Livro do lobo a loba final

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do LOBO A loba `



do LOBO A LOBA `

Organização e textos: Denise Mattar

Realização


leo

Passei os últimos 20 anos so­­­nhando em construir um teatro, em ter uma filha parecida comigo e em montar Loba de Ray-ban, versão feminina de Lobo de Ray-ban, na qual atuei ao lado do grande Raul Cortez, no final dos anos 1980. Pois muito bem, o Centro Cultural Solar de Botafogo está erguido e me enche de orgulho, Valentina é a minha cara e veio iluminar de paixão a minha vida e o texto do Borghi chega à cena no momento mais precioso de minha carreira. Em 2007, recebi o Prêmio SHELL, na Categoria Especial, em homenagem à construção do Solar, e em 2008, indicações ao SHELL e APTR, na Categoria Melhor Ator, pela atuação em Traição, de Harold Pinter, produção do Solar em parceria com o diretor Ary Coslov. Para trilhar esse caminho precisei de coragem, e foi isso que aprendi com Raul Cortez – a ter coragem. Por suas mãos fui apresentado ao teatro de verdade, e tive ainda o prazer de estar ao seu lado em Rei Lear, com direção de Ron Daniels. Mas não pensem que Loba de Ray-ban é um revival. Longe disso. Somos pessoas diferentes, eu, Christiane, Possi e Renato. A peça é outra, a emoção é ainda mais profunda. E há também a chegada de Maria Maya, com seu talento e juventude inquietantes. Na verdade, para mim, esse texto é a oportunidade (talvez única na carreira de um ator) de viver cada um dos personagens de um mesmo enredo. Em o Lobo, com 25 anos de idade, fiz o jovem ator. Agora, com 45, faço a versão masculina do papel que era de Christiane na primeira montagem. Daqui a 10 anos, tenho um compromisso com Borghi – voltar ao papel que Raul imortalizou. Um desafio, com certeza, mas dos melhores a ser perseguido. Gostaria ainda de falar da imensa satisfação de poder caminhar ao lado de Christiane Torloni. Forte, talentosa, corajosa, vibrante, é uma das poucas mulheres brasileiras que atuam com desenvoltura em qualquer esfera da vida nacional. Dentre várias paixões comuns, descobrimos esta necessidade soberana de montar a Loba e temos a sorte de ter ao nosso lado um artista iluminado, o mais que querido José Possi Neto. LEONARDO FRANCO

maria

“Nunca acreditei em verdades únicas. Nem nas minhas, nem nas dos outros. Acredito que todas as escolas, todas as teorias podem ser úteis em algum lugar, num dado momento. Mas descobri que é impossível viver sem uma apaixonada e absoluta identificação com um ponto de vista… Para que este ponto seja útil, temos que assumi-lo totalmente e defendê-lo até a morte; mesmo, que ao mesmo tempo uma voz interior nos sussurre: “Não o leve muito a sério.Mantenha-o firmemente e abandone-o sem constrangimento. “ (Peter Brook) O que me encanta no teatro é a possibilidade de escolher e, depois, desapegar. É conseguir enxergar claramente que à medida que o tempo passa, e nós mudamos, o mundo se modifica, os obje­ti­vos se modificam e este pon­to de vista naturalmente é alterado. Ela que já foi ele, Ele que já foi ela, Ele que quer ser Outro e eu que estou chegando agora. Todos com a mesma rubrica, com o mesmo diretor, ou seria o diretor-rubrica? Aquele que literalmente não se copia, se reinventa. Somos personagens. Somos atores. Somos atores-personagens tentando realizar uma espécie de alquimia em cena. Aquela em que a realidade da representação é mais vibrante que o próprio tempo cronológico. Me sinto assim. Brincando em um playground de gente adulta. De lobos perigosos e instigantes. Agradeço a Chris, Possi, Léo, Borghi, Raul, Elza, Célia, Cacilda, Susana, Godot, Zé, Fábio, Dobal, Tunica, Tripolli, Denise, Aline, Ana, Ana Paula, Paula, Solange, à Criada, Genet, Jean Pierre, Conceição, todos desta alcateia de Ray-ban. E fico achando mesmo que o bom destes encontros é a possibilidade que eles têm de se transformar num GRANDE encontro ou de proporcionar uma GRANDE transformação. Obrigada por esta oportunidade! maria maya


POSSI

O TEATRO aconteceu em mim no final dos anos 1960 enquanto eu cursava a Escola de Comunicações e Artes da USP. O TEATRO se materializou em mim em Salvador, BAHIA, no início da década de 1970. Nesses 36 anos de OFÍCIO como diretor de teatro jamais remontei um espetáculo, nem o estou fazendo agora, REVISITO a casa do LOBO, o TEATRO. Me tranco numa sala de ensaios e, com minha tribo, revisito as tramas da PAIXÃO, reencontro meu centro e o sentido de tudo. Sempre soube que o que mais me atraiu no teatro, na arte, foi a possibilidade de conviver com essa gente especial, intrigante, misteriosa e provocante. Escolhi VIVER entre artistas. Em a Loba de Ray-ban, Renato Borghi expõe à luz o incêndio passional que é a vida do artista de teatro. Investiga a matéria da qual é feito o SENTIMENTO. Ele não nos poupa dores nem ardores, rasga a pele dos seus personagens e os faz sangrar amores e ódios numa longa noite iluminada pelo brilho e o talento de três atores que vão emprestar corpo e alma para que a cerimônia se dê, aconteça. Sou viciado, adicted, do exercício dessa paixão. Amo desenhar-lhes os gestos, guiar-lhes os passos, vestir seu corpo e sua voz nos tons que a emoção requer. Gosto de iluminar sua pele, de entrecortar com música sua respiração e de vestir seu universo, seu espaço, com as dimensões exatas da sua imaginação. Brinco com a “caixa mágica”, a “geringonça”, a “caixa de ilusão”, a que chamamos PALCO e usamos para revelar VERDADES. Lá encontro meus sonhos, minhas liberdades. Lá invisto meus ideais, minha libido. Lá encontro minha tribo, essa matilha composta de seres noturnos e notívagos que brinca com o mistério e o risco de se revelar. São lobos, fascinantes, perigosos, irresistíveis. Oh! Deuses! Que privilégio o meu, há mais de trinta anos privando da companhia de Paulo, Juca, Irene, Marilia, Fernanda, Beatriz, Marilena, Ruth, Regina, Regina, Jussara, Selma, Odilon, Cecil, Arlete, Petrônio, Mila, Norival, Renato, Wagner, Wladimir, Renato, Renato, Nathalia, Marisa, Marieta, Gloria, Tarcisio, Murilo, Ester, Mazé, Denilto, Thales, Vicente, Victor, Ivaldo, Michele, Tânia, Cristina, Karin, Flávio, Dulce, Lia, Ana lúcia, Sônia, Carmem, Nilda, Lucas, Fafa, Rita, Aicha, Carlos, Caco, Luís, Adriana, Miriam, Marcelo, Thiago, Paulo, Celso, Walderez, Jandira, Maria Fernanda, Léo, Helena, Elias, Léo, Eucir, Cláudio, Romis, Murilo, Sandra, Claudia, Alice, Cláudio, Charles, Eduardo............ Ana Paula, Dobal, minha nova lobinha Maria Maya, Leonardo Franco, lobo revelado há 20 anos e sonhador da Loba que se realiza hoje, RAUL CORTEZ, nosso Lobo Maior, amigo e companheiro de tantas realizações, responsável pelo encontro mais importante da minha vida de artista, com minha irmã, companheira de tantos sonhos realizados e por vir a LOBA CHRISTIANE TORLONI. JOSÉ POSSI NETO

chris

Não conheço muitas histórias (ou talvez nenhuma...) de um ator que tenha tido a oportunidade de vivenciar a experiência pela qual estou passando: vinte e dois anos marcam a estreia do Lobo de Ray-ban. Meu indelével encontro com Raul e o definitivo com o Possi (agora, José, meu irmão e maestro). Para expressar e sintetizar o que sinto, faço minhas as sábias palavras do Borghi: “Nosso tempo foi rico, me fiz atriz, cresci, aprendi, amei, sofri...” Enfim, me tornei – eu também – Loba. Textos do Programa de Loba de Ray-ban


Vania Toledo

Loba de Ray-ban - Sinopse Júlia Ferraz é uma atriz famosa, talentosa, e dona de uma companhia de teatro. Foi casada durante dez anos com Paulo Prado, 20 anos mais jovem, de quem se separou há algum tempo. Apesar disso eles continuaram a trabalhar juntos. A ação da peça se desenrola na noite de despedida de Paulo, que agora está deixando a companhia. Eles apresentam Medéia, de Shakespeare, quando Júlia perde o controle. Ela começa a discutir sua relação com Paulo, em cena, e o espetáculo é encerrado. Sozinha no palco ela relembra sua história e revela sua paixão por Fernanda, que conheceu logo após a separação. A jovem atriz também está deixando Júlia, incapaz de sustentar a relação homossexual com a atriz mais velha. Sentindo-se só e abandonada Júlia está prestes a suicidar-se, quando Paulo volta ao teatro para conversar com ela. Fernanda chega logo depois, e os três discutem apaixonadamente suas relações e emoções. Fernanda vai embora deixando no ar a dúvida, amava mesmo Júlia ou era apenas uma aventureira? Paulo se despede deixando a certeza de que o amor entre eles foi grande e belo, mas chegou ao fim. Mais uma vez sozinha Júlia pensa em se matar, mas é uma loba, não tem medo da solidão e das fortes emoções, e sai do teatro com o coração leve de quem vai começar de novo. Lobo de Ray-ban contava exatamente a mesma história. Paulo Prado era o ator mais velho, Júlia Ferraz sua ex-esposa e Fernando seu amante.


tripolli

Bête de Théâtre

é uma expressão francesa usada como elogio para grandes figuras do teatro: atores, diretores, autores. Sua tradução seria “bicho de teatro”, ou melhor, “fera de teatro”. Não por acaso, Renato Borghi escolheu a figura do lobo para representar os atores, com seus sentidos aguçados, movimentos harmoniosos, rompantes de paixão – e de fúria. Esses seres, cuja matéria de trabalho é a emoção, são entes sensíveis que mergulham nas águas dos sentimentos de outros, e que voltam encharcados de dor e amor para suas próprias vidas, às vezes como feras – perigosas, nervosas, poderosas. Paulo Prado e Julia Ferraz são duas bêtes de théâtre que compartilham a mesma visão atenta, severa, quase dolorosa do teatro. A ele dedicaram o amor acirrado, o esgarçar de si mesmos e a doação absoluta – como sempre fez Raul Cortez, como faz Christiane Torloni. Neste livro contamos a história desses lobos e da alcateia do teatro da qual fazem parte. Denise Mattar


Vania Toledo


o LOBO


raul Cortez

U

ma lenda do teatro brasileiro, Raul Cortez era a personificação de Paulo Prado, o Lobo de Ray-ban criado por Renato Borghi. Nascido em 28 de agosto de 1931 em São Paulo, desde sua infância queria ser ator e abriu seu caminho à força. Seu pai era um famoso advogado que não aceitava a opção do filho e jamais assistiu a qualquer de suas apresentações. Raul trabalhou durante quatro anos no TBC, fazendo figuração ou pequenos papéis, e essa experiência foi sua escola. Seu primeiro papel de sucesso foi na peça Yerma, de García Lorca, no TBC, em 1962, quando recebeu os prêmios APCA e Governador do Estado como melhor ator coadjuvante. Foi o primeiro de muitos. Ao longo de sua vida o ator realizou 70 peças de teatro, 28 filmes, 19 novelas e sete miniséries, e recebeu, várias vezes, os principais prêmios da televisão e do teatro, como: Saci, Shell, Molière, APCA e Governador do Estado. Dele dizia Yan Michalsky: “Um ator essencialmente carismático, Raul Cortez é um astro, um protagonista nato: nos seus trabalhos mais significativos, tudo tende a girar em torno dele. Dotado da misteriosa vibração e do narcisismo específico próprios dos monstros sagrados, ele comunica-se com o público de um modo direto e intenso. O caráter predominantemente intuitivo da sua criação não impede que esta comporte também, e cada vez mais, um processo consciente e minucioso na preparação das suas personagens. Essas características marcam também o seu abundante acervo de trabalhos em telenovelas e as suas participações em numerosos filmes”.

Visceral, disciplinado, exigente com todos e, principalmente consigo, Raul dedicou toda a sua vida à arte de representar. Trabalhou com os mais importantes diretores de teatro, entre eles: José Renato, Gianni Ratto, Ziembinski, Maurice Vaneau, Flávio Rangel, Antunes Filho, Abílio Pereira de Almeida, José Celso Martinez Corrêa, Jérôme Savary, Victor Garcia, Fernando Peixoto, Emílio di Biasi, José Possi Neto e Ron Daniels. Contracenou com atores e atrizes como: Cacilda Becker, Fernanda Montenegro, Cleyde Yáconnis, Sergio Britto, Beatriz Segall, Othon Bastos, Lélia Abramo, Célia Helena, Stênio Garcia, Claudio Corrêa e Castro, Tônia Carrero e Marieta Severo, entre outros. Raul Cortez trabalhou em peças clássicas, políticas e experimentais, em dramas e comédias, nunca teve medo de ousar – pagava para ver. Entre os muitos espetáculos que participou, destacamos alguns. Pequenos Burgueses, de Máximo Gorki, era uma encenação de José Celso Martinez Corrêa para o Teatro Oficina, na qual Raul fazia o papel de Teteriev, recebendo significativas premiações. O espetáculo foi proibido pela censura em 1964 e posteriormente liberado. Nesse mesmo ano, no TBC, viveu o Joaquim de Vereda da Salvação, de Jorge Andrade, com direção de Antunes Filho, numa montagem inovadora. Em 1969, participou de Os Monstros, espetáculo de Jérôme Savary baseado em texto de Denoy de Oliveira, no qual interpretava um esfuziante travesti com um inusitado figurino de bananas douradas. No mesmo ano viveu o Bispo na audaciosa montagem de O Balcão de Jean Genet, encenada por Victor Garcia.


Em 1971, interpretou novamente um homossexual em Os Rapazes da Banda, de Mart Crowley, dirigida por Maurice Vaneau. Ao lado de Tônia Carrero em Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, encenada por Antunes Filho, Raul se superou e recebeu todas as premiações disponíveis em 1978. Em 1979, viveu o Manguari Pistolão de Rasga Coração. O ator quase não aceitou o papel por não se considerar suficientemente engajado politicamente. O texto de Oduvaldo Vianna Filho havia sido proibido durante anos e era aguardado com entusiasmo. Na encenação de José Renato Raul viveu brilhantemente seu personagem. Em 1982 interpretou o Salieri de Amadeus, texto de Peter Shaffer sobre a vida do compositor Mozart, dando mais uma vez a prova de seu talento. Em 1985, realizou o recital de poemas Ah! Mérica com o qual fez uma longa excursão. A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de 1986,foi encenada por Antunes Filho para o Centro de Pesquisa Teatral – CPT. O texto era sobre a obra de Guimarães Rosa. A interpretação de Raul foi aplaudida pela crítica e pelo público. Na comédia Drácula, em 1987, interpretava o protagonista com ironia e irreverência, levando na mão o público. O ator era múltiplo e versátil, fez jogral, shows, desfiles e era um excelente apresentador. No cinema participou de filmes como: Lavoura Arcaica, Cinema de Lágrimas, Aguenta Coração, O Seminarista, Vereda da Salvação, O Caso dos Irmãos Naves, Beto Rockfeller, Infidelidade ao Alcance de Todos, O Homem que Comprou o Mundo, Vera. Na televisão criou personagens inesquecíveis, como o ranzinza Jeremias Berdinazzi, em O Rei do Gado (1996) e o imigrante Francesco Magliano, em Terra Nostra (1999), o que trouxe a ele um grande reconhecimento popular. Raul Cortez compreendia claramente como se expressar em cada mídia,

mas o teatro era sua paixão, como podemos ver neste trecho de sua palestra realizada em 7 de fevereiro de 2006 no Teatro Escola Célia Helena. “Em primeiro lugar, eu acho que só o fato de você atuar já é alguma coisa. Então, o tipo de ação que você tem que desenvolver (é claro que cinema é uma coisa, televisão é outra): é menos, tudo é menos, no cinema. ...Então, eu acho que você traz a tua alma no olho quando você faz cinema. Mas nada é mais difícil, nada é mais extraordinário do que o teatro. No teatro é você... É você e os outros. É tudo tão lindo no teatro, é tão inexplicável, é tão misterioso, você troca energia com as pessoas. Ele cria esse oito [símbolo do infinito] maravilhoso, que vai, que volta para você, você devolve, o tempo inteiro da peça é assim. Se você faz o protagonista – se tem a sorte de fazer –, com o tempo, você vai observando que o espetáculo fica na ponta dos dedos. Você sente, você sente teus colegas, se estão inseguros para trabalhar, ou se, aquela noite, estão totalmente desvinculados do trabalho. Eu sinto certa responsabilidade, eu desejo trazer esse ator, esse colega, para dentro da peça, então muitas vezes eu fui até acusado, injustamente, de provocá-lo – às vezes, eu sei uma coisa pessoal, eu posso dizer numa fala aquilo que eu sei, que ele quer esconder –, pra provocar uma reação. Daí ele entra com tudo – às vezes me xingando muito depois –, mas ali ele passa a atuar, porque teatro não é funcionalismo público, não. Cada noite é uma noite, cada noite há uma energia diferente, na noite esse mistério está acontecendo, porque é um mistério!” Com essa visão apaixonada, o ator saltou “como um lobo” sobre o texto que lhe mostrou Renato Borghi. Era o ano de 1987, Raul estava com 56 anos, o personagem Paulo Prado era perfeito para ele.


lenise pinheiro


a LOBA


ChRISTIANE TORLONI

O

s pais de Christiane, Geraldo Matheus e Monah Delacy, fizeram parte da primeira turma da EAD, a lendária Escola de Arte Dramática de São Paulo. Lá se conheceram, apaixonaram-se e tiveram como madrinha de casamento a atriz Cacilda Becker. Christiane nasceu no dia 18 de fevereiro de 1957 em São Paulo. Seu padrinho foi o diretor e fundador da EAD, o dr. Alfredo Mesquita. Não é exagero afirmar que o teatro veio na sua vida tão naturalmente quanto o oxigênio que respirava. Sua mãe, Monah, lembra-se de que grávida percorria em turnê os teatros de São Paulo e do Rio de Janeiro: “Quinze dias depois de nascida já frequentava os ensaios no Teatro Brasileiro de Comédia, porque eu precisava amamentá-la a cada quatro horas. Para todo lugar que ia, lá ia junto a minha ‘trouxinha’ debaixo do braço”. A importância da família na formação de Christiane foi fundamental, e, ao longo de sua carreira, ela falou inúmeras vezes sobre isso. Desde pequena conviveu com o mundo artístico, e fez sua primeira aparição na TV participando de um episódio do Teatrinho Trol, da TV Tupi. A história era um conto de fadas no qual ela fazia uma princesinha adormecida, e trabalhava ao lado de Norma Blum; mas a apresentação foi única, não teve continuidade. Em 1975, participou do especial Indulto de Natal (1975). Gravado na prisão, a experiência foi forte demais para Christiane, que resolveu ir para os Estados Unidos, onde ficou por quatro meses. Na volta, matriculou-se no curso do ator Jayme Barcelos no IBAM. No teste de encerramento apresentou-se em Abre a Janela e Deixa o Ar Puro e o Sol da Manhã Entrar, de Antonio Bivar. Ao entrar em cena ficou apavorada, sofreu, mas conseguiu ir até o fim, e esse foi um momento-

chave de sua vida, a revelação, a compreensão de que o palco era o seu lugar. Estreou na televisão em Duas Vidas, em que interpretou Juliana, a filha de Francisco Cuoco, chamando a atenção do público e da crítica. A seguir participou de Sem lenço, Sem documento, e de vários programas, como Brasil 78 e o prêmio Globo de Ouro, do qual era apresentadora. Aos 21 anos, a atriz fez sua primeira protagonista, na novela Gina, de Rubens Ewald Filho. Seu primeiro papel em teatro profissional foi na peça As Preciosas Ridículas, de Molière, com a direção de Marília Pêra. Christiane fazia o papel de Cristonia e atuou com Dirce Migliaccio, André Valli, Dinorah Marzullo, Chico Ozanan, Claudio Gaia, entre outros. O espetáculo, que tinha figurinos de Claudio Tovar, foi apresentado de setembro a dezembro no Teatro Alaska, e foi uma experiência marcante para a jovem atriz. Em 1979, com o ensaio fotográfico de Marisa Alvarez de Lima para a revista Status, surgia mais uma faceta de Christiane, o símbolo sexual, a mulher ardente, que iria sacudir os homens brasileiros com sua sensualidade felina e elegante, aliada à sua inteligência. Entre 1980 e 1984, Christiane fez cinema, teatro, televisão, apresentações, shows, entrou de cabeça na campanha política pelas Diretas Já, posou nua para as revistas Status Plus e Playboy. Em 1981 foi eleita, pela Status Plus, A Mulher do Ano, um verdadeiro furacão! Na televisão participou das novelas Chega Mais, Baila Comigo, Elas por Elas, Louco Amor, Transas e Caretas, e Partido Alto. No teatro fez parte do elenco da peça Bodas de Papel, apresentada, em1981, no Teatro Maison de France, com direção de Cecil Thiré, e na qual interpretava a personagem Tetê. No cinema participou de filmes como Beijo no Asfalto de Bruno Barreto; Eros, o Deus do Amor, de Walter Hugo Khoury; Das Tripas


Coração, de Ana Carolina; O Bom Burguês, de Oswaldo Caldeira; Rio Babilônia, de Neville de Almeida; Aguenta, Coração, de Reginaldo Faria; e Águia na Cabeça, de Paulo Thiago. Em 1983, aceitou o convite para substituir a atriz Renata Sorrah, por quatro meses, no papel da personagem Karin, na peça As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, de Fassbinder, com direção de Celso Nunes. O espetáculo era apresentado no Teatro dos Quatro (RJ) há 15 meses, e era um sucesso. Para uma atriz festejada na TV e no cinema como estrela, fazer uma substituição em teatro já seria um desafio. Fazê-lo em meio à temporada, quando já havia se estabelecido uma enorme cumplicidade entre as atrizes, era maior ainda. Mas contracenar com a primeira-dama do teatro brasileiro Fernanda Montenegro, que interpretava um dos mais aclamados papéis de sua carreira, foi um desafio e tanto. Em 1984, dois meses depois de estrear na novela Partido Alto, Christiane voltou ao teatro para interpretar a sedutora Helena, na peça Tio Vânia, uma das obras-primas de Anton Thecov. No elenco estavam Armando Bogus, Nildo Parente, Rodrigo Santiago, Denise Weinberg e Norma Geraldy, com quem Christiane diz ter tido “um encontro inesquecível”. Dirigida por Sérgio Brito, a peça foi apresentada no Teatro dos Quatro. Aos 27 anos, Christiane Torloni já havia participado de nove novelas, oito filmes e quatro espetáculos teatrais, sem falar nos especiais, shows, programas jornalísticos e de variedades. Em dezembro de 1984, ela foi novamente eleita A Mulher do Ano, desta vez pela revista Playboy. Para comemorar o título, foi realizado um livro-álbum de 100 páginas com um ensaio fotográfico inédito de Luiz Tripoli e depoimentos sobre ela de políticos, atores, atrizes, diretores, cantores, poetas e escritores. Em 1985, como a protagonista Jô Penteado, em

A Gata Comeu, Christiane passou ao patamar das grandes atrizes de TV. Seu próximo papel de destaque foi no remake da novela de Janete Clair, Selva de Pedra, exibida em 1986. Em vez da heroína, a atriz fazia a antagonista, Fernanda, uma personagem de grandes possibilidades interpretativas, e que havia sido de Dina Sfat na novela original. No cinema, filmou Besame Mucho, de Fernando Ramalho Jr., e, a personagem Dina permitiu à atriz mostrar suas múltiplas facetas. Em 1987, surpreendeu a todos aceitando o convite para ser a protagonista da novela Corpo Santo, da TV Manchete, extinta emissora que estava dando os primeiros passos na teledramaturgia. A novela chegou a ser a líder de audiência no Rio de Janeiro, mas, por não concordar com algumas questões internas da TV, a atriz resolveu se desligar da Manchete, e sua personagem foi assassinada no meio da trama. São poderosos os deuses do teatro! Naquele ano Christiane recebeu, de Roberto Talma, um convite para participar da peça que ele estava produzindo. Era o espetáculo Lobo de Rayban, dirigido por José Possi Neto, e no qual contracenaria com Raul Cortez. Quando ela leu o texto teve a sensação de que algo tinha entrado na sua vida violentamente, sem aviso prévio. Como se fosse uma grande paixão. Aos 30 anos, Christiane havia conquistado seu espaço de protagonista nas novelas da TV, mas tinha consciência de que o templo do ator é o teatro. Mesmo se sentindo em casa dentro de um, sua experiência profissional nos palcos podia ser contada nos dedos de apenas uma das mãos. Por isso, a surpresa pelo texto ter caído em seu colo. Ela não tinha procurado, batalhado, como tantas vezes tinha feito. Percebeu que seria seu grande papel. A grande chance, afinal, tinha chegado.


Raul

A.L. (antes do Lobo)

1963

Pequenos Burgueses

fotos: divulgação

De Máximo Gorki Teatro Oficina Direção: José Celso Martinez Corrêa

1969

Os Monstros Sobre texto de Denoy de Oliveira Teatro Ruth Escobar Direção: Jérôme Savary

1969

O Balcão

De Jean Genet Teatro Ruth Escobar Direção: Victor Garcia


Chris

1979

As Preciosas Ridículas De Molière Teatro Alaska Direção: Marília Pêra


Raul

A.L. (antes do Lobo)

1978

1982

Amadeus

De Peter Schaffer Teatro Maria Della Costa Direção: Flávio Rangel

1986

A Hora e a Vez de Augusto Matraga De Guimarães Rosa Teatro Sesc Anchieta Direção: Antunes Filho

emídio luisi

De Edward Albee Teatro Anchieta Direção: Antunes Filho Na foto: Tônia Carrero e Raul Cortez

fotos: divulgação

Quem tem Medo de Virgínia Woolf?


Chris

gastón guglielm - arquivo do teatro dos quatro

arquivo do teatro dos quatro

1983

As Lágrimas Amargas de Petra von Kant De Fassbinder Teatro dos Quatro Direção: Celso Nunes Na foto: Fernanda Montenegro e Christiane Torloni

1984

Tio Vânia De Tchecov Teatro dos Quatro Direção: Sérgio Brito Na foto: Christiane Torloni e Armando Bogus


dimas schittini


o encontro 1987

Lobo de Ray-Ban De Renato Borghi Teatro Bibi Ferreira Direção: José Possi Neto


raul + Chris + Possi

O

dimas schittini

Lobo de Ray-ban foi um espetáculo marcante para todos os que dele participaram, e a sinergia criada na sua realização transcendeu o seu tempo de apresentação. No programa da peça, com magníficas fotos de Vania Toledo, os depoimentos dos participantes deixavam ver essa força arrebatadora. Renato Borghi assim definia seu texto: “Nesta peça, as personagens vivem seus conflitos no palco, logo após a interrupção do espetáculo Ricardo III de Shakespeare. A crise presente se mistura às lembranças, vivências e projetos teatrais que estiveram ligados, de alguma forma, às suas vidas. O universo do Lobo é teatral. Apesar das divergências, há um ponto comum unindo as personagens da peça: um profundo amor ao teatro.” A seguir, ele lista as citações teatrais que permeiam o espetáculo : cenas inteiras como Ricardo III de Shakespeare e Eduardo II, de Marlowe; falas como as de Ivanov, de Tchecov, Esperando Godot, de Samuel Becket, e A vida é sonho, de Calderón; até simples alusões como Seis Personagens à Procura de um Autor, de Pirandello, Rasga Coração, de Vianinha, O Fantasma da Ópera, de Gaston Leroux, Esta Noite se Improvisa de Pirandello, Hamlet, de Shakespeare, Doce Pássaro da Juventude, de Tennessee Williams, e Jack, o Estripador. Ainda segundo Renato: “Paulo, às vezes, se exprime através de falas de antigas personagens já representadas por ele, e se livra do suicídio pela palavra de Calderón – um oráculo do teatro. José Possi Neto contava assim seu encontro com o Lobo: “Telefone toca, Raul Cortez quer me mostrar uma peça inédita de Renato Borghi. Na mesa de cabeceira doze outros textos esperam a vez. Dois textos franceses, um Tennessee Williams, um texto italiano e oito promessas nacionais. Mergulho de cabeça nesse Lobo de Ray-ban, surpreendente-surpresa, viagem enlouquecida pelo universo da paixão, paixão no teatro, paixão na vida. O Lobo desperta minha paixão. Adiamos Europa. Como rejeitar a inquietação apaixonante e o talento de Raul Cortez, a entrega e a beleza de Christiane Torloni e a oportunidade de revelar um

ator jovem. Como rejeitar um autor brasileiro que conhece todos os segredos do palco e sábia e sensivelmente os imprimiu nessa obraprima que é Lobo de Ray-ban. Por que aceitei dirigir? Como se diria lá no Bras: Tontão é o que eu nunca fui.” Raul Cortez falava sobre seu momento: “Nisso aqui há um reencontro! Reencontro com o teatro que aprendi a amar, o ator que tento ser, a energia sempre latente, o ‘não’ taxativo, o ‘sim’ desacomodado, os personagens desejados e as atrizes amadas. (...) Tanta coisa a peça do Borghi me devolve. A emoção de reencontrálo nos ensaios, torcendo o seu bigodinho, com os olhos arregalados de menino (ainda é) esperando a emoção que nós atores devemos devolver-lhe. Meu encontro com Possi, com Christiane, com esse lobo louco que é o Paulo Prado e com a generosidade desse ato que é fazer teatro. O Lobo de Ray-Ban, além de ser um hino ao teatro, é para mim acima de tudo uma ‘chamada’: coragem de sermos artistas, sendo livres, abertos, assumindo a energia que temos e o lobo que trazemos escondidos atrás de um óculos Ray-ban.” Christiane Torloni abria seu coração: “[Fui] a menina quase parida num palco, amamentada e criada nos camarins e coxias por essa linda família teatral composta por camareiras que, entre uma troca e outra de roupa, trocavam também uma fralda; pelas atrizes e atores que entre uma cena e outra cantavam uma cantiga de ninar ... A menina, a ‘Tianinha’, era uma filha comum de tantas temporadas e ensaios. Cresci – dos camarins e coxias me vejo lançada agora nesses palcos pelos quais engatinhei. Adulta, me vejo novamente amparada e ninada como outrora – mas agora pelos meus parceiros. O leite é agora o texto pelo qual me alimento e me expando e o colo o carinho e o desafio com os quais meu diretor me educa. Sou feliz – estou em casa.” A atriz havia conhecido Possi numa festa, em 1984, na qual dançaram juntos toda a noite. Dois anos depois, assistira ao espetáculo Rito de Amor e Morte na Casa de Lilith, a Lua Negra, e se encantara com trabalho do diretor. Nos ensaios do Lobo, eles eram


cúmplices na integração de elementos de dança às cenas, o que, em princípio Raul sempre rejeitava, mas que vieram a integrar o espetáculo. Possi deixava que as improvisações acontecessem e numa delas nasceu o personagem de Raul. De repente, ele começou a uivar, como um lobo. Possi apenas repetia, satisfeito: “Hoje ele achou”. Não foi fácil encontrar o terceiro ator. Foram feitos mais de 60 testes, pois Possi queria alguém que se encaixasse perfeitamente ao papel. O escolhido, Alexandre Lippiane, saiu às vésperas da estreia, e em seu lugar entrou Renato Modesto, depois substituído por Tadeu Aguiar. Completava o elenco Renato Dobal, amigo de Borghi e de Raul, com os quais havia trabalhado no Teatro Oficina. Contratado como assistente de direção, Dobal vivia no palco, Cirineu, o zelador do teatro. O espetáculo estreou no dia 8 de dezembro de 1987, no Teatro Bibi Ferreira, e foi recebido com entusiasmo pelo público e pela crítica. Raul adorava instigar seus colegas em cena. A peça era um prato feito, e sua companheira Christiane, uma atriz jovem e ardente. Às vezes, as cenas entre eles esquentavam tanto que chegavam a assustar a equipe. Depois, nas coxias, eles se beijavam empolgados com as cenas!

Lobo de Ray-ban foi um sucesso, ficou dois anos em cartaz e recebeu os prêmios os prêmios Molière, Mambembe, APCA e Apetesp de melhor autor e ator daquele ano. Quando a temporada paulista terminou, o espetáculo viajou para o Rio e, em seguida, para as cidades do Sul: Curitiba, Porto Alegre e Florianópolis. Quando iam iniciar as viagens para o norte do país, Christiane foi convidada a ser a protagonista de Kananga do Japão, novela da TV Manchete. O ritmo das gravações não permitiria a ela fazer as viagens. No seu lugar, entrou Patrícia Pilar, e, na mudança de elenco buscou-se um novo ator para fazer Fernando. O escolhido foi Leonardo Franco, que compreendeu sem dificuldade a essência do personagem. Leonardo assim relatou sua experiência em entrevista a autora: “A viagem foi tranquila e reveladora, fui apresentado ao teatro que dá certo. A convivência com Raul era enriquecedora, e Patrícia, uma grande companheira. Nos apresentamos em todo o Brasil, para casas sempre lotadas. O Lobo foi minha verdadeira Faculdade de Teatro.” Nossos lobos não sabiam então o quanto aquele encontro seria transformador para todos!

fotos: vania toledo

vania toledo


O espetรกculo estreou no dia 08/12/1987, no Teatro Bibi Ferreira


LOBO DE RAY-BAN De Renato Borghi Direção: José Possi Neto ELENCO - 1987/1989 RAUL CORTEZ CHRISTIANE TORLONI RENATO MODESTO e TADEU AGUIAR Renato Dobal

geraldo Malheiros

ELENCO - 1989/1990 RAUL CORTEZ PATRICIA PILAR LEONARDO FRANCO Cacá Martinho

Na foto: Raul Cortêz e Patrícia Pillar em Lobo de Ray-ban

Realização: Raul Cortez e Roberto Talma Produtora Associada: Regina Malheiros Administração Geral: Geraldo Malheiros Cenografia: Alexandre F. Toro Iluminação: José Possi Neto Cenotécnico: Ezequiel Tibúrcio Figurinos: José Possi Neto Assistentes de Direção: Muriel Matalon, Renato Dobal e Romildo Sonoplastia: George Freire Música composta para Lobo de Ray-ban: Matias Capovilla Fotografia: Vania Toledo Operador de som: Angela Sant’anna, Tatinho

vania toledo

Divulgação: Ivone Kassú Administração: Marlene Marques Operador de Luz: Angelo Vecchio Auxiliar: Marcos Salmão Chamma Maquinistas: Sergio Nicanor e Carlos Assumção Confecção de Figurinos: Elina Andreucci Faccio, Kazue Yamaguchi e Ana Pereira de Carvalho. Costureira: Dina Pereira de Carvalho

Na foto: Raul Cortêz e Tadeu Aguiar em Lobo de Ray-ban

Camareira: Helena Pacheco Pintura do Cenário: Emily Pintura de Placa: Cauê Release: Márcia Regina


RENATO BORGHI o autor

vania toledo

R

enato Borghi nasceu no Rio de Janeiro em1937 e como ator realizou papéis que se tornaram marcos do teatro brasileiro. É também um dos mais conceituados autores da cena nacional. Desde criança sonhava em fazer teatro, mas estudou Direito na Faculdade São Francisco, em São Paulo. Escolhido num teste entre 50 candidatos, estreou profissionalmente em 1958, no Rio de Janeiro, na montagem de Sergio Cardoso de Chá e Simpatia. De volta a São Paulo, para terminar a faculdade, conheceu José Celso Martinez Corrêa, que também era estudante. Juntos trabalharam no grupo amador Oficina até o término da faculdade quando se propuseram a transformá-lo num teatro profissional. Em 1961, foi fundado o Teatro Oficina. As inovadoras encenações de José Celso Martinez Corrêa tinham em Renato seu mais fiel intérprete. A parceria e a cumplicidade estabelecidas entre eles rendeu ao teatro brasileiro alguns dos seus mais vigorosos momentos. O primeiro grande sucesso como ator veio com o personagem Piotr, de Pequenos Burgueses, de Máximo Gorki, atuação pela qual recebeu o prêmio Molière. Em 1964, foi novamente premiado pelo Andri, de Andorra, texto de Max Frisch. Em 1967, como o Abelardo I de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, Renato Borghi tornou-se uma unanimidade. Sua interpretação debochada e irreverente, inspirada em Chacrinha, e repleta de nuances políticas arrebatou o público e a crítica e recebeu os prêmios Molière e Associação Paulista de Críticos Teatrais - APCT, de melhor ator. Sobre sua atuação, disse a crítica Luiza Barreto Leite: “Renato Borghi está absoluto. Diverte-se, divertindo a plateia, com o rasgar das próprias entranhas, com o expor das próprias vísceras, com o prazer sádico que só Oswald em pessoa teria empregado”. A seguir vieram: Galileu Galilei,(1968) e Na Selva das Cidades (1969), de Brecht. Em 1970, o Oficina, junto dos grupos Lobos e Living Theatre, percorreu o país na excursão Saldo para o Salto, apresentando remontagens de sucesso do grupo para reunir fundos. Em 1972, foi apresentada a criação coletiva Gracias, Señor, que enfrentou problemas com a Censura. Em 1973, Renato Borghi participou ainda da montagem de As Três Irmãs, de Tchekhov. Não terminou a temporada; foi seu último espetáculo no Oficina. Com sua mulher Esther Góes fundou o Teatro Vivo, realizando O Que Mantém um Homem Vivo?. Participou de vários espetáculos politicamente engajados, como Murro em Ponta de Faca, de Augusto Boal, 1978; Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra, 1980; e Pegue e Não Pague, de Dario Fo, encenado por Guarnieri, 1982. Em 1982, recebeu o prêmio de melhor ator da Associação Paulista


1968

Galileu Galilei De Bertolt Brecht Teatro Oficina Direção: José Celso Martinez Corrêa

1967

O Rei da Vela De Oswald de Andrade Teatro Oficina Direção: José Celso Martinez Corrêa

fotos: divulgação

de Críticos de Artes - APCA por sua interpretação em Édipo Rei, de Sófocles, dirigida por Marcio Aurélio. Nos vaudevilles Com a Pulga Atrás da Orelha, de Georges Feydeau, 1984, e O Amante de Madame Vidal, de Louis Verneuil, 1988, ambas dirigidas por Gianni Ratto – o ator confirmou sua capacidade de atuar brilhantemente na tragédia e na comédia. Em 1987, Renato Borghi escreveu seu primeiro texto para teatro em parceria com João Elíseo Fonseca: o musical A Estrela Dalva. Estrelado por Marília Pêra, o espetáculo foi um enorme sucesso. Em 1989, foi novamente premiado com o Apetesp pelo texto Decifra-me ou Devoro-te, encenado por Roberto Lage. Como ator trabalhou ainda em Rancor, de Otávio Frias Filho (1992), Pentesiléias, texto de Daniela Thomas (1994). Em 1995, fundou o Teatro Promíscuo, com Élcio Nogueira, realizando os seguintes espetáculos: Senhora do Camarim, texto de Borghi, 1995; Édipo de Tabas, de Sófocles e Sêneca, 1996; Tio Vânia, de Anton Tchekhov, 1998; A Vida de Galileu Galilei, de Bertolt Brecht 1998; e Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchekhov, 2000. Em 2002, organizou e atuou na Mostra de Dramaturgia Contemporânea do Teatro Popular do SESI, um panorama dos dramaturgos paulistas da década de 1990. No cinema, trabalhou em O Rei da Vela, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Sua Excelência, O Candidato, Cabra-Cega, dentre outros filmes. Na televisão, atuou em várias novelas, como: A Volta de Beto Rockfeller, O Todo Poderoso, Vidas Roubadas, As Pupilas do Senhor Reitor, Marcas da Paixão e Bang Bang. Em 2007, Borghi participou de um ciclo de leituras dramáticas que homenageou o falecido ator Raul Cortez. Em 2008, ao completar 50 anos de carreira, fez a produção e a montagem do seu texto Cadela de Vison. Em 2009 atuou ainda em Mãe é Karma!, texto de Elifas Andreato, com Miriam Mehler. Lobo de Ray-Ban foi seu segundo texto, escrito em 1987. Denso, comovente e vibrante, o texto é a catarse de um autor que conhece profundamente o teatro, que viveu as emoções de ator, que soube das dificuldades de dirigir uma companhia, que conhece as melhores cenas e que reverencia alguns de seus mitos. É o texto de alguém que viveu o assunto e que desnuda a crise entre um casal de atores e suas paixões exacerbadas, nos bastidores e no palco. A encenação de José Possi Neto permaneceu dois anos em cartaz e deu a Renato Borghi os prêmios Molière, Mambembe, APCA e Apetesp de melhor autor.


josé possi neto o diretor José Possi Neto é um dos mais conhecidos diretores de teatro e de dança do país. Formou-se em 1970 em crítica e dramaturgia na ECA/USP. Seus pais não tinham qualquer vínculo com as artes, mas Possi fundou uma linhagem de lobos, que inclui sua irmã e sua sobrinha, as cantoras Zizi e Luisa Possi. É um diretor total, que participa ativamente da cenografia, figurino e iluminação de seus espetáculos. Suas pesquisas o levaram a adotar o que ele chama de “teatro físico”. No seu método de direção todas as marcações e a evolução de cena são criadas a partir de um trabalho laboratorial com os atores ou bailarinos. Desta forma, os gestos e ações inerentes à criação interna de cada ator/bailarino integram-se aos personagens criando cenas providas de uma verdade que é interior e não externa. A sua familiaridade com a dança o tornou um dos poucos diretores brasileiros capazes de mesclar as duas linguagens. Ao longo de sua carreira dirigiu também vários shows musicais de grandes cantoras brasileiras. Iniciou sua carreira como diretor da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, realizando entre 1971 e 1975, montagens como Momento Processo e Monte Santo. De 1973 a 1976 encenou A Casa de Bernarda Alba, Tito Andrônico e Álbum de Família. De 1976 a meados de 1978 viveu em NY usufruindo de Bolsa da Fullbright Foundation, pesquisando teatro e dança de Vanguarda. Em 1979, de volta a São Paulo, realizou junto Ruth Rachou e Thales Pan Chacon o espetáculo Sonho de Valsa onde foi responsável pela concepção, direção, coreografia, figurinos e iluminação. A partir deste espetáculo foi convidado por Marilena Ansaldi para uma criação conjunta, e ali nasceu um intenso encontro artístico; criaram juntos Um Sopro de Vida, pelo qual Possi recebeu seu primeiro prêmio APCA . Foi o primeiro dos muitos prêmios que recebeu, entre eles três Molière e 10 APCA. Em 1980, trabalhou novamente com Marilena Ansaldi em Geni. E em 1981,com Ruth Rachou, apresentou Tratar com Murdok, de sua autoria, com coreografia de Victor Navarro. Filhos do Silêncio, de 1982, com Irene Ravache e Odilon Wagner foi um grande sucesso. No mesmo ano, dirigiu Paulo Autran em Traições, e Marilena Ansaldi em Picasso e Eu. Esse conjunto de trabalhos lhe deu o primeiro prêmio Molière. Sobre o grande sucesso De Braços Abertos, com Irene Ravache e Juca de Oliveira, de 1984, disse o crítico Sabato Magaldi . “O acerto completo seria impossível sem o requinte artístico do encenador José Possi Neto.

Ele inoculou no palco uma atmosfera mágica, em que a luz dirige a flexibilidade dos movimentos, evitando os prosaicos pormenores realistas, para instaurar a fluência do sonho. A passagem de um ator atrás de uma parede e a volta para o companheiro carregam em si um ambiente diverso, na psicologia e no ritmo da cena. O palco se transfigura, a cada episódio que surge, sem que se perceba o menor esforço. De braços abertos estabelece com a plateia uma comunicação vital, como verdadeira obra-prima”. Em 1985, dirigiu Paulo Autran em Tartufo e Feliz Páscoa. No mesmo ano, encenou Santa Joana, com Esther Góes, um espetáculo inovador e polêmico. Dirigiu Glória Meneses e Tarcísio Meira em Um Dia Muito Especial, em 1986. No mesmo ano apresentou Rito de Amor e Morte na Casa de Lilith, a Lua Negra, de sua autoria, com Selma Egrei e Odilon Wagner recebendo seu segundo prêmio Molière. A crítica de dança Helena Katz o resumiu como “Um dilúvio de Amor e Preciosismo”. Em 1987 realizou Ligações Perigosas, com Marieta Severo e O Manifesto, com Beatriz Segall que lhe deu o terceiro prêmio Molière. Em 1988 com Raul Cortez e Christiane Torloni encenou Lobo de Ray-ban. Em 1989 realizou Lilian, com Beatriz Segall. Em 1990, apresentou M. Butterfly, com Raul Cortez, e o grande sucesso Emoções Baratas, espetáculo de dança de sua autoria. Em1992 dirigiu Marília Pêra, em A Baronesa; e no ano seguinte Fernanda Montenegro, em Gilda. Em 1993 montou Êxtasis com Christiane Torloni. Três Mulheres Altas foi um novo sucesso em 1995, assim como Salomé, em 1997. No mesmo ano encenou Inseparáveis. Em 1999 montou Um Certo Olhar com Raul Cortez e O Bailado do Deus Morto, de Flávio de Carvalho. Com sua energia inesgotável, Possi, além de musicais, óperas e espetáculos de dança, dirigiu, entre 2000 e 2010, espetáculos de teatro como Joana Dark - A Re-volta, Um Porto para Elizabeth Bishop, Ensina-me a Viver, Ponto de Vista, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Variações Enigmáticas, Blue Room, Coração Bazar, Mulheres Por Um Fio, Acorda Brasil, Amigas, Pero No Mucho, O Baile, A Música Segunda, Loba de Ray-ban, Usufruto, Bark! Um Latido Musical, com atores e atrizes como: Beatriz Segall, Cecil Thiré, Christiane Torloni, Lucia Veríssimo, Maria Fernanda Candido, Murilo Rosa, Paulo Autran, Paulo Goulart, Regina Braga, Regina Duarte, Thiago Lacerda, entre outros. José Possi Neto terminava 1987 como um dos mais requisitados diretores no Brasil. Tinha uma viagem marcada para a Europa e sobre sua mesa estavam 12 roteiros para serem lidos. Aí recebeu um telefonema de Raul Cortez, que lhe apresentou o roteiro de Renato Borghi. A identificação foi arrebatadora. Tudo ficou para trás.


vania toledo


raul cortez paulo


fotos: vania toledo

Christiane torloni julia


fotos: Vania Toledo



fotos: Vania Toledo


dimas schittini


leonardo franco fernando substituída por Patrícia Pilar. Leonardo ficou sabendo que estava sendo escolhido um novo ator para o papel de Fernando e se apresentou para a seleção, ao lado de jovens atores como Marcelo Serrado, Kiko Mascarenhas e Aloísio de Abreu. O seu teste foi realizado com a “cena do teste”, um momento marcante do espetáculo Lobo de Ray-ban. Leonardo estava extremamente mobilizado pela oportunidade e a interação com Raul foi imediata. Alguns dias depois recebeu um telefonema do Possi dizendo que o papel era dele. Até então, Fernando, era considerado um papel difícil, pelo qual já haviam passado dois atores. Segundo Possi, Leonardo encontrou com facilidade a chave de interpretação do personagem, e em reportagem de Outubro de 1989 assim falava Raul sobre o colega: “O Leonardo é o terceiro ator que faz o personagem Fernando, e tem uma postura totalmente diferente [dos outros dois]. Ele já é um homem maduro e de grande sensibilidade, eu sinto muito a interpretação dele, a coisa funciona melhor.” O Lobo de Ray-ban foi, para Leonardo Franco, então com 25 anos, uma grande revelação que iria mudar totalmente o rumo de sua vida.

1987

O Vôo dos Pássaros Selvagens De Aldomar Conrado Teatro SENAC Direção: Rogério Fróes Na foto, Leonardo Franco e Tamara Taxman

Valdir silva

A

primeira “experiência teatral”, de Leonardo Franco foi no colégio, representando o papel de promotor em julgamentos de personagens históricos, encenados pelo professor de história, Adam Grzybowski, com a participação dos alunos. A segunda experiência, que o impressionou ainda mais, foi assistir ao espetáculo Trate-me Leão, do Grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, no Teatro Dulcina, com um elenco memorável, no auge do sucesso. O teatro começou a chamar sua atenção. A maioria dos atores diz que a vocação vem do berço. Com Leonardo Franco não foi assim. Filho de uma tradicional família de médicos decidiu seguir os pais na escolha de sua carreira. Chegou a cursar um período da Faculdade de Medicina, mas sua opção foi a Psicologia, que freqüentou na PUC e terminou na UFRJ. Nos últimos dois anos da faculdade, entretanto, o teatro tomou conta de sua vida. Nas aulas voltadas para a prática do Psicodrama, descobriu sua paixão, e resolveu tentar a carreira de ator. Sua família esteve sempre ao seu lado, mas ficou apreensiva com a opção do filho, tão distante de tudo o que poderiam lhe oferecer. Foi um salto no escuro, Leonardo não sabia por onde começar, e descreve assim aquele momento: “Eu tinha 21 anos de idade. Como explicar a mudança? Não sei. Não me recordo do momento de decisão. Só sei que as coisas foram mudando, se encaixando, amadurecendo, ficando claras. Não fui programado para ser ator, não era o que esperavam de mim. Tive de descobrir sozinho, observando, ouvindo e tendo fé, muita fé”. O primeiro passo foi se inscrever em cursos com artistas que admirava: Fernando Peixoto, Rubens Corrêa, Sérgio Brito, Aderbal Freire Filho, entre outros. Depois, audaciosamente, começou a produzir seus próprios espetáculos. O primeiro foi O Vôo dos Pássaros Selvagens de Aldomar Conrado, com direção de Rogério Fróes, no qual contracenava com Tamara Taxman. O espetáculo estreou em 1987 no antigo Teatro SENAC e depois cumpriu temporada de três meses em São Paulo. Foi lá que, apresentado por Tamara, Leonardo conheceu Raul Cortez, naquele período em plena temporada de Lobo de Ray-ban. O personagem Fernando, interpretado na época por Renato Modesto, mexeu com ele, e enquanto assistia ao espetáculo ele se perguntava se seria capaz de fazer aquele papel. Dois anos depois, quando começaram as viagens, o elenco do Lobo teve de ser mudado. Christiane precisou sair e foi


divulgação


fotos: divulgação


valdir silva


renato dobal cirineu

D

obal é uma figura conhecida e querida por muitas gerações de atores. No palco, sua presença jamais passou despercebida, mesmo em pequenos papéis e participações. Nos bastidores fez de tudo: produção, assistência de direção e figurino. Fez compras, contabilidade, costurou, bordou, ajudou atores famosos a decorar seus textos – o que fosse necessário. Conhece a história do teatro brasileiro como poucos, porque esteve presente, e fez parte, de alguns dos seus mais significativos momentos, levando a eles sua natureza gnômica, quase mágica. Dobal é um Elemental do Teatro. Nascido no Piauí, no dia 25 de agosto de 1931, Dobal desde criança se interessou por teatro, e por isso mudou-se para o Rio em 1953. Fez um teste no Teatro do Estudante e conseguiu ver sua avaliação, que dizia “talento de sobra, altura insuficiente para o teatro.” Apesar da decepção, Dobal não desistiu e fez alguns pequenos papéis na Cia Dulcina e Odilon. Em 1958, começou a frequentar as aulas no Conservatório, e, de repente, em maio de 1959, foi procurado por Adolfo Celi. O diretor estava encenando Seis personagens à procura de um autor, de Pirandello, e precisava de um ator para fazer o papel de uma criança, devido à proibição pelo Juizado da participação de menores em peças de adultos. Num primeiro momento, Renato recusou, mas Celi insistiu, e ele foi fazer um teste no Teatro Mesbla, onde o aguardavam Celi, Tônia Carrero, Paulo Autran e Margarida Rey. Na entrevista perguntaram a sua idade, e, temeroso de dizer que já tinha 28 anos, Renato disse que tinha 21, o que foi recebido com uma gargalhada geral. Tempos depois descobriu que a risada era porque todos pensavam que ele aumentara a idade... Seu personagem era um garoto, que não dizia nada, só chorava, mas agradou tanto que, encerrada a temporada, Celi chamou Dobal para Natal na Praça, de Henri Ghéon, apresentada no Teatro Municipal em 1960, na qual fazia vários personagens: o pastor, o anjo da anunciação, que tinha uma pequena fala, e até o Menino Jesus. Numa crítica ao espetáculo, Décio de Almeida Prado fez a seguinte observação: “Dobal tem resquícios de amador, que vão muito bem no papel”. Nas viagens, saía para jantar com o elenco, e os garçons sempre hesitavam em lhe servir bebidas alcoólicas. A isso, Tônia, rindo, dizia: “Pode servir, eu me responsabilizo”. Ainda em 1960 veio para São Paulo participando de Calúnia,

como um entregador de jornais. Na apresentação em Araquara conheceu José Celso Martinez Corrêa e Renato Borghi, que iniciavam o Teatro Oficina. Quando a temporada acabou, Dobal resolveu ficar em São Paulo, e, na falta de papéis, foi trabalhar como fiscal do SENAC. Em 1962, trabalhou em A Revolução dos Beatos, com Raul Cortez. Um dia, saindo do trabalho, vê uma pessoa saltar de um carro e chamá-lo, era Renato Borghi. “Estávamos a sua procura, precisamos de você”. Dobal foi levado para o Oficina onde acontecia o ensaio geral de Andorra, e já foi para o palco fazer o papel do Coroinha. Tudo tinha sido tão inesperado, que, de manhã, Dobal ficou na dúvida se tinha sonhado, se devia mesmo ir à noite ao teatro. Um amigo lhe sugeriu ir, como quem não quer nada, e ver a reação das pessoas. Na porta, encontrou Zé Celso que lhe disse: “ Chegou cedo, que bom!”. Andorra estreou no dia 10 de outubro de 1964, e Dobal ficaria seis anos no Oficina. Em Pequenos Burgueses, de Máximo Gorki, peça na qual não trabalhou como ator, reencontrou Raul Cortez, de quem seria amigo por toda a vida. No emblemático Rei da Vela, de Oswald de Andrade, apresentado em 1967, fez o papel do Índio, e também a produção executiva do espetáculo. Em setembro de 1968, participou de Cemitério de Automóveis, de Victor Garcia. A famosa encenação no Teatro 13 de Maio era composta por três peças: Cemitério de Automóveis, Os Dois Carrascos e Oração, nas quais fez, respectivamente, os papéis de Fodere, João Laguna e O Menino Assassinado. Em dezembro do mesmo ano, voltou ao Oficina, em Galileu Galilei, como o Grão-Duque e o acompanhante do Cardeal. Participou ainda de Na Selva das Cidades, de 1969, como O Missionário, e nas remontagens de Galileu Galilei e Dom Juan (com Raul Cortez) em 1970. Nesse ano, como tantos outros atores, deixou o Oficina. Participou de Frank V, de Dürrenmatt, com Borghi, em 1973. Fez parte do elenco de Chuva, em 1978, e de Amadeus, em 1982, como Venticelli II. Em 1985, fez o papel de Cuigy em Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, com Antônio Fagundes. Em 1988, foi chamado por Raul para fazer uma participação em o Lobo de Ray-ban. Amigo de Raul e de Borghi, Dobal logo foi imediatamente incorporado por Possi, que o convidou para fazer a assistência de direção.


lenise pinheiro

1959

Natal na Praça De Henri Ghéon Teatro Municipal, RJ Direção: Adolfo Celi Na foto: Paulo Autran e Dobal

2010

Loba de Ray-Ban De Renato Borghi Teatro Frei Caneca Direção: José Possi Neto

1967

O Rei da Vela

fotos: arquivo renato dobal

De Oswald de Andrade Teatro Oficina Direção: José Celso Martinez Corrêa

1968

Cemitério de Automóveis De Fernando Arrabal Teatro 13 de Maio Direção: Victor Garcia Na foto: Dobal e Carlos Vereza


Nisso aqui há um reencontro! Reencontro o teatro que aprendi a amar, o ator que tento ser, a energia sempre latente, o “não” taxativo, o “sim” desacomodado, os personagens desejados e as atrizes amadas. Tanta coisa a peça do Borghi me devolve. A emoção de reencontrá-lo nos ensaios, torcendo o seu bigodinho, com os olhos arregalados de menino... Meu encontro com Possi, com esse lobo louco que é Paulo Prado e com a generosidade desse ato que é fazer teatro. O Lobo de Ray-ban, além de ser um hino ao teatro, é para mim, acima de tudo, uma “chamada”: coragem de sermos artistas, sendo livres, abertos, assumindo a energia que temos e o lobo que trazemos escondido atrás de um óculos Ray-ban.

Raul Cortez


a alcateia


raul + possi madame butterfly

Segundo Possi: “Encenar M. Butterfly era um projeto do diretor do Teatro de Arena do Rio de Janeiro. Era um texto delicado, difícil. Fui até o Rio Grande do Norte, onde Raul passava férias, para encontrá-lo, e apresentar a ideia, que ele aceitou, confirmando nossa amizade. Por se tratar de um teatro de arena, a encenação era realizada em pequenas “ilhas” construídas sobre a água – havia pequenas pontes e o público passava por elas. M.Butterfly é a história de uma pessoa que consegue se autoiludir em busca de uma fantasia, até chegar ao travestimento da própria persona. Como sempre, Raul mergulhou fundo no personagem e derramava sobre o público a crescente loucura de Gallimard.”

vania toledo

Em 1990, Raul Cortez realizou com direção de José Possi Neto, a peça M. Butterfly, de David Henry Hwang. O espetáculo, livremente inspirado em um inacreditável acontecimento real, contava a história de René Gallimard, um senador, interpretado por Raul, que se relaciona durante vinte anos com uma famosa diva da ópera chinesa, Song Ling, vivida por Carlos Takeshi, sem saber que ela é na verdade um homem, e um espião. A peça foi um grande sucesso e recebeu vários prêmios. A contundente cena final na qual Gallimard começa a maquiar o rosto de branco, antes de seu suicídio, era magistralmente interpretada por Raul.


divulgação

1990

M. Butterfly De David Henry Hwang Teatro de Arena, RJ Direção: José Possi Neto


raul + possi um certo olhar - Pessoa e lorca Em 1999, Raul e Possi voltaram a trabalhar juntos na peça Um Certo Olhar - Pessoa e Lorca, que reunia textos dos poetas Fernando Pessoa e García Lorca, selecionados pelo próprio ator. O diretor trabalhou com um despojamento absoluto, como se estivesse sendo apresentada uma música de câmara, deixando Raul livre para mostrar o domínio que tinha sobre a poesia. “Esse foi o trabalho mais profundo e intenso que fizemos juntos, diz o diretor José Possi Neto. Em 1998, Raul queria remontar o espetáculo de poesias Ah! Mérica e me chamou para começarmos o trabalho de adaptação. Por problemas pessoais dele, o projeto foi sendo adiado, e, um ano depois, ele me procurou novamente com outra proposta. Em princípio iria ser feita uma coletânea de Fernando Pessoa, mas, pesquisando, Raul enxergou relações entre Lorca e Pessoa que o interessavam: a cultura ibérica, a história de ambos, sua homossexualidade, sua profundidade. Raul sentiu essa necessidade de resgatar suas raízes, também ibéricas. Ele selecionou os textos com a pesquisadora Marília Librandi Rocha, especialista em cultura ibérica, e juntos realizamos a fusão dos dois poetas, a costura do espetáculo. Foi um momento íntimo de criação. O personagem deste espetáculo era o próprio Raul, um ator refletindo sobre a angústia de sua geração.” Um Certo Olhar - Pessoa e Lorca iniciou sua temporada no Teatro Alfa em São Paulo, foi apresentada na Muestra de Teatro Del Mercosul, no Uruguai e, em Portugal, no Teatro São João do Porto.

1999

Um Certo Olhar - Pessoa e Lorca Teatro Alfa Direção: José Possi Neto


vania toledo


raul + leonardo “Encenar Shakespeare é a maior realização para um ator. E para mim chegou o momento de encenar uma de suas maiores criações – Rei Lear, esse ‘personagem das personagens’, com o qual sempre sonhei e para o qual venho me preparando desde que me conheço por ator.” Essas são as palavras que abrem texto de Raul Cortez no programa do espetáculo. Foi por meio de sua filha Ligia que Raul reencontrou Ron Daniels, brasileiro, radicado nos Estados Unidos, e um dos diretores da Royal Shakespeare Company, que veio especialmente para a montagem da peça. O espetáculo tinha uma realização incomum nos palcos brasileiros, reunindo 25 atores e uma equipe de 151 pessoas. A contemporaneidade do espetáculo era ressaltada por Ron Daniels, que também assinava a tradução e a adaptação. As filhas do rei eram interpretadas por Bianca Castanho (Cordélia), Lu Grimaldi (Goneril) e Ligia Cortez (Regana) – na marcante experiência de representar esse papel com o próprio pai. O cenário de J. Serroni acompanhava os quatro momentos do caminho percorrido por Lear, do requinte e empostação da corte ao caos final. Seus figurinos, aliados às precisas marcações do diretor, criavam composições visualmente deslumbrantes. Mas, naturalmente o espetáculo era de Raul. A encenação tinha uma força e uma energia raramente alcançadas no teatro brasileiro. A loucura de Lear era representada com tal intensidade que, nas coxias, o elenco se acotovelava para assistir. Raul ficava tão exaurido com o personagem que necessitava de sessões de relaxamento para voltar ao normal. Da corte de Lear fazia parte Leonardo Franco, como o Duque da Cornualha. Ao saber da produção fez contato com Raul e foi chamado para um teste com o diretor. Segundo ele foi uma experiência inesquecível participar da construção do espetáculo. Uma superprodução, com um elenco enorme e um diretor com uma forma muito especial de encenar: “Ron é milimétrico, a produção era um relógio. Foi um sucesso gigantesco, só nos apresentamos para casas lotadas”. Leonardo participou de toda a temporada do espetáculo. De volta ao Rio, recebeu um telefonema de Raul convidando-o para a festa de encerramento da peça. Era dia 4 de julho de 2001, e Leonardo Franco disse a ele: “Raul, acabo de comprar uma bela casa em Botafogo. Vou construir meu teatro.”

arquivo Leonardo Franco

rei lear

Na foto: Raul e Leonardo, 2000

2000

Rei Lear De William Shakespeare Teatro Sesc Vila Mariana Direção: Ron Daniels


jo達o caldas


entreato

E

ntre o Lobo e Lear, muita coisa aconteceu com Leonardo Franco. A mordida do Lobo fez uma marca indelével na sua pele, e acendeu ainda mais seu interesse pelo teatro. Quando a temporada de viagens do Lobo acabou, Leonardo ficou órfão, e se deparou com a dura realidade de ser um jovem ator buscando espaço. Essa busca o levou a ter um sonho, que se tornou uma fixação e uma obsessão: construir um teatro. Paralelamente, soube que Borghi havia escrito uma versão feminina do Lobo, mas que não a tinha mais. Saiu então à procura do texto e encontrou-o na Biblioteca Nacional, com o nome originalmente dado pelo autor: Brilho Oculto, e combinou com Borghi que iria encená-la. Com essas duas propostas na cabeça, Leonardo saiu a campo para abrir seu espaço. Chegou a dar início à produção da Loba, mas percebeu que aquele ainda não era o momento para fazer a peça. Ao assistir ao filme Fiel Camareiro, originalmente uma peça de teatro, o ator viu as possibilidades interpretativas do personagem Norman e saiu à procura do texto. No SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais), soube que o contato com o autor havia sido feito recentemente devido a uma pessoa interessada, mas que havia desistido. Leonardo comprou os direitos da peça, e para produzila vendeu seu carro e duas linhas telefônicas. O espetáculo é sobre uma trupe de teatro que se apresenta durante a guerra. Norman é o camareiro de Sir, um famoso ator, agora velho, irascível e despótico, que não perde a oportunidade de maltratá-lo, embora dependa dele para tudo. Numa das mágicas superposições que frequentemente acontecem no teatro, a peça que a trupe vai encenar é Rei Lear. O Fiel Camareiro, com direção de Paulo Affonso de Lima e tendo Fabio Sabag como Sir, estreou no dia xx de Novembro de 1993 no Teatro Villa-Lobos e foi um sucesso, permanecendo seis meses em cartaz. Leonardo trouxe para a estreia o autor Ronald Hardwood, que fez rasgados elogios à sua atuação: “Norman é o personagem com o qual a plateia deve se identificar, simpatizar. Precisamos gostar de Norman, torcer por ele, estar do seu lado. Ele deve ser o dono do palco, do contrário, tudo está perdido. E, nessa produção, por causa do desempenho majestoso de Leonardo Franco, nada se perde. Quem se diz um apreciador de teatro deveria vê-lo trabalhando.

Observe a precisão dos seus gestos, sugerindo, tão sutilmente de início, a efeminação de Norman, o lampejar de seus olhos, seus movimentos faciais, a agitação de suas mãos, à medida em que ele cativa com agrados, intimida, ameaça e finalmente convence Sir a representar Rei Lear. Leonardo tem um dom que só os atores de primeira classe possuem, e que é o sentido de ritmo. Leonardo e Fabag criaram, entre eles, uma cumplicidade comovente. A cena final não poderia ser melhor interpretada.” Em 1997, Leonardo Franco conheceu Gianfrancesco Guarnieri durante as gravações de Canoa de Bagre, novela da TV Record, na qual interpretava seu filho. Guarnieri sempre falava da peça que estava escrevendo com seu filho Cacau, dizendo que nela havia um papel para Leonardo. Era o protagonista. Numa produção da Cia. de Arte, a peça estreou na Sala São Luiz em xxxx de 1998, com direção de Roberto Lage. Foi um trabalho difícil, o texto era complexo e Leonardo se lembra de que só conseguiu compreender mesmo o seu papel a 4 dias da estreia... De 1990 a 2006, Leonardo Franco participou como ator dos espetáculos de teatro: O Último dos Homens, Engraçadinha - Seus amores e seus pecados, No Bosque do Coração do Brasil, Trair e Coçar é só Começar, Tem um Psicanalista na Nossa Cama, Tango, Bolero e Chá Chá Chá, e Querelle. Na TV Globo participou da novela Torre de Babel e das minisséries O Portador, Contos de Verão, O Quinto dos Infernos. Na TV Bandeirantes atuou na novela O Campeão. Na TV Manchete participou da minissérie A Ilha das Bruxas, e da série Incrível, Fantástico, Extraordinário. Na TV Record atuou nas novelas Direito de Vencer e Canoa do Bagre. Além dos já citados, foi responsável também pela produção de mais de 20 espetáculos, entre eles: O Mercador de Veneza, com direção de Amir Haddad; Yerma, direção de Eduardo Wotzik; Roberto Zucco, direção de Moacir Chaves, O Homem que viu o Disco Voador, direção de Aderbal Freire-Filho; Sonata Kreutzer; e Os Inimigos Não Mandam Flores de Pedro Bloch. Mas seu maior passo como ator e produtor aconteceria com a realização das duas missões a que se propusera no início de sua carreira, logo depois do Lobo.


1993

paulo jabur

O Fiel Camareiro De Ronald Harwood Teatro Villa-Lobos, RJ Direção: Paulo Afonso de Lima. Na foto: Fabio Sabag e Leonardo Franco

1997

serginho massa

Anjo na contramão De Cacau Guarnieri e Gianfrancesco Guarnieri Sala São Luiz Direção: Roberto Lage Na foto: Gianfrancesco Guarnieri e Leonardo Franco


a construção de um sonho

O

Solar de Botafogo é a materialização do sonho acalentado anos a fio por Leonardo Franco e que, até para os amigos mais íntimos, soava como uma utopia: o desejo de ter o seu próprio teatro. A compra do casarão da Rua General Polidoro, 180, em 2001, foi o primeiro passo para a construção de seu sonho. Em seguida, convidou o cenógrafo e arquiteto J.C. Serroni para desenvolver o anteprojeto do espaço, que, num primeiro momento, abrigaria apenas o teatro. O projeto executivo foi entregue a José Dias, Doutor em caixa-cênica. Para viabilizar a vontade de Leonardo de construir um teatro com palco italiano e todos os elementos que compõem uma caixacênica tradicional, a solução encontrada foi lançar mão do terreno de fundo do imóvel para erguer um edifício teatral de 4 andares, com 14,5m de altura – quatro metros mais alto que a construção original. No decorrer do projeto executivo, foi constatado que a opção deixava áreas livres, com potencial para abrigar outros espaços. Foi também aumentada a capacidade do teatro com a construção de uma plateia superior e de um camarote de cinco lugares, no terceiro nível do auditório, onde ficam instaladas as cabines de som e luz. Entre a compra do imóvel e o licenciamento da obra pela Prefeitura do Rio, foram necessários três anos de espera. Tempo de sobra para converter a angústia da espera na generosa rede de colaboradores e apoiadores que tornaria viável a construção do SOLAR sem o auxílio de patrocinadores. Após o término da demolição e do assentamento das fundações, Leonardo percebeu que devia criar um diferencial que transformasse o empreendimento em algo inteiramente novo. Nesse momento surgiu a ideia de transformar o próprio espaço num evento, onde o público tivesse a oportunidade de se envolver com o universo das artes cênicas, plásticas e cinematográficas, apreciando arquitetura, decoração, literatura, música e gastronomia num mesmo lugar, durante o ano inteiro.

Desta forma, saindo dos padrões tradicionais e utilizando como tema principal o universo do ator no exercício de seu ofício, foi reunido um verdadeiro dream team de arquitetos para decorarem os principais ambientes do Solar de Botafogo. Caco Borges criou a ambientação do Teatro Solar; Chicô Gouvêa, a do caféconcerto; Flávia Santoro e Danielle Parreira ficaram com o lounge; Alexandre Lobo e Fábio Cardoso, com a Galeria de Arte Vertical; Maurício Prochnik, com os camarins; Cláudia Brassaroto projetou os banheiros públicos, Alexandre Murucci, o elevador e a bilheteria e Susi Barreto e Claudio Pedalino, o hall de entrada. Mesmo trabalhando dentro de uma visão integrada, os nove arquitetos souberam criar um diferencial para cada recanto do SOLAR, fazendo dele um espaço de exposição permanente de arquitetura de interiores. A construção do Centro Cultural Solar de Botafogo consumiu 30 meses até o dia de sua inauguração, em 17 de outubro de 2006. O primeiro espetáculo encenado no Teatro Solar foi Campo de Provas, de Aimar Labaki, que estreou no 31 de janeiro de 2007. Dirigida por Gilberto Gawronski, a peça tinha no seu elenco Leonardo Franco, Guilhermina Guinle e Marcos Winter e Claudia Lira, e foi indicada ao Prêmio Shell na categoria melhor autor. Dentre os principais espetáculos teatrais realizados nestes quatro anos de funcionamento, destacam-se: Diálogos com Molly Bloom, Depois da Chuva, Jozú - O Encantador de Ratos, As Nove Partes do Desejo, Limpe Todo Sangue Antes que Manche o Carpete, Primeira Chuva no Deserto, Traição, Play - Sexo , Mentiras e Videotape, Adorável Desgraçada e Marlene Dietrich - As Pernas do Século. Pela construção do Solar de Botafogo, Leonardo Franco foi contemplado com o Prêmio Shell 2007, na Categoria Especial.


leonardo franco


2007

De Aimar Labaki Teatro Solar de Botafogo Direção: Gilberto Gawronski Na foto: Guilhermina Guinle e Leonardo Franco. O espetáculo foi indicado ao Prêmio Shell de melhor autor

guga melgar

Campo de Provas


2009

De Harold Pinter Teatro Solar de Botafogo Direção: Ary Coslov Na foto: Isio Ghelman e Leonardo Franco que foi indicado ao prêmio Shell de melhor ator

guga melgar

Traição


do lobo ao lobo Logo depois da estreia de Campo de Provas, o primeiro espetáculo encenado no Teatro Solar, o autor Aimar Labaki perguntou a Leonardo Franco qual seria seu próximo projeto. O ator respondeu que precisava descansar, mas que tinha, sim, uma idéia, um texto que guardava há anos: Loba de Ray-ban. Aimar espantou-se: “Esse texto existe mesmo?” – e teceu uma longa consideração sobre o Lobo, para ele um dos espetáculos mais importantes do teatro brasileiro e sobre o qual havia feito uma crítica, na época da estreia em São Paulo. Na continuação da conversa, Aimar perguntou a Leonardo quem seria a Loba, e ele respondeu que não sabia, mas que teria que ser uma grande atriz. Aimar nem titubeou: “E porque não Christiane ? Vou estar com ela hoje! “ Ao saber do texto, Christiane adorou imediatamente a ideia, e os dois atores partiram para viabilizar o espetáculo. No período de preparação da Loba, Leonardo ainda participaria de mais um espetáculo no Solar: Traição, de Harold Pinter, com direção de Ary Coslov. Segundo ele: “Foi uma revelação. O universo de Pinter exige uma interpretação meticulosa, cheia de pequenas pausas e silêncios. Aprendi a não ter pressa, usufruir o tempo necessário para a construção de cada cena. E quando o ator se apodera do tempo cênico e transforma pausas e silêncios em aliados, ele se torna um interprete mais poderoso”. O espetáculo ficou oito meses em cartaz e Leonardo foi indicado ao prêmio Shell de melhor ator. A persistência de Leonardo Franco o levou a construir o teatro que tanto queria e a aguardar 18 anos para concretizar a Loba de Ray-ban. Ele assegura que em 2020 será o Lobo, alguém duvida?


renato neto


christiane + possi

fotos: joão silveira ramos

10-43 EXTASIS

Em Lobo de Ray-ban, José Possi Neto e Christiane Torloni tiveram um encontro definitivo. Ele era o diretor atento e sensível que ela sempre buscara, ela era a parceira perfeita para um encenador com especial interesse no teatro físico. Segundo Possi: “Passei a nutrir a vontade de trabalhar de novo com ela. Porque o meu trabalho com o ator é um trabalho de 360 graus. É muito físico, total, em que o corpo inteiro está ao serviço da emoção, ao serviço da expressão. E a Christiane tem esse tipo de raciocínio dentro dela. Tem a disciplina do bailarino. Tem a atitude estoica do atleta apolíneo. Ela é uma atriz que se expõe.” Em 1993, Christiane estava morando em Portugal, e Possi foi visitá-la. Ao retornar ao Brasil, ele lhe escreveu uma carta de

oito laudas. A atriz começou a enviarlhe referências de leituras que vinha realizando, mais ligadas à Filosofia, à Poesia e à Física Quântica do que ao teatro. Desse diálogo foi construído o roteiro de 10-43 Extasis, uma referência ao primeiro bilionésimo de segundo que se seguiu após a origem do universo, a primeira fagulha de tempo que o homem conseguiu mensurar. O enredo era inspirado em um dos contos de Maldoror de Lautréamont. É a história de um hermafrodita que dorme na floresta e é perseguido por quatro guardas, interpretados pelos atores portugueses Rui Luís Brás, Samuel Esteves, Augusto Portela e Pedro Homem de Melo. O personagem é preso, torturado e submetido a um interrogatório, mas, em

vez de reagir com violência, começa a falar da sabedoria do Mundo, dos homens e do Universo. Nesse processo, os quatro algozes transformam-se praticamente em quatro apóstolos. Para fazer o papel, Christiane passou por uma metamorfose: cortou os cabelos e trocou seu ar tão feminino por um visual andrógino, como o personagem exigia. A peça, classificada provocativamente por Possi como “porno-onírica-clássica”, estreou em 10 de novembro de 1993, reabrindo o Teatro Nacional São João, no Porto. O espetáculo sofreu uma reação enciumada da classe teatral portuguesa, mas foi muito bem recebida pelos jovens, que atiravam cravos vermelhos ao fim das apresentações. Foi apenas o primeiro trabalho de uma parceria quanticamente metafísica.



christiane + possi Salomé é um poema dramático escrito por Oscar Wilde para a atriz Sarah Bernhardt, em 1893. Possi sempre havia pensado em encenar este espetáculo e viu em Christiane a atriz perfeita para o papel. Depois da personagem andrógina de Extasis, Salomé era uma volta ao arquétipo feminino da sedução e do encantamento. No texto de Wilde, a personagem apaixona-se pelo profeta João Batista, e ao ver seu amor rejeitado, exige sua cabeça numa bandeja: “Enquanto João Batista é o primeiro elo da cristandade, Salomé representa o último passo da liberdade pagã”, afirmou Possi Neto às vésperas da estreia. “Ela é uma sacerdotisa da Lua, uma mulher arrebatada por uma paixão obsessiva, que desencadeia uma terrível tragédia”, disse Christiane. Na encenação de Possi, os atores pontuavam o texto, delirantemente poético, com gestos e movimentos não realistas, numa coreografia constante. O clímax do espetáculo era a Dança dos 7 Véus, para a qual Christiane fez aulas particulares de dança do ventre por dez meses.O cenário de Felippe Crescenti, inspirado na cisterna da Basílica de Istambul, a partir de uma sugestão de Possi, era um espelho d’água que duplicava cada movimento do elenco. Salomé estreou em fevereiro de 1997 no Teatro FAAP, em São Paulo, e foi um grande sucesso. Participavam do elenco Luiz Melo, Tuca Andrada, Claudia Schapira, Caco Ciocler, Luís Miranda, Lais Galvão e Augusto Vieira. Foi o primeiro espetáculo produzido no Brasil por Christiane, que realizou também uma exposição com fotos de Vania Toledo e um livro que registrava o espetáculo e a pesquisa realizada por Denise Mattar. A cenografia recebeu os prêmios Sharp, Shell e Apetesp e a iluminação de Wagner Freire recebeu o prêmio da Cultura Inglesa. A parceria entre Possi e Christiane ganhou laços ainda mais fortes com Salomé. Em entrevista da época afirmava Christiane: “Para mim, a relação com um diretor teatral é como a de um amante, está baseada acima de tudo na confiança. E com o Possi eu me entrego de olhos fechados.” O diretor devolvia os elogios, creditando à Christiane a inspiração cênica de Salomé. “Ela é a musa que sempre me fascina com sua inteligência, beleza e mistérios.” O espetáculo Salomé permaneceu um ano em cartaz viajando para as principais capitais brasileiras.

fotos: vania toledo

salomé

Na foto: Possi ensaia com Christiane


Na foto: Augusto Vieira, Betinho SodrĂŠ, Jorge PeĂąa, Christiane Torloni e Caco Ciocler


christiane + possi Um ano e meio depois de Salomé, Christiane estava em Nova York fazendo uma pesquisa teatral quando o livro The second coming of Joan of Arc, de Carolyn Gage, chegou às suas mãos, por acaso. Segundo a atriz, Gage usa a personagem histórica para contar uma história de nosso tempo. “Gage vira o mito de cabeça para baixo. O texto é sagaz, veloz, muito veloz, e fala verdades terríveis, de uma maneira inteligente e bem-humorada. Joana conversa com a plateia, literalmente. É um papo sobre os valores que mudaram, se eles mudaram, se eles não mudaram”. Imediatamente decidiu produzir e protagonizar o espetáculo, que recebeu o nome de Joana Dark - a Re-volta. Para fazer a tradução e a adaptação do texto, chamou Rodrigo e Maria Adelaide Amaral, e naturalmente convidou Possi para dirigi-la. Antes mesmo de definir os detalhes da peça e para compor o personagem, a atriz foi fazer aulas de esgrima com o preparador Renato Rocha. O processo corporal sempre a ajudou a descobrir o personagem ou, como ela prefere, o personagem a descobri-la, e desse processo nasceu mais um dos ícones femininos vividos por Christiane. Joana Dark - A Re-volta estreou em 30 de março de 2000 no Teatro FAAP e marcou a quarta parceria com o diretor José Possi Neto. Na peça, a heroína francesa do século XV dialogava com o século XXI. Por isso, na encenação, em vez de cavalos, Possi colocou motos. A maior parte do texto é dito numa cela, num espaço exíguo, e, para tornar a ação mais presente, o diretor amparou o monólogo na movimentação física da atriz, apoiada em alguns momentos por quatro atores bailarinos. Mais uma vez o espetáculo foi um sucesso e reforçou o trabalho da dupla. Possi, no programa da peça, escreveu: “Nossa obsessão pela verdade, pela qualidade e pelo perfeccionismo são uma lei.Então, se o personagem me seduz, a atriz me apaixona e o Teatro é o meu vício, só me resta mergulhar no delírio agônico de mais esta criação e com ela aprender mais uma vez a SER”. O livro que acompanhou o espetáculo, escrito por Denise Mattar, trazia fotos de Tripolli, uma cronologia da verdadeira Joana D’ Arc e textos comparativos mostrando que Gage escreveu sua peça efetivamente baseada nos autos de condenação da legendária heroína. O espetáculo Joana Dark permaneceu um ano em cartaz viajando para as principais capitais brasileiras.

fotos: tripolli

joana dark

Na foto: Possi e Christiane



christiane + possi Blue Room, de David Hare, é uma releitura contemporânea de Der Reigen de Arthur Schnitzler mais conhecida como La Ronde. Apresentada pela primeira vez em 1921, a peça causou escândalo pelo conteúdo sexual, e seu autor foi preso por obscenidade. A montagem inglesa, da versão de Hare, foi apresentada, pela primeira vez, no final da década de 1990. Estrelada por Nicole Kidman e dirigida por Sam Mendes, a peça não foi censurada, mas, a rápida cena de nudez da atriz tornou a peça um sucesso. Blue Room segue de forma bastante literal o original de Schnitzler, e sua maior inovação é que a encenação é feita pelo mesmo casal de atores, que se revezam nos papéis. A versão brasileira de Blue Room estreou no Tuca, em São Paulo, em 27 de junho de 2002, tendo como protagonistas Christiane Torloni e Murilo Rosa, com quem a atriz já havia trabalhado no filme Ismael e Adalgisa. Foi a quinta parceria entre Possi e Christiane. Os atores encenavam dez encontros de casais com histórias de vida e condições sociais diferentes, mas interligados – o que, às vezes, eles não sabem. O primeiro encontro se dá entre uma prostituta e um motorista. O mesmo motorista transa com a empregada, que transa com o filho da dona da casa, que transa com a amiga da mãe e assim por diante até chegar à atriz, que mantém relações sexuais com o motorista, que volta a se encontrar com a prostituta. O sexo nunca era explicitado, e o que ficava em evidência era o poder da sedução e do desejo. José Possi Neto apoiou essas cenas no seu amplo conhecimento do mundo da dança. Elas eram apresentadas em coreografias sensuais embaladas por uma trilha sonora quentíssima. Christiane Torloni e Murilo Rosa passavam de personagem para personagem, exercendo sua capacidade de mudar da comédia quase caricatural a cenas melancólicas, e a sensualidade que deleitava a plateia era algo que passava longe da coxia, que mais parecia uma sessão de comédia, já que os dois atores precisavam se desdobrar para fazer as trocas de roupa a tempo. Contribuía muito para a encenação o cenário de Jean Pierre Tortil, no qual uma esteira rolante acentuava o clima dessa ciranda sexual. O encontro entre a modelo e o escritor trazia a rápida cena de nudez dos atores, tratada de forma extremamente delicada pela iluminação de Wagner Freire. Sem polêmicas e escândalos, Blue Room foi um sucesso. O espetáculo Blue Room permaneceu 4 meses em cartaz em São Paulo.

fotos: tripolli

blue rooM

Na foto: Possi e Christiane


Nas fotos: Christiane Torloni e Murilo Rosa


christiane + possi Em 2004, Christiane viveu um novo desafio na peça Mulheres por um fio, em que interpretava três monólogos baseados em textos de natureza completamente diversa, tendo em comum apenas um telefone na mão. A Voz Humana, do dramaturgo Jean Cocteau, trazia a mulher trágica, que perdeu o seu amor e que enlouquecida tenta recuperá-lo. Um Telefonema, da escritora Dorothy Parker, é a história da moça sonhadora, misto de menina e mulher, que tenta trapacear com Deus enquanto aguarda o telefonema que não chega. Pour Elise ou Uma Mulher do seu Tempo foi escrita especialmente para o espetáculo pelo ator e dramaturgo Miguel Falabella. Às voltas com o ex-marido, a filha, o namorado, a mãe, o massagista, o cirurgião plástico e três telefones celulares que tocam incessantemente, ela garantia boas risadas à plateia. “Na primeira leitura, em minha casa, Chris e eu nos apaixonamos pela torrente absurda de emoção, hilariante e dolorida que jorrava da boca de Elise, interpretada por Miguel”, dizia em entrevista da época o diretor José Possi Neto. A encenação foi acompanhada de uma exposição de Jairo Goldflus que realizou um esplêndido ensaio fotográfico da atriz com figurinos de Fábio Namatame. A cenografia de Jean Pierre Tortil garantia as mudanças completas do ambiente em cada cena. O diretor José Possi Neto tinha em mente o projeto para encenar a peça há pelo menos seis anos, antes mesmo de Joana Dark. Mas foi preciso exercer a paciência do amadurecimento para que a sexta parceria da dupla se materializasse. O espetáculo estreou no Teatro Renaissance dia 3 de setembro de 2004, em São Paulo, e depois foi encenado no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro. O espetáculo Mulheres por um Fio permaneceu um ano em cartaz viajando para as principais capitais brasileiras.

fotos: lenise pinheiro

mulheres por um fio



fabiano accorsi

fotos: tripolli


o reencontro


A

A


ficha técnica

Texto Renato Borghi Direção José Possi Neto Elenco Christiane Torloni

Leonardo Franco

Maria Maya Renato Dobal Ana Lopes Dias/Renata Novaes Cenografia Jean-Pierre Tortil

Figurinos Fabio Namatame Trilha Sonora Tunica Teixeira e Aline Meyer Iluminação José Possi Neto Fotografia Luiz Tripolli/João Caldas Programação Visual Denise Mattar e Ana Lucas Assistente de Direção Suzana Mafra 2° Assistente de Direção Ana Lopes Dias Visagismo Fabio Namatame Preparação Corporal Suzana Mafra Assistente de Cenografia Paula Izzo Assistente de Figurino Rebecca Beolchi Adereços de Figurino Antonio Océlio de Sá Alencar Execução Cenográfica, Adereços e Pintura de Arte FCR Produções Artísticas Ltda

Luis Rossi e Fabio Brando Operação de luz Adriano Tosta/Robson Bessa Operação de som Solange Mendes/Guilherme Varela Maquinistas/contra-regras Julio Cesar Souza de Oliveira, Rodrigo Nascimento,

Wellington Nunes Pinheiro, Alexandre Torres, Cicero André

Rodrigues, Marco Antonio Silva, Carlos Elias Camareira Conceição Telles, Terezinha Santos, Miriam Bento dos Santos Cabeleireiro MG Hair Perucas Hi-Fi Administração Financeira Andreia Fernandes Assessoria Jurídica Dr. Roberto Halbouti - HKP Halbouti e Kerr Pinheiro

Advogados Associados Direção de Produção José Luiz Coutinho e Elza Costa, Edinho Rodrigues e Norma Thiré Produção Executiva Wagner Pacheco, Thiago Morenno Assessoria de Imprensa Morente Forte (SP), Liège Monteiro (RJ) Realização Centro Cultural Solar de Botafogo

Christal Produções Artísticas

roteiro musical Concerto para Piano e Orquestra nº2 - Opus 18 Rachmaninov (0m50s) Tom Tom’s Dream Jon Hassel (01m30s) Avenue X - Prologue Ray Leslee (0m40s) Suite nº2 para Violoncelo in D Minor, BWV 1008 J. S. Bach (0m40s) Fratres for Violin, String Orchestra and Percussion ARvo Part (01m30s) Betsy Bernard Hermann (0m15s) Sunset Boulevard Andrew Lloyd Weber (0m30s) Pro Dia Nascer Feliz Roberto Frejat/Cazuza (1m35s)


1986

De Janete Clair TV Globo Direção: Walter Avancini e Denis Carvalho Na foto: Christiane Torloni como Fernanda no remake de Selva de Pedra. O papel era, na versão original, interpretado por Dina Sfat

arquivo Christiane torloni

Selva de Pedra


loba de ray-ban

Renato Borghi

Freddy kleeman

Q

uando escrevi o Lobo de Rayban, mostrei o texto a várias pessoas para ouvir suas opiniões; uma delas foi Dina Sfat, uma amiga querida, atriz maravilhosa, com quem trabalhei no Rei da Vela. Até hoje me lembro dela vestida de terno branco, com o rosto igualmente branco, e imensos olhos debruados de negro. Ao ler o texto para Dina, ela me surpreendeu dizendo que adoraria encenar o espetáculo – se ela fosse A Loba. Aceitei o desafio de reescrever o texto, mas foi muito difícil, não era uma mudança simples. Trechos inteiros tinham que ser substituídos. Ricardo III transformou-se na Medeia, Eduardo II, nas Criadas. Fui buscar novas imagens; as imagens das gloriosas mulheres do teatro brasileiro: Cacilda Becker, Maria Della Costa, Tônia Carrero, Bibi Ferreira... um verdadeiro matriarcado! Demorei oito meses nesse processo, e quando terminei a Loba, que chamei de Brilho Oculto, Dina estava doente e não podia realizá-lo. Um dia mostrei o texto original para Raul Cortez, que o agarrou imediatamente – como um lobo. Com Raul, Possi e Christiane o espetáculo foi um enorme sucesso. Tempos depois Leonardo Franco, que fizera Fernando nas viagens do Lobo, me procurou pensando em encenar a versão feminina. Concordei com uma única condição, a de que a protagonista fosse uma grande estrela. Passados tantos anos está aí agora Christiane Torloni, com sua garra e carisma, uma lutadora – que tanto me lembra Dina. Nesse espetáculo, que é o teatro dentro do teatro, é maravilhoso ver esse grupo todo reunido novamente: Leonardo, Christiane, Possi e Dobal. Maria é um novo dado, como Fernanda foi para Paulo e Júlia. É uma experiência inesquecível para um autor, e, tenho a certeza de que também o será para os espectadores.

1967

O Rei da Vela De Oswald de Andrade Teatro Oficina Direção: José Celso Martinez Corrêa Na foto: Dina Sfat


maria maya fernanda

M

aria nasceu numa grande alcateia, é filha do diretor Wolf Maya (lobo até no nome) e da atriz e diretora Cininha de Paula, sobrinha do humorista Chico Anysio e prima dos atores Marcos Palmeira e Bruno Mazzeo. Foi criada nas coxias dos musicais produzidos pela família, como Blue Jeans e Splish Splash. Acompanhou todas as temporadas, ensaios e mudanças de elenco de As Noviças Rebeldes. Dos pais herdou o olhar consciente de que a profissão envolve muito mais incertezas do que glamour. Viu muitas vezes sua família vender bens para produzir espetáculos, e, por isso, quando era muito jovem, pensou em se tornar administradora – mas a paixão pelo Teatro venceu. Maria começou como ginasta e bailarina, participou da equipe de ginástica olímpica do Flamengo, formou-se com Dallal Aschar, dançou com Renato Vieira e Betina Guelman e estudou em Nova York na Steps on Broadway e Broadway Dance Center. Seu primeiro trabalho foi no espetáculo A Menina e o Vento, de Maria Clara Machado, dirigido por Cininha de Paula, em 1995. Na televisão estreou aos 14 anos na telenovela Cara e Coroa, 1995, seguida de Salsa e Merengue, 1996; Chocolate com Pimenta, 2003; Senhora do Destino, 2004; Cobras e Lagartos, 2006; e Caminho das Índias, 2009. Atuou também nas minisséries Hilda Furacão, A Muralha e O Quinto dos Infernos. Estudou Artes Cênicas na UNIRIO e já na escola se interessava por um teatro mais reflexivo. Certa de que sua opção não seria fácil de conseguir, Maria, aos 17 anos resolveu produzir um espetáculo, com texto de Caio Fernando Abreu. Na ocasião, assistiu A Dama da Noite, do mesmo autor, encenada por Gilberto Gawronski, e ali encontrou o diretor que buscava. Realizado a partir de dois contos de Caio e dirigido por Gawronski, Do outro Lado da Tarde estreou em 1997 e permaneceu em cartaz até 1999 nos teatros Casa da Gávea e Porão do Laura Alvim. Em 2001 fez parte do elenco da comédia Tudo no Escuro, de Peter Shaffe, com direção de Marcus Alvisi. Em 2006, numa parceria com a Imprecisa Companhia, fez a produção de

Não existem níveis seguros para o consumo destas substâncias, de Daniela Pereira de Carvalho, com direção de Tato Consortti. O espetáculo, no qual Maria fazia a personagem Cecília, recebeu o Prêmio Eletrobrás de Teatro como o melhor texto daquele ano. Participou, em 2007, de Modelos para a(r)mar, com direção de Jefferson Miranda, no Festival Rio Cena Contemporânea de Teatro. Atuou em Yolanda, 2008, com direção de Ernesto Piccolo, e começou a produção de Play - sobre sexo, mentiras e videotape, que estreou a13 de abril de 2009, no Solar de Botafogo. O texto, de Rodrigo Nogueira, encomendado por ela, foi livremente inspirado no filme de Steven Soderbergh. Com direção de Ivan Sugahara, a peça foi indicada aos prêmios Shell e APPR de melhor texto, e nela Maria fazia o papel de Cíntia, que trai a irmã com seu cunhado. Numa linguagem contemporânea, Play questiona verdades e mentiras, misturando realidades, sonhos e fantasias dos personagens e de outras pessoas. O jornal O Globo considerou Play uma das melhores peças em cartaz no Rio de Janeiro, e a revista Bravo! elegeu o espetáculo como uma das melhores peças apresentadas em São Paulo. A bem-sucedida montagem viajou por várias cidades brasileiras entre 2009 e 2010, estando prevista nova temporada em 2011. Ainda em 2008, Maria foi convidada por Christiane Torloni a fazer um teste para Fernanda de Loba de Ray-ban; e agarrou a oportunidade com dentes e garras. Fez uma leitura tão impactante que não deixou nenhuma dúvida quanto à sua seleção. Emblematicamente, quase na mesma época, foi escalada para viver Inês, na novela Caminho das Índias, que estreou em janeiro de 2009. Sua personagem era uma jovem que se vestia e se comportava de maneira extravagante para chamar a atenção da mãe, Melissa, interpretada pela loba Christiane. As duas personagens fizeram grande sucesso junto ao público, e deram às atrizes a oportunidade de estabelecer uma grande cumplicidade. Uma superposição mágica, armada pelos deuses do teatro. O personagem do jovem Fernando, que tinha sido tão problemático na montagem original do Lobo, ganhou cores fortes na versão feminina e na interpretação segura de Maria Maya. Uma lobinha bem feroz – sem nenhum medo da alcateia.


andrĂŠ wanderley


chris + leonardo + maria


fotos: tripolli


tripolli


a encenação


O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor. Embora, inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento. Sem medida que eu conheça, o tempo é, contudo, nosso bem de maior grandeza. Não tem começo, não tem fim. Rico não é o homem que coleciona e se pesa num amontoado de moedas, nem aquele devasso que estende as mãos e os braços em terras largas. Rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não se rebelando contra o seu curso. Brindando antes com sabedoria, para receber dele os favores e não sua ira. O equilíbrio da vida está essencialmente nesse bem supremo. E quem souber com acerto a quantidade de vagar com a de espera que deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco de buscar por elas e defrontar-se com o que não é. Pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas.

tripolli

Raduan Nassar - Lavoura Arcaica Na voz de Raul Cortez



rubens cerqueira


A febre me deixa tonto Minha pele se incendeia, dilacerada Simone! Simone embebe o pano na água fria Refresca a minha fronte em brasa Parece que tudo perdeu o sentido Tudo que eu disse foi pensando... Meu argumentos exprimiam só a verdade Por que tudo parece tão inútil? Falso... inútil... falso...

tripolli

Marat - Sade, de Peter Weiss



fotos: alice bravo


fotos: rubens cerqueira



Eu era Medeia; abandonada por Jasão, o meu homem, o pai dos meus filhos; preterida por uma mulher mais jovem e poderosa: a filha do Rei. E tonta de ódio e ciúme, mas ainda presa àquele macho pelo desejo enfurecido de uma loba, compreendi Medeia, pela primeira vez, depois de duzentas apresentações! Entendi o quanto pode ser bom matar, dar a morte de presente a quem traiu um amor jurado.


rubens cerqueira


rubens cerqueira


lenise pinheiro


tripolli



tripolli


lenise pinheiro

Isso é o chão de um palco É um lugar sagrado para mim, continua sendo até hoje. Aqui está enterrado o que existe de pior: bêbados, loucos, marginais, assassinos, anormais, viciados... Mas não é para ter medo, não! O que seria do teatro sem os loucos? Um teatro de gente honesta, normal, seria um enorme fracasso de bilheteria. São os insubordinados que fascinam o espectador, são eles os personagens iluminados!



alice bravo

Ah, meu Estragon! Será que você se sentia tão abandonado quanto eu enquanto esperava Godot? Não sei... Guardo para sempre a imagem de Cacilda: desamparo e solidão!


Madame é o sol que me deslumbra todas as manhãs e ilumina meus dias. Madame é linda! O sorriso de Madame aquece o frio do mundo. Seus dentes são espelhos de pérola refletindo a espuma branca do mar. Madame é delicada, encantadora... É elegante. As roupas de Madame são as mais finas, as cores de Madame as mais suaves. Os cabelos de Madame são a moldura de um rosto puro de Madona! E a pele de Madame é seda pura... É o veludo das pétalas recendendo a essências raras... Madame é linda! Madame me encanta! Madame me entontece... Eu amo Madame acima de todas as coisas. As Criadas, de Jean Genet


rubens cerqueira


Eu sou Julia, Julia a passageira clandestina. A que nunca se deu a conhecer antes... A “outra�.


tripolli


fotos: alice bravo



alice bravo

Não voe para longe de mim, meu doce pássaro da juventude. Me projetei em você com tal força que na sua falta, não posso me retornar, ou me recuperar... Estou perdida para sempre... sem depois... Sem resto... Sem troco.


rubens cerqueira

O fantasma da ópera! Aquele que tinha o rosto corroído pelo ácido e usava a máscara para encobrir o horror de sua feiu ra!


alice bravo


Quantas vezes tive que me apagar em cena para deixar você brilhar... Covarde! Ficava me olhando espantado, testemunhando o meu incêndio, mas sem coragem de entrar no jogo! Sempre correto, cauteloso, os riscos calculados... Você é um bom ator, mas nunca será um “grande” Paulo, porque sua covardia é maior que o seu talento!


rubens cerqueira

Quero que você trepe comigo, nem que seja pela última vez, assim como você está, no meio da crise. Quero fazer amor com você neste palco que é a sua casa de verdade. Uma trepada de corpo presente nem que seja pela última vez...


alice bravo



tripolli


rubens cerqueira

Não saia de minha vida, não me prive de você! Não me proíba de você! Não suma, não fuja, não vá! Eu estava escondida no fundo do poço e você me trouxe à superfície; iluminou de paixão a minha vida; incendiou de beleza a minha noite... Fez com que eu acreditasse... que ainda...



fotos: alice bravo

Era s贸 o que faltava! Deixar de viver uma paix茫o por causa de uma velhinha...!


N達o me arrependo de nada. Nosso tempo foi rico, me fez ator, cresci, aprendi, amei, sofri... Foi muito bom o tempo que nos foi dado.


fotos: tripolli


Ah, Calderón, Calderón meu poeta, me ajuda! O que é a vida? Um frenesi? O que é a vida? Uma ilusão? Uma sombra, uma ficção? “Pois toda a vida é um sonho. E os sonhos, sonhos são!” Obrigada, poeta! Se a vida é sonho, sonhemos pois.


fotos: rubens cerqueira

E a Loba estreou! E viveu por um ano uivando só e abandonada pelos palcos inesquecíveis deste Brasil afora. Em alguns, reeencontrei a Salomé, em outros, a Joana Dark – incrível como a Física Quântica está certa... É só uma questão de dimensão. Estamos todos, passado e presente, por um átimo de segundo, juntos outra vez! Assim também com o Raul, meu Doce/Doido/ Livre/Lobo – desde os ensaios tão próximo, que foi parar em cena no retrato do camarim – no final já contracenávamos. Um ano – Muitos abandonos... Muitos começaram, poucos chegaram ao fim. É.... “O teatro é duro”, como dizia meu padrinho Alfredo Mesquita. Não é profissão, é sacerdócio. E para aqueles que persistem; um gesto de libertação deste mundo brutal e mesquinho. Tomo meu texto, minha partitura amada, que ao longo do tempo foi se transformando também em um diário. Choro e rio... Como os atores são loucos!?! Vejo as trilhas e os abismos pelos quais passei, conversando, quanticamente, com Glenn Gold, Cacilda Becker, Paulo Autran e Martha Grahan... Registrando “notas”que o Possi ia dando: “O palco é um reino só nosso”, “A rubrica sou eu” ou chorando no colo da Sarah Bernardt, meu pé imobilizado. Tanta superação... Tantos aeroportos... Como a Beatriz do Chico, chorando num quarto de hotel... Enfim, o Hino ao Teatro se transformou em show de rock’n’ roll da Cássia e do Cazuza, botando mais de 60 mil pessoas, e as lobetes do Torloni Star, para cantar e uivar... E entre mortos e feridos, mais loba do que nunca, também eu estou por um triz pro dia nascer feliz! Christiane Torloni


Estamos, meu bem, por um triz Pro dia nascer feliz. O mundo inteiro acordar e a gente dormir. Dormir. Pro dia nascer feliz Essa ĂŠ a vida que eu quis, O mundo inteiro acordar e a gente dormir Cazuza/Frejat


críticas do espetáculo Impossível não experimentar uma sensação de fascínio diante da bela cenografia que se avista na penumbra da imensa boca de cena do grande palco do Teatro Frei Caneca. Possi é um esteta do palco. Mas o público pode esperar bem mais do que beleza visual nesse espetáculo (...) Sentimentos como paixão e rejeição, quando atingem extremos, não são nada fáceis de serem interpretados. Uma cena, como há nessa peça, em que uma mulher se lança literalmente aos pés de outra pessoa e implora para não ser abandonada, pede uma qualidade de interpretação muito especial. Se a atriz não se lança plena, se fica a meio do caminho, nada acontece. Se decide “exibir” a dor, cai no ridículo, que se separa do patético, no sentido do “pathos” dramático, por uma linha tênue. É cena que pede despudor e senso de medida, visceralidade e domínio técnico, tudo ao mesmo tempo. E, pelo que se viu no ensaio, Christiane vive um momento de atriz capaz de alcançar tal diapasão. E tem nos atores Leonardo Franco e Maria Maya parceiros de cena à altura do protagonismo que a peça exige dela. Beth Néspoli O Estadao de S.Paulo 05 de novembro de 2009

Christiane Torloni na entrega do 4º Prêmio Contigo de Teatro. Eleita pelo júri popular como a melhor atriz pela peça Loba de Ray-ban, ela agradece a premiação ao lado da mestre de cerimônias, Lilia Cabral, e dos atores Thiago Lacerda e Susana Vieira que anunciaram sua escolha.

Renato Borghi é um colecionador de “sustos estéticos”. Não foi por acaso, portanto, que na montagem de o Lobo de Ray-ban de 1987, ele imaginou Christiane Torloni entrando em cena, sentada num balanço gigantesco, que rompia uma parede de papel e se lançava sobre a plateia. Era uma maneira de recordar o primeiro dos “sustos estéticos” que o teatro lhe proporcionou. A cena era uma citação da última aparição de Cacilda Becker em Seis personagens à procura de um autor, montada pelo TBC, em 1959, com direção de Adolfo Celi. Com a Loba de Ray-ban Borghi proporciona ao diretor José Possi Neto a oportunidade de provocar outros tantos “sustos estéticos” na plateia. O acerto começa com a cenografia de Jean-Pierre Tortil. A cena de um palco nu já seria suficiente. Mas ali estão: uma teia de cordas, onde será realizada a impactante cena de um estupro, uma cortina vermelha, que em certo momento servirá como figurino, um camarim, onde, delicadamente, Christiane Torloni deixou uma foto de Raul Cortez; uma ponte suspensa onde é encenado um trecho de Esperando Godot, e muitas outras surpresas.(...). O elenco é irrepreensível ao responder com brilho às intenções de autor e diretor. Maria Maya, a mais jovem da trupe, contracena de igual para igual com os colegas mais experientes. Leonardo Franco encara um personagem difícil com a segurança de quem acabou de sair de um trabalho ( Traição) que lhe deu uma indicação ao prêmio Shell. Mas a noite é de Christiane Torloni. Engraçada, irônica, trágica, delicada, sensível, ela não sai de cena durante todo o espetáculo. Madura, com um trabalho de expressão corporal de arrepiar e linda, Christiane Torloni, sozinha, já é um agradável “susto estético”. Artur Xexéo O Globo 20 de Julho de 2010.

Feliz a readaptação da peça o Lobo de ray-ban – dramaturgia bem-acabada do ator Renato Borghi – para a Loba de ray-ban. Literatura de peso e profundidade, especialmente para iniciados, que, num só ato de quase duas horas, homenageia, entre outros, Tchecov, Beckett, Genet, Eurípides, Vianinha, Weiis e Pirandello. Trata-se de teatro maior para quem gosta, conhece ou já sentiu na pele a crueza dos que fazem do palco a vida. A parceria do autor com o diretor José Possi Neto, ainda melhor madura, fez com que o essencial da trama de 1987 permanecesse. Mérito acrescido, naturalmente, à presença de Christiane Torloni e Leonardo Franco no elenco das duas versões. O quarteto refaz encontro que não se repete. (...) A loba de ray-ban é grandioso pelo conjunto. A surpresa é Maria Maya.(...) Intensa, de presença vertical a moça se agiganta ao lado de Torloni e assegura paixão e embate. Eleva a verdade construída ao nível de poder e fogo da protagonista. Jefferson da Fonseca Coutinho Estado de Minas 6 de dezembro de 2010


Loba de Ray-ban foi um grande sucesso de público, teve ampla cobertura dos meios de comunicação, críticas positivas e especial atenção da classe artística. Foram realizadas mais de 100 apresentações do espetáculo, que foi visto por mais de 60 mil pessoas, nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre, Salvador, Recife, Palmas, Caraguatatuba, Ribeirão Preto, Belo Horizonte .......... Christiane Torloni, Leonardo Franco, Equipe e Produção agradecem a confiança dos patrocinadores, apoiadores e amigos - sem vocês nada disso teria sido possível. Obrigado a todos!

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Idealização: Christiane Torloni Organização e textos: Denise Mattar

Programação visual Ana Lucas Kaminari Comunicação Produção executiva Celso Rabetti Produção Curatorial Denise Mattar

Realização Christal Produções Solar de Botafogo Paris 6

Fotógrafos Alice Bravo André Wanderley Dimas Schittini Emídio Luisi Fabiano Accorsi Freddy Kleeman Gastón Guglielm Geraldo Malheiros Guga Melgar João Caldas João Silveira Ramos Lenise Pinheiro Paulo Jabur Renato Neto Rubens Cerqueira Serginho Massa Tripolli Valdir Silva Vania Toledo



Lobo de Ray-Ban, de Renato Borghi, é a história de um triângulo amoroso, no qual existe um quarto elemento – o Teatro. O espetáculo foi encenado em 1988, com direção de José Possi Neto, tendo Raul Cortez no papel-título e a atriz Christiane Torloni interpretando Júlia, sua esposa. O espetáculo recebeu os Prêmios Molière, Mambembe, APCA e Apetesp de melhor autor e ator daquele ano. Nas viagens da peça pelo Brasil, entre 1989/1990, Leonardo Franco atuou como o jovem amante de Raul e, após o encerramento da temporada, descobriu que existia uma versão feminina da peça – que o autor não tinha mais. Localizou o texto e o guardou, decidido a encená-lo para fazer o segundo papel do espetáculo. Seu sonho só se realizou 18 anos depois, quando convidou Christiane Torloni para ser a Loba. A atriz aceitou imediatamente o desafio, tornando-se a co-produtora de Loba de Ray-Ban, encenada em 2010, com direção de José Possi Neto e com a participação de Maria Maya, como a jovem amante. Pelo espetáculo, Christiane Torloni recebeu o prêmio Contigo de melhor atriz pelo júri popular. Loba de Ray-Ban ficou um ano em cartaz, viajou por todo o Brasil e foi assistido por mais de 50 mil pessoas. Do Lobo à Loba fala sobre a alcateia que se formou a partir desses espetáculos, envolvendo o autor, o diretor e os atores numa história mágica – que ainda poderá ter uma continuação.


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