Artigo vila vicentina

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A ARQUITETURA COMO DOCUMENTO HISTÓRICO: o caso da Vila Vicentina da Estância em Fortaleza, CE.

LEITE, KELMA P. (1); MIYASAKI, JULIA S. (2); LOPES, INGRID Q. (3)

1. Centro Universitário Estácio do Ceará. Curso de Arquitetura e Urbanismo. kelmapinheiro@gmail.com 2. Centro Universitário Estácio do Ceará. Curso de Arquitetura e Urbanismo. juliamiyasaki@gmail.com 3. Centro Universitário Estácio do Ceará. Curso de Arquitetura e Urbanismo. ingridqls31@gmail.com

RESUMO O entendimento do objeto arquitetônico e urbanístico como um documento histórico nos leva à compreensão da importância do levantamento e registros físicos para a constituição mais completa de um determinado quadro histórico urbano e social. Nesse sentido, é que foi desenvolvida a pesquisa em andamento no Curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Estácio do Ceará, que tem como objetivo o estudo arquitetônico e urbanístico das transformações ocorridas no espaço da Vila Vicentina da Estância, localizada na cidade de Fortaleza, no bairro Dionísio Torres. Tipologia de vila popular, a Vila Vicentina foi erguida em 1940 e é composta de 40 casas e uma capela, com um pátio central descoberto, sendo inicialmente construída para abrigar viúvas idosas e suas famílias. Conhecida como um dos legados deixados pelo fundador do bairro, Dionísio Torres, sua história se insere na narrativa da história urbana de Fortaleza, como o retrato de um período de grandes transformações urbanas. Fortaleza apresentou, no último século, forte expansão territorial em seu processo de urbanização, incentivado pela concentração de investimentos para infraestrutura, ocasionada pelo crescimento demográfico decorrente das migrações motivadas pela seca no interior do estado. Nesse contexto, é que também se desenvolvem as primeiras ações de assistência, as quais tiveram estreita ligação com as comunidades religiosas, que foram reforçadas com os incentivos governamentais para a construção de vilas, como é o caso da Vila Vicentina da Estância, assistida pela Sociedade São Vicente de Paulo. Alguns remanescentes desses conjuntos arquitetônicos, encravados em bairros agora centrais e valorizados, ainda resistem aos assédios promovidos pela especulação imobiliária, e mantém boa parte de suas feições originais, mesmo notando-se as alterações espaciais efetuadas, que podem ser lidas como indícios das transformações do modo de morar dessa parcela da população. É dentro desse quadro que está inserida a Vila Vicentina da Estância, localizada em um bairro nobre da cidade e lidando cotidianamente com a pressão do mercado imobiliário. Diante do exposto, foi iniciada a pesquisa aqui apresentada com a realização dos levantamentos arquitetônicos das edificações residenciais e seu georreferenciamento, que juntamente com a documentação fotográfica, aliados à pesquisa documental e bibliográfica, tenta V SEMINÁRIO IBERO-AMAERICANO ARQUITETURA E DOCUMENTAÇÃO BELO HORIZONTE – DE 24 A 26 DE Outubro de 2017


contribuir para o registro e entendimento da história da cidade e à pesquisa dentro do campo da história da arquitetura e do urbanismo. Palavras-chave: Vila Vicentina; Arquitetura; História

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Introdução Em Fortaleza, os primeiros registros de ações assistencialistas voltadas para a habitação foram efetuadas por comunidades religiosas e por incentivos governamentais, a posteriori. Parte dessas construções ainda existe no Município, tendo havido modificações progressivas de maior ou menor intensidade, mas que retratam um modo de morar de uma parcela da população carente. Essas alterações testemunham as mudanças do modo de viver e morar dos usuários. A Vila Vicentina da Estância, tipologia de vila popular construídas na década de 1940, é um dos poucos exemplares que ainda resistem, e mantendo boa parte das características originais. Situada no bairro Dionísio Torres, atualmente é alvo da pressão do mercado imobiliário, porém permanece como testemunho físico do processo de urbanização da cidade e de modos de convivência quase esquecidos (como por exemplo um poço comunitário hoje desativado), a despeito das graves ameaças a que tem sido submetida. As informações contidas neste artigo são parte de uma pesquisa em andamento realizada dentro do programa de Iniciação Científica e com o apoio do escritório modelo do curso de Arquitetura e Urbanismo (EMAU) do Centro Universitário Estácio do Ceará, que vem desenvolvendo ações de assessoria técnica gratuita e contribuindo para a preservação de bens de relevância histórica em Fortaleza com o registro documental de bens arquitetônicos (MONASTÉRIO et al, 2016). A pesquisa se desenvolve sob entendimento de que o levantamento arquitetônico e iconográfico deste espaço se faz necessário para documentar uma arquitetura pouco valorizada pela historiografia oficial, mas afetivamente ligada à história da cidade e de seus habitantes.

A modernização da cidade de Fortaleza e sua expansão territorial na década de 1930 O processo de modernização da cidade de Fortaleza tem início no final do século XIX, quando a pujança econômica proporcionada pelo cultivo e exportação do algodão, implementação dos primeiros modais de transporte público, tais como bonde e ônibus, e o surgimento das primeiras indústrias (têxteis), possibilita uma série de obras de ordenamento e aformoseamento da cidade, ocorridas predominantemente durante a República Velha (1889-1930). V SEMINÁRIO IBERO-AMAERICANO ARQUITETURA E DOCUMENTAÇÃO BELO HORIZONTE – DE 24 A 26 DE Outubro de 2017


Contudo, a partir da década de 1930, a cidade iria experimentar uma série de transformações em seu território, principalmente políticas sanitaristas como resposta ao expressivo aumento populacional resultado dos fluxos migratórios de retirantes das secas (1877, 1915 e de 1932), acompanhando os acontecimentos políticos e econômicos ocorridos durante o Governo Vargas. É na Era Vargas que tem início a implementação de um projeto modernizador, marcado pela tentativa de construção de um conceito de nação para o país e pela centralização das ações políticas-administrativas (Borges, 2006, p.52), que impactou de forma contundente as maiores cidades brasileiras. É nesse período que o planejamento das cidades, a funcionalização dos espaços, a organização de uma hierarquia viária eficiente e a definição de políticas de construção mediante códigos urbanos (Segawa, 2014, p.27) começam a ser vistos como maneiras de promover o progresso no meio urbano. Em Fortaleza, um conjunto de intervenções é posto em curso, com o fito de promover uma nova forma de pensar o espaço urbano, mais apoiada na funcionalidade do que no aformoseamento. Nesse contexto, é elaborado um novo Código de Posturas do Município de Fortaleza em 1932, em substituição ao Código de 1893, numa tentativa de disciplinar o espaço da cidade, dividindo-a em quatro zonas principais: central, urbana, suburbana e rural. Essa divisão já prenunciaria a existência de uma periferia, onde se localizariam as moradias da camada mais pobre da sociedade impedindo a fixação de retirantes da seca em áreas centrais da cidade (Aragão, 2010). Entretanto, o novo Código não seria capaz de solucionar problemas de articulação urbana ocasionados pela ausência de planejamento para a expansão territorial que já estava em curso na época. Data desse período a contratação de Nestor de Figueiredo para a elaboração do Plano de Remodelação e Expansão da Cidade de Fortaleza. Como aponta Ricardo Fernandes (2004, p.27): O plano de Nestor de Figueiredo foi a primeira tentativa de sistematização do crescimento urbano de Fortaleza depois do projeto de Adolfo Herbster de 1875 e das medidas embelezadoras e de melhoramentos de logradouros. Com base em princípios modernistas, propunha o zoneamento funcional, distribuindo as atividades urbanas segundo a orientação que a cidade prenunciava.

O Plano não chegou a ser executado devido à pressão dos grandes proprietários de terras situadas nas áreas adjacentes, para onde se direcionava o crescimento da cidade, num momento em que seria possível deter o processo de falta de controle urbano que ganharia força a partir de então. V SEMINÁRIO IBERO-AMAERICANO ARQUITETURA E DOCUMENTAÇÃO BELO HORIZONTE – DE 24 A 26 DE Outubro de 2017


De fato, observa-se que a cidade se apresenta em um processo de expansão territorial espontânea e irregular desde a década de 1920, em decorrência da explosão demográfica ocasionada pelas secas no interior do estado. Em 1930, a capital ultrapassa 125 mil habitantes e em 1940 chega a 180.185 habitantes. Com os setores oeste e sul da cidade ocupados pela camada pobre da população, as famílias de alta renda começam a procurar novos locais para a construção de suas residências. Essa situação forma o cenário em que se desenvolvem novos bairros, conformados por uma classe média que se fixa em chácaras então periféricas da cidade, como o Benfica, Alagadiço e Joaquim Távora. O Bairro da Jacarecanga, logo transformado em localidade nobre da cidade, destacado pelo conjunto de edificações ecléticas, também surge nesse período. Entretanto, a instalação de indústrias na Jacarecanga logo iria determinar uma mudança de feição e de uso. A elite fortalezense que ali havia se instalado, novamente sai à procura de novas áreas na cidade e a parte leste se destaca pela condição de isolamento proporcionada pelo Riacho Pajeú. É nesse contexto que, ao longo da década de 1930, se desenvolve o Bairro da Aldeota, que permanece como área nobre da cidade até a atualidade. Nas proximidades dessa nova centralidade, destaca-se também a reconfiguração da Praia de Iracema, que passa a sediar residências de veraneio da elite Fortalezense no momento em que os banhos de mar perdem a sua função medicinal e passam a ser vistos como atividade de lazer. A cidade continua se desenvolvendo de forma irregular ao longo da década de 1930 com a criação de novos bairros promovida por comerciantes e industriais, a exemplo do Bairro Dionísio Torres, onde está localizada a Vila Vicentina, objeto de estudo em questão.

O Bairro Dionísio Torres e a Vila Vicentina da Estância A história da Vila Vicentina está profundamente relacionada à história da construção do Bairro Dionísio Torres, onde está localizada. A construção do Bairro se insere dentro do contexto de expansão territorial da cidade de Fortaleza ocorrido a partir dos anos 1930, no eixo de crescimento rumo ao setor leste da cidade, no sítio inicialmente denominado Estância Castelo. O local, ainda não urbanizado, foi comprado por Dionísio de Oliveira Torres – farmacêutico e empreendedor que iria dar nome ao Bairro – e inicialmente englobava 75 hectares de terra V SEMINÁRIO IBERO-AMAERICANO ARQUITETURA E DOCUMENTAÇÃO BELO HORIZONTE – DE 24 A 26 DE Outubro de 2017


de propriedade dos herdeiros do Barão de Aquiraz. Conforme informações encontradas no Portal Dionísio Torres1, a operação foi vista como de alto risco, sendo desaconselhada pelos amigos do empreendedor, por se tratar de uma região inóspita, de difícil acesso, local de ‘mata rala e imprestável, reduto de marginais’. No centro da propriedade, Torres viria a construir a Granja-Leiteira Estância-Castelo, voltada para as atividades pecuárias, com a criação de gado, avicultura e caprinocultura. Em 1939, seguindo o vetor de expansão da cidade, vai iniciar o processo de urbanização do local através da divisão em lotes de 58 hectares de sua propriedade, empreendimento conhecido como Loteamento Terras da Estância Castelo (Duarte Júnior, 2017, p. 4). A partir de então, também por iniciativa de Dionísio Torres, obras de infraestrutura urbana como a instalação de luz elétrica, o calçamento de vias (feito em parceria com a Prefeitura Municipal) e a construção de um reservatório de água foram realizadas com vistas a dar suporte ao gradativo povoamento da região. Esse processo tem prosseguimento com o investimento no segmento habitacional, com a construção das vilas populares denominadas Vila Estância, Vila Zoraide e Vila Vicentina da Estância. A primeira era composta por um conjunto de 60 casas, alugadas para pessoas que trabalhavam na localidade, que adquiriram a titularidade dos imóveis ao longo do tempo, abrindo caminho para as práticas construtivas que iriam acarretar em modificações morfológicas. A segunda, Vila Zoraide, se insere dentro de um movimento de construção de habitações para as camadas mais pobres da sociedade fortalezense da época. A Vila, composta por 58 casas, estava situava no que pode ser entendida como a periferia urbana do município, tal qual representado na Planta de Saboya Ribeiro de Fortaleza de 1945 (Duarte Júnior, 2017, p. 7). A sua construção é uma amostra da maneira como o empresário lidava com as questões assistenciais, preferindo o ordenamento espacial à ocupação espontânea, também um reflexo da segregação social que ocorria na época. Assim como o que ocorreu na Vila Estância, seus moradores também adquiriram a titularidade dos imóveis e as edificações tiveram suas feições bastante modificadas ao longo do tempo, não havendo hoje muitos resquícios arquitetônicos ou do seu traçado urbano. A Vila Vicentina da Estância, objeto de estudo desta pesquisa, foi construída no mesmo contexto que as outras Vilas acima descritas, imbuída de um caráter assistencialista. A

1http://dionisiotorres.com.br/

, acesso em 18/10/2017.

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propriedade onde está localizada foi doada ao Sr. Raimundo de Alencar Araripe – representante da Sociedade Beneficente São Vicente de Paulo – em documento registrado em 13 de dezembro de 1938. Conforme entrevista com os moradores realizada em setembro de 2017, as habitações seriam inicialmente destinadas a acomodar viúvas idosas e seus filhos, assistidos pela Sociedade São Vicente de Paulo – doravante referida como Ordem, Sociedade Vicentina ou SSVP. A Vila abrigou também donatárias que receberam o imóvel como contribuição por serviços prestados, muitas eram empregadas domésticas em idade avançada, e com o passar do tempo, notoriamente durante a década de 1970, houve o ingresso de outros residentes com os mais diversos perfis (Duarte Junior, 2017, p.8). A Vila passa a ser conhecida como “Vila Cinzenta” por abrigar um conjunto de 40 casas de aspecto singelo e construídas em alvenaria pintada na cor cinza. Alguns relatos apontam para uma construção gradativa do espaço, conformado em torno de um pátio central descoberto e mantendo o mesmo padrão de relação com o entorno que as outras duas Vilas supracitadas: a ausência de muros altos que impedissem uma pronta comunicação com a rua (Figura 1).

Figura 1 – Foto aérea tirada no início dos anos 60. Fonte: Arquivo Nirez

No entanto, diferentemente das outras Vilas construídas, a Vila Vicentina será caracterizada por uma diferente relação que ali se estabelece com a vizinhança. A capela que estava inserida no conjunto era usufruída pela população do entorno, bem como o chafariz existente no centro do pátio interno, utilizado para a lavagem de roupas não só pelos residentes como também pelos empregados que trabalhavam nas residências situadas nas proximidades. O acesso se dava por meio de um portão de duas folhas em madeira, voltado para a Rua Tibúrcio Cavalcante. Eventos e festas também eram compartilhados com a vizinhança. V SEMINÁRIO IBERO-AMAERICANO ARQUITETURA E DOCUMENTAÇÃO BELO HORIZONTE – DE 24 A 26 DE Outubro de 2017


Com o tempo, em atendimento a demandas internas dos moradores, o conjunto sofreu diversas alterações no seu espaço interno espaço chegando a incorporar um ambulatório médico; uma enfermaria; um espaço para educação; um gabinete dentário; um espaço de recreação; e uma administração composta de sala para o administrador, tesouraria e secretaria, entre outros ambientes (Duarte Júnior, 2017, p. 9). Outras alterações levadas a cabo no espaço da Vila Vicentina têm relação direta com a dinâmica social estabelecida entre esta e a Sociedade São Vicente de Paulo, intermediada pelos administradores, incumbidos da tarefa de gerenciar o conjunto. Havia diretrizes estabelecidas para o uso e conservação do espaço, como manter a pintura da parte externa na cor cinza e as esquadrias originais da fachada e não vedar ou expandir o imóvel doado (Duarte Júnior, 2017, p. 10). Essas normativas acabaram contribuindo para a manutenção de certa unidade arquitetônica ao longo do tempo. Contudo, alguns fatores viriam a ser determinantes para as alterações implementadas a partir da década de 1970, quando há a retirada de parte do auxílio financeiro por benfeitores que mantinham a Vila. Assim, foi necessária a abertura a novos moradores, que habitariam o espaço mediante o pagamento de uma taxa simbólica. Na década de 1980, após a morte do Coronel Adacto, administrador do local até então, as antigas normas de manutenção do conjunto são flexibilizadas e é dado início a um processo de transformações ocasionadas pela permissão dada aos moradores de modificarem suas casas. Soma-se a isso o enfraquecimento dos laços entre os habitantes do conjunto e a perda definitiva de auxílio por parte dos benfeitores. Os moradores foram enfáticos ao dizer Pessoas Assistidas moravam de graça, não tendo direito a que familiares morassem com o mesmo, mas haviam moradores que pagavam cota mensal para a manutenção da vila em seus ambientes comuns, a eles era dado o direito de receber membros da família para dividir a habitação. Alguns moradores vieram para vila quando ainda eram pequenos, vindo para morar com avós. Na década de 1970, a vila ainda continha um chafariz central, que servia de área de serviço comum, caixa dágua comum com hora de funcionamento, posto de saúde com atendimento às sextas-feiras, havia entrega de leite para as pessoas carentes e escola com funcionamento de 3 turnos. Recomendava-se que os idosos não deveriam ficar sós para não correrem riscos de ficarem desatendidos em caso de emergência. Na década de 70 ainda se preservava o toque de recolher, e regras de uso das áreas comuns da vila.

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Os fatos acima narrados contribuem para que os moradores tenham que assumir a manutenção das casas em que viviam, providenciando as condições materiais de conservação das residências. A partir desse momento, ocorrerão as principais alterações morfológicas, como a construção de novos ambientes; a modificação de esquadrias acompanhadas da inserção de gradis; a construção nos espaços anteriormente vazios; a edificação de muros altos em alguns trechos do limite do lote; a demolição do chafariz e do poço que lá existia. O antigo pátio interno tem sua área reduzida pelas constantes intervenções e seu espaço, que antes sediava festividades comunitárias, passa a ser utilizado exclusivamente pelos residentes, que o utilizam como depósito ou o ocupam com varais e atividades de lazer. Estas alterações acompanharam as modificações que foram efetuadas no Bairro, principalmente a partir da década de 1950, que já apresentava infraestrutura urbana e vai gradativamente se modernizando e se tornando um pólo de atração para as empresas que de comunicação que ali se instalam, tendo como um dos pontos-chave a instalação da TV Ceará Canal 2, primeira das muitas torres de transmissão até hoje existentes. Ao longo das últimas décadas, o bairro Dionísio Torres teve seu valor imobiliário elevado, motivado por sua infraestrutura urbana e pela existência dos equipamentos de comunicação e multiplicidade de serviços oferecidos nesse espaço. Como consequência disso, atualmente tem seu território marcado por uma forte verticalização (Figura 2) e disputado por investidores imobiliários, com o preço do metro quadrado dos terrenos avaliado em R$ 5.000,00 (cinco mil reais).

Figura 2 – Foto aérea atual. Fonte: Google Earth

Desta forma, a pressão exercida pela especulação imobiliária que ocorre em diversos bairros da cidade tem sido uma constante e os moradores da Vila Vicentina vêm sendo assediados para deixar o local. Esse processo culminou com a demolição total de três casas V SEMINÁRIO IBERO-AMAERICANO ARQUITETURA E DOCUMENTAÇÃO BELO HORIZONTE – DE 24 A 26 DE Outubro de 2017


e parcial de seis casas – que tiveram seus telhados total ou parcialmente removidos – ocorridas no dia 28 de outubro de 2016, em virtude de uma ação de reintegração de posse do terreno. A mobilização social em torno do caso gerou uma grande repercussão de vários setores da sociedade por dois fatores principais: pelo fato da vila estar localizada em uma Zona Especial de Interesse Social – ZEIS do tipo 1, conforme determinado pelo Plano Diretor Participativo de Fortaleza (lei 062/2009) e por ser um espaço representativo de valores arquitetônicos e urbanísticos de outrora, numa cidade cada vez mais carente de testemunhos de sua história. Apoiados pelo Escritório Frei Tito, da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará e por diversos representantes de movimentos sociais e faculdades e universidades de Fortaleza, os moradores que querem permanecer no local ganham fôlego para continuar sua resistência. Como um dos principais desdobramentos desta disputa, tem-se – além das ações junto ao Ministério Público e aos órgãos da Prefeitura – o pedido de tombamento municipal efetuado, como um reconhecimento do valor histórico, arquitetônico e afetivo do local.

A arquitetura como documento: a Vila Vicentina como objeto de pesquisa A história do conjunto residencial Vila Vicentina da Estância, exemplar de tipologia de vila popular, acompanha boa parte da história do setor urbano em que se situa, possuindo relevância arquitetônica, morfológica, urbanística, histórica e afetiva para a cidade de Fortaleza. A Vila Vicentina da Estância ocupa a totalidade de um quarteirão, definido ao norte pela Rua Dom Expedito Lopes, a oeste pela Rua Nunes Valente, a leste pela Rua Tibúrcio Cavalcante, e ao sul pela Avenida Antônio Sales, apresentando um desnível de cerca de seis metros no sentido sul-norte. Apesar da recente vocação do bairro para tipologias sócio-ocupacionais de padrão superior, a Vila vem se mantendo por longos anos. Podem-se apontar diversas questões que contribuíram para a permanência de boa parte das características arquitetônicas da Vila, tais como, os esforços de autogestão da Sociedade São Vicente de Paulo estabelecendo regras de convivência e de limitações quanto à modificação da fachada, apesar de existirem autoconstruções progressivas no interior da quadra (reformas ou ampliações).

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Como abordado, a Vila Vicentina da Estância é testemunho de um longo processo de transformação histórica, perpassando as mais diversas fases da urbanização do bairro Dionísio Torres, carregando, ainda, em sua materialidade, vestígios dessa lenta transmutação. É, portanto, apoiada no entendimento de Marina Waisman (2013, p. 11), de que o objeto da historiografia da arquitetura existe no presente por si mesmo e que o trabalho historiográfico deve partir da realidade presente, que a Vila Vicentina é tomada como objeto de estudo dessa pesquisa, que tem como um dos objetivos registrar o conjunto de alterações que foram empreendidas no local para compreender os processos históricos de conformação do espaço arquitetônico e urbano. A primeira parte desta pesquisa, iniciada em março de 2017, compreende o levantamento arquitetônico da Vila, desenhado primeiramente utilizando a ferramenta AutoCAD 2016, a partir da medição direta em 14 residências (figura 3), autorizadas pelos proprietários, das 40 unidades existentes. Foram realizadas seis visitas de campo e dezoito dias de digitalização em CAD, devido a cartografia do munício ser disponibilizada em CAD, para posterior modelagem na plataforma BIM e documentação dos sistemas construtivos da época (HBIM). Ressalta-se que 3 casas já foram demolidas, durante a execução da ação de reintegração de posse em 2016, conforme elucidado anteriormente. As demais unidades habitacionais da vila ainda não autorizaram o levantamento ou estão desocupadas e fechadas, impedindo o acesso para medição.

Figura 3 – Levantamento da vila pela Av. Antônio Sales Fonte: as autoras.

No início dos trabalhos, foi realizado estudo documental da planta de situação da vila e verificado que existiam inconsistências que deveriam ser conferidas in loco. Durante os levantamentos, constatou-se que as residências, apesar de terem sido construídas inicialmente com leiautes iguais, possuem áreas muito variadas, fruto de ampliações diversas na região central da quadra, onde se localiza o pátio, que vão de 32,00 metros quadrados a 110 metros quadrados e programa de necessidades reduzido: único pavimento térreo, constituído de 02 quartos, 01 banheiro, cozinha, sala de estar, e área de serviço. Além disso, algumas esquadrias e pisos foram alterados. Os sistemas e técnicas construtivas utilizados nas edificações tira proveito de tecnologias comumente utilizados na época. O sistema construtivo baseia-se em paredes autoportantes V SEMINÁRIO IBERO-AMAERICANO ARQUITETURA E DOCUMENTAÇÃO BELO HORIZONTE – DE 24 A 26 DE Outubro de 2017


de tijolos de diatomita 15cm. O sistema de coberta é caracterizado pelo uso do madeiramento de caibro, ripa e terça sustentando telhas de barro tipo “capa-canal” formando um telhado de duas águas e as esquadrias de madeira tipo veneziana. Muitas casas instalaram gradis para segurança, porém são intervenções realizadas por moradores ao longo da história da vila. O piso era composto de ladrilho hidráulico (tabela 01), porém muitas casas já empreenderam reformas alterando este por cerâmica. Sistema Construtivo

Caracterização

Paredes externas

Tijolos de diatomita com 15 cm

Paredes internas

Tijolos de diatomita com 15 cm

Piso

Ladrilho hidráulico

Janelas

Madeira tipo veneziana.

Telhas/Telhado

Telhas de barro colonial em duas águas (telhado aparente sem forro ou laje) Tabela 01

Ressalta-se que se buscou, junto aos atuais moradores, fotografias que documentassem a evolução da vila, contudo, devido ao elevado custo de aquisição de máquinas fotográficas e revelação dos filmes na época, não existem esses registros. Após a digitalização, o levantamento foi confrontado com a cartografia oficial do município para validação do georreferenciamento (figura 4).

(a)

(b)

Figura 4 – Cartografia de Fortaleza (a); Levantamento georreferenciado (b). Fonte: as autoras.

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O espaço do pátio interno em torno do qual as edificações se organizam ainda se encontra em processo de levantamento e após sua conclusão, será realizada uma confrontação com a iconografia existente, buscando elucidar as transformações empreendidas neste espaço. Assim, a segunda fase da pesquisa compreenderá a verificação da recorrência de formas, distribuição espacial e de padrões de expansão das moradias na morfologia final das habitações, com base no estudo da gramática da forma. O trabalho realizado até o momento mostra a importância da realização do cadastro de um bem para ajudar a conservar sua imagem e história, visando sua preservação, visto que a obra, embora pertença a outro tempo, é, em si mesma, o testemunho histórico principal e imprescindível, o que reúne em si os dados mais significativos para seu conhecimento (Waisman, 2013, p. 12). No Brasil, especialmente em Fortaleza, muitos bens de valor histórico não foram devidamente documentados, o que acarretou uma deficiência de informações acerca de edificações e espaços livres importantes para a cidade. A Vila, para além da sua composição arquitetônica e inserção urbana, traz em si valores imateriais, retomando modos de convivência considerados perdidos, numa região da cidade densamente ocupada e verticalizada, repleta de exemplares dos atuais modos de viver e morar.

Considerações Finais Documentar a arquitetura significa toma-la como fonte de pesquisa para a elaboração de uma narrativa histórica. Esta afirmativa contempla não só o caso da Vila Vicentina da Estância como diversas edificações e espaços. A relação existente entre esse conjunto arquitetônico e a cidade de Fortaleza perpassa a relação de afetividades entre habitantes e espaço urbano, há muito tempo enfraquecida por uma busca de modernização das cidades e pela construção de um ideário de progresso acompanha a sociedade desde o final do século XIX. De fato, é importante observar que essa ideia de progresso envolve a destruição de espaços considerados obsoletos. Observa-se que as exigências de “modernização” não estão imbuídas de valores que possibilitem um novo entendimento sobre a importância da preservação da história da cidade, manifestando-se de forma contundente na destruição de edifícios representativos pela força do mercado imobiliário. No caso específico da Vila Vicentina, foi preciso que sua permanência física fosse ameaçada para que o reconhecimento de seu valor para a cidade ocorresse, trazendo a V SEMINÁRIO IBERO-AMAERICANO ARQUITETURA E DOCUMENTAÇÃO BELO HORIZONTE – DE 24 A 26 DE Outubro de 2017


esperança de uma nova forma do Fortalezense pensar e se relacionar com a sua história. Nesse sentido espera-se que a pesquisa que está em andamento possa contribuir para a manutenção da memória urbana e para a investigação de tipologias arquitetônicas pouco valorizadas pela historiografia oficial.

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