Matéria - Revista Biblioteca Mário de Andrade 70

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RE SÍ DUO DE SO NHO Davi Arrigucci Jr.

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o centro de Octaedro, a boa safra de contos que Julio Cortázar reuniu em 1974, rasgando-o como um eixo de simetria paradoxal, que fosse também uma brecha para o

“Pois de tudo fica um pouco” Carlos Drummond de Andrade

abismo numa face vertiginosa de sua múltipla geometria, há um texto insólito: “Ahí pero dónde, cómo”. A rigor, não é um conto, uma história breve com começo, meio e fim, por mais que se acredite, com Mário de Andrade, que é conto tudo quanto o autor chame assim. Trata-se, até certo ponto, de uma breve narrativa confessional, autobiográfica, que pode lembrar o ensaio informal à maneira de Montaigne, debruçado sobre si mesmo. Mas isso num escritor que primava por evitar toda confissão pessoal e que meditou a fundo sobre a natureza do conto, repensada desde suas origens modernas com Edgar Allan Poe, de quem traduziu a obra toda de forma admirável durante a preparação para o voo solo no espaço mais solto da ficção. E como se sabe,

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o conto, para Poe, é uma concisa e exata máquina de relógio, engendrando, segundo a segundo, o desenlace fatal. Aí, porém, a direção é outra: a da fratura exposta. O título, que vai se repetir ao longo da história fragmentária como um motivo recorrente e desconcertante, é uma espécie de frase indicativa de um território incerto: sem predicado e sem sujeito, não chega a constituir uma oração; é formada por três advérbios – dois de lugar e um de modo −, mais a conjunção adversativa (pero), que introduz a surpresa diante da indicação de um espaço impreciso (ahí), objeto apenas de interrogações perplexas (dónde, cómo). Abre-se a história sobre um sentido que permanece obscuro, uma vez que a indicação espacial nela contida depende de uma circunstância ou situação que nos é a princípio desconhecida e já se mostra nada menos que problemática. Na verdade, as perplexidades começam desde a primeira linha, aberta em minúscula, como se fosse ali não o começo, mas a continuação reatada de um sonho repetido e com força de realidade presente: “no depende de la voluntad”. Parece exigir, por isso mesmo, um discurso dúplice e fragmentário, rachado entre perspectivas distintas, ao longo de todo o texto: em primeiro lugar, a de um monólogo dubitativo, que leva em consideração o leitor, ao mergulhar nas próprias perplexidades a que o conduz o sonho recorrente com um amigo moribundo; e depois outra, em negrito, que cristaliza num presente intemporal a terrível experiência da morte iminente desse amigo, de repente rediviva, reatualizada do passado vivido há mais de trinta anos, como num desenho de criança que a deixa de novo aí, sem explicação, numa fala solitária do narrador consigo mesmo. Em ambos os casos, monologado, apesar da abertura para o leitor num deles, o texto todo se encapsula nas 70 RBMA 151


intrincadas repetições de seu próprio problema. Ao se dispor a contar o que aparentemente não se deixa contar, ou seja, algo que está, mas que não se pode precisar como um objeto determinado, alguma coisa que não se objetiva, resistindo à linguagem, o narrador se propõe de fato a enfrentar o difícil, expresso na forma quebrada do que não pode ser um conto. Coloca à prova sua “capacidad para entrar en territorios diferentes”, como aí mesmo se afirma, arriscando-se na forma paradoxal de narrar quando isso se mostra inviável: a única via que resta ao desnorteio do narrador enredado em seus interstícios subjetivos, sem um foco preciso. Sabemos muito bem que narrar, quando ficou impossível narrar, constituiu um móvel central da narrativa moderna, num tempo que tornou problemático o mandamento épico da 152 RBMA 70


objetividade, minado pelo subjetivismo, conforme apontou Adorno num ensaio célebre.1 Era uma época em que o tema hegeliano da morte da arte voltava a rondar o espírito dos criadores e o risco do silêncio se fazia sentir no âmago mais íntimo dos que se dispunham ainda a narrar, frente a uma desconfiança geral da pura narrativa. Onze anos depois de Rayuela (1963), em que o romance, feito poética de si mesmo, se ameaçava escorpionicamente sobre seus próprios impasses, Cortázar, num conto aparentemente casual, se vê às voltas com os entraves da narrativa ao se defrontar com a memória da morte distante de um amigo da juventude. Voltam as imagens do passado feito ondas de um mar de sonho, e voltam para exigir dele que diga o indizível. A narrativa ameaça calar-se e se quebra como as ondas quando se avizinha da morte impronunciável do ente querido. Será o silêncio que entremeia os cacos da narrativa a maneira mais adequada de narrar a experiência limite da morte? Que enigma se aninha no inefável? A figura de Francisco Claudio Reta, Mono (Monito) ou Paco para a roda dos amigos que se reuniam nos cafés e bilhares do bairro do Once, em Buenos Aires, no final dos anos 1930 e começo dos 1940, acha-se intimamente vinculada às origens da prosa de ficção de Cortázar. A ele dedicou o escritor, em 1951, o primeiro e notável livro de contos que deu início Cf. Theodor W. Adorno, “La posición del narrador en la novela contemporánea”, em Notas de literatura, tradução Manuel Sacristán, Barcelona, Ariel, 1962, pp. 4552.

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efetivo à sua carreira, Bestiario, assim como as histórias de La otra orilla, de 1945, publicadas postumamente em 2008, com palavras quase idênticas às anteriores: “A Paco, que gustaba de estos relatos”2. Pelas cartas e por entrevistas, sabe-se que Julio conheceu Paco durante sua formação professoral, ainda muito jovem, e com ele fez uma longa viagem ao norte da Argentina e à região das Missões; sabe-se também que sua devoção a esse primeiro grande amigo foi extrema, tendo-o acompanhado durante a lenta agonia causada por uma doença renal que acabou por vitimá-lo em outubro de 1942. Numa carta a María de las Mercedes Arias, amiga e colega de ensino em Chilvicoy, naqueles começos da década de 1940, Julio conta em detalhes comoventes todo esse período aflitivo que precedeu a morte de seu amigo querido.3 Noutra carta importante, na verdade um documento da mais densa e palpitante humanidade, dirigida a Eduardo Jonquières, datada de 31 de outubro de 1952, em Paris, passados dez anos da morte de Mono e mais de vinte anos antes do texto aqui em questão, Julio, confessa-se atormentado pelas Epígrafe de Bestiario: “A Paco, que gustaba de mis relatos”.

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Ver, sobretudo, a carta de Buenos Aires datada,de dezembro de 1942 à referida amiga. Mignon Domínguez, Cartas desconocidas de Julio Cortázar, Buenos Aires, Sudamericana, 1992, pp. 259-261.

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“pesadillas que se repiten” (numa antecipação clara do que relataria no texto de Octaedro). Recorda o gosto do amigo pela vida que a enfermidade foi pouco a pouco lhe retirando e se recrimina pelas cobranças que fazia com frequência a Paco pelo desleixo com que este parecia encarar seus próprios projetos. É que Julio demorou a se dar conta da condenação que já o outro vivia e, por isso mesmo, revela então o sentimento de culpa pela pressão que exercera sobre ele, a quem não teria permitido sequer se desafogar, cortando-lhe a palavra no derradeiro instante.4 O não dito, nesse momento culminante, parece seguir perturbando-o como uma ferida aberta e incurável tantos anos depois. O que aflora, portanto, no relato de Octaedro, apenas evocado e fragmentariamente aludido, é todo um contexto autobiográfico. Na verdade, uma nova matéria literária para o escritor, rica, delicada e complexa, que será algumas vezes retomada em contos posteriores, assim como estivera presente em sua obra inicial, anterior a Bestiario, que publicações póstumas têm nos permitido conhecer. Tudo isso demonstra que um material aparentemente abandonado no limbo da carreira do escritor retornou de algum modo no fim, de forma quase obsessiva, tornando aquilo que Borges chamou a grande paixão argentina, a amizade, um dos temas mais fundos e inquietantes de uma obra que parecia sempre dar as costas à confissão pessoal. O enigma de “Ahí pero donde, cómo” remete ao não dito Julio Cortázar, Cartas a los Jonquières, Buenos Aires, Aguilar/Altea/Taurus/Alfaguara, 2010, pp. 118-119.

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e supõe a aliança secreta entre a amizade interrompida pelo trauma da morte (que de repente irrompe de novo, não como recordação de algo que faça parte do passado, mas através da repetição no sonho) e a forma fraturada do conto. A mediação entre a matéria e a forma se faz pelo sonho, por meio do que nele restou do passado e volta, sem que o trabalho latente de sonhar tenha dado conta desse resíduo que retorna intocado, feito a vida da morte que não se deixa de todo morrer.5 Paco não é o fantasma tradicional que volta para assombrar os vivos, como acertadamente percebe o narrador. Ele simplesmente revém para reviver sua morte traumática para os jovens amigos, sobretudo para esse amigo que torna a sonhá-la, vendo nela um escândalo (como às vezes se referiu a ela Cortázar em entrevistas)6, o fim abrupto e sem sentido de um desejo ceifado, e não o limite natural da vida, que se deva aceitar com os olhos pacatos. Ao tentar dizer, mesmo na esfera do conto, o indizível, submetendo o texto à prova de sua impossibilidade, Cortázar aventura-se no território incerto em que a experiência do narrador linda com a morte, mas também com a poesia. Reafirma, assim, o que sempre foi central ao seu projeto de escritor: a rebelião contra o mundo dado em que lhe tocou viver e a disposição para a busca de algo extremo, ditado por sua intuição poética, que rege, no mais fundo, a configuração de seu mundo ficcional. Ver, nesse sentido, o que diz Freud sobre o papel do sonho nas neuroses traumáticas em seu Além do princípio do prazer, sobretudo cap. II et passim. Sigmund Freud, Obras completas, traduçao Paulo César de Souza, São Paulo, Companhia das Letras, 2010, vol. 14, pp. 168 e ss.

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“Para mí la muerte es un escándalo. Es el gran escándalo. Es el verdadero escándalo” (Cf.: Evelyn Picón Garfield, Cortázar por Cortázar, Xalapa, México, Universidad Veracruzana, 1981, pp. 28-29; Ernesto González Bermejo, Revelaciones de un cronopio. Conversaciones con Cortázar Buenos Aires, Contrapunto, 1986, p. 58.

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Na verdade, parece ter buscado a vida inteira a poesia, essencialmente como um poeta. Ser que anseia ser, o poeta teria por atributo aquela ubiquidade dissolvente que ele um dia, ainda na juventude, aprendeu a reconhecer com John Keats: móvel profundo que o dispõe para o assalto e a posse dos territórios mais estranhos e inacessíveis, na busca obscura do que intuiu como sua verdade. É a fidelidade estrita a isso que sempre lhe garantiu a autenticidade, a ética do ofício e, até o fim, a força inventiva.

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