Ensaio sobre o salto: suicĂdio idĂlico porque estamos vivos e morreremos sonhando renascer
nas palavras
5 FRAGMENTOS DE UM CORPO QUE SE DESINTEGRA
Admitir os interstícios, acoplar-me a eles como algo túmido e incolor movendo-se por entre fibras de carne e delírio. Há dias escrevo sobre o corpo, o corpo tem me atraído magneticamente como a solidão dos anfíbios risos de cores mescladas. Corpoética é uma tessitura lenta e incompleta, semelhante à minha vó cosendo uma manta para quando viesse algum tempo esgueiro por entre as fazendas, vacas e pedra-de-três-pontas. Daí que vou me inscrevendo nesta dimensão à margem, a arte não pode poder aquilo que se tende a produzir não no corpo, mas fora dele. Fora do corpo há uma corporação de exaustões a agenciar modos visíveis e invisíveis de se estar. Outro dia mesmo teimei em adentrar nas formas visíveis de estar, é doloroso ser visto, por isso admito os interstícios. Falo sobre a escrita do impossível, esta que não se escreve, que não é gráfica, mas que nos é inscrita a ordens variadas de existências, muitas situadas em dimensões de coisas inúteis, mas produtivas, como o poder.
A corpoética ainda admite que se cosa a memória à álcool e maconha, pois só se lembra aquilo que se esquece, memória muito longa é a admissibilidade de uma existência que pode, se não tornada margem, tornar-se o poder. A corpoética ensaia uma irritabilidade com as formas e as cores, a justaposição das regras das mãos como mãos. Irritar-se com isso é saber que se utilizo mais as mãos que as pernas, minhas mãos se repetirão infinitamente maiores que minhas pernas. Corpoética é prazer, é foder os poros até cegar em um orgasmo de lirismo e explodir em gozo de neblina, mas também, é fuder, fisicamente até não sentir as pernas e um arrepio transformar seus ossos em moléculas esparsas e possivelmente transitória entre a matéria e a loucura, pois esta última é metacorpoética, não por haver cisão entre corpo e mente, mas por justamente se unirem até que não reste dúvida.
A corpoética deve, não... não deve, mas pode brotar da solidão. Um detrito de insustentável placidez que ao escorrer pelo caos ganha forma. Só se é pleno ao se estar sozinho, outras constelações produzem luzes enigmáticas que fazem com que o pensamento gire em torno dos seus mistérios. Fazer-se só, reprodutível em si como uma criatura hermafrodita, monozigótica e plena.
A corpoética não deve servir ao imperialismo, pois não coloniza aquilo que já se possui. Mas desenha-se subjacente às minhas retinas uma pele de cimento forjada à lava, por isso, meu corpo é frágil como um vidro, transparente como um vidro e, ainda assim, há os que duvidam daquilo que veem. Como posso fazer-me a mim se quando me surjo insurge a eles todo o meu ódio pelo amor patético da humanidade. A corpoética carece de sinceridade, entretanto, só se é sincero, como escreveu Clarice, quando se está só. Mas quem escreveu: Clarice ou a retirante nordestina? Personagem e criadora se confundem, afinal, corpoética é extensão, assim todo homem e toda mulher são deuses e deusas, da mesma forma, deusas e deuses são mulheres e homens. Mas por que, então, se cansam da existência? Não sei, ninguém sabe sobre a sombra subjetiva dos nossos santos, pois conhecemos mais as faces do diabo.
me
Eles me olham
ainda como se eu fosse impenetrĂĄvel
mas atĂŠ os olhares deles
penetram
UM CORPO BIXA
QUE SIBILA
Eu vi as bixas do meu tempo, queimadas nos asilos de seus peitos, com o coração a moer por um boy padrão Tumblr inalcançável. Eu vi as bixas do meu tempo chorando frias no canto das mesas de bares públicos, tragando o amor como se inala doses letais de gás hilariante. Eu as vi rindo, enquanto vísceras mouras carregadas de opressões fingiam inexistir um sistema estético que ronda nossas percepções sobre o “gostar”. Eu vi as bixas do meu tempo sendo curradas em banheiros de boates com músicas altas demais para ouvir seu próprio pedido de socorro. Eu vi as bixas do meu tempo apanhando nas escolas e forjando novos signos de vida para admoestar o corpo e expiar por pecados que não são seus. Eu vi as bixas do meu tempo mortas em esquinas com perucas sobre seus rostos e glitter em suas barrigas cobertas apenas por tops. Eu as vi sorrindo enquanto passavam carros dirigidos por máquinas masculinas de destruição em massa, como grandes armas tóxicas biologicamente projetas no útero descartável do capitalismo.
Eu vi as bixas do meu tempo de coturnos e moletons de cantoras pop que lucram pelas veias liberais da projeção de um espécime biopolítico de órfãos. Eu vi muitas bixas presas em gritos de protestos para serem aquilo que as oprimem, Elas se corriam como uma fita métrica eugênica com um laço cor de rosa nas pontas. Eu as vi mortas entre sons estridentes e desafetos hostis. Eu vi as bixas do meu tempo cerrarem as mãos por vergonha das unhas pintadas, como se crime fosse lotar os cílios de sonhos cilindricos e se ver nas sombras das árvores. Eu vi as bixas do meu tempo chorando por demandas estéreis de uma inadiável ressaca do vazio. Eu sou a bixa do meu tempo que bebe do sêmen das sarjetas como se engole lágrimas em público para demonstrar força e exatidão das mesmas máquinas de incompreensão que sonha matar.
Penso mais em suicídio que em reencarnações
SULCOS e m
s e t e
c e n a s
I Na madrugada da última quinta-feira, 15 de novembro, Diogo Cintra foi espancado por um grupo de rapazes após um assalto. Cintra, antes de ser agredido, pediu ajuda aos seguranças do terminal, contudo, os rapazes que agrediriam Cintra disseram aos seguranças que Diogo era o assaltante. Os seguranças, em sua benevolência civilizada e civilizatória, permitiram que os rapazes levassem o ator para fora do terminal e o espancassem, as câmeras flagraram tudo, pessoas passavam pelo local. Em depoimento à polícia, Cintra disse se tratar de uma atitude racista, a polícia descartou esta hipótese alegando ter sido “impressão pessoal dele”.
II
A solidão dos artefatos de guerra numa estante empoeirada de um ex-combatente, assim me senti ao ver meu corpo exposto às acusações multilaterais de sujeitos cinzentos. Para o negro, a solidão é como o dia, ela é sempre clara e sempre queima.
III
O racismo inabilita a corpoética pois desvia do corpo o esquema corporal, não admite humanidade no outro, torna-o, assim como fez a Igreja, a personificação do demônio. O demônio colore-se nas imagens coloniais e então, possuído de desejo e não-dimensão, queda o corpo para a inabilidade da poética.
IV
Sinto-me aquém do que me forjei a ser, me parece um tanto estranho que eu seja sobredeterminado pelo seu caos, como se em você houvesse tanta beleza que é preciso que olhe para mim e me encare como um reflexo. Não há o que eu possa fazer, você não quer me enxergar, estou preso a esta malha de Narciso.
V
Sou um barracĂŁo no morro do Salgueiro esperando a polĂcia dormir para fazer do meu Rancho um Entrudo e preservar meus poros na fantasia carnavalesca que criaram sob a forma de Pierro e Arlequina.
VI Talvez, neste dia comum, Você ouça um estalo seco vindo de longe Cogita fogos, cogita escapamento de moto E, na última hipótese, um tiro. Talvez seja mesmo um tiro. Você, curioso, pergunta ao vizinho o que houve: Foi um marginalzinho que foi morto pela polícia, ele diz. Você não conhece o marginal Mas respira aliviado sabendo que amanhã Correrá menos risco de ser assaltado. E naquele momento, com toda a crueldade humana Que é destinada injustamente a um ser maligno e profano e espiritual, Aquele som seco se tornará fogos de artifícios No seu peito.
VII Talvez, neste dia comum, Você ouça um estalo seco vindo da outra rua. Não cogita nada, o feijão sendo cozido é deixado O tanquinho batendo roupas é desligado. Sente um aperto no peito e uma saudade Do filho preto que saiu para jogar bola. Sabe que a morte é natural, E preto morrer de tiro por ser confundido, é mais ainda. Roga de joelhos àquele que gentilmente é creditado Toda a misericórdia que existe. E naquele momento, o peito dolorido Não sente mais nada.
O oco do cu não é nada mais que o cu
CINZAS corpos sĂŁo brasas que depois viram
Porque tod minhos co de aço e esc tão desm diante dos
dos os caoncretados cĂĄrnio esmoronando s meus pĂŠs.