MĂ´nica, asas da liberdade LĂš Hk
s aulas de História da Música eram a maior maçada do semestre. O auditório com centenas de poltronas abrigava somente vinte calouros do curso de Música, sentados todos nas duas primeiras fileiras. Mônica Schleiermacher e seu colega favorito estavam na quarta fileira, no extremo canto do auditório escuro, quase fora da área de visão do professor. Mônica pestanejava a cada cinco batimentos cardíacos em cadências sincopadas d’um larghetto staccato, dominada pelo mais cruel dos sonos matutinos de uma segunda-feira. A poucos metros dela, jazia uma borboletinha acinzentada na parede; era ordinária mas um pouco maior do que o normal e com uma estranha mancha negra sobre a asa esquerda. Mônica estava mais interessada na borboleta do que no modo como Bach bem temperava seu cravo (ou como ele o variava para Goldberg) – não sabia exatamente do que o professor parolava, pelo menos ele não admoestava seus alunos mais relapsos e desinteressados. A borboleta Mária – assim Mônica lhe batizou, entusiasmada com a leitura de Cемейное счастье – alçou voo pela sala e logo caiu abruptamente, batendo asas desesperada pela subsistência. Voava em círculos pelo chão do auditório; sua mancha não era uma mancha, mas uma arranhadura profunda na asa esquerda. «¿O que diabos é uma borboleta que não consegue voar?» Ficou observando sua sofreguidão, batendo apenas uma asa, voando em círculos como se se afogasse ao ar livre. «Coitada da Mária, está decepada.» Mônica ficou com o coração apertado, sofrendo pela agitação da pequena Masha, rodopiando sem sentido pelos últimos círculos da vida. «Os últimos momentos de um ser vivo fadado à morte, enquanto eu sou a encarnação viva da mais pura neurastenia.» Mônica pensou em seus planos: iria zelar por Mashka, até ter a certeza de que ela estivesse morta em paz, nem que tivesse de passar o dia inteiro no auditório, nem que tivesse de madrugar por ali, esperando que ela morresse tranquilamente, para enterrá-la no bosque da faculdade e não deixá-la ser devorada por formigas ou escorraçada por uma reles vassoura. O professor deu alguns passos para o lado, na direção dos alunos, com seus gestos incontrolavelmente italianíssimos, como se regesse a orquestra teórica do sono discente num allegro ma non troppo, até que acabou pisan-
do na pequena Masha, decretando seu fim esmagatório. Mônica sentiu uma pontada gélida no coração, teve dificuldades para respirar, não pôde fazer nada pela pobre Mashka; passou a sentir um incomensurável ódio pelo professor, como se ele fosse o assassino de sua melhor amiga. Observou o corpo esquálido do professor e teve pena d’ele. Sua cabeça calva era enorme, parecia um pirulito perfeitamente esférico; a luz do projetor brilhava na parte superior da testa, como uma bala de caramelo brilhosa. Falava sobre Salieri quando metade de Masha estava desconfigurada pelo chão, e outra metade grudada no sapato de couro asseado do professor; vestia-se como o maestro elegante e magnífico que nunca fôra; gesticulava com a elegância de um Karajan. Por mais simpático que fosse, continuava sendo o assassino de Masha. Mônica correu feito louca em direção ao palco do auditório, abriu a boca o máximo que pôde e abocanhou o enorme caramelo que era a cabeça alopécica do professor. Conseguiu chupar todo o caroço epistêmico daquele ser medíocre. Sentia entender boa parte da teoria de harmonia de Schönberg em alemão, fresquíssima como uma tese de livre-docência recém-defendida. Compreendia a importância de uma forma autônoma para a arte, mas achava o dodecafonismo um sistema demasiadamente limitado; por mais que György Ligeti fosse um gênio do tempo multiplicado no coração, só servia para dar de trilha sonora para filmes obscuros – é isso que eu acho sinceramente –; Stravisnky, sim!, era realmente um gênio, deixa Cage ou Reich no chinelo... Joguemos todos esses minimalistas na lata de lixo da História e o mundo será perfeitamente melhor. Mônica sugou mais e mais do caramelo viscoso, as opiniões musicais pareciam se nublar, e trouxe-lhe a antiga memória de Viktoria Koznicheva, sua antiga colega de cello no Mozarteum em Salzburg. Viktoria mal sabia falar alemão, mas terminou o noivado num inglês com sotaque eslavo. Por mais que tentasse esquecer, por mais de um par de décadas, não conseguiu deixar de amá-la. Parou de se dedicar aos românticos e ao cello para não se matar de verdade; mergulhou nos estudos de harmonia dos malditos contemporâneos, que pouco evocavam dos sentimentos mais fortes... Mônica se levantou e olhou ao redor os prados floridos, sentiu o aroma das laranjeiras em flor; seu coração lhe doía gélido a cada respiração, quase a rasgar seu peito afásico prensado pela névoa densa que ali se formara. Ao seu lado, jazia morto o corpo de seu professor de História da Música,
com a cabeça inteiramente decepada. O aroma das laranjeiras era mais doce do que o caramelo calvo que acabava de devorar sem remorsos; começou a ter náuseas da docilidade geral que se lhe acometia os sentidos. Correu pelo prado abarrotado de gardênias e laranjeiras; passou por uma passagem estreita de pedras cobertas de musgo, sob uma densa vegetação arbustiva, até que avistou uma enorme cachoeira dourada. Era brilhosa como o mais puro mel de laranjeira – como os cabelos de Laura. Aos nove anos de idade, Mônica deixara sua bolsa da escola cair no chão; justo naquele dia, dentro da bolsa havia um pote de vidro com mel de laranjeira, presente de seu tio Carlo. Pouco se importou com os cadernos e livros de Matemática ou Português, mas tentou salvar o caderno de partituras a todo custo: estava inteiramente coberto do mais delicioso mel, que brilhava ainda mais intenso com os pequenos fragmentos de vidro do pote estilhaçado. Tentou recuperar o Concerto para violino de Mendelssohn, e que demorara quase uma hora para copiar da partitura de seu professor; à medida que passava a limpar o mel da partitura, pequenos cacos de vidro iam lhe cortando afiadamente a mão. Pôde contemplar a pintura de seu sangue rubro em meio ao dourado pálido do mel. Não conseguiu salvar a partitura, acabou com a mão tôda ensanguentada e cheia do veneno vítreo do mel; não pôde tocar violino por um mês. Agora, encontrava-se diante de uma cachoeira enorme de mel, que escorria toda lânguida como os cabelos dourados de Laura. Banhou-se na cachoeira e mergulhou de cabeça mementemente, fora de si, pelo fluxo do inconsciente. Podia sentir suas mãos se entrelaçando nos cabelos de Laura enquanto esta se embebia de seus seios, os seios precoces de Mônica. (Os de Laura cresciam timidamente, os de Mônica já eram fartos mesmo antes do colegial.) «Mô, eu; eu queria que você me amamentasse um dia.» Mônica lhe beijava a testa e afagava-lhe os cabelos com as mãos, acariciando o rosto de Laura contra seus seios. Os raios do sol entravam pela janela superior do conservatório e faziam as madeixas de Laura brilharem escorregadias como o mel. «Mô, toca pra mim.» Depois de se beijarem por um tempo, Mônica abriu o estojo, pegou seu violino e se pôs a tocar a Sonata a Kreutzer de Beethoven, a preferida de Laura, apesar d’ela nunca a ter ouvido junto ao piano. Depois de quinze minutos praticando a sonata, nervosa, tremendo dos pés à cabeça, quase deixando seu Guarnierius cair no chão, Laura abra-
çou Mô por trás e lhe sussurrou ao ouvido: «Vamos ficar juntas pra sempre!» Ao dar conta de si, Mônica estava se banhando na cachoeira de mel; abaixo de si formava-se uma enorme mancha de sangue: pequenos fragmentos de vidro junto ao mel da cachoeira lhe cortavam a mão que tentava acariciar novamente os cabelos dourados de Laura. Cada brilho luminoso em seu cabelo lhe é um fragmento vítreo afiado. Pôde contemplar a pintura de seu sangue rubro em meio ao dourado cintilante do mel – o lago de mel e sangue brilhava com os últimos resquícios de luz solar do poente, que resplandeciam quase lilás no fundo do horizonte. O lago formado pela cachoeira de mel passava a se turvar de sangue; Mônica sentia seu coração apertado gélido perdendo anemicamente as forças; aos poucos os salmões dourados do lago emergiam à superfície, mortos por asfixia. Mônica rompeu em soluços, chorando a perda de sua primeira namorada; deu-se conta de que não chorava lágrimas, mas sangue. Há tanto tempo, Laura!... «Acorda, Momô!» / «Oi, Lù.» / «Acabou a aula.» / «...» / «A gente ficou com o seminário do Mozart. É pra você ler o livro do Peter Gay, que é um historiador da cultura, e eu fiquei com o do Norbert Elias, que faz uma abordagem sociológica.» / «Ah, Lulù, lê pra mim e depois me conta.» / «Não dá, Mô. Você tem que ler, senão vai reprovar de novo.» / «Ah, Lulù, enfia seu fagote no...», disse Mônica, que sempre desprezara o instrumento de seu colega favorito. «Dišcûpa, Lulù.» Mônica abraçou seu namorado oito anos mais novo, um fagotista infeliz, jovem e sonhador demais para perceber que não tem talento para ser músico. Pensou em Laura e conseguiu dar o abraço mais gostoso que teve com seu namoradinho. Olhou para o lado e viu que, ao seu lado, a poucos metros de distância, jazia uma borboletinha acinzentada na parede; era ordinária mas um pouco maior do que o normal e com uma mancha negra sobre a asa esquerda. Saiu voando, livre e feliz pelo fato de a aula ter se findado. Era apenas uma mancha.