errado, bom ou mal, feio ou bonito. Aqueles que vêem a vida, assim, ficam empobrecidos, submissos, cativos, daqueles que - entre uma coisa e outra - buscam uma, no mínimo, terceira alternativa, e ampliam as possibilidades, identificando - para cada possibilidade - mais duas, e, assim, num continuum de tríades que tocam o infinito. Senão, vejamos: para viabilizar uma solução que satisfaça o meu interesse e o seu, prezado leitor, em alguma coisa qualquer, temos de torná-la compatível, harmonizadora; conciliar, o interesse de um terceiro – por exemplo, o da minha esposa, ou da sua, (nunca estamos sozinhos na sociedade e na cultura). Mas, não podemos esquecer também das influências das leis que regem ou regulam as nossas relações, não podemos esquecer-nos do pedaço do leão, ele é voraz para, a cada dia, arrecadar mais impostos. Não podemos esquecer que seremos influenciados pela compreensão das nossas mães, (mesmo que elas já tenham passado para outra dimensão), pela nossa situação econômica, política, cultural, pelos valores éticos, morais, religiosos, vigentes na nossa cultura, pelos interesses da polícia, do sistema jurídico, e tantos outros fatores. Se dados uma relação humana e um problema, consigo pensálos numa perspectiva, cada vez, mais ampla, articulada, e que responde a várias demandas, interesses, compreensões, naturalmente, que eles tendem a serem resolvidos de maneira mais: proporcional, humana, efetiva. Mas, o problema do Alípio de Souza transpôs, também, os limites dessa trialética sistêmica que, mais modernamente, advoga, e ninguém contesta, que, entre uma ou outra possibilidade para um determinado problema, no mínimo, uma terceira instância, diferente, de cada uma das duas outras primeiras, deve ser levantada, estabelecida, perseguida. - 113 -


E, finalmente, o tema, reduziu, subjugou, submeteu-se. Virou anarquia, caiu no domínio do povo, e tudo era, é, e será possível, sem qualquer respeito pelos estatutos da ciência, sem qualquer consideração pelos ditames da sensibilidade, da intuição, da estética e da mística, e sem a necessária preocupação para com a proteção, defesa, o amparo, do - simplesmente - razoável. De um lado, a maioria dominante execrava, tinha aversão, abominava a possibilidade de um cidadão poder se sentir no direito de peidar, livremente, indiferente aos costumes consagrados pela tradição, tradição esta transmitida e perpetuada por tantos e tantos indivíduos de bem, (diziam eles), que sob a égide da moralidade, soube nos defender, interditando esta prática vulgar, reles, ordinária. Do outro, uma minoria, descontente, subversiva, intolerante, que se colocava na contramão da ordem, do bem-estar comum e das conquistas inalienáveis da maioria dos cidadãos, defendendo o direito de livre expressão do Alípio de Souza, nem que fosse preciso defendê-lo com o sacrifício da própria vida dela. Na verdade e com certeza, eram aqueles, de resto, quase sempre contra tudo e todos, principalmente, contra aqueles que se sentiam bem instituídos, bem postos, confortáveis – por exemplo, os banqueiros, os políticos, principalmente, os de alto escalão, os militares que sustentam o status quo, as religiões institucionais, e, sobretudo, o povo, submisso, desinformado, esperançoso. Aqui e ali, também, levantavam-se alguns que se mostravam em cima do muro sobre o assunto – os mesmos eternos indecisos na vida, na política, nas lutas pela sobrevivência humana. Os religiosos também faziam coro a esses hesitantes, irresolutos, indistintos. Não era um tema que mereceria a consideração deles, argumentavam. E explicavam que só se detinham em assuntos, realmente, importantes e uma questão, tão ridícula como esta, nem de longe tocava ou se remetia às necessidades, desígnios, escrutínios, do Superior; se permitiam se quedar imparciais, mudos, não-comprometidos. O delegado de Policia local não quis se manifestar, quando procurado por nosso Alípio de Souza, pois, somente o faria em resposta a um incidente, um delito, um crime, embasado numa denúncia, bem estruturada e, de preferência, versada pelo promotor de Justiça ou por um causídico, competente. - 114 -


O mesmo senão recebeu do Meritíssimo Juiz de Direito que, já sabedor do caso, não se dignou nem a recebê-lo em audiência pública e, oficialmente, solicitada. A quem mais se dirigir? Alípio de Souza não teve outra saída. Procurou um tratamento. E como não era um grande estudioso, um intelectual, por exemplo, mas não era também um ingênuo, escolheu um especialista da mente. Sabia que todos os desequilíbrios da energia, do corpo, e mesmo os da fisiologia humana, iniciavam-se na cabeça, determinavam e mantinham-se pela educação e pelo meio ambiente, e se reforçavam pelos interesses e ambições do próprio ser humano. Sugeriram-lhe, de início, práticas alternativas, populares. Ele, no entanto, tinha suas opiniões, crenças, preconceitos particulares. Não as achou relevantes, apesar de pouco ter lido ou experimentado-as. E eram tantas, que enumerarei só algumas e, ali disponíveis, para todo o tipo de doença, compreensão e poder aquisitivo: desintoxicações, dietas – oficial, macrobiótica, natural - plantas medicinais, técnicas, baseadas nos quatro elementos básicos da natureza: água, terra, ar, fogo; garrafadas, alcalinização do sangue, urinoterapia, artes do movimento - capoeira, tai chi chuan, aeróbica, caminhadas, maratonas; adivinhações – tarô, I Ching, magias branca e negra; religiosas, tipo: yoga, rezas, oferendas, umbanda e candomblé. A acupuntura e a homeopatia, milenar e bicentenária, respectivamente, ele sabia que só desde 1996, portanto, há uma década, haviam sido reconhecidas e autorizadas pelo MEC, depois de tantos impasses corporativistas, econômicos e políticos que tiveram de enfrentar, para atingirem a oficialidade. Mesmo assim, não se tocou e nem, em momento algum, cogitou procurá-las. A antroposofia de Rudolf Steiner, com seus remédios da Weleda e da Walla, ainda se ressentia da pouca quantidade de profissionais no mercado, da dificuldade de se encontrar seus remédios, principalmente os de uso venoso, e da falta de empenho dos seus praticantes, enredados nas suas arrogâncias acadêmicas, na pretensão do seu saber religioso, e na luta pela hegemonia, entre eles, dos seus saberes e fazeres médicos. A Homotoxicologia, os radicais livres, a iridologia como técnica de diagnóstico e de evolução de tratamento das doenças humanas, acredito, nem mesmo chegou a conhecer. - 115 -


Iniciou, assim, Alípio de Souza, uma abordagem e um tratamento guiados pela psicologia, via psicoterapia, que sabia ser uma valiosa maneira de lidar com as dificuldades da existência, em todas as formas que o sofrimento humano pode assumir: crises pessoais, de relacionamentos, conflitos conjugais e familiares, dificuldades nas transições, crises profissionais, distúrbios psicossomáticos e manifestações sintomáticas, como: pânico, ansiedade, depressão, fobias, anorexia e tantas outras. Pretendeu, com esta prática, criar um espaço favorável ao seu crescimento pessoal, e um lugar, um tempo, um modo privilegiado de criar intimidade... consigo, por diálogos construtivos com seu terapeuta, por meio da possibilidade de abrir novos canais de comunicação, de transformar padrões de funcionamento estereotipados, tentando reavaliar e restabelecer seu processo formativo e criativo. Sabia que a psicoterapia podia lhe oferecer uma oportunidade de compreender os próprios modos de vinculação e relação interpessoal, via uma relação, hipoteticamente, mais saudável - com um profissional qualificado. No início da vida adulta, experimentara terapia comportamental, behaviorista, skinneriana - individual e de grupo, por quase dois anos. Mas, na época, os problemas eram: falta de individualização, desajuste no enfrentamento e no convívio com sua equipe de formação profissional, muita elaboração mental e pouca praticidade, no seu dia-a-dia, dentre tantos outros. Alípio de Souza ao longo do exercício da profissão, acompanhara, por meio duma leitura atenta, a evolução do saber psicológico. Testemunhara o nascimento e, gradativamente, se informou sobre as contribuições da terapia centrada - Carl Rogers, da terapia gestáltica (de Frederick Perls), da análise transacional de Eric Berne, e, de forma mais efetiva, nas duas últimas décadas, da psicoterapia interpessoal, cognitivo-comportamental, e psicodinâmica breve. Bateu-lhe uma vontade de experimentar a psicanálise, principalmente após sua tentativa, frustrante, de ler e entender, sozinho, a obra de Lacan. Procurou um psicanalista lacaniano. Iniciou uma terapia, de início, de duas sessões por semana, com direito a uma extra, se suas: ansiedade, angústia, necessidade, enfim, assim o induzisse. Durante algum tempo, teve certo alívio, porque quando não resistia ao seu impulso espúrio, e o ânimo – exaltado - do próximo, o oprimia, tinha, ao menos, a ajuda profissional do analista que, se não o defendia, emprestava-lhe os ouvidos atentos, se bem que um pouco - 116 -


dispendiosos - cento e cinquenta contos a sessão - e ele se sentia, ligeiramente, confortado, amparado, quem sabe até... redimido. Dois, três, dez anos passaram-se. Apesar de Alípio de Souza se sentir, a cada dia, melhor, no trabalho, nas relações, na vida, continuava - sempre - compulsivo e sendo sempre admoestado pelo seu mentor comportamental, por ainda não haver entrado em análise, por problemas de várias ordens, entre eles, o de transferência, de contratransferência, e pelas desavenças, francas, na disputa obstinada pelo poder ante o analista. Outro fato se tornou relevante, quando um amigo dele, mais “pé no chão”, melancólico e materialista contabilizou as despesas no afã de autoconhecimento. Percebeu que daria para comprar um apartamento de cobertura, no bairro mais nobre da cidade. E ele, Alípio de Souza, inocente, se deu ao desplante, à audácia, à ousadia, mesmo, de tentar levar o problema, para discussão, ao seu psicanalista. Realmente, não foi muito feliz, e saiu mais traumatizado, ainda, quando o profissional esclareceu que só o dever profissional o havia feito suportar tanto tempo e o seu pum indesejável, que tanto ofendia sua audição requintada e seu olfato, sensível. Esse fato acabou por dizimar qualquer frincha, vestígio, resíduo, de respeito e consideração que o Alípio de Souza pudesse, ainda, abrigar pelo próximo e pela natureza humana. Um amigo fraterno, porém, sensibilizado pela situação do nosso incompreendido, levou seu caso, a um programa televisivo de audiência nacional, e o Brasil inteiro se comoveu, pronunciou e votou, democraticamente, o direito - ou não - do Alípio de Souza poder peidar, espontaneamente, em quaisquer recintos e situações. Claro que o impasse foi ampliado, porque não ficava bem decidir o direito, ou não, de um único cidadão, em rede nacional, e a pergunta veiculada, apesar de todos a saberem baseada em Alípio de Souza, foi assim resumida: Pode um sujeito peidar, livremente, em qualquer local que lhe aprouver, e perto de qualquer circunstante que, por ventura ou infelicidade, esteja no ou próximo ao local do evento? Sim ou não? Infelizmente, houve um empate técnico, porque a questão empobreceu-se com apenas duas alternativas. - 117 -


A vultosa quantidade de pedidos que chegou à televisão, durante a pesquisa de opinião, exigindo outras variáveis, (sim, não, talvez, depende, outra coisa qualquer), infelizmente, não foi atendida, e cinquenta por cento da população brasileira se manifestou a favor e a outra metade, radicalmente, contra. O drama de Alípio de Souza, assim, superdimensionava-se e, só a Guerra do Iraque, iniciada em 20 de março de 2003, exatamente uma semana após o programa de televisão em rede nacional, pela comoção que causou na opinião pública internacional, impediu que seu sofrimento assumisse extensão planetária. Realmente, aquela série de ataques aereos com mísseis e bombas de precisão, atingindo Bagdá e arredores, polarizou-se de tal maneira - naquela época - o mundo... que feliz ou infelizmente, a cena de nosso Alípio de Souza, foi roubada. Mesmo assim, recebeu um grande número de mensagens pela Internet, cartas, telefonemas, algumas extremamente extravagantes, esquisitas, esdrúxulas. Ficou sabendo que seu problema não era tão pessoal, assim, e interessava perturbantemente a uma grande faixa da população humana. Recebeu até propostas de casamento, com promessa de vida longa, totalmente bancada pelos pretendentes - noivos e noivas solidárias, com a promessa de liberdade plena do exercício do seu direito de peidar e arrotar, em qualquer ambiente e no meio de quaisquer pessoas. Alípio de Souza, apesar de, na época, já ser um cidadão, praticamente, psicanalisado, não se sentiu seguro, animado, autorizado a estabelecer qualquer mudança existencial, marcante, e permaneceu como antes, na terra de Abrantes – indeciso. Mas, como tudo um dia clama e encontra uma solução, um abrandamento ou um esquecimento, Alípio de Souza recebeu, pela Internet, de um indivíduo anônimo – para mim, um cientista, que não queria se denunciar - se não a solução do problema, a preservação da sua liberdade ou a possibilidade de continuar peidando aqui, ali e acolá, sem desencadear, mais, toda a sorte de pelejas, controvérsias, disputas, às quais estava acostumado a despertar. Ontem, confidenciou: - Ôh, amigo, conquistei, finalmente, minha liberdade. Sei, e - 118 -


sempre soube, que meu direito acaba, quando colide ou toca os limites do direito do meu próximo, mas não podia me impor uma atitude, assim, tão repressiva, impunemente. Mas, agora, posso peidar à vontade, em qualquer lugar e em qualquer situação, e permanecer incólume, intacto, ileso, livre de qualquer perigo, são e salvo da pouca compreensão do meu próximo. - Mas o que mudou, Alípio? - Ora, recebi o esquema e mandei confeccionar uma fralda, tipo geriátrico, com elásticos que vedam qualquer possibilidade do som (das minhas regiões baixas) poder atingir o meio ambiente. Assim, posso peidar, à vontade, e permanecer anônimo, sereno, irretorquível. Mas, fui eu, admito - com um pouco de sadismo, que tentei lhe tirar do conforto, recém-conquistado: - Alípio, acredito que você possa ter resolvido o problema dos seus países baixos, mas, o que dizer dos seus países de cima, os das terras da Canastra, os dos Andes, os dos Alpes? Fez que não entendeu ou, realmente, não se atinou. - O quê? – se mostrou interessado. Expliquei-lhe, prontamente, que – realmente - o problema do flato – peido, traque, pum - havia se resolvido, mas, o do arroto, da eructação, da erupção ruidosa de gases do estômago, pela boca, se bem que menos premente, ressentia-se de solução. Alípio de Souza não se intimidou: - Esse, porém, meu amigo, eu já me debrucei sobre ele e resolvi – me esclareceu. - Mas, qual solução você encontrou? – perguntei. - Na semana passada, procurei uma agência de viagem e programei viagem à terra do Sol Poente, onde poderei dar vazão, livremente, durante três semanas, à minha sanha de eructação, anual, reprimida.

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Vá trabalhar, vagabundo!

Como se fossem os últimos passos, ele venceu o longo corredor de sua residência, aproximou-se da cama do casal, tombou, postou-se de costas, pesado, estatelado, imóvel. Parecia todo moído, de uma densidade plúmbea, afundando no leito, e as ondas de dor que percorriam todo seu corpo, em nada aliviavam a sensação desagradável da metade esquerda da sua cabeça. Com grande dificuldade, estendeu a mão, abriu a gaveta do criado mudo, às apalpadelas, procurou seu remédio de enxaqueca, e engoliu seco, de uma só vez, os três comprimidos restantes. Sentia-se nem vivo, nem morto, talvez num estado sonambúlico, podendo percorrer todos os inimagináveis caminhos do mundo, apesar de a tristeza profunda - daquele momento - não lhe convidar a lugar algum. Procurou não resistir, respirou fundo - tragou o ar pelo nariz, demoradamente, e vendo seu tórax se expandir ao extremo, prendeu a inspiração (o maior tempo possível). Depois, exalou o que pode de todo o conteúdo dos pulmões, pela boca, também demoradamente, fazendo um bico com os lábios. Sabia que esta manobra o levaria a um estado letárgico de insensibilidade, de quase transe mediúnico, de abertura para o inefável, no qual poderia experimentar desinteresse, indiferença, apatia. Apesar de tantas outras vezes ter conseguido se livrar do mundo hostil, do dia-a-dia, com esta estratégia, desta feita, depois de algum tempo, a dor começou a se localizar atrás do olho esquerdo, a se tornar cada vez mais intolerável, incômoda, molesta, e uma ânsia de vômito se insinuou. Tentou se levantar; impossível; era como se o corpo não obedecesse, mais, ao seu controle consciente. A tentativa, porém, conseguiu – aparentemente - só agravar sua algia, e vomitou um líquido leitoso que deixou sua boca ácida, mordaz, viscosa. Apesar de ateu, não tinha a certeza plena dos loucos, e, por vias das dúvidas, elevou seu pensamento a Deus, pedindo ajuda. Ato con- 121 -


tínuo. Viu-se sendo transportado, em incomensurável velocidade, por um túnel caleidoscópico, edênico, paradisíaco, e lhe assaltou a plena consciência, que se encaminhava ao além. Num átimo, um sem número de imagens começou a se descortinar na sua tela mental, como se a rememorar, instantaneamente, toda a sua vida. E, de repente, surgiu ao longe, a figura duma mulher, vestida como princesa, em cores vivas e brilhantes, duma beleza nunca vista, serena, altaneira, esguia, que, lentamente, veio se aproximando, até ficar na sua frente, ao seu alcance. Tamanha era sua perfeição, sua atitude acolhedora, e sua nobreza, que sentiu vontade de beijar-lhe as mãos. Não foi necessário, ela adiantou-se: - Sou grata, amigo pela altivez do seu pensamento, mas aqui, como lá no mundo dos mortais, a intenção antecede o gesto e a consciência, e carece da expressão para se evidenciar. Aceito sua deferência à minha pessoa. Mas, como se sente? - Não muito confortável, realmente. Parece que estou no umbral duma nova realidade, não é mesmo? É-me dado o direito de prosseguir ou de retroceder? - A indivíduos, como você, sim. - Como assim – indivíduos como eu? - Indivíduos, cuja graça do coração suplanta a inteligência e as atitudes. - Isto quer dizer que meu coração sempre me guiou? - Sim, apesar de sempre ter declarado a todos, e aos quatro ventos, a hegemonia do seu pensar. - Permita-me uma pergunta, por favor? - Sim. - Quem é você? - Ora, eu sou você - seu início, seu meio, seu fim. Estou aqui, para conceder-lhe um último desejo. - Muito interessante. E se eu progredir? O que encontrarei em seguida? - 122 -


- Ora, amigo, não importa. Isso é um mistério. A mente humana não foi feita, ou ainda não é capaz de resolver todos os mistérios. E esse é, sem dúvida, um dos mais fundamentais. - E para que serve a mente humana, então? - Para tornar a vida mais fácil de ser bem vivida, dentro de critérios de equanimidade, justiça e amor. - Isto mesmo, sempre pensei desta maneira. Mas, como é difícil ser, sempre, sereno de espírito, moderado, imparcial, não é mesmo? - Muito difícil. Mas, temos todos de exercitar, na vida terrena, a cada minuto, a cada hora, a cada dia, estes desígnios. - Olhe, eu quero voltar. Tenho certeza que, apesar de consciente da força destes atributos, não os exercitei com a devida responsabilidade, e preciso me redimir. - Você decide. Nunca é tarde para recomeçar. - Ótimo. E o que eu preciso aprender mais, para poder viver uma vida mais plena? - Ora, você, assim como toda a humanidade, já tem ou acumulou conhecimento, suficiente, para atingir este objetivo. Precisamos, apenas, querer – realmente - exercitá-lo. A questão não é só a quantidade ou a qualidade do conhecido, mas, muito mais, a decisão de seguir alguns dos mais primários preceitos e chegar a um porto qualquer possível, em vez de, como um barco sem rumo, a cada momento, mudarmos de trajetória, pelas forças das intempéries do cada dia. - Mas, se são tantas as possibilidades de orientação, por onde devo recomeçar? - Por exemplo, pelo princípio primeiro da sua cultura cristã – amar ao próximo, como a si. Para tal, comece pelo genuíno perdão a você e aos seus semelhantes; pela compreensão e aceitação da perspectiva, de cada ser humano, que a vida colocar no seu caminho. - Mas, realmente o que é o amor? - Ora, o amor nada mais é que a harmonização de todas as diferenças. Só o amor concilia tanta diversidade de sentimentos, perspectivas mentais, possibilidades de agir das pessoas e as tamanhas contradições do mundo. - Sim, de fato, isto é razoável. - 123 -


- Mais razoável, ainda, é você não querer fazer mais do que é possível para sua atual dimensão pessoal. Use sua inteligência, com o devido limite guiado pela sua consciência alcançada, porque se não conseguir conciliar estas duas perspectivas – inteligência e consciência - você se desumanizará e poderá se tornar um animal de rapina, esperto, premeditado, voraz, ou um ingênuo, um passivo, um Zé Ninguém alugado, para qualquer finalidade. - E mais? - E mais? Sempre haverá um “E mais”. Relaxe. Toda estrada deve ser trilhada, desde o início, com pequenos e decisivos passos, que sucedem (no tempo) e viabilizam-se pelas possibilidades, inerentes ao caminho. Dê o primeiro passo, siga seu coração e sua consciência, e viva - de cada vez - cada dia. - E, quais metas devo estabelecer e priorizar? - As primeiras que forem possíveis. Mas, lembre-se, não se imponha metas impossíveis. Respeite a compreensão, o tempo, e a situação sua e de cada um dos seus companheiros de viagem, e seu discernimento será seu mestre a guiá-lo pelo desejável e possível. - Muito razoável. Mas, foram tantas as pessoas que julgo não ter compreendido, durante a vida, tantas a quem, consciente ou inconscientemente, fiz mal, ou não fiz o melhor possível, que seria impossível me remeter a elas todas e lhes pedir perdão ou compreensão. - Não é preciso. Muitas fizeram o mesmo com você. Peça perdão, no seu íntimo, e o universo – seguradamente - reconciliará o conciliável e talvez até o inconciliável. Mas, que tal se redimir, tacitamente ou não, com as que lhe são mais próximas, de momento? - Sem dúvida. Pode ser meu primeiro passo. - Com certeza. - Olha, sou grato pela sua compreensão e a nova oportunidade a mim oferecida. Que Deus nos abençoe. - Estou certo que sim. - Então, até o menos breve possível. - Sim, até o dia possível. De repente, ele acorda com sua esposa o empurrando e o ad- 124 -


moestando, quanto ao horário de início do trabalho, que há muito expirara. - Ôh, amor, perdão por tudo o que lhe fiz de mal nesta vida. - Deixe de brincadeira! Vá trabalhar, vagabundo!

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A Espera

Poxa, trinta minutos adiantada. Se o Eduardo me traz, chego sempre atrasada. Se pego esses tarados desses taxistas, eles furam sinal, cortam caminho, correm feito loucos, e tenho sempre de esperar. Meia hora – uma eternidade! ... _ Olhe aquela zinha, aí, de novo... A sessão dela é, sempre, depois da minha e tenho de aguentar a cara dela toda vez. Parece que ela não tem nada pra fazer. Chega, estatela ali e fica. ... - Olhe as pernas dela, a saia decotada! Veja se isto é roupa? Também parece que não tem peito a mulher... Olhe a cara dela! Eu sempre quis ter umas pernas bonitas, assim... Será que ela não vê que o analista não é de ferro, e claro que ele vai... Mas, cada um usa as armas que tem, né? ... - Acho que, na sessão passada, quando eu falei que gosto de fazer sexo, várias vezes... Que meu namorado se preocupa (“sexo não é a única coisa não” – o Eduardo vive me falando)... E que se eu puder, quero ter duas, três ou quantas vezes der, no mesmo dia, o doutor Mário ficou diferente. Ele é muito esperto, notei que ele se mexeu, mas procurou continuar ouvindo, e não me interrompeu. Fiquei excitada, feliz de ter mexido com ele, tive até de cruzar as pernas, para me conter. ... Ele, depois, me perguntou se tenho alguma fantasia sexual e se sonho com sexo. Espertinho, não? Claro, né? Eu disse que sonho, sim, quase toda noite, acordo e me masturbo. Mas, ele continuou impassível. E é tudo verdade, mesmo... Acho que meu namorado ser mais velho do que eu, vinte anos, atrapalha um pouco... Contei isto a ele, mas antes de ele perguntar, falei que não penso em outros homens. Um de cada vez, ou melhor, sempre com o da vez. - 127 -


... Vinte e cinco minutos... Como o tempo passa devagar, quando a gente ta esperando! Interessante, já esperei bem mais, e não fiquei, assim, tão nervosa. Será que é tensão pré-menstrual? Claro que não – meus peitos não estão, ainda, inchados, nem doloridos! Será que me esqueci de tomar o anticoncepcional? Meu Deus, nem pensar! ... Por que parece que está demorando tanto? Também, seis meses de análise, duas sessões, por semana! É muito tempo. E já senti vontade de vir mais vezes, se pudesse. Mas, o homem é durão, sempre me diz que, quando precisar de mais vezes, me avisará. Ele tem que mandar, sempre. Tem que ser do jeito dele. Não falei com ele, ainda, mas, já sonhei, com ele também, várias vezes. Ontem, por exemplo, foi muito engraçado. Eu sentada na poltrona dele e ele de joelhos me abraçando as pernas. Depois, ficou tudo confuso e não consigo me lembrar de nada direito – como se fosse um filme, passando em alta velocidade. ... Acho, no entanto, que não é só a idade do Eduardo que atrapalha, não. Já fiquei seis meses com o Ronaldo, trinta e cinco anos mais velho, e se as filhas dele não tivessem atrapalhado, tava com ele, até hoje. Ele era muito alegre... Bastava eu ligar pra ele, e falar que tava meio abafada, pra baixo, deprê, ele me pegava, me levava pro sítio, e eu ficava ouvindo aquela conversa dele, boba... e logo me distraía. Mas, elas acharam que eu tava interessada na fortuna dele e na ajuda que ele me dava. Claro que tinha um pouco de interesse, mas não era bem, assim... ... É, mas, gamação (mesmo) foi com o Quenquém. Desde os doze anos, já comecei a ficar no pé dele. Saíamos no carro do pai dele, e era aquela festa... Quase tudo acontecia, porque na hora agá... ele parava. Só consegui, mesmo, (...) para ele, completo, aos dezoito. Ele ficava com outras moças, mas quando saía da casa delas, sempre me procurava. Eu saía toda noite, e só de ver ele... já ficava satisfeita, mesmo quando via ele com outra. Sabia que mais tarde... ... Poxa, ultimamente, tá difícil aguentar aquele emprego. Já to - 128 -


com vinte e seis, e não tenho carro, apartamento, poupança – nada. Também acho que fisioterapia não foi uma boa escolha. Não sei se gosto, até hoje. Emprego municipal não faz sobrar tempo, para mais nada. Foi o que consegui arranjar – e foi o Tadeu que me pôs lá. Ah, o Tadeu, bons tempos! Acho que era o único insaciável como eu. Não, esse eu acho que era mais do que eu... ... Olhe ela, lá! Não para de se remexer e de se olhar no espelho. Retocou a maquiagem, duas vezes. Êta, mulherzinha, insuportável. To quase indo lá puxar um papo com ela. Quero ver qual a dela. ... (Celular vibra). _ Oi, amor. Sim to quase entrando. Você vem me pegar? Claro que não, né Eduardo... Ocê ta doido? Já tem dois dias, né? De hoje não pode passar. Não to aguentando mais. Ocê não vai me deixar nessa, vai? Tá bom. Então tá. Tchau. Um beijo. ... Oi, tá esperando, também? Estou. Sou mulher do Mário. Meu trabalho é aqui perto e, todos os dias, venho no final do consultório, para a gente ir para casa depois. Ah! ... Pensei que você também era cliente dele! Não. Fui aluna do Mário, na Faculdade de Medicina. Depois fiz psicanálise. Meu consultório é logo aqui em frente. Você tá gostando? _ De quê? _ Da terapia. Ah, to. Ele é muito cuidadoso e experiente, não é? É. Muito. Vocês têm filhos? Um casal. Casei com vinte nove anos. Já tenho trinta e nove. Uma menina linda, de sete. E um rapagão de cinco. Achei que você estava nervosa. Toda hora olhando no relógio. A gente, numa sala de espera pequena como esta, não tem como não reparar na outra pessoa, não é, mesmo? - 129 -


É, realmente, estou – ultimamente - achando difícil esperar. Parece uma eternidade vinte ou trinta minutos! Já comentou isto com ele? Com quem? Com seu analista. Não. Você acha que é importante falar isto com ele? É bom comentar... Você está num momento importante da análise. Chamamos isto de “entrar em análise”, mostra que a transferência sua para o terapeuta está assegurada. Entendeu? Não... Mais ou menos. Isto pode mostrar que você está gostando do terapeuta e é muito importante no processo. Gostando do terapeuta? Como? Pode ser de várias maneiras. Comente com ele. ... Fiquei olhando você, de lá, e achei suas pernas lindas. Eu sempre quis ter umas pernas grossas e bonitas, assim. É? Muito obrigada. Você, também, é muito bonita. Muito espontânea. Qual sua profissão? Fisioterapeuta, emprego público, tempo integral - um saco. Estava até pensando se gosto, realmente, do que faço. É natural, em qualquer profissão, a gente questionar se está na profissão certa, às vezes. Olhe, foi um prazer conversar com você. Vou deixá-la, agora, à vontade, tá? Muito prazer, também. ... Puxa, quebrei a cara. A mulher é preparada. E firme. (Celular vibrando) Oi, amor. Algum problema? O quê? ... - 130 -


Ah, não Eduardo. Isto é até sacanagem sua! Não to aguentando mais, Eduardo. Tem que ser hoje, amor. Vire-se, aí. Se quiser, vou pra casa e, depois, você me busca lá, tá? ... Não se preocupe com isto. Pode chegar a hora que você quiser. Então tá combinado, né? Olhe lá, hein?! Vou pra casa, e você pode me buscar, qualquer hora. To te esperando, tá amor? Tchau. Um beijo. ... Filho da puta... Esse cara não é de nada, mesmo. Fica arranjando desculpa. Só pensa em ganhar dinheiro, e não olha minha necessidade. Dá vontade de... ... Cinco minutos para o cara sair lá de dentro. E vou ter que esperar mais dez. Esse negócio é cheio de regras. Eu podia entrar logo. É... mas, o homem tem que ter um tempo para descansar ou fazer alguma necessidade. Como é que ele aguenta ser tão certinho, assim? ... Esqueci de perguntar o nome da mulher dele. Mas, ela também não perguntou o meu... Tamos empatadas. Ela, na verdade, é muito gentil, fina, e me deu uma dica interessante – você tá gostando do Mário, ou melhor, do terapeuta. Quem sabe, esta ansiedade que estou sentindo é... Não. Não gosto de viver de fantasia. O negócio, comigo, é na real. E, eu nunca gostei de dois, ao mesmo tempo. Será que não estou gostando tanto mais do Eduardo? Pode ser... Esse calor no peito que estou sentindo é, ao mesmo tempo inquietante, mas muito gostoso. Nunca senti isto antes. Será mesmo que estou... Poxa a vida, é mesmo, muito doida! Tudo pode acontecer! ... Se estiver gostando do Mário, nunca gostei (de verdade) de ninguém, porque nunca senti isto antes. Também, sempre que me interessei por alguém, ele caiu na minha, rapidinho. É, tem sentido! Será, por isto, que estou sonhando tanto com o Mário, ultimamente? Poxa, minha boca tá seca, e, minhas pernas, molinhas... Bem que eu podia me permitir, nem que seja na imaginação, entrar nesta. Seria muito bom! Seria não, tá sendo muito bom... ... - 131 -


- Pronto, tá saindo o cara. Faltam dez minutos. Isto parece uma morte, na verdade, uma morte gostosa. É. Não tem jeito d’eu me enganar mais. Que eu to sentindo uma coisa diferente, eu estou. Pô, mas confundiu tudo, agora! Como é que vou me sair nesta? Ela disse: Converse com o Mário. É, a mulher não tem só as pernas bonitas, não. Deve ser por isto que o Mário se interessou por ela. Mas, o homem é muito direitinho, pro meu gosto. Não tenho muita chance, dessa vez. Mas, vou tentar... Vou usar... minhas armas. Ela não usou as pernas e a inteligência? Vou usar o que tenho de melhor... ... (A porta abre-se. O Dr. Mario chama a Ivonete. Ela cumprimenta com a cabeça a sua “concorrente” e entra no consultório. A porta fecha-se.) - Como vai, Ivonete? - Apaixonada. Isto é, vou bem, Mário.

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Minas Segurança S.A.

No gabinete do empresário de segurança da MINAS SEGURANÇA S.A., a maior empresa de segurança de Minas Gerais e a segunda do Brasil, o Coronel Segurança, anda de um lado para outro, arruma a mesa, repleta de pastas, e, pelo interfone, esbraveja: - Sim Senhor! Sim Senhor! - Pronto, Chefe! Abre a porta e para nela, intimidado. - Entra, estropício! – Entrei, chefe! – Fique à vontade, Sim Senhor.

– Sim, senhor!

– Preste atenção, Sim Senhor. Agora, só eu falo e você só me escuta, entendeu? – Sim, senhor! – Puta que o pariu! Como é que pode existir um sujeito tão burro como você, Sim Senhor? – Mas, eu preciso contar uma coisa muito... – Escuta! Você fica com essa sua boca fechada! Eu posso até lhe mandar o nome da mãe. Você fica calado. Nem um pio, entendido? ... – Ah! Agora, finalmente, você entendeu, não é mesmo? – Sim, senhor! – Filho de uma puta! Energúmeno! Sua besta, tapada! Abaixa a cabeça, mostra-se mais intimidado, começa a mostrar um cacoete, no rosto e no ombro direito. – Pega essa fita crepe aqui, Sim Senhor. Corta um pedaço dela. Tampa sua boca, seu degenerado! Vamos! Tampa! Tampa, logo! Vamos! - 133 -


... – Muito bem! Agora acho que eu posso, finalmente, concatenar minhas ideias, livremente. Produzir meu discurso, minha fala, minha peroração. Desde o momento em que a sua pessoa adentrou neste recinto, eu já tinha uma ideia em elaboração, aqui, na minha mente. E o senhor atrapalhou, obstaculizou, interditou a minha livre expressão. Entendeu, Sim Senhor? ... – Estava pensando... Você sabe que na situação em que me encontro, proprietário desta empresa, que - por sinal - emprega dois mil e quinhentos funcionários... E a grande maioria é tão imbecil como você mesmo, Sim Senhor... Veja bem: se todos vocês morressem duma doença aguda, estupefaciente, fulminante... Ou melhor, (muito melhor), se todos vocês se afogassem em alto mar, porque aí nem o trabalho de enterrar eu teria... É. Uma mera especulação... Muito interessante, mas muito pouco provável... Mas, como eu estava dizendo, Sim Senhor... Na minha situação, na minha posição, todos querem gozar com a minha pica, com o meu pinto, com o meu “ca”... “ra”... (Deixa prá lá)... Mas, saiba que este prazer, este gozo, não dou a ninguém, Sim Senhor. Gozar com a minha pica, não! Ela é um instrumento que eu não empresto, não dou, não vendo sob qualquer circunstância ou por qualquer preço. ... - Todos querem o poder, não é mesmo? Mas, na hora de trabalhar duro, assumir responsabilidades, ter garra, ninguém quer, não. Se não ficarmos alertas, todos querem falar no nosso nome, querem o melhor para si, querem os lucros - sem investir capital. O poder, Sim Senhor, é um jogo interminável. Exige vigilância constante e atitude tática, de guerra, civilizada. Se não ficarmos de olhos abertos, seremos esmagados pelos que estão ao redor e que não são, assim, tão bobos como parecem, Sim Senhor. Temos de ser sutis. Parecer justos e decentes. Agradáveis, porém, astutos. Democráticos, mas, não totalmente honestos. Isso não é para qualquer um, não. Por isso que não deixo ninguém me colocar canga ou sentar na minha cadeira, assim fácil, não, Sim Senhor. Sim Senhor começa a gesticular, como se quisesse falar alguma coisa muito importante, e aumenta os cacoetes.

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– O que você está tentando me falar, Sim Senhor, com esses seus gestos, essas suas micagens, com essa sua cara de troglodita? ... Sim Senhor continua gesticulando, como se, antes de entrar no gabinete, houvesse recebido uma ligação telefônica. – Ah! Alguém me telefonou, é? É, mesmo? Olha que nem se o Presidente da República me telefonasse, hoje, eu não estou, entendeu? Preciso de descanso, Sim Senhor. Eu também sou filho de Deus. Não fui eu quem pregou Jesus Cristo na cruz não, entendeu? Todos descansam nesse mundo. Porque eu não posso ter um dia, um único dia, de folga, de ócio, de relaxamento? Eu sei, perfeitamente! E, você? Sabe por quê? Porque eu estou imerso nesse mundo de incompetentes, preguiçosos, irresolutos, como você, Sim Senhor! ... Sim Senhor continua gesticulando, como se tivessem ligado para ele. – O quê? Ligaram para você? Sim Senhor balança a cabeça, afirmativamente, e mostra-se exultante, porque o chefe começou a entender sua mensagem. – Isso não é provável! Você é, simplesmente, um número, um CPF, um RG. O Estado só lhe reconhece, para pagar impostos. Sua mulher e seus filhos já devem ter lhe abandonado, há muito tempo. Nem o cachorro da sua casa, se é que você tem casa e cachorro, não deve lhe reconhecer mais, Sim Senhor! Você é, na verdade, um Zé Ninguém, um zero à esquerda, um morto vivo que se esqueceu de cair! ... Sim Senhor volta a demonstrar preocupação, irritação, pressa, olha as horas, no seu relógio de pulso, recomeçam os cacoetes, faz uma cara de “o que que eu vou fazer”! – Sim Senhor, cadê aquele terno de casimira inglês que eu lhe dei no Natal passado? Aqueles sapatos de verniz? Aquela gravata borboleta vermelha? Eu lhe falei, ontem, que teríamos, hoje, uma conversa reservada, não se lembra? E olha sua roupa, seu traje, sua indumentária? Você deveria ter vindo, hoje, vestido a caráter. Uma reunião assim, tão íntima como a nossa, é um grande acontecimento, você não acha? “Noblesse oblige”, Sim Senhor. - 135 -


Veja como as coisas mudaram com o tempo, e continuam mudando! Houve uma época em que as normas de conduta eram transmitidas, às novas gerações, pelas pessoas da aristocracia e que, por conta disto, eram verdadeiros exemplos a serem seguidos. Hoje em dia, tudo mudou, e infelizmente, para pior, não é mesmo, Sim Senhor? Mas, há ocasiões, na nossa vida, em que a “noblesse oblige” – apresentar-se melhor trajado; manter a fleuma, mesmo em situações desfavoráveis; aplaudir o sucesso dos outros, nem que seja para demonstrar nobreza de espírito; comparecer ao velório ou ao funeral de amigos, parentes, e, principalmente dos inimigos, nem que seja para constatar que a natureza se incumbiu, felizmente, de fazer aquilo que, já há muito, sonhávamos; saber retribuir, agradecer, a qualquer coisa que tenhamos recebido - um convite, um presente, um elogio. Um gesto vale mais do que mil palavras. Abaixo a grosseria, viva o bom, o bem, o belo, Sim Senhor! ... Sim Senhor abre uma cara de euforia e aplaude, respondendo à exortação do Coronel Segurança. - E é por isso, e por tantas outras coisas mais, que esse país é essa bagunça, essa mixórdia, esse atraso! E de resto, o mundo quase todo, não é mesmo? Mas, deve haver algum lugar neste Planeta onde possamos viver melhor. Com pessoas que pensam, planejam, ajam, e que homens comuns como você, seja a grande minoria. Não deve ter, Sim Senhor? Ele concorda, tristemente, com um gesto afirmativo da cabeça. – Sabe o que lhe falta? Duas coisas, basicamente: educação e liberdade. Os seus senhores do mundo, do seu país, da sua comunidade, lhe dão a promessa do futuro, mas, não lhe perguntam pelo presente, muito menos, pelo passado. Falta-lhe, na verdade, perspectiva histórica para você entender, melhor, as suas coisas e as do mundo. Só entendendo o passado, Sim Senhor, pode-se viver melhor o presente e planejar, adequadamente, o futuro. ... Sim Senhor continua concordando com gestos afirmativos da cabeça, porém, tentando lembrar sua necessidade de falar alguma coisa muito relevante. – Sujeitos como você foram, são e hão de ser, sempre, responsá- 136 -


veis por esse mundo ser do jeito que é – essa merda. Vocês deixam que homens, mal intencionados, detenham o poder, falem em seus nomes, lhes representem. E em cada nova eleição, após reconhecer, demasiadamente tarde, que lhes enganaram, escolhem novos outros “salvadores”. Continuar com esse proceder, com essa gramática, com esse modelo, é – simplesmente - perpetuar essa perversão, essa mentira, essa enganação. Acorda, Zé Ninguém, acorda homem comum, acorda, Sim Senhor! ... – (Atende o celular) Alô! ... Ah! É você, Sebastião? Muito bem. Você se apresente, a mim, lá na minha residência, às onze horas. Agora, são - precisamente - nove horas e quinze minutos. Olha, um pequeno conselho: acerta seu relógio com o meu. E coloca-o adiantado, meia hora. É sempre bom você se anteceder ao cumprimento das minhas ordens do que se atrasar, combinado? Você sabe que um homem prevenido vale por dois, não é, mesmo? Eu vou colocar o José Mendes, aquela besta quadrada, para rodar com meu irmão, que veio passar o Natal comigo. Lá em casa, com calma, eu vou lhe dar o Azimute... O quê? Você não sabe o que é Azimute?! Pois é, está vendo? Vocês não lêem nada. Ficam só vendo Faustão, futebol, Silvio Santos... Por isso que esse país está essa merda. Você já viu falar no Aurélio Buarque de Holanda, autor do nosso Dicionário Aurélio. Eu lembro muito bem dele. Ele veio falar sobre Tiradentes na época do Magalhães Pinto, no dia da Pátria, lá em Ouro Preto. Eu era da Casa Militar do Governador. E o recebi e o transportei, até lá. Sabe que ele me fez ler seu discurso (duas vezes) na estrada, quando nos encaminhávamos para a festividade? Ainda me mandou guardá-lo, com medo de ele perder ou rasurar o texto, antes da hora. Olha! Preste bem atenção, Sebastião! Tiradentes não era essa figura angelical que fazem dele, não. Era protético, casou duas vezes, tinha, no mínimo, nove mulheres, no caminho da antiga Vila Rica ao Rio de Janeiro. Quando ele viajava, cada dia, parava numa delas. Ele era, sim, um mulherengo de marca maior. Foi bobo. Todo mundo caiu fora, na hora de ser preso. Ele quis assumir, sozinho, a propalada “Inconfidência Mineira”. ... Outro celular toca e o Coronel o atende; fica com os dois celulares ao ouvido, um no esquerdo e o outro no direito: - Alô! ...Ah, é você, Deolindo. Olha, me liga, em cinco minutos. - 137 -


... Atendendo o outro celular. - Mas, na verdade, Sebastião, essa propalada “Inconfidência Mineira” não teve nada de inconfidência, e sim de revolta, lá nos idos de 1789, contra o domínio português. Você gosta de História, Sebastião? ... ... Claro que do Brasil? Mais ou menos, não é mesmo, seu sacana! Então, ouça lá: o então governador da capitania de Minas Gerais, Dom Luís da Cunha Meneses, famoso pela sua truculência, arbitrariedade, e exacerbada violência, apesar das jazidas de ouro da região - na época - estar se esgotando, cumprindo ordem da Coroa Portuguesa instituiu a cobrança da Derrama – uma taxaçãozinha de só uma tonelada e meia de ouro anual. Veja que o Leão já era esfomeado desde aquela época, Sebastião. Estes fatos atingiram quem? As classes abastadas, ricas, entesouradas das Minas Gerais – os pobrezinhos proprietários rurais, intelectuais, clérigos e militares,que não ficaram nem um pouco contentes e começaram a se reunir. Participavam do grupo, entre outros, os poetas Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga, os coronéis Domingos de Abreu Vieira e Francisco Antônio de Oliveira Lopes, o padre Rolim, o cônego Luís Vieira da Silva, o minerador Inácio José de Alvarenga Peixoto e o realmente pobre (não sei se de dinheiro ou de espírito) alferes Joaquim José da Silva Xavier, apelidado de Tiradentes. Eles pretendiam eliminar abominação portuguesa, criar uma utopia, um país livre, uma República, (como essa que já estamos agora na terceira e na mesma merda), inspirada pelas idéias iluministas da França e da então recente independência norteamericana. Tiradentes foi bobo Sebastião! Não dedurou ninguém. Quis ser herói. Infeliz do povo que precisa de heróis, não é mesmo Sebastião? Mas, voltando à palavra Azimute, você pode traduzi-la como “referência”, “direção”, entendeu? Lá em casa, portanto, vou lhe dar - com mais tempo - as direções, as referências. Ficou claro, agora? Outra coisa: se houver qualquer empecilho, impedimento, dificuldade no seu deslocamento, você me liga novamente, ouviu? Mas liga com voz de mulher, ouviu? E, de preferência, com uma voz bem aveludada, terna, carinhosa, entendeu? O meu celular apartir de agora vai estar programado para receber apenas vozes com essa proposta e tonalidade! Passar bem! O Coronel Segurança virando-se e se dirigindo ao Sim Senhor: - Onde estávamos mesmo, Sim Senhor? - 138 -


... ... Ah, você está provisoriamente impedido de falar, não é mesmo? Muito bem. O telefone da mesa do gabinete toca e Sim Senhor corre e o protege entre os braços impedindo o chefe de atendê-lo. – O que é isso Sim Senhor! Você está ficando louco? Passe esse aparelho aqui. ... Sim Senhor mantém o aparelho, enquanto ele permanece chamando, se desvencilha do chefe que se aproxima e tenta se apoderar dele, e quando o mesmo para de tocar volta com o aparelho para a mesa. – Pelo interfone: Dona Zazá! Chama, para mim, dois seguranças, armados, aqui dentro, agora! O coronel senta-se na sua poltrona magistral, burilando os dedos da mão direita na mesa, olha fixo um ponto distante na parede, balança a cabeça, de frente para trás, e vice-versa, pausadamente. Sim Senhor fecha os olhos, balança a cabeça apressadamente de um ombro a outro e vice-versa. Entram dois seguranças armados, dos pés à cabeça. Os dois entram, se perfilam perto da mesa do Coronel e, ao mesmo tempo, se apresentam: – Pronto Chefe! – Algemem esse infeliz aí para ver se eu posso me dar o direito de falar e ele de ficar calado. Sim Senhor é devidamente algemado, sem oferecer qualquer resistência. Logo, o aparelho telefônico da mesa do gabinete toca e ele corre e o abraça novamente com certa dificuldade. Os dois seguranças levantam-no do solo até uma posição horizontal com o aparelho ainda contido entre o corpo e os braços dele. O telefone para de tocar. Eles voltam-no à posição de pé e retiram, dele, o aparelho, retornando-o à mesa do gabinete. - Algemem esse infeliz pelos calcanhares também. ... - 139 -


– Podem se retirar agora, ordena o Coronel. Os seguranças perfilam-se novamente frente ao Coronel, fazem continência, dão meia-volta e se retiram. – Enfim sós, não é mesmo Sim Senhor? Você já leu “O alienista” de Machado de Assis? Não! Não leu, tenho plena certeza. Machado de Assis nessa obra genial, parafraseando Sêneca que havia dito “nullum magnum ingenim sine mixtura dementiae fuit”, ou seja, jamais houve um grande cérebro, sem uma dose de loucura faz seu protagonista dizer que “um grãozinho de sandice, longe de fazer mal, dá certo pico à vida”. Como o seu cérebro não é tão grande assim, Sim Senhor, eu, realmente, não sei se você está enlouquecendo, se já ficou louco, ou se essa situação é mais uma das evidências de sua burrice galopante. O coronel deixa sua poltrona, se encaminha para um jogo de sofá no canto direito do escritório, senta-se comodamente numa poltrona próxima ao Sim Senhor e o convida (apesar de todo algemado) para se sentar na poltrona à sua frente. Sim Senhor declina do convite, se aproxima, mas fica perto do Coronel Segurança. ... – Pois é, Sim Senhor, veja como é difícil nos nossos dias atuais, (tumultuados, não é mesmo?) encontrarmos, assim, dois ouvidos atentos e uma boca silenciosa. Veja que a situação tivemos de chegar, para o senhor se prestar a uma atitude simples como essa – escutar seu interlocutor, sem o interromper. E a vida é breve, Sim Senhor... Dizem que a arte é longa, é duradoura. E lá se vão já setenta e dois anos meus, vividos. Estou no ocaso da vida, Sim Senhor. A duração média de vida duma pessoa é de sessenta a oitenta anos. A duração do planeta (e quem sabe, de nosso país) é de uns dois milhões de anos. Assim, eu tenho, no máximo, dez a vinte anos para dar certo. Nosso país, qualquer país, é uma ficção, uma montagem para regular a nossa vida, Sim Senhor. País nenhum dá certo. Sabe o que tem de dar certo? Eu, você, qualquer cidadão. O resto é puramente convenção. Não podemos confiar em ninguém, em nenhuma instituição, em nenhum saber, em nenhum poder. Só podemos confiar, ou melhor, confiar não, digamos investir, esperar, contar com o nosso próprio cérebro, Sim Senhor. E eu lhe pergunto: Quanto tempo você gastou para aprender a usar melhor esse seu cérebro? Quem se preocupou de sentar com você, nem que seja como estamos, assim, agora, para lhe ensinar - 140 -


como usar e melhorar o potencial do seu cérebro? Quem, até hoje, perdeu algum tempo para lhe ensinar a pensar, a sentir, a agir, a ter suas próprias agendas, a aprender a direcionar sua vida, rumo aos seus próprios objetivos? Resposta: Ninguém! Você vive a gozar com a pica dos outros, Sim Senhor. Você nunca teve suas próprias metas. Você nunca parou, um segundo sequer, para pensar sua vida, o que você quer para você, sua família, seu trabalho, sua comunidade, Sim Senhor. Por isso que você é esse ser comum, médio, dominado, sem lema próprio, sem ideal, sem perspectiva. Sim Senhor vira a cabeça de lado, mantém os olhos fechados, continua balançando a cabeça de um ombro a outro, lentamente, e os cacoetes reaparecem. – Não, não fuja, Sim Senhor. Tenha ânimo e me olhe de frente. Você tem medo é de olhar para si. Tem medo da crítica. Você mesmo se despreza, Sim Senhor. Você deve pensar: Quem sou eu para ter opinião própria, para decidir sobre a minha própria vida, para ter o mundo para mim. Compreenda de uma vez por todas que é você, Sim Senhor, que transforma homens medíocres em opressores, que torna mártires os verdadeiramente grandes, que lutam por você, que não se rala nem um pouco com os esforços deles e com as lutas que eles travam em seu nome, Sim Senhor. ... Sim Senhor abre os olhos e dirige, fixamente, o olhar contrito para seu chefe. olhos.

– Muito bem, Sim Senhor. Agora sim. Olha bem dentro de meus

Coronel Segurança levanta-se, fica vis-à-vis com Sim Senhor, olha nos olhos dele, fixamente. ...Você, na verdade, não tem sequer a capacidade de reconhecer um homem verdadeiramente grande – o modo de ser, o sofrimento, as aspirações dele. As raivas e as lutas dele, em seu nome, lhe são completamente alheias, indiferentes, menores. Nem sequer entende que existem homens e mulheres que desejam que você seja real, lúcido e verdadeiramente livre, Sim Senhor. Mas, você, eu, a humanidade, infelizmente, dependemos de você, Sim Senhor, e, na verdade, eu tenho é medo de você, porque não há nada de que você fuja tanto do que se encarar a si. Você está doente, Sim Senhor, muito doente, inexoravelmente doente. E embora a culpa não seja unicamente sua, cabe somen- 141 -


te a você se libertar de sua doença, dos seus opressores e da mentira que impingem a você. Por isso que, perto de você, é difícil pensar, porque você sufoca qualquer pensamento original. É possível, sim, pensar sobre você, nunca com você, porque você não faz a mínima idéia do que seja a verdade, ou a história, ou a luta pela liberdade! ... – Na verdade, Sim Senhor, o que todos temos de fazer primeiro é garantir nossa sobrevivência pessoal, humana, sócio-político-cultural. É preciso, para isso, respirar, alimentar, trepar, estudar, trabalhar, melhorar nossa classificação na vida, defender nosso território nos seus vários níveis e contextos. Depois (e aí está sua falha maior, Sim Senhor, e dos seus sequazes e amigos) é preciso aprender a pensar que nada mais é que aprender a interpretar cada conjuntura, para se redirecionar, tantas vezes quanto necessárias, para se alcançar nosso desejo, nosso objetivo, nossa esperança. Finalmente, ir atrás do amor – aquele único que pode harmonizar as tantas diferenças entre as pessoas, condições de vida, geografias, histórias, contas bancárias, etc., etc., etc. E, para tal, não se tem outra saída, é preciso, Sim Senhor, conviver conosco, com os outros e o mundo. Navegar é preciso, viver não é preciso. E pior, além de viver não ser preciso, exato, matemático, não é fácil, Sim Senhor. Deus foi por no ser humano essa coisa de todo mundo achar que tem a verdade, e – realmente - mesmo o fanático, o maníaco, o louco, a criança, o artista, o religioso – todos têm sua verdade. E que armas nós temos contra essa verdade de todos, e, principalmente de imbecis como você, Sim Senhor? Somente a instrução, a correção, o amor. E se não der? Bordoada, pancada, porrada na moleira de cada um e de todos que precisarem. Porque não há o que o ser humano possa fazer pelo Universo. Viver é gozar, transformar-se, realizar-se, fazer experiência consigo, com os outros e o mundo, naturalmente dentro de determinados limites de direitos e responsabilidades. Cada um de nós não é mais do que um robozinho dos genes, da sociedade, da cultura, da religião, da política, do sistema econômico, e de tantas outras variáveis, Sim Senhor. Tudo está ligado a tudo, estamos todos interligados, querendo ou não, somos um mero elo da circulação da energia do Universo. E não há nada melhor a fazer, a não ser ajudar essa circulação, querendo ou não. E todos fazemos isso, Sim Senhor, eu, você, o presidente dos Estados Unidos, o rico, o pobre, o remediado, o trabalhador, o malandro, o que consegue viver sem fazer nada, cada um com sua verdade, com seu conhecimento, com sua realidade e com seu próprio sentido de felicidade. - 142 -


Sim Senhor concorda, com uma movimentação afirmativa da cabeça. O celular toca novamente. O Coronel Segurança o atende: – Alô. Fala, Deolindo! - Coronel, tudo perfeito na área 4. Nove homens se apresentaram. Somente o José Francisco Lamas faltou. Já providenciei o reserva – tudo sem alteração. - Ele telefonou e deu explicação, Deolindo? - Até ao momento, não, Coronel. Mas, deve ter motivo sério. Tem cinco anos de serviço, sem uma falha sequer, Coronel. - Ah, é? Que bonzinho, hein? Está vendo? Vocês são todos uns pusilânimes! ...O quê? Pusilânime? Você também é da turma dos que não sabem? Você não conhece a norma culta. Aquela que é apanágio dos imortais da Academia Brasileira de Letras. Por sinal, uma instituição de relevantes, profícuas e extenuantes contribuições ao iletrado, mísero, esforçado, povo brasileiro. PUSILÂNIME, Deolindo, é fraco, sensível, CAGÃO. Você foi contratado para administrar, gerenciar, ter pulso forte, Deolindo! Você não é nenhuma assistente social não, Deolindo! Você, agora, é membro também da Teologia da Libertação? É o novo defensor dos pobres, dos oprimidos, dos relapsos. Você tem que punir Deolindo - doa em quem doer. Manda ele me procurar, segunda-feira. Está fora. Vai receber seus direitos trabalhistas e ponto final. A vida, hoje, é muito trepidante, Deolindo. Enquanto poucos trabalham, como eu, o dia todo, uns andam por aqui, outros correm para lá, alguns para acolá, e muitos para lugar nenhum. Esses são os mais inteligentes, não é mesmo, Deolindo? ... ... Mas o quê? É a primeira vez em cinco anos? E daí, Deolindo? Isso é igual mulher, Deolindo. Deu a primeira vez, perdeu o cabaço, não tem mais jeito, não. Vai continuar dando, Deolindo. Não é mais confiável, não. Veja bem – a segurança das Minas Gerais está em nossas mãos. Não podemos relaxar, entendeu? Regra é regra. Em matéria de segurança, não pode haver exceção, entendeu? Manda ele me procurar, na segunda-feira, e estamos conversados. Passar bem! Sim Senhor continua apreensivo, tentando demonstrar que tem alguma coisa urgente para falar. - 143 -


– Seu merda! Esse cara está pensando que empresa de segurança é casa da Maria Joana, é emprego público, é... O telefone da mesa do gabinete toca - novamente. Sim Senhor, com inusitada dificuldade, deita no piso da sala e procura se arrastar, para atingi-lo. O Coronel Segurança, sorrindo ironicamente, se antecipa e o atende: – Alô! Quem fala? O quê? Uma bomba? E você avisou? Como? Para quem? Pro Sim Senhor! A luz do escritório se apaga. Ouve-se um tremendo estouro na mesa do Coronel e o local enche-se de fumaça: da:

Ouve-se - ao fundo - a voz do Coronel Segurança fraca e sofri-

- Porque você não me avisou, Sim Senhor! Seu grande filho da Puta!!!

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www.fundac.org.br


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