Introdução (Nuccio Ordine)
E o papel da filosofia é, precisamente, revelar aos homens a utilidade do inútil ou, se assim quisermos, ensiná-los a distinguir entre um sentido e outro da palavra «útil». Pierre Hadot, Exercices Spirituels et Philosophie Antique
O oximoro evocado pelo título A Utilidade do Inútil merece um esclarecimento. A paradoxal utilidade de que falo não é a mesma em nome da qual os saberes humanísticos e, de um modo mais geral, todos os saberes que não produzem lucro, são considerados inúteis. Numa dimensão muito mais universal, quis pôr no centro das minhas reflexões a ideia de utilidade daqueles saberes cujo valor essencial está completamente livre de qualquer finalidade utilitária. Existem saberes absolutos que – precisamente pela sua natureza gratuita e desinteressada, longe de qualquer vínculo prático e comercial – podem ter um papel fundamental na educação do espírito e no desenvolvimento cívico e cultural da humanidade. Dentro deste contexto, considero útil tudo aquilo que nos ajuda a tornarmo-nos melhores.
7
Mas a lógica do lucro mina as bases das instituições (escolas, universidades, centros de pesquisa, laboratórios, museus, bibliotecas, arquivos) e das disciplinas (humanísticas e científicas) cujo valor deveria identificar-se com o saber em si mesmo, independentemente da capacidade de produzir ganhos imediatos ou benefícios práticos. É verdade que muitas vezes os museus e os sítios arqueológicos podem ser fontes de receitas extraordinárias. Mas a sua existência, ao contrário daquilo que alguns gostariam de nos fazer crer, não pode depender dos ganhos materiais. A vida de um museu ou de uma escavação arqueológica, tal como a de um arquivo ou de uma biblioteca, é um tesouro que a colectividade deve a todo o custo preservar ciosamente. Por esse motivo, não é verdade que em tempos de crise tudo seja permitido. Tal como, pelas mesmas razões, não é verdade que as oscilações do spread possam justificar a destruição sistemática de todas as coisas consideradas inúteis, com o cilindro compressor da inflexibilidade e do corte linear da despesa. Hoje a Europa parece um teatro em cujo palco se exibem quotidianamente, sobretudo, credores e devedores. Não há reunião política ou cimeira da alta finança em que a obsessão com os orçamentos não constitua o único ponto da ordem do dia. Numa espiral que gira sobre si própria, as preocupações legítimas com o pagamento das dívidas são de tal modo exacerbadas que acabam por provocar efeitos diametralmente opostos aos
8
desejados. O fármaco da dura austeridade, como observaram vários economistas, em vez de curar o doente, enfraquece-o de modo ainda mais implacável. Sem se interrogarem sobre os motivos que levaram as empresas e os Estados a endividarem-se – estranhamente, o rigor não faz mossa à corrupção que prolifera e aos chorudos ordenados de ex-políticos, administradores, banqueiros e conselheiros! –, os múltiplos orquestradores desta deriva recessiva não estão nada perturbados com o facto de serem sobretudo a classe média e os mais carenciados a pagar, milhões de seres humanos inocentes despojados da sua dignidade. Não significa que se fuja estupidamente à responsabilidade da situação. Mas também não é possível ignorar a destruição sistemática de qualquer forma de compreensão e de solidariedade, pois os bancos e os credores exigem sem piedade, como Shylock em O Mercador de Veneza, o arrátel de carne viva a quem não consegue regularizar a dívida. Assim, muitas empresas (que durante dezenas de anos desfrutaram da privatização dos lucros e da colectivização das perdas) despedem cruelmente os operários, enquanto os governos extinguem os postos de trabalho, a instrução, a assistência social para os deficientes e a saúde pública. O direito de ter direitos – recordando um importante ensaio de Stefano Rodotà, cujo título evoca uma frase de Hannah Arendt – é, efectivamente, subordinado ao domínio do mercado, com um risco crescente de eliminar qualquer
9
forma de respeito pela pessoa. Transformando os homens em mercadoria e em dinheiro, este perverso mecanismo económico gerou um monstro, sem pátria e sem piedade, que acabará por negar também às gerações futuras qualquer forma de esperança. Os esforços hipócritas para impedir a saída da Grécia da Europa – as mesmas reflexões poderiam ser válidas para a Itália ou para a Espanha – são fruto de um cálculo cínico (o preço a pagar seria ainda maior do que o provocado pelo falhado reembolso da própria dívida) e não de uma cultura política autêntica, baseada na ideia de que uma Europa sem a Grécia seria inconcebível, porque os saberes ocidentais mergulham as suas remotas raízes na língua e na civilização gregas. As dívidas contraídas com os bancos e com as finanças públicas têm o poder de apagar com uma simples passagem de esponja as dívidas mais importantes que, ao longo dos séculos, contraímos em relação a quem nos ofereceu um extraordinário património artístico e literário, musical e filosófico, científico e arquitectónico? Neste brutal contexto, a utilidade dos saberes inúteis contrapõe-se radicalmente à utilidade dominante que, em nome de um interesse económico exclusivo, vai matando progressivamente a memória do passado, as disciplinas humanísticas, as línguas clássicas, a instrução, a investigação livre, a fantasia, a arte, o pensamento crítico e o horizonte cívico que deveria inspirar todas as actividades humanas. Efectivamente, no universo do
10
utilitarismo um martelo vale mais do que uma sinfonia, uma faca mais do que um poema, uma chave inglesa mais do que um quadro, porque é fácil perceber a eficácia de um utensílio e cada vez mais difícil compreender para que servem a música, a literatura ou a arte. Já Rousseau observara que os «antigos políticos falavam sem descanso de costumes e de virtudes; os nossos não falam senão de comércio e de dinheiro». De facto, as coisas que não produzem lucro são consideradas um luxo supérfluo, um obstáculo perigoso. «Tudo aquilo que não é útil é desprezado», afirma Diderot, porque «o tempo é demasiado precioso para que o percamos em especulações supérfluas». Basta relermos os magníficos versos de Charles Baudelaire para captarmos o mal-estar do poeta-albatroz, gigantesco dominador dos céus que, ao pousar entre os homens, é escarnecido por um público atraído por outros interesses bem diferentes: Que desajeitado e canhestro é esse viajante alado! Como é ridículo e feio, ele que há pouco era tão belo! Um, com um cachimbo, apoquenta-lhe o bico, outro imita, manquejando, o ser vacilante que cruzava os céus! [«Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!/ Lui, naguère si beau, qu’il est comique et laid!/ L’un agace son bec avec un brûlegueule,/ L’autre mime, en boitant, l’infirme qui volait!»]
E, não sem uma irónica desolação, Flaubert, no seu Dicionário das Ideias Feitas, define a poesia como
11
«completamente inútil», porque «passou de moda», e o poeta como «sinónimo de pateta» e de «sonhador». Parece que não serviu para nada o sublime verso final de um poema lírico de Hölderlin em que se recorda o papel fundador do poeta: «Mas o poeta funda o que resta» («Was bleibet aber, stiften die Dichter»). As páginas que se seguem não têm qualquer pretensão de formar um texto homogéneo. Reflectem o carácter fragmentário daquilo que as inspirou. Por isso, também o subtítulo – Manifesto – poderia parecer desproporcionado e ambicioso, se não fosse justificado pelo espírito militante que animou este meu trabalho constantemente. Quis apenas recolher, no interior de um contentor aberto, citações e pensamentos coleccionados ao longo de tantos anos de ensino e de pesquisa. E fi-lo na mais total liberdade, sem qualquer vínculo e com a consciência de ter apenas esboçado um retrato incompleto e parcial. E, como acontece muitas vezes nas compilações e nas antologias, as ausências acabam por ser mais significativas do que as presenças. Consciente destes limites, subdividi o meu ensaio em três partes: a primeira é dedicada ao tema da útil inutilidade da literatura; a segunda, consagrada aos efeitos desastrosos provocados pela lógica do lucro na área do ensino, da pesquisa e das actividades culturais em geral; na terceira parte, fazendo uso de vários exemplos notáveis, reli alguns clássicos que, ao longo dos séculos, têm mostrado o papel ilusório da posse e os seus efeitos
12
devastadores sobre a dignitas hominis, sobre o amor e sobre a verdade. Decidi anexar às minhas breves reflexões um excelente (e infelizmente pouco conhecido) ensaio de Abraham Flexner de 1937, publicado de novo em 1939 com alguns acréscimos, aqui traduzido pela primeira vez. Um dos mais acreditados fundadores do Institute for Advanced Study, de Princeton – criado com a finalidade de propor uma quête livre de qualquer vínculo utilitário e inspirada exclusivamente pela curiositas dos seus ilustres membros, entre os quais gostaria de recordar pelo menos Albert Einstein e Julius Robert Oppenheimer –, este célebre cientista e pedagogo americano apresenta-nos um fascinante resumo da história de algumas grandes descobertas, para mostrar que as pesquisas científicas teóricas consideradas mais inúteis, por não terem qualquer objectivo prático, trouxeram vantagens inesperadas a aplicações como as telecomunicações ou a electricidade, que se vieram a revelar fundamentais para a humanidade. O ponto de vista de Flexner pareceu-me muito eficaz para fazer desaparecer qualquer equívoco existente neste domínio. Criar contraposições entre saberes humanistas e saberes científicos – como aconteceu frequentemente a partir dos anos cinquenta, após o famoso ensaio de Charles Percy Snow – faria inevitavelmente com que o debate resvalasse para as areias movediças de uma polémica estéril. E, sobretudo, confirmaria um desinteresse total pela necessária unidade
13
dos saberes – por aquela indispensável nouvelle alliance, a respeito da qual o prémio Nobel Ilya Prigogine escreveu páginas iluminantes –, hoje, infelizmente, cada vez mais ameaçada pela parcelização do trabalho e pela ultra-especialização dos conhecimentos. Flexner mostra-nos de forma exímia que a ciência tem muito que nos ensinar sobre a utilidade do inútil. E que, tal como os humanistas, também os cientistas têm desempenhado e desempenham um papel importantíssimo na batalha contra a ditadura do lucro, para defender a liberdade e a gratuidade do conhecimento e da pesquisa. Aliás, a consciência da diferença entre uma ciência puramente especulativa e desinteressada e uma ciência aplicada estava amplamente difundida entre os antigos, como testemunham as reflexões de Aristóteles e alguns episódios atribuídos a grandes cientistas do calibre de Euclides e de Arquimedes. São questões fascinantes que, no entanto, poderiam levar-nos demasiado longe. O que me interessa agora é sublinhar a importância vital daqueles valores que não se podem pesar e medir com instrumentos afinados para avaliar a quantitas e não a qualitas. E, ao mesmo tempo, reivindicar o carácter fundamental dos investimentos que produzem rendimentos não imediatos e, sobretudo, não monetizáveis. O saber, por si só, constitui um obstáculo ao delírio de omnipotência do dinheiro e do utilitarismo. Tudo se pode comprar, é verdade. Dos deputados aos juízes,
14
do poder ao sucesso, cada coisa tem o seu preço. Mas o conhecimento, não. O preço a pagar pelo conhecimento é de outra natureza bem diferente. Nem um cheque em branco nos permitirá adquirir automaticamente aquilo que é fruto exclusivo de um esforço individual e de uma paixão inesgotável. Ninguém poderá realizar em vez de nós o laborioso percurso que nos permitirá aprender. Sem grandes motivações interiores, a mais prestigiosa das licenciaturas, adquirida com dinheiro, não nos dará nenhum conhecimento e não proporcionará uma autêntica metamorfose do espírito. Já Sócrates o explicara a Ágaton quando, em O Banquete, contesta a ideia de que o conhecimento possa ser transmitido automaticamente de um ser humano a outro, como a água que escorre de um recipiente cheio para um vazio através de um fio de lã: Que bom seria, Ágaton, se a sabedoria conseguisse passar do mais cheio de nós para o mais vazio sempre que estivéssemos em contacto uns com os outros, como a água que desliza nas taças, através de um fio de lã, da mais cheia para a mais vazia.
Mas há mais. Só o saber pode desafiar uma vez mais as leis do mercado. Eu posso comungar com os outros os meus conhecimentos sem empobrecer. Posso ensinar a um aluno a teoria da relatividade ou ler juntamente com ele uma página de Montaigne, pondo em acção um miraculoso processo virtuoso que enriquece, ao mesmo tempo, quem dá e quem recebe.
15
É verdade que no nosso mundo, dominado pelo homo œconomicus, não é fácil compreender a utilidade do inútil e, sobretudo, a inutilidade do útil (quantos bens de consumo não necessários nos são vendidos como indispensáveis?). Custa-nos ver os seres humanos, ignorando a crescente desertificação que sufoca o espírito, dedicarem-se exclusivamente à acumulação de dinheiro e de poder. Custa-nos ver triunfar, nas televisões e nos meios de comunicação, novas imagens do sucesso, representadas pelo empresário que consegue criar um império burlando os outros, ou pelo homem político que humilha o Parlamento impunemente, fazendo com que sejam aprovadas leis ad personam. Custa-nos ver homens e mulheres entregues a uma corrida louca em direcção à terra prometida do lucro, onde tudo aquilo que os rodeia – a natureza, os objectos, os outros seres humanos – não suscita o menor interesse. O olhar fixo no objectivo a alcançar não lhes permite colher a alegria dos pequenos gestos quotidianos e descobrir a beleza que pulsa nas nossas vidas, num pôr-de-sol, num céu estrelado, na ternura de um beijo, numa flor a desabrochar, numa borboleta a voar, no sorriso de uma criança. Pois, muitas vezes, é nas coisas mais simples que se sente a grandeza. «Se não compreendermos a utilidade do inútil, ou a inutilidade do útil, não compreendemos a arte», observou acertadamente Eugène Ionesco. E não por acaso, muitos anos antes, Kakuzo Okakura, ao descrever o
16
ritual do chá, reconhecera, no prazer de colher uma flor para oferecer à sua companheira, o momento preciso em que a espécie humana se elevara acima dos animais: «quando intuiu o uso que se podia fazer do inútil – explica o escritor japonês em O Livro do Chá –, o homem fez a sua entrada no reino da arte». De uma só vez, um duplo luxo: a flor (o objecto) e o acto de colhê-la (o gesto) representam ambos o inútil, trazendo à liça as questões do necessário e do lucro. Os verdadeiros poetas sabem bem que só longe do cálculo e da pressa é possível cultivar a poesia: «Ser artista – confessa Rainer Maria Rilke numa passagem das Cartas a um Jovem Poeta – significa: não calcular nem contar; amadurecer como uma árvore que não apressa a sua seiva e permanece confiante durante as tempestades de Primavera, sem receio de que o Verão não possa vir depois». Os versos não se vergam à lógica da precipitação e do útil. Pelo contrário, por vezes, como sugere o Cirano de Edmond Rostand nos versos finais da pièce, o inútil é necessário para tornar todas as coisas mais belas: Que dizeis?... É inútil?... Bem sei! Mas não lutamos com esperança no sucesso! Não! não, é mais belo fazê-lo quando é inútil. [«Que dites-vous?... C’est inutile?... Je le sais!/ Mais on ne se bat pas dans l’espoir du succès!/ Non! non, c’est bien plus beau lorsque c’est inutile!»]
17
Precisamos do inútil do mesmo modo que precisamos das funções vitais essenciais para viver. «A poesia – recorda-nos ainda Ionesco –, a necessidade de imaginar, de criar, é tão fundamental como a necessidade de respirar. Respirar é viver, e não fugir da vida.» É justamente esse respirar, como evidencia Pietro Barcellona, que vem a exprimir «o excedente da vida em relação à própria vida», tornando-se «energia que circula de forma invisível e que vai para além da vida, apesar de ser imanente à vida». Com efeito, é nos meandros das actividades consideradas supérfluas que podemos sentir o estímulo para pensar um mundo melhor, para cultivar a utopia de conseguir atenuar, quando não eliminar, as disseminadas injustiças e as penosas desigualdades que pesam (ou deveriam pesar) como um rochedo nas nossas consciências. É sobretudo nos momentos de crise económica, quando as tentações do utilitarismo e do mais feroz egoísmo parecem ser a única boa estrela e a única tábua de salvação, que é preciso perceber que são justamente essas actividades que não servem para nada que nos poderiam ajudar a fugir da prisão, a salvar-nos da asfixia, a transformar uma vida insípida, uma não-vida, numa vida fluida e dinâmica, orientada pela curiositas em relação ao espírito e às coisas humanas. Se o biofísico e filósofo Pierre Lecomte du Noüy nos convidou a reflectir sobre o facto de que «na escala dos seres, só o homem executa actos inúteis», dois psicoterapeutas (Miguel Benasayag e Gérard Schmit)
18
sugerem-nos que «a utilidade do inútil é a utilidade da vida, da criação, do amor, do desejo», porque «o inútil produz aquilo que nos é mais útil, que se cria sem atalhos, sem ganhar tempo, para além da miragem criada pela sociedade». Essa a razão por que Mario Vargas Llosa, por ocasião da atribuição do prémio Nobel em 2010, destacou justamente que um «mundo sem literatura se transformaria num mundo sem desejos, sem ideais e sem desobediência, um mundo de autómatos privados daquilo que torna humano um ser humano: a capacidade de sair de si mesmo e se transformar num outro, em outros, modelados pela argila dos nossos sonhos». E talvez através das palavras de Mrs Erlynne – «Na vida moderna o supérfluo é tudo» –, Oscar Wilde (recordando-se provavelmente de um célebre verso de Voltaire: «le superflu, chose très nécessaire» [«o supérfluo, coisa muito necessária»]) tenha querido aludir precisamente à superfluidade do seu ofício de escritor, àquele «a mais» que – longe de definir, negativamente, uma «superfetação» ou qualquer coisa «superabundante» – exprime, ao invés, aquilo que excede o necessário, aquilo que não é indispensável, aquilo que vai para além do essencial. Ou seja, aquilo que vai coincidir com a ideia vital de um fluxo que escorre, reˇ novando-se continuamente (fluere), e também – como já referira anos antes no prefácio de O Retrato de Dorian Gray: «Toda a arte é perfeitamente inútil» – com a própria noção de inutilidade.
19
Mas, pensando bem, uma obra de arte não pede para vir ao mundo. Ou melhor, recorrendo uma vez mais a uma excelente reflexão de Ionesco, a obra de arte «pede para nascer», da mesma maneira «que a criança pede para nascer»: «A criança não nasce para a sociedade – diz-nos o dramaturgo – embora a sociedade se aproprie dela. Nasce por nascer. A obra de arte também nasce por nascer, impõe-se ao seu autor, pede para existir sem ter em conta ou sem se perguntar se é desejada ou não pela sociedade.» Isso não impede que a sociedade possa «apropriar-se da obra de arte»; e embora «possa utilizá-la como quiser» – «pode condená-la» ou «pode destruí-la» – resta o facto de «a obra de arte poder desempenhar ou não uma função social, mas ela própria não é essa função social». E se «for absolutamente necessário que a arte sirva para alguma coisa» – conclui Ionesco – «eu direi que deve servir para ensinar às pessoas que existem actividades que não servem para nada, e que é indispensável que elas existam». Sem ter conhecimento disso, seria difícil compreender um paradoxo da história. No preciso momento em que a barbárie predomina, a fúria do fanatismo vira-se não só contra os seres humanos, mas também contra as bibliotecas e as obras de arte, contra os monumentos e as grandes obras-primas. A fúria destruidora abate-se sobre as coisas consideradas inúteis: o saque da biblioteca real de Luoyang, levado a cabo pelos Xiongnu na China, a queima dos manuscritos pagãos em Alexandria,
20
decretada pela intolerância do bispo Teófilo, os livros heréticos consumidos pelas chamas da Inquisição, as obras subversivas destruídas nos autos-de-fé realizados pelos nazis em Berlim, os magníficos budas de Bamiyan arrasados pelos talibãs no Afeganistão, ou ainda os manuscritos do Sahel e as estátuas de Al-Farouk em Timbuktu, ameaçados pelos jihadistas. Coisas inúteis e inermes, silenciosas e inofensivas, mas consideradas um perigo pelo simples facto de existirem. Nas ruínas de uma Europa destruída pela violência cega da guerra, Benedetto Croce identifica os sinais do advento dos novos bárbaros, capazes de reduzir a pó num só instante a longa história de uma grande civilização: [...] quando os espíritos bárbaros [recuperam o vigor] não só subjugam e oprimem os homens que a representam [a civilização], como se entregam à eliminação das obras que para eles eram instrumento de outras obras, e destroem monumentos de beleza, sistemas de pensamento, todos os testemunhos do nobre passado, encerrando escolas, destroçando ou queimando museus e bibliotecas e arquivos [...]. Não é preciso procurar exemplos disso nas histórias remotas, pois as dos nossos dias apresentam-nos em tal abundância que até se aplacou em nós o horror.
Mas, como nos recorda Jorge Luis Borges, quem erige muralhas também pode facilmente reduzir a cinzas os livros nas chamas de uma fogueira, pois em ambos os casos se acaba por «queimar o passado»: Li há dias que o homem que ordenou a edificação da quase infinita muralha da China foi aquele primeiro imperador, Shi Huang Ti,
21
que também decidiu que fossem dados às chamas todos os livros escritos antes dele. O facto de as duas vastas empresas – as quinhentas ou seiscentas léguas de pedra que se opunham aos bárbaros, e a rigorosa abolição da história, isto é, do passado – provirem da mesma pessoa e serem, de certo modo, os seus atributos, inexplicavelmente satisfez-me e, ao mesmo tempo, inquietou-me.
O sublime desaparece quando a humanidade, ao ser precipitada para a parte baixa da roda da Fortuna, bate no fundo. O homem vai-se tornando cada vez mais pobre precisamente quando julga que está a enriquecer: [...] se, a todo o instante, enganas e defraudas, procuras e arranjas embrulhadas – admoesta Cícero em Os Paradoxos dos Estoicos –, furtas e tiras com violência, se roubas os teus sócios, se depredas o erário [...], então, diz-me: todos esses comportamentos são típicos de quem se encontra na maior abundância de bens ou de quem está completamente desprovido deles?
Não é por acaso que nas páginas finais do tratado Do Sublime, uma das mais importantes obras antigas de crítica literária que chegaram até nós, o Pseudo-Longino aponta com clareza as causas que provocaram a decadência da eloquência e do saber em Roma, impedindo o aparecimento de grandes escritores após o fim do regime republicano: «a cobiça de riquezas, devido à qual todos nós estamos insaciavelmente enfermos [leva-nos] à escravidão [...]. O amor pelo dinheiro é uma doença que empobrece o espírito». Seguindo esses falsos ídolos, o homem egoísta deixa de «erguer o olhar
22
para o alto» e acaba por exaurir «a grandeza espiritual». Nesta degradação moral, «quando a corrupção é o árbitro de toda a vida de cada um de nós», não há espaço para nenhum tipo de «sublime». Mas o «sublime», recorda-nos ainda o Pseudo-Longino, para existir também precisa da liberdade: «A liberdade, dizem, é aquilo que basta para alimentar os sentimentos dos grandes espíritos, para lhes dar esperança.» Também Giordano Bruno atribui ao amor pelo dinheiro a destruição do conhecimento e dos valores essenciais em que se baseia a vida civil: «a sabedoria e a justiça – escreve em De Immenso – começaram a abandonar a Terra quando os eruditos, organizados em seitas, passaram a usar a sua doutrina com fins lucrativos. [...] Tanto a religião como a filosofia são anuladas por semelhantes comportamentos, assim como os estados, os reinos e os impérios são devastados, arruinados, eliminados juntamente com os sábios, com os príncipes e com os povos». Até John Maynard Keynes, pai da macroeconomia, revelou numa conferência, em 1928, que «os deuses» em que se apoia a vida económica são inevitavelmente génios do mal. De um mal necessário que, «pelo menos ao longo de outros cem anos», nos obrigaria a «fazer de conta que o bem é mal e que o mal é bem; porque o mal é útil e o bem, não». Isto é, a humanidade teria de continuar (até 2028!) a considerar «a avareza, a usura e a cobiça» vícios indispensáveis para nos «guiarem para
23
lá do túnel da necessidade económica, até vermos a luz». E só então, tendo alcançado um bem-estar generalizado, os netos – o título do ensaio, Perspectivas Económicas para os Nossos Netos, é muito eloquente! – poderiam finalmente compreender que o bom é sempre melhor que o útil: Nessa altura, penso que possamos recuperar alguns princípios religiosos e valores mais sólidos, e voltar a afirmar que a avareza é um vício, a usura um comportamento reprovável, e que a cobiça repugna; e quem não pensa no futuro avança com mais ligeireza pelo caminho da virtude e da sabedoria. Devemos voltar a pôr os fins à frente dos meios, e a preferir o bom ao útil. Devemos respeitar quem é capaz de nos ensinar a aproveitar melhor a hora e o dia, aquelas pessoas encantadoras, capazes de apreciar as coisas na sua inteireza, os lírios do campo que não trabalham, nem fiam.
Embora a profecia de Keynes não se tenha concretizado – a economia predominante, infelizmente, ainda hoje continua a olhar só para a produção e para o consumo, desprezando tudo aquilo que não é funcional para a lógica utilitarista do mercado e, portanto, continuando a sacrificar ao lucro as «artes da alegria» –, ainda é preciosa, para nós, a sua convicção sincera: a autêntica essência da vida coincide com o bom (com aquilo que as democracias comerciais sempre consideraram inútil) e não com o útil. Dez anos mais tarde, de uma perspectiva muito diferente, também Georges Bataille se interrogou, em
24
O Limite do Útil, sobre a necessidade de pensar uma economia atenta à dimensão do anti-utilitarismo. Ao contrário de Keynes, o filósofo francês não teve ilusões a respeito dos pressupostos objectivos nobres dos processos utilitaristas, porque «o capitalismo distingue-se de modo claro da preocupação de melhorar a condição humana». Só aparentemente parece ter «como objectivo a melhoria do nível de vida», mas trata-se de uma «perspectiva enganadora». Com efeito, «a produção industrial moderna eleva o nível médio sem minorar a desigualdade entre as classes e, feitas as contas, só casualmente remedeia as necessidades sociais». Neste contexto, apenas o excedente – quando não é utilizado «em função da produtividade» – pode ser associado «aos mais belos êxitos da arte, à poesia, à plena exuberância da vida humana». Sem esta energia supérflua, distanciada da acumulação e do crescimento da riqueza, seria impossível libertar a vida «de considerações servis que dominam um mundo dedicado ao crescimento da produção». Contudo, George Steiner – grande defensor dos clássicos e dos valores humanistas «que privilegiam a vida da mente» – lembrou que, ao mesmo tempo, de maneira dramática, «a alta cultura e a perfeição iluminada não representaram uma barreira eficaz contra a barbárie do totalitarismo». Muitas vezes, infelizmente, temos visto pensadores e artistas mostrarem-se indiferentes a escolhas atrozes ou, até, moralmente cúmplices
25
de ditadores e de regimes que as punham em prática. É verdade. Este grave problema levantado por Steiner traz-me à lembrança um magnífico diálogo entre Marco Polo e Kublai Kan, que encerra As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino. Instado pelas preocupações do soberano, o incansável viajante oferece-nos um dramático afresco do inferno que nos rodeia: O inferno dos seres vivos não é uma coisa que há-de acontecer; se ele existe, já está aqui presente, o inferno que habitamos todos os dias, que constituímos estando juntos. Há duas maneiras de não sofrermos com isso. A primeira torna-se fácil para muitos: aceitar o inferno e tornarmo-nos parte dele até ao ponto de já não o vermos. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: procurar e saber reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno, e fazê-lo durar e dar-lhe espaço.
Mas o que poderá ajudar-nos a perceber, no meio do inferno, aquilo que não é inferno? É difícil responder de maneira absoluta a esta pergunta. O próprio Calvino, no seu Porquê Ler os Clássicos, embora reconhecendo que os «clássicos servem para perceber quem somos e até onde chegámos», dissuade-nos de pensar que «os clássicos devem ser lidos porque “servem” para alguma coisa». Ao mesmo tempo, porém, Calvino afirma que «ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos». A cultura, tal como o amor – observa acertadamente Rob Riemen – não tem o poder de constranger. Não oferece garantias. No entanto, a única possibilidade de conquistar e defender a nossa dignidade de homens é-nos dada precisamente pela cultura e por uma educação livre.
26
Por isso creio que, de qualquer maneira, é melhor continuarmos a bater-nos, pensando que os clássicos e o ensino, que a cultura do supérfluo e daquilo que não produz lucro, possam de qualquer maneira ajudar-nos a resistir, a manter a esperança viva, a avistar aquele raio de luz que nos permita percorrer um caminho digno. Entre as tantas incertezas, porém, uma coisa é certa: se deixarmos morrer o gratuito, se renunciarmos à força geradora do inútil, se ouvirmos unicamente este canto das sereias que nos impele a procurar o lucro, só seremos capazes de produzir uma colectividade enferma e desmemoriada que, confusa, acabará por perder o sentido de si mesma e da vida. E então, quando a desertificação do espírito já nos tiver tornado insensíveis, será realmente difícil imaginar que o insipiente homo sapiens possa ainda contribuir para tornar a humanidade mais humana...
Nota Contribuiu para este ensaio uma série de reflexões esparsas que nos últimos dez anos apresentei em diversas intervenções, entre as quais a conferência realizada em Abril de 2012 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, por ocasião da atribuição de um doutoramento honoris causa. Gostaria de agradecer ao amigo Irving Lavin, do Institute for
27
Advanced Study, por ter-me chamado a atenção para o ensaio de Abraham Flexner. Em Junho de 2011, durante uma mesa-redonda realizada em Nápoles, na sede do Instituto Italiano para os Estudos Filosóficos, Lavin, reparando no título da minha intervenção – A Útil Inutilidade das Disciplinas Humanísticas – fez-me oferta das páginas de Flexner, que eu não conhecia. Este trabalho deve muito às inesquecíveis e apaixonadas conversas inúteis com George Steiner e Alain Segonds. Sem os meus alunos da Universidade da Calábria e das várias universidades estrangeiras em que ensinei durante estes anos, dificilmente teria podido compreender muitos aspectos da utilidade do inútil. Gerardo Marotta, presidente do Instituto Italiano para os Estudos Filosóficos, dedicou toda a sua vida e os seus recursos económicos à defesa dos clássicos e da cultura. Esta versão italiana, acrescida de novos parágrafos e novas citações, foi elaborada durante a minha permanência em Berlim (Março-Junho de 2013), na qualidade de visiting scholar no Max-Planck-Institut für Wissenschaftsgeschichte. Para o director, Jürgen Renn, e para os colegas com quem discuti os temas desenvolvidos neste livro, vai a minha enorme gratidão. Agradeço aos redactores que se ocuparam do livro (Oliviero Toscani e Silvia Trabattoni) e aos jovens colegas que reviram cuidadosamente as provas (Marco Dondero, Maria Cristina Figorilli e Zaira Sorrenti). Um obrigado do coração também a Elisabetta Sgarbi, a Mario Andreose e a Eugenio Lio, pelas suas preciosas sugestões e por terem querido acolher o meu trabalho.
28
Primeira parte A útil inutilidade da literatura
Gavroche estava realmente em sua casa. Ó inesperada utilidade do inútil! Victor Hugo, Os Miseráveis
1. «QUEM NÃO HÁ NÃO É»
Num conto autobiográfico, Vincenzo Padula – um padre revolucionário que viveu numa aldeia da Calábria entre 1819 e 1893 – recorda a primeira lição de vida recebida no seio da família, quando era ainda um jovem estudante. Tendo dado uma resposta não satisfatória a uma pergunta insidiosa do pai («por que razão o «A» vem sempre antes do «E» nos alfabetos de todas as línguas?), o seminarista ouve com grande curiosidade a explicação que o progenitor lhe dá: «Neste mundo mesquinho, quem à, é, e quem não à, não é», por isso a letra «a» precede sempre a letra «e». Mas há mais: aqueles que não têm constituem, «na sociedade civil», o grupo das consoantes, «porque consoantam de acordo com a vocalização do rico, e adaptam-se aos actos dele, que é
29