Fazenda trigueiro cumeeira identificado

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Arquitetura Vernacular Cearense Estudo da Fazenda José Diógenes Maia em Pereiro/Ce

LEITE, Kelma Pinheiro; Centro Universitário Estácio do Ceará. Arquitetura e Urbanismo kelmapinheiro@yahoo.com.br ALVES, Andressa Gabriele Freitas. Centro Universitário Estácio do Ceará. Arquitetura e Urbanismo andressa.fre@hotmail.com OLIVEIRA, Natália. Centro Universitário Estácio do Ceará. Arquitetura e Urbanismo nataliadeoliveira.n@gmail.com

Resumo Este trabalho apresenta uma pesquisa histórica da Fazenda Trigueiro, localizada em Pereiro (distante 334,3 km de Fortaleza, atual capital do estado), tendo como foco uma contribuição para o estudo da arquitetura vernacular cearense e conservação do patrimônio a partir da identificação de casas de fazenda como produtos arquitetônicos de uma comunidade e de suas épocas. Construída no final do século XVIII, a Fazenda Trigueiro é uma edificação que foi concretizada no decorrer do povoamento da região, que localiza-se próximo ao Rio Jaguaribe, e que, logo, contribui para a caracterização de um período da economia da agricultura e cultura do gado. A edificação possui dois pavimentos e, segundo relatos, foi construída por mão-de-obra escrava e com materiais da região, e ainda se mantém com características da construção original, como as paredes robustas de cerca de 80 cm de espessura e assoalho em cedro. O estudo é dividido em duas etapas: a primeira com pesquisa bibliográfica e documental; a segunda refere-se a levantamentos in loco e registros fotográficos a fim de

documentar, por meio de ferramentas digitais, informações sobre a edificação, e entrevistas feitas aos moradores da fazenda Trigueiro, para análise da relação da edificação com seu entorno e suas transformações ao longo do tempo. Palavras-chave: Arquitetura Vernácula; Habitação rural; Casas de Fazenda; Ceará. CONGRESSO DA ARQUITETURA E URBANISMO NA CULTURA POPULAR QUIXADÁ-CE, DE 25 A 27 DE ABRIL DE 2018


Introdução Este trabalho apresenta uma pesquisa histórica da Fazenda José Diógenes Maia/Fazenda Trigueiro, também conhecida como Casarão do Trigueiro, Casa Grande ou Casa dos Escravos, há várias gerações da família Diógenes (Diógenes, 2015, p.17). Tem como foco uma contribuição para o estudo da arquitetura vernacular cearense e conservação do patrimônio a partir da documentação e análise de casas de fazenda como produtos arquitetônicos de um povo e de suas épocas. Trata-se do segundo estudo de caso do Grupo de Pesquisa de Arquitetura Regional Vernacular (GPARV) que investiga a arquitetura vernácula cearense, através de edifícios residenciais rurais construídos entre o século XVIII até a segunda metade do século XX. Tal recorte temporal corresponde às primeiras ocupações do Ceará, consequência do sistema de sesmarias para distribuição de terras e crescimento da atividade pecuária do estado, mais especificamente as casas de fazenda, sede das terras concedidas, por onde a sociedade cearense inicialmente se estruturou (Neto, 2007, p. 191), até o início do processo de urbanização do Ceará. O interesse por pesquisar tal tema partiu da escassez de estudos e documentação desse período, onde se constatou que os principais objetos de estudos são edifícios urbanos, fazendo com que haja uma certa carência de informação sobre as construções rurais. O estudo da arquitetura tradicional de um lugar é a busca por não deixar se apagar os costumes construtivos de uma sociedade. Assim, a Carta da Unesco sobre o Patrimônio Vernacular edificado define o tema vernáculo como importante, “por ser a expressão fundamental da cultura de uma coletividade, de suas relações com o território e, ao mesmo tempo, a expressão da diversidade cultural do mundo”. Assim, o presente estudo pretende resgatar parte da história construtiva do estado do Ceará. A pesquisa é apoiada no entendimento de Waisman (2013, p. 11), de que o objeto da historiografia da arquitetura existe, no presente, por si mesmo e que o trabalho historiográfico deve partir da realidade presente, onde a Fazenda Trigueiro é tomada como objeto de estudo desta pesquisa, que tem como um dos objetivos registrar e documentar a construção para CONGRESSO DA ARQUITETURA E URBANISMO NA CULTURA POPULAR QUIXADÁ-CE, DE 25 A 27 DE ABRIL DE 2018


compreender os processos históricos de conformação do espaço arquitetônico, bem como identificar traços de arquitetura vernacular.

A importância dos registros históricos no processo de documentação, modelagem e análise. O cadastro de um bem cultural tem a finalidade de conservar a imagem, bem como a história do mesmo, visando a preservação dele. Segundo Fachin (2006, p.146), pesquisa documental é a “(...) coleta, classificação, seleção difusa e utilização de toda espécie de informação, compreendendo também as técnicas e métodos que facilitam a sua busca e a sua identificação”. Assim, pretende-se estudá-la, de modo a serem conhecidos pela população e poder público, possibilitando assim, ações de conservação, símbolo de consideração dos mesmos como de importância histórica para a região ou município onde estão inseridos. Dessa forma, este trabalho é composto por pesquisas de campo, documental, que utilizou como instrumentos de coleta de dados a visita à fazenda, registros fotográficos e levantamentos arquitetônicos; além de pesquisas bibliográficas para análises sobre a época, dividido em duas etapas: a primeira conta com pesquisa bibliográfica e documental; a segunda refere-se a levantamentos in loco e registros fotográficos a fim de documentar, por meio de ferramentas digitais, informações sobre a edificação, e entrevistas feitas aos moradores da fazenda Trigueiro, para análise da relação da edificação com seu entorno e suas transformações ao longo do tempo. As técnicas e tecnologias utilizadas para o levantamento cadastral vem se diversificando, dentre as quais destacamos as principais: medição direta; desenhos de observação; modelagem, tais como SketchUp, CAD e BIM (Building Information Modelling); fotogrametria; e sistemas de informações geográficas. Dessa forma, a utilização de ferramentas digitais aliada a fotografias e pesquisa histórica vêm para contribuir na preservação do inventário da arquitetura, documentando suas características, sistemas estruturais, materiais e técnicas construtivas.

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Processo de povoamento do sertão do Ceará Segundo Castro (2014, p. 13), quando se busca compreender e obter uma ampla visão do processo de implantação da arquitetura no Ceará, deve-se ter como o marco histórico o final do século XVIII, período em que ocorre a consolidação das primeiras vilas. A ocupação do Ceará foi tardia, devido ao pouco interesse português pela região, que priorizou a produção açucareira no litoral nordestino. A ocupação do estado foi, para os padrões da época, intensificada no século XVIII, principalmente pela pecuária extensiva, atividade que requer baixo investimento, com povoamento rarefeito e disperso, devido aos grandes pastos, sendo, contudo, pouco rentável. Pelo sertão, surgem as correntes migratórias que vinham desde a Bahia, passando por Pernambuco, Paraíba até o Rio Grande do Norte, bem como portugueses atraídos pelas doações de terras em sesmarias (Neto, 2007, p. 235), e que somente “tornara-se possível após a morte, expulsão ou aculturação dos indígenas, conhecidos por tapuias, que os ocupavam” (Castro, 2014, p.12). Estes se estabelecem em fazendas de gado ou com a agricultura de subsistência. Os percursos eram abertos seguindo o leito dos principais rios e riachos, pois eram locais estratégicos para o pouso das boiadas e implantação de vilas. A produção da pecuária cearense era comercializada nas principais cidades vizinhas ao estado, como Recife e Olinda, levando os rebanhos a percorrer longos caminhos, o que resultava no baixo rendimento financeiro da comercialização do gado (Albuquerque, 2014, p.9). Segundo Castro (2014, p. 13), a alternativa encontrada, por volta de 1720, para contornar esse obstáculo foi a produção da “carne do Ceará” (o charque) onde o gado era abatido e sua carne salgada e, também, o couro. Estas passam a responder totalmente pelas atividades econômicas da Capitania e chegaram a ser vendidas para regiões como Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro (Oliveira, 2007, p.509). Com a expansão das atividades econômicas da época, dirigentes locais do Ceará iniciam uma campanha junto à Portugal numa tentativa de demonstrar as potencialidades e possibilidades concretas de seu desenvolvimento. Em 1799, o Ceará é declarado autônomo de Pernambuco, administrativamente, iniciando a demarcação precisa de seu território e tendo maior liberdade CONGRESSO DA ARQUITETURA E URBANISMO NA CULTURA POPULAR QUIXADÁ-CE, DE 25 A 27 DE ABRIL DE 2018


econômica (Albuquerque, 2014, p.11). Contudo, com as seguidas secas nos anos finais dos Setecentos, a produção do charque enfrentou forte declínio, pois a seca dizimou boa parte do rebanho, induzindo o cultivo do algodão na Capitania. Na segunda metade do século XIX, e ainda em boa parte do século XX, o desenvolvimento econômico foi apoiado principalmente na cotonicultura, impulsionado pela guerra da Secessão nos Estados Unidos (1861-1865), que intensificou as exportações do produto cearense (Castro, 2014, p.12). Segundo Neto (2012, p.5), cidades como Aracati, Icó, Iguatu, Russas e outras surgiram dos assentamentos que cresceram em torno das primeiras capelas e fazendas que foram erguidas na região. Estes eram pontos de conexão da atividade pecuária, que durante os séculos XVIII e XIX, movimentaram a economia cearense, entre o sertão e o restante do país. A vila de Pereiro surge e cresce nesse contexto, estando localizada no trajeto que ligava a cidade de Patos/Paraíba à Sobral/ Ceará, estando entre Pau dos Ferros/ Rio Grande do Norte e Quixeramobim/ Ceará (ver figura 1). Figura 1: Estradas das boiadas e localização da cidade de Pereiro.

Fonte: as autoras adaptado de Neto (2007) CONGRESSO DA ARQUITETURA E URBANISMO NA CULTURA POPULAR QUIXADÁ-CE, DE 25 A 27 DE ABRIL DE 2018


Ainda de acordo com o mesmo autor, pautando a classificação das vilas mais importantes do período setecentista segundo a posição estratégica para os pecuaristas, as duas principais seriam a vila de Icó e a do Aracati. Neto (2012, p.6) também cita que, entre 1700 e 1822, foram criadas dezoito vilas no estado do Ceará. Primórdios da Arquitetura Cearense Segundo Castro (2014, p. 14), existe uma certa homogeneidade formal na arquitetura Cearense na quadra final do século XVIII e boa parte do século XIX, particularmente no mundo rural. A pecuária extensiva exigiu pouco investimento, tendo em vista que o gado ocupava a maior parte das terras para pasto. Assim, limitou-se, praticamente, na construção da casa de fazenda, pequenas moradas para serviçais e cercas dos currais. Algumas também apresentaram acréscimos aos programa, tais como, uma casa de farinha ou engenhoca para produção da rapadura e, muito raramente, uma capela. Inicialmente, por questões de segurança, as casas de fazenda possuíam poucas aberturas, muitas vezes se resumindo à porta de entrada. Com o tempo, o sertão tornou-se mais seguro sendo possível incrementar o programa de necessidades das casas de fazenda com alpendre. Primeiramente, este posicionava-se em uma única fachada, frontal, para posteriormente passar a contornar toda a casa, protegendo toda a edificação do forte sol do sertão cearense. Ressalta-se que a construção dos alpendres também dependia da condição financeira do proprietário. Os alpendres foram empiricamente dimensionados conforme a penetração do sol onde essa solução, e frequentemente, as dimensões são utilizadas até os dias atuais (Castro, 2014, p. 16). Nas cidades e vilas cearenses, salvo exceções, as construções das casas de morada eram térreas, quase em sua totalidade. Eram geminadas umas às outras e cobertas com telhados de duas águas: uma para a rua e outra para o quintal (fundos), existindo, também, as pequenas casas de meia-água. As primeiras fazendas possuíam coberturas de quatro águas e paredes de taipa, sendo essa solução substituída por alvenaria de tijolos e o telhado adquire um perfil mais urbano de duas águas (Duarte, 2009, p. 51).

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As edificações institucionais, tais como igrejas, casa de câmara e cadeia, também eram caracterizadas pela simplicidade, sem adornos, evidenciando um caráter popular (Castro, 2014, p. 14). Muitas casas de câmara e cadeia foram concluídas no final do século XIX, período que trouxe muitos engenheiros para o Ceará devido a um plano de obras desenvolvido na época da grande seca de 1877-1879 (Monteiro, 2011, p. 114). Castro (2014, p. 18) faz um breve apanhado dos materiais e técnicas de construção utilizados no início da ocupação do estado (palha, taipa, pedra, carnaúba e tijolo chato de diatomita), muitos deles presentes até hoje. Ainda, o couro além de ter sido utilizado para vestimenta, também foi bastante empregado como mobiliário, por exemplo, bancos e cama para parto e na arquitetura, como por exemplo, na amarração das varas das casas de taipa, armadores de redes, ou como folhas ou dobradiças das portas (Castro, 2014, p.13). No Ceará, a sabedoria empírica popular conduziu a construção ao desenvolvimento de técnicas e de domínio de materiais, adaptados e compatíveis com o meio-ambiente e proteção climática, inclusive com a realidade econômica. Segundo Duarte (2009, p. 49), esta arquitetura rústica e ecológica denominamos vernácula cearense onde as técnicas e o trabalho possíveis à época se casavam com as limitações do meio. Caracterizava-se pela ausência de ornatos e por robustas paredes de alvenaria estrutural, constituída de tijolos de diatomita ou de barro cozido, e alta cobertura em telha de barro, por onde o ar é renovado por convecção, e madeira, frequentemente de carnaúba. Portanto, soluções e materiais naturalmente isolantes térmicos, substituindo a tradicional construção portuguesa em pedra (Duarte, 2009, p. 50). Por fim, destaca-se o entendimento de que a “arquitetura antiga cearense se alimenta e se fortalece do que jejua e é na limpeza e economia de suas soluções construtivas, estruturais e de convivência com o clima que reside a sua força e o seu interesse como manifestação racional da técnica e expressão artística” (Duarte, 2009, p. 48). Ocupação do Vale do Jaguaribe Menezes (1901, p.177) apud Neto (2007, p. 238), descreve que até 1680 não se conhecia o rio Jaguaribe. As primeiras sesmarias da região foram requeridas em 1681, “nas terras do Rio

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Grande do Norte para o norte, num lugar chamado Jaguaribe” e que, segundo o capitão-mor requerente, não era habitado por brancos. O rio Jaguaribe é uma das principais bacia do Ceará e foi o primeiro da vertente sudeste alcançado pelos desbravadores baianos e pernambucanos no final do século XVII (Neto, 2007, p. 239). Segundo relato em documento da Assembleia Legislativa do Ceará, o bandeirante Domingos Paes Botão, requereu sesmarias em 1690, “ali instalando as primeiras fazendas de gado do Jaguaribe” (Assembleia, 1999, p. 183-184.), portanto antes da criação da primeira vila do Ceará que só viria a ocorrer em 1713 em Aquiraz (Castro, 2014, p. 21). O Capitão-mor se estabelece na Região de Santa Rosa, atualmente Jaguaribara, Ceará. Contudo, devido à forte resistência dos índios Tapuias, é forçado a transferir residência para Aquiraz, Ceará1. Por volta de 1698, nasce seu filho Manoel Diógenes Paes Botão, primeiro descendente a ser denominado Diógenes, dando origem ao sobrenome da família. Tratando-se especificamente dessa região, em 1738, Icó é elevada à vila e, em 1801, é criada a vila de São Bernardo das Russas. Pereiro - do século XVII a meados do século XX Conforme documento do IBGE, segundo a tradição, a denominação do município de Pereiro é em homenagem a Manuel Pereira, fundador da cidade. Ele era natural de São Bernardo de Russas e transferiu-se, juntamente com a família, para a microrregião da Serra do Pereiro, região do Vale do Jaguaribe, depois da grande seca de 1777 (IBGE, acesso em 23/03/2018). Seu povoamento se desenvolveu através da criação extensiva de gado bovino nas margens do Rio Jaguaribe e Rio Figueiredo através de colonizadores portugueses e seus descendentes que fundaram latifúndios, fazendas e engenhos (Júnior, 2015, p. 12). Assim como outras vilas da época, Pereiro cresce em torno da igreja e fazendas que foram erguidas na região. Em 11 de outubro de 1831, foi inaugurada a Igreja Matriz de São Cosme e Damião de Pereiro, cuja denominação também foi utilizada para decreto do povoado como distrito. Foi elevado à categoria de vila pela lei provincial nº 242, de 21-10-1842, tendo sido

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http://familiadiogenesnobrasil.blogspot.com.br/2010/03/genealogia-de-domingos-paes-botao.html, acesso em 22/03/2018. CONGRESSO DA ARQUITETURA E URBANISMO NA CULTURA POPULAR QUIXADÁ-CE, DE 25 A 27 DE ABRIL DE 2018


desmembrado de Icó, tornando-se um dos municípios mais antigos do Ceará. Somente mais tarde, a vila foi elevada à condição de cidade com a atual denominação de Pereiro, pelo decreto estadual nº 54, de 28-12-1890 (IBGE, acesso em 23/03/2018). Segundo Júnior (2015, p. 8), a Câmara de Vereadores de Pereiro foi constituída em 1845 sendo composta por colonizadores, latifundiários, fazendeiros-coronéis proprietários de engenhos e indústrias de algodão, dominando assim, tanto a economia e a propriedade da terra, como a política e o controle local. Destacam-se duas famílias tradicionais (Martins Porto e Domingos Paes Botão2) que, juntamente com outras famílias, dominaram o município econômico e politicamente até o final da Primeira República (1890-1930). A família Diógenes descende do capitão-mor colonizador do Vale do Jaguaribe, foi agropecuarista e dona de casas-grandes de escravos e de engenho, bem como oficiais da Guarda Nacional e exerceu grande influência econômica e política no período Colonial e Imperial, perdendo parte do prestígio político entre 1920 a 1940 (Júnior, 2015, p. 10). A partir do período da Revolução Constitucionalista de 1930, há uma decadência econômica das fazendas, engenhos, casas de farinha e o fim da produção do algodão no final da década de 1980 (Júnior, 2015, p.10).

A arquitetura como documento: Fazenda José Diógenes Maia Construída no final do século XVIII, a Fazenda Trigueiro é uma edificação que foi concretizada no decorrer do povoamento da região, localizada próximo ao Rio Jaguaribe, e que, logo, contribui para a caracterização de um período da economia da agricultura e cultura do gado. A fazenda (ver figura 2) está localizada a 5km da sede do município de Pereiro (distante 334,3 km de Fortaleza, atual capital do estado), à margem da estrada que liga o município de Pereiro/Ceará à cidade de São Miguel/ Rio Grande do Norte estando, portanto, no roteiro da pecuária itinerante, e foi construída em 1794 pelo agricultor, pecuarista e senhor de escravos Manoel Diógenes Maia. Está localizada num alto, sendo possível avistá-la de uma certa distância, sendo local estratégico para segurança da própria fazenda.

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Vários descendentes do Capitão-mor Domingos Paes Botão (sênior, nascido em 1650) também adotaram homônimo, e posteriormente a família adota o sobrenome Diógenes no Ceará. CONGRESSO DA ARQUITETURA E URBANISMO NA CULTURA POPULAR QUIXADÁ-CE, DE 25 A 27 DE ABRIL DE 2018


Figura 2: Fazenda Trigueiro

(a)

(b) Fonte: as autoras.

A edificação possui dois pavimentos e seu alicerce todo em pedra com baldrame de 2,0 m de altura. A mão-de-obra escrava se revezava em bandos para retirada de areia grossa às margens do rio Jaguaribe. Ainda se mantém a maior parte das características da construção original, tais como, as paredes robustas de alvenaria estrutural de tijolos de barro cozido, com cerca de 40 cm e 80 cm de espessura; alta cobertura de duas águas em telha de barro, empenas laterais e madeiramento aparente da cobertura em caibro e ripas, com linhas de 20 cm x 20 cm; assoalho em cedro (figura 3 d); e portas e janelas em painel cego de madeira feitas com tabuado comprido com encaixe tipo macho e fêmea, com abertura em arcos de meia volta e vergas ligeiramente arqueadas. As esquadrias passaram por diversas manutenções nas dobradiças e fechaduras, não sendo mais originais, exceto a fechadura de um quarto. No térreo, foi usado piso em ladrilho hexagonal de barro cozido nas salas de estar e jantar; nos demais ambientes, tijolo de barro (figura 3 e). Estima-se que demorou de 6 a 8 anos para a edificação ficar pronta. Existe um alpendre aberto posicionado em uma única fachada, frontal, e que somente tinha acesso através de uma escadaria. No final da década de 1970, foi construída uma rampa para facilitar o acesso e guarda-corpo de proteção (figura 3 a destacado em vermelho). Outras mudanças que ocorreram, destacadas em vermelho na figura 3, foram a implantação de instalações hidrossanitárias, caixa d’água (figura 3 b), banheiro e pia da cozinha, instalações elétricas, rampa de acesso, e uma pequena cobertura lateral.

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Figura 3: Planta atual da fazenda, após instalações de banheiros.

(a) planta pav. térreo

(b) planta pav. superior

(c) antigos e novos degraus de pedra - 01

(d) assoalho em cedro - 05

(e) piso em ladrilho hexagonal e tijolo de barro - 02 e 03

(f) piso externo em tijolo com posterior regularização em cimentado

Fonte: levantamento adaptado de Diógenes (2015). Fotos: as autoras.

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O piso do alpendre descoberto, da cozinha e da sala foram revestidos por cimento, em virtude do desgaste, conforme figura 3 (f). Além disso, quando necessário, há a substituição de telhas. Quanto à escadaria de pedra na fachada frontal, esta recebeu acréscimo de dois degraus de pedra devido ao assoreamento, segundo o morador da fazenda. Ver figura 3 (c). De acordo com relatos, a fazenda Trigueiro foi construída por escravos, que passaram a ser trancados no segundo pavimento da edificação quando finalizada a obra, daí também ser conhecida por Casa dos Escravos. No jornal Cearense de 30 de agosto de 1871, consta um anúncio para recompensa de um escravo fugitivo da fazenda que, segundo a publicação, era “carpina, também entende de pedreiro e sapateiro”. Após a abolição da escravatura, alguns negros foram embora da região e outros permaneceram, devido às escassas possibilidades de abrigo e trabalho para negros à época. O atual morador informou que existiam utensílios do período da escravatura, contudo devido à falta de uma cultura de consciência brasileira em preservação, esses perderam-se ao longo do tempo. Segundo o atual morador, que faz parte da quarta geração a ocupar a casa, o primeiro dono tinha 30 escravos, que era um quantitativo expressivo considerando que pesquisas apontam que nas fazendas de gado não haviam mais que dez ou doze escravos3. Isso se deve pela baixa demanda de mão-de-obra para pastoreio e que as fazendas atraíam homens livres, tais como, mulatos, mestiços e negros forros para a atividade de vaqueiro que possuíam relativa liberdade no trabalho. O Ceará possuiu, proporcionalmente, o menor contingente de escravos do Brasil e estes eram em sua maioria mulheres que trabalhavam com afazeres domésticos. Segundo Alegre (1990, p. 5), a escravidão não representou na pecuária obstáculo para a inserção do homem livre, como ocorreu na economia açucareira, e em 1762 cerca de 87% da população do estado (menos de 60.000) era livre, porém extremamente pobre. Algumas vilas do sertão contavam com igrejas dedicadas a Nossa Senhora do Rosário (preferida dos escravos brasileiros), tais como, Icó, Aracati, Sobral, Quixeramobim, Russas e Tauá, coincidentemente, os raros

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Roteiro do Maranhão a Goiaz pela capitania do Piauhi. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900. TOMO LXII. parte 1, p. 87 apud Alegre, 1990, p. 5 CONGRESSO DA ARQUITETURA E URBANISMO NA CULTURA POPULAR QUIXADÁ-CE, DE 25 A 27 DE ABRIL DE 2018


municípios cearenses que ultrapassava o percentual populacional dos 5% de escravos média superior aos 4,66% da Província, conforme censo de 1872 (Castro, 2014, p. 30). Em seu entorno foram construídas oficinas para reparos das máquinas usadas, casas e um parque de vaquejada que atendem os interesses dos moradores da região. Atualmente, a principal atividade econômica da fazenda ainda é a pecuária, mantendo boa parte das tradições, tais como, o vaqueiro a cavalo, e que se pode perceber na fala de um dos moradores, quando compara morar na cidade e viver na fazenda, e diz “se eu sair daqui, eu morro”. Assim, a permanência material e cotidiana da casa de fazenda Trigueiro remete à essência de um povo e sua cultura, ao longo do tempo, desde a conquista do território durante o século XVIII, sendo importante marco histórico cearense.

Conclusão O estudo da construção foi executado por meio de estudos bibliográficos, levantamento e reconhecimento dos elementos arquitetônicos e tecnologias construtivas presentes na construção. As edificações podem passar por mudanças construtivas e de uso, podendo perder suas características originais em maior ou menor intensidade. O trabalho realizado mostra a importância da documentação arquitetônica para ajudar a conservar sua imagem e história, visando sua preservação, visto que a obra, embora pertença a outro tempo, é, por si mesma, o testemunho histórico principal e imprescindível, o que reúne em si os dados mais significativos para seu conhecimento (Waisman, 2013, p. 12). No Brasil, especialmente no Ceará, muitos bens de valor histórico não foram devidamente documentados, o que acarretou uma deficiência de informações acerca de edificações e processos históricos do Estado. A Fazenda Trigueiro, para além da sua composição arquitetônica, traz em si valores imateriais e históricos do processo de povoamento do sertão cearense. Assim, temos como objetivo contribuir para o estudo da arquitetura vernacular cearense da forma que casas de fazenda espalhadas pelo estado sejam identificadas como patrimônios CONGRESSO DA ARQUITETURA E URBANISMO NA CULTURA POPULAR QUIXADÁ-CE, DE 25 A 27 DE ABRIL DE 2018


essenciais para o estudo da cultura, catalogadas de uma forma que categorize as casas em suas devidas épocas, contextos e tecnologias e mapeadas para que haja um reconhecimento com maior clareza das casas que contam a história do povo cearense e de sua arquitetura.

Agradecimentos Os autores agradecem o apoio do PIC/ PITI – Programa de Iniciação Científica e Tecnológica – do Centro Universitário Estácio do Ceará, à realização desta investigação. Agradecem ao Sr. José Denis Diógenes por conceder entrevista e permitir a visita; à Monique Andrade Campos, pelo apoio na entrevista e revisão do texto; ao arquiteto Murilo Cunha, do IPHAN e à arquiteta Andreza Diógenes, membro da família, pela contribuição com a pesquisa documental; e à professora Larissa Porto pelas contribuições na revisão do artigo. As autoras agradecem, por fim, ao Centro Universitário Estácio do Ceará, pelo incentivo à pesquisa.

Referências

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DIÓGENES, Andreza Fama Guimarães. FAZENDA TRIGUEIRO: anteprojeto de intervenção em um edifício histórico na cidade de Pereiro/CE. Monografia. Universidade Potiguar, 2015. DUARTE, Romeu. Arquitetura colonial cearense: meio-ambiente, projeto e memória. Revista CPC, São Paulo, n. 7, pp. 43-73, nov. 2008/abr. 2009 FACHIN, Odília. Fundamentos de metodologia. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2006 JÚNIOR, Raimundo Bezerra. Relações de poder e práticas políticas no município de Pereiro - Ce. Tese de doutorado - UFC. 2015. MONTEIRO, Renata Felipe. A ciência adentrando o sertão do Ceará. Contraponto Revista Eletrônica de História, Teresina, n.1, v.1, jun. 2011, p. 110-128. NETO, Clovis R. J. Os primórdios da organização do espaço territorial e da vila cearense: algumas notas. São Paulo, v.20, n. 1, p. 133-163, 2012 NETO, Clovis Ramiro Jucá. A urbanização do Ceará setecentista - As vilas de Nossa Senhora da Expectação do Icó e de Santa Cruz do Aracati/ Clovis Ramiro Jucá Neto; Orientador: Prof. Doutor Pedro de Almeida Vasconcelos - Salvador: UFBA, 2007. 531 p. ; 30 cm. OLIVEIRA, Almir Leal de. As carnes do Ceará e o mercado atlântico no século XVIII. In: Anais da VII Jornada Setecentista, Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2007. WAISMAN, Marina. O interior da história: historiografia arquitetônica para uso de Latinoamericanos. São Paulo: Perspectiva, 2013.

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