Fumei uma tempestade na sua boca

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fumei uma tempestade na sua boca



Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma tão distraidamente ANA C. CESAR



1. Só posso amar-te com o que aprendi com meu fígado, pâncreas e minha fome, amo-te com meu Minister de cinco reais em teus lábios compartilhado e as voltas do meu intestino como raízes em teu peito de nervosismo e desejo alguns outros se deitarão contigo sobre sua cama de nicotina e maconha e desejarão teu corpo, talvez, mais do que eu desejo eu o desejo por aquilo que se é impossível : morrer nas existências dos afastamentos


2. Parem as máquinas! Estou a escrever um poema sobre a atual conjuntura mundial: o preço do cigarro é a morte assim como o da paixão. Tenho cinquenta centavos e não posso mais comprar fiado. No Sul e no Sudeste o cigarro é mais barato o que explica a dificuldade em amar: inflaciona-se a paixão para aumentar o consumo violento de marcas caras. Liguem as máquinas, pois, meu amor abriu a porta, me sorriu com um carteira de Dunhill na mão esquerda.


Jรก nรฃo me importo com a enfisema, com os esquemas capitalistas de trรกfico de almas colo a minha boca na boca dele e sopro fumaรงas imperialistas


3. Baby, sinto o cheiro do teu perfume barato de lavanda quando encosto meus ombros no varal. Despir meu tormento, ficar nu ante à solidão e dançar com os dois pés esquerdos, que é o que me sobra quando após nossas conversas, você me come com os olhos de floresta mal iluminada. Assumo de antemão, meu amor por teus lábios ao fumar um hollywood como quem inala cianeto de hidrogênio e tosse convulsivo sobre minha boca qualquer coisa entre Tim Maia e Maria Bethânia. você me resgatou de um buraco maior que a camada de ozônio, me chamou de meu bem e depois, eu fui um feiticeiro que absorve tinta através dos teus pelos para fazer magia e pirotecnias dentro do meu peito. Antes que pudesse me beijar, eu disse em silêncio a você como o meu instinto é o de buscar à noite, anjos plásticos, como uma cadela no cio, louca para ser violentamente penetrada pelas fábulas nórdicas. eu conto nos dedos as vezes que eu disse que era imortal demais para perder qualquer coisa, para morrer de qualquer fome, para desmaiar por qualquer sede. Você me trouxe lava de vulcão quando por entre às conversas, me confessou baixinho que as erupções da tristeza molham


as camas de motéis baratos de beira de estrada. rimos por um instante, pois em nossas camas, que julgamos distantes das de quaisquer outros, também molhamos de lágrimas e desespero. eu o amei da forma mais vulgar que aprendi, por isso, quando você se foi ou quando o vejo ir, eu desabo dos seus um metro e setenta e poucos e me tranco no quarto para escrever palavras que façam as músicas tristes da beyoncé soletrar I care. amei você quando a palavra moral não fazia sentido na linguagem do meu corpo e, baby, pode parecer que não, mas eu o mantenho preso e vigiado pelos cães das minhas artérias que trepidam e rosnam ao vê-lo sorrir. é estranho ver que tanta gente escreve o lado b do amor, como se ele mantivesse uma linha binária e coesa por entre a rota da crista ilíaca à cervical. Mas aprendemos que sempre há o c que é todos e ainda sim mantém a singularidade promíscua de assistir Pavel Novotný andar em sua bicicleta de leiteiro como fosse uma metonímia para foder desmesuradamente um túmulo onde se enterram braços. “Os ferozes leiteiros do mal”, como escreveu Drummond, dançam sensualmente como quem desfaz o prazer ao performar para a parede. O amor é fist fucking que percorre por todo o intestino até chegar à boca.


você dizia que eu me parecia culto demais ao pronunciar a palavra multiplicidade e traçar através da teoria da diferença um caminho mais rápido para tirar sua roupa e vê-lo apagar o hollywood como que engravida uma dinamite para sulcar às falésias úmidas do desejo. eu agora vejo, baby, aquilo que se evidenciava na sua retina: uma máquina sem lubrificação que me esperava lamber seus demônios. Mas eu tenho os meus, por isso, não bebi do seu perigo, embora tenha salivado noites a fio, desejando que cada gota do seu suor fosse um pingo de chuva nos dias mais quentes do verão dos meus joelhos. fazer-me ajoelhar, pedinte, mendigo, carente dos estilhaços da tua mesa, submisso como os cães de hannibal a comer a pele de um cadáver que ainda se movia.


4. No início de você eu fumava um maço em sete dias. Hoje você me fuma a cada meia hora.


5. Ouvíamos Caetano, e você, naquela noite parecia mais humano e menos blasé com sua calça florida e camisa aberta para que eu pudesse olhar o seu tórax respirando falhado enquanto fumava um Marlboro vermelho. Meus olhos escorregavam por entre os botões madeira da camisa azul até parar inertes no seu pacote de volume interessante. E eu pensava que pudesse ser coisa da minha cabeça, mas adorei a ideia de um conto sem vírgulas para que o leitor sentisse a mesma frequência do seu tórax aberto à minha visão. nós, dois homens piedosamente alegres caindo das escadas que davam para o precipício de uma cama pequena em um quarto cheirando a mofo e naftalina enquanto ao fundo, Caetano cantava malditamente qualquer trilha que poderia ser a música de nosso casamento como gays pós-guerra talhando nos músculos uma pica que poderia esconder galáxias de desejo de se integrar a mesma sociedade que os violentam. você tentava me convencer nos seus discursos sobre moda, ainda que confundisse Kate Winslet com Kate Middleton e não sabia a diferença entre as aristocracias que tanto defendia. Deitei em teu colo para escrever um poema sobre Jezebel, por acreditar na beleza da sua sedução ao rei e, assim, cortar a cabeça de João Batista e servi-la


em uma travessa. Eu só pensava que da posição em que eu estava, eu poderia beber do seu sangue caso você conhecesse qualquer história da bíblia. a saliência do seu pau enrijecendo dentro da calça e roçando minha bochecha me fez, por um instante, esquecer de qualquer história sombria para somente para explorar as formas de um deus pagão que fuma a cada música tocada por um galaxy pocket que não passa de cinquenta reais na mão dos traficantes medíocres da esquina da sua casa. fumei uma tempestade da sua boca torci os cotovelos da pia da cozinha caído de quatro entre seus joelhos como um bailarino contemporâneo que se agarra ao chão mesmo suspenso ao céu. você de lado com as pernas abertas me falando delírios e queimando erva, e queimando incenso e queimando o meu juízo que se espraiava pelo lençol como suor nobre de uma puta triste. bonequinha de luxo na Netflix “esse papo seu tá qualquer coisa você já tá pra lá de Marraquexe” no pocket o Marlboro sobre a fruteira vazia da cozinha isqueiro, creme dental, perfume vagabundo, colar de contas e seu corpo bronze para ser adorado enquanto Moisés subia o monte para voltar com os dez mandamentos.


janela quebrada no quarto calça florida me amarrando o pescoço você de quatro eu de bruços. sabíamos que fora do inferno arfante do quarto, todos poderiam estar mortos como corpos que caminham em direção ao metrô do centro da cidade. Saímos vinte e quatro horas de desejo após Paris is burnning terminar e notarmos que nossas existências eram frágeis demais para inventar uma sociedade que empunhasse uma arma de quimeras. lutamos uma ou duas vezes mais, mas era de se esperar que fossemos perdedores natos, sujos de um destino-gato que caminha em direção ao sétimo andar de um pote cheio de ração cara, água filtrada e cafuné na cabeça. Eu não poderia ser salvo por você, por isso, bebi um gole de conhaque e percebi que você guardava o azeite na geladeira. Ri um pouco disso, assim como da sua fissura por Máquina Mortífera e filmes hollywoodianos que gozam prematuros por sobre a tela de cinema. Americanos precisam aprender a fuder, eu disse; nós somos americanos, você me respondeu. Eu acendi a luz para que percebesse que corria em mim um nômade diaspórico que tem certa náusea à ideia de permanecer. no segundo encontro, aprendi que você tinha as armas certas para matar um leão por dia. Eu me escondi por medo.


6. Era para você me amar e fingir notar os tons pastéis dos meus risos falsos nas quartas-feiras, mas você parece não se importar com todas as cartas de amor escritas a sangue em dias infernais de verão e extraviadas para qualquer casa sem reboco. Na verdade, você se parece muito com quase todos os outros homens que já amei: tem fome por ascensão, mas finge opacidade mesmo trajando lantejoulas. Eu deixo você alisar meu corpo como quem rejunta uma cerâmica cara parcelada em doze vezes com juros e uma porção de angústia para pagar. Você nunca paga, mas me morde de um jeito que me faria escrever um manual de anti-ajuda para cessar a fome de trabalhadores braçais. Somos, ambos, malditos clichês que se medem artistas de merda para calcular o tráfego das ilusões. Por isso, fingimos desamor um pelo outro e fumamos a noite com bocas de mercúrio implorando pela misericórdia de deuses africanos. Você mumifica meu desejo, me abre um terceiro espaço, me torna híbrido e angustiado quando soletra ao pé do meu ouvido com a boca cheirando à fumaça a palavra prazer. Sei que em parte, o prazer reside na morte, por isso escondo facas no peito, pois, se é para morrer, quero que jogar flores sobre seu caixão enquanto ardo necrófilo na tampa.


7. A Ăşltima carta que escrevi ainda cheira Ă saudade.


8. No pós-mundo ainda há o mundo com mala marcada, celular no bolso esquerdo, carteira vazia no fundo. E de lá, ele sorri cínico com olhos foscos e dentes amarelados pela nicotina. Você repara nas mãos e nas retinas. Ele poderia enfiar a mão no seu pescoço, segurar como quem enforca e você se deliciaria com a força e pediria mais e mais e mais até romper em lágrimas de uma falsa tortura. Ele, cheirando a leite de rosas descosturaria as roupas como num filme pornô você se sentiria poderoso como um deus e abriria um Glory Hole em cada um dos sete forames cerebrais


para que coubesse mais. Insaciáveis são as horas trêmulas em que um desejo sem gozo capacita a escolha de um amor. Depois do fim do mundo todos os corpos os corpos despencam da altura dos pés daqueles que amam.





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