Prática pedagógica em turmas multisseradas: etnossaberes

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS EM TURMAS MULTISSERIADAS: UMA REFLEXÃO PARA A CONSTRUÇÃO DO ETNOCURRÍCULO DA ESCOLA JOSÉ CRISÓSTOMO BASÍLIO – CAUCAIA-CEARÁ Cláudia de Oliveira da Silva1 Natália Albano de Matos2 Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas. Rubem Alves RESUMO Este artigo apresenta uma reflexão sobre algumas experiências pedagógicas, influenciadas pelos etnosaberes nas turmas multisseriadas do Ensino Fundamental – Anos Iniciais, da Escola de Educação Infantil e Ensino Fundamental – EEIEF José Crisóstomo Basílio – Caucaia- CE. O relato tem como base algumas experiências vivenciadas pelos(as) educandos(as) no ano pandêmico de 2021. A inclusão dos etnosaberes no currículo escolar proporciona aos(as) educandos(as) e educadores(as) o fortalecimento da identidade, a valorização das suas origens, o reconhecimento da importância do seu território e uma aprendizagem significativa através de metodologias que os(as) percebam como sujeitos produtores de conhecimentos. A identidade é a intimidade com os patrimônios culturais, materiais e imateriais, dos quais imana a noção de pertencimento ou apropriação de grupo cultural (CUNHA JUNIOR, 2019). Nosso ponto de partida é o meu trabalho como professora recém-chegada à escola e as reflexões de uma mãe envolvida com a educação local. Para fundamentar nosso texto, bebemos na fonte de algumas abordagens pedagógicas e metodologias que valorizam o contexto sóciohistórico e cultural da comunidade. Portanto, convidamos para nossa roda de conversa Cunha Junior (2019), Castilho e Santana (2019), Santos e Nunes (2021), Chagas e Pasuch (2016), Silva (2020), Vieira e Vieira (2019), Andrade (2017), entre outros(as). Consideramos muito importante o empoderamento das crianças e jovens a partir da educação, por isso é necessário que os saberes escolares se aproximem cada vez mais dos etnosaberes da comunidade, para que despertem o desejo de aprender a partir de conhecimentos construídos por gerações e que foram secularmente invisibilizados. Há saberes que a escola valoriza bastante e há outros que a escola valoriza menos, como é o caso dos saberes práticos dos grupos e culturas específicas (ANDRADE, 2017). A escola precisa dialogar com os interesses coletivos e buscar construir posturas de respeito e valorização aos etnosaberes como uma potente ferramenta de ensinoaprendizagem e construção identitária. Palavras-chave: multisseriada - currículo – etnosaberes INTRODUÇÃO Com o advento da Base Nacional Comum Curricular – BNCC para a Educação Infantil e Ensino Fundamental, estabelecida através da Resolução CNE/CP nº 2, de 22 de 1

Pedagoga, Especialista em Formação de Professores de Quilombo, Mestra em Educação Brasileira, professora P1 das turmas multisseriadas do 1º ao 5º ano – EEIEF José Crisóstomo Basílio. E-mail: claudia.quilombola@alu.ufc.br 2 Mãe da Marjorie e do Davi. Pedagoga e pós-graduanda em Gestão e Coordenação Escolar. E-mail: nataliamattosoficial@gmail.com


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dezembro de 2017, a sua implementação passa a ser obrigatória a partir de 2020. O município estabeleceu as Orientações Curriculares Prioritárias Municipais de Caucaia – OCPMC e nosso desafio é relacionar essas informações aos etnosaberes em prol da construção de conhecimentos reais para a vida das crianças e nada melhor do que iniciar a partir das suas próprias expectativas. Com esse conjunto de documentos norteadores (BNCC, OCPMC) cabem às instituições de ensino propor a parte diversificada. Nesse viés de pensamento, a interdisciplinaridade e o detalhamento das temáticas são fundamentais para se construir coletivamente um currículo representativo. Para isso acontecer, a escola deve participar da cultura local, trazendo-a para dentro de seus muros e vice-versa, num compartilhamento de conhecimentos e saberes, como afirma Macedo e Guerra (2016), Buscar vias para a descolonização curricular é afirmar a condição de que, em alguma medida do nosso envolvimento, somos todos curriculantes, praticantes do currículo e, com isso, legitimar a necessidade de se trabalhar em prol da descolonização do conhecimento como formativo; reiterar a ideia jossoniana3 de que a formação ou é experiencial ou então não é formação, bem como preparar um futuro social constituído por plurinarrativas curriculares (MACEDEO; GUERRA, 2016, p. 37).

Diversos fatores influenciam esse contexto do currículo centralizado e torna-se mais difícil sua descentralização de dominação e poder, quando ainda vivemos a pandemia do Covid-19, sendo necessário o distanciamento social. Contudo, nos deparamos com a falta de acesso às ferramentas e conhecimentos tecnológicos, aulas remotas e desmotivação familiar, que podem causar evasão escolar. Ao mesmo tempo que as aulas remotas não atendem às necessidades dos(as) educandos(as), acarretam uma carga horária dobrada e cansativa aos professores(as) e familiares, principalmente para os(as) profissionais que atuam com turmas multisseriadas. Diante de todos os desafios que encontramos, percebemos o etnocurrículo como um meio de problematizar os conteúdos normatizados nos livros didáticos e promover uma aprendizagem a partir de suas vivências socioculturais. Macedo e Guerra (2016) afirma que Para os etnocurriculistas [...] fazem muita diferença e abrem horizontes significativos para irmos superando uma longa história das mais autoritárias e excludentes, que é a invenção do currículo como um artefato pedagógico centrado em propor formação para-o-outro-sem-o-outro (MACEDEO; GUERRA, 2016, p. 37).

Conhecendo as autoras: mulheres em ação na educação e no ativismo social Apresentamos um pouco da nossa história e nossa relação com a educação desenvolvida na EEIEF José Crisóstomo Basílio, no ano de 2021. Sou Cláudia de Oliveira da Silva (Cláudia Quilombola) filha do chão do quilombo da Serra do Juá – Caucaia/CE. Professora efetiva do município desde a 3

Termo utilizado para se referir ao pensamento da Marie-Christine Josso que é socióloga, antropóloga, doutora em Ciências da Educação, professora na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra. Tornou-se conhecida no Brasil através de sua obra “Experiência de Vida, que considera o lado pessoal e não apenas o profissional na construção de conhecimentos.

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década de noventa. Quase toda minha experiência docente foi com turmas multisseriadas4 e com escolas de comunidades tradicionais. Sou apaixonada pelo que faço, pois percebo um rico patrimônio histórico/cultural nas comunidades e sempre quis envolver esses saberes nos currículos escolares. Sabemos que a maioria das propostas pedagógicas já vêm engessadas em modelos eurocêntricos que desconsideram totalmente o contexto em que as crianças vivem. É fundamental que os professores entendam que a sua prática não se pode limitar à dimensão teórica dos problemas científicos (VIEIRA; VIEIRA, 2019). Apesar de hoje não morar mais na minha comunidade quilombola, onde nasci e cresci, sinto muito orgulho das minhas relações comunitárias e minhas vivências que me fortalecem com os valores civilizatórios afro-brasileiros, os quais mantenho com muita gratidão aos meus ancestrais. No dia 08 de fevereiro de 2015, junto a outros(as) companheiros(as) de luta, criamos a Caravana Cultural Afroquilombola de Caucaia, tendo como madrinha Santa Josefina Bakhita5. Este coletivo atuou até a chegada da pandemia, com ações permanentes de empoderamento das pessoas das comunidades, pelo viés da cultura e da educação. O coletivo da Caravana (re)criou alguns projetos que tiveram continuidade, como Protagonismo das Mulheres Quilombolas, que proporcionou muitas reflexões, construções identitárias e autonomia das mulheres, chegando a ampliar para um grupo de mulheres cirandeiras, trabalhando seu pertencimento através das danças circulares. A Celebração Afro foi (re)criada em homenagens aos nossos(as) ancestrais, que também deu espaço ao Prêmio Sankofa 6. Estamos aguardando o fim da pandemia para reformular o coletivo Caravana e seguir contribuindo com a manutenção cultural de raiz africana nas comunidades tradicionais. Quando contribuímos com o fortalecimento do pertencimento de outras pessoas, é nosso pertencimento que está sendo fortalecido. Nessa trajetória como professora e ativista social tive a oportunidade de conhecer intelectuais que me inspiram com seus referenciais e suas ações para a construção do conhecimento, a partir da „porteira de dentro7‟. Essas reflexões levam-me a preferir pedagogias que colocam os sujeitos como protagonistas e construtores de sua própria história, como a Pretagogia, Sociopoética, Pedagogia das Africanidades, Pedagogia dos Etnosaberes, dentre outras. Após muitos anos fora da sala de aula, em 2021 iniciei meu trabalho docente na EEIEF José Crisóstomo Basílio, Camará, Caucaia/CE, com turmas multisseriadas (1º, 2º e 3º) manhã e (4º e 5º) tarde. Quando cheguei à escola o quadro funcional ainda não estava completo, mas apesar de não ter tido um apoio pedagógico para iniciar o

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Educandos(as) com idade e ano escolar diferentes estudando em uma mesma turma. Josephine Bakhita (1869 – 8 de fevereiro de 1947) foi uma freira católica de origem africana, que viveu e exerceu o ministério religioso na Itália durante 45 anos. Em outubro de 2000 foi declarada santa pela Igreja Católica. Disponível em: https://www.geledes.org.br/josephine-bakhita/ 6 Prêmio simbólico oferecido a personalidades reconhecidas pelo coletivo como colaborador(a) das nossas lutas. O prêmio Sankofa já homenageou mais de 50 pessoas desde sua criação. 7 Termo utilizado por Mãe Stella de Oxóssi para dizer que para identificar as africanidades é preciso partir de nós mesmos. 5

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trabalho com as crianças, senti-me bem acolhida e busquei estratégias para realizar o meu propósito. Aos poucos, fui tendo contato com as famílias dos(as) meus educandos(as), pois tudo aconteceu de forma processual, afinal, ainda estamos vivendo o isolamento social, causado pela pandemia do Covid-19. Desde o início, tenho buscado construir uma proposta de trabalho envolvendo as crianças e as famílias, mesmo no ensino remoto, mas buscando criar laços de afetividade e esperança de dias melhores para todos(as). Quem mais se aproximou das ações pedagógicas foi a Natália Matos, mãe da Marjorie Matos Rodrigues, estudante do 2º ano. Fomos construindo diálogos sobre a educação das crianças e, assim que iniciei as atividades, percebi seu potencial e suas importantes intervenções, sempre refletindo as práticas desenvolvidas na escola. Resolvemos escrever sobre algumas experiências exitosas e reflexões que temos feito, a partir do meu ponto de vista como professora das turmas e da visão da Natália Matos, como mãe, e que tem muitos conhecimentos pedagógicos. Sou Natália Albano de Matos, nascida em Fortaleza, mas desde muito cedo fui adotada por uma família natural de Caucaia/CE, onde cresci rodeada de valores humanos, bons princípios e muito incentivo para minha formação pessoal e profissional. Meu pai (adotivo) é agricultor e minha mãe hoje é aposentada, mas prestou serviços domésticos por muito tempo (mesmo depois de casada) para a família que a criou. Sempre gostei de estudar e considero que meu amor pelo conhecimento e pelos livros partiu de meu pai biológico que amava ler e, principalmente, pelo incentivo da minha família. Mesmo estudando em escolas públicas, enfrentando dificuldades de acesso, distância de casa para a escola, escassez de materiais escolares e outros recursos necessários à efetivação da educação sistematizada, nunca foi motivo para desistir. As motivações dos meus pais me incentivaram a participar de projetos sociais na comunidade, despertando meu senso de coletividade e comunitarismo. No passado, participei de projetos sociais realizados por Dona Clarinda, uma senhora muito atuante no local, desenvolvendo ações relacionadas à educação, onde tempos depois conquistou a Escola João Paulo II. Apesar dos meus pais não terem tido a oportunidade de estudar, incentivo não faltou para que seus filhos(as) estudassem. Sou pedagoga e já atuei como professora na EEIEF José Crisóstomo Basílio e em outras escolas das redondezas. Estou cursando Pós-graduação em Gestão e Coordenação Escolar, sempre com o intuito de adquirir mais conhecimento para ajudar a minha comunidade. Quando olho para o passado, sinto orgulho das minhas contribuições, nas escolas onde trabalhei, pois hoje vejo os(as) jovens da minha comunidade ascendendo profissionalmente através da educação. É uma imensa satisfação e a certeza de que a educação é o caminho. Atualmente, minha relação com a EEIEF José Crisóstomo Basílio é como mãe da Marjorie (2º ano) e do Davi (EI), e como moradora local. Por isso, estou sempre pensado no melhor para todos(as) e tentando construir coletivamente uma educação que ofereça um ensino significativo, porque acredito no potencial e na resistência do meu povo.

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Reflexões conceituais sobre as turmas multisseriadas e os etnosaberes A EEIEF José Crisóstomo Basílio funciona com turmas multisseriadas devido ao pequeno número de estudantes, não conseguindo formar turmas seriadas. Trabalhar com essas turmas causa muito estranhamento para muitos profissionais da educação, pois acreditam que esse fazer pedagógico acarreta prejuízos ao aprendizado das crianças. Chagas e Pasuch (2016) afirmam que A multisseriação é considerada por muitos gestores e professores como um ensino de segunda categoria e sem alternativas de melhorias. Contudo, apesar dos problemas do ensino multisseriado, o mesmo tem contribuído significativamente para a educação da população camponesa, permitindo que as crianças permaneçam mais tempo junto às suas famílias em suas comunidades. E, assim, não necessitam se deslocar para outros povoados ou até para a sede municipal para estudarem. Mas, não quer dizer que tem que se calar, e parar de lutar por uma educação de qualidade na escola do campo, pois, criança que vivem no campo tem os mesmos direitos de uma criança que vive na cidade (CHAGAS; PASUCH, 2016, p. 1886).

A partir da visão que a educação de qualidade é direito fundamental para todos(as) e a permanência da escola na comunidade é também um direito conquistado, a realidade das turmas multisseriadas continuará acontecendo. Como afirma Chagas e Pasuch (2016), é urgente que se promova mudanças na formas de desenvolvimento da aprendizagem. Nessa perspectiva de ensino, destacamos a importância em adotar-se como procedimento metodológico a pesquisa-ação por meio da observação e registro da realidade a ser ensinada, propiciando condições para que todas as crianças possam desenvolver as habilidades e as competências necessárias às várias práticas de linguagem, ouvir, falar, ler e escrever (CHAGAS; PASUCH, 2016, p. 1885).

Os(as) professores(as), gestores(as) e a comunidade precisam se reinventar, buscar recursos pedagógicos específicos, pedagogias e metodologias adequadas, melhor qualificação profissional, formação continuada que atendam às necessidades do trabalho docente e participação ativa de todos(as) os(as) envolvidos(as), assim como nos ensina o provérbio africano que diz: “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. A reflexão em torno do currículo é uma bandeira levantada há muitas décadas, pois, na maioria das vezes, é através do conhecimento que a escola promove que se liberta ou aprisiona as mentes. Concordamos com Silva (2020), quando afirma que [...] o currículo passou a ser desmascarado como um espaço de poder, um meio pelo qual é reproduzida e mantida uma ideologia dominante, podendo, em contraponto, tornar-se igualmente um espaço de construção de novas relações sociais, de libertação, respeito às diferenças e de autonomia para reelaborar as relações de poder preexistentes na escola e consequentemente na produção de conhecimentos (SILVA, 2020, p. 14).

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O currículo é uma ferramenta de poder das classes dominantes, atualmente se fundamenta pelas orientações da BNCC. Por isso, os profissionais da educação e a comunidade precisam romper com a universalização do ensino, trazendo para a sala de aula temáticas que aproxime o(a) educando(a) de suas raízes e o(a) inclua no meio social. Através de algumas experiências com os(as) educandos(as) e de bons resultados observados pelas pessoas que participam de turmas multisseriadas, podemos considerar que através de um currículo significativo e metodologias colaborativas, podemos construir conhecimentos em turmas com faixa etária diferentes. Segundo Chagas e Pasuch (2016), Ao deixar de lado uma metodologia imposta por uma cartilha e partindo da leitura de mundo das crianças, passa a mediar e participar no processo de construção conceitual das linguagens específicas. O processo de ensino/aprendizagem da alfabetização pode ser organizado de modo que a leitura e a escrita sejam desenvolvidas numa linguagem real, natural, significativa e vivenciada (CHAGAS; PASUCH, 2016, p. 1584).

A maioria das escolas da zona rural de Caucaia-CE tem experiência com turmas multisseriadas. O fator mais agravante é quando os sistemas educacionais não reconhecem a importância desse trabalho ou sequer tentam compreender suas especificidades. Nesse sentido é que nos propomos a apresentar abordagens que promovem mais aproximação às vivências dos(as) educandos(as). Como afirma Silva (2020), Através dos Etnossaberes, compreendo que distintos grupos culturais estão subordinados a um contexto próprio, que envolve condições ambientais, sistemas de comunicação e estruturas de poder características do grupo. Por meio dessas definições evidencia-se que a utilização do termo para se referir aos saberes dos povos tradicionais se deve ao fato de estarem condicionados a um ambiente natural, social e cultural (etno) específico (SILVA, p. 10).

O etnocurrículo só será considerado quando as temáticas forem relevantes para a comunidade, as metodologias adequadas e os conhecimentos construídos coletivamente. Afinal, as pessoas que vivem em comunidade tradicionais trazem conhecimentos ancestrais transmitidos por gerações e que são patrimônios históricos riquíssimos. Os conhecimentos afro preservados para a manutenção da vida e dos modos de ser que herdamos e transformamos pelas nossas vivências são as afroinscrições que explicam o detalhamento dos processos, a física e a química de cada processo (CUNHA JUNIOR, 2019). Relato de experiência para a construção do etnocurrículo Quando eu e Natália nos conhecemos, logo percebi que nossas experiências podem contribuir para o que consideramos adequado em se falando de currículo em escolas de comunidades tradicionais. Nossas histórias se entrelaçam em muitos aspectos, desde nosso pertencimento às nossas raízes, a nossa trajetória pessoal e profissional, sempre lutando em prol da coletividade.

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Diante do contexto inicial já mencionado, convidei os(as) educandos(as) da turma 4º e 5º ano para expressarem suas expectativas em relação ao ensino e metodologia a serem desenvolvidas na escola. Através da plataforma Google Forms, enviei perguntas simples, como: quais temáticas você gostaria de estudar? Com quais metodologias você mais aprende? A maioria dos(as) entrevistados(as) registrou, de forma simples, que gostaria de estudar sobre sustentabilidade ambiental, cultura tradicional, valores e saberes local. A abordagem metodológica apontada por eles(as) para desenvolver as temáticas no currículo foi através de aulas mais dinâmicas, jogos colaborativos, entrevistas com pessoas da comunidade ou outras que valorize a autonomia na construção de conhecimentos. Compreendemos que os anseios dos(as) educandos(as) estão pautados indiretamente em uma educação emancipadora, construída a partir dos interesses de seus atores, promovendo a intergeracionalidade, manutenção da memória coletiva e do patrimônio cultural. Após algumas reflexões a partir das respostas recebidas, identificamos como problemática o distanciamento do que as escolas geralmente ensinam, com a realidade em que as crianças vivem em seus territórios. A criança que chega à escola já tem todo um percurso de construção cultural que lhe dá um entendimento para a vida e uma epistemologia com a qual se senta como aluno nas cadeiras da escola (ITURRA, 1990; VIEIRA 2019). Assim, elaboramos o projeto Etnosaberes na sala de aula (Re)Construindo e (re)significando uma escola afirmativa. O referido projeto tem por objetivo principal desenvolver habilidades relacionadas à leitura, escrita, interpretação e produção de texto, a partir da valorização da sua própria história, estimulando no(a) educando(a) o conhecimento linguístico e cultural, ajudando-o a construir uma visão crítica dentro e fora da sala de aula. O projeto está assentado em cinco princípios fundamentais para o seu desenvolvimento:  Interface com a BNCC: revisitamos os Campos de Atuação da BNCC relacionados ao desenvolvimento dos Objetos de Conhecimentos e Habilidades, de modo a contribuir com a formação humana e cidadã dos(as) educandos(as), ajudandoos(as) na sua inserção político-social;  Atitude investigativa e autoavaliativa: possibilita aos(às) professores(as) e participantes conhecer concepções etnorreferenciadas, procedimentos pedagógicos adequados ao contexto local, estudo permanente dos conteúdos teórico-metodológicos que deem suporte a problematização das situações relativas ao aprendizado mútuo;  Autonomia do Aprendiz: A proposta interdisciplinar adota como princípio o papel ativo dos(as) educandos(as) na construção do conhecimento, em que o processo de aquisição do saber é mais importante que o próprio saber. O(a) professor(a) atua, nesse contexto, como um facilitador(a) da autonomia dos(as) educandos(as) e um(a) incentivador(a) da participação coletiva;

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 Trabalho em Equipe: é um componente que facilita a autonomia e a avaliação da aprendizagem a partir das interações significativas, através das quais os indivíduos co-constroem o seu conhecimento. Fundamentam-se também os pressupostos da aprendizagem colaborativa. As interações são a chave para o desenvolvimento social, afetivo e, sobretudo, cognitivo. Trabalhando juntos(as), os(as) educandos(as) e os(as) educadores(as) não compartilham apenas ideias e informações, mas também estilos e estratégias de aprendizagem.  Espaços de aprendizagem: a sala de aula e qualquer outro ambiente/espaço de aprendizagem, intramuros (salas de leitura, espaços de convivência da escola, horta e horto medicinal, etc.) ou extramuros (casas de farinha, construções antigas, igrejas, lugares geomíticos, riachos, cachoeiras, etc.), devem promover a experiência, a experimentação e a habilidade de problematizar dos(a) educandos(as) e das pessoas da comunidade. Para o desenvolvimento da metodologia interdisciplinar nos apoiamos em pedagogias que dialogam com essa valorização da maneira de ser e conviver da comunidade. Para isso, distribuímos as temáticas em Eixos Temáticos Gerais que serão distribuídos em unidades temáticas alinhadas às habilidades prioritárias previstas nas OCPMC. Práticas Comunitárias como referência dos etnosaberes na formação da identidade:  Quem sou eu: minha identidade¸ meu pertencimento;  Formas de organização e relações familiares: árvore dos etnosaberes;  Relações comunitárias: memória coletiva, ancestralidade, oralidade;  Formas de trabalho: artesã(os)e mestras(es) da comunidade;  Culinária Tradicional: alimentação saudável;  Agricultura e sustentabilidade ambiental: formas de plantio, sementes crioulas, tecnologias tradicionais, as belezas geográficas do lugar; relações com a natureza e com o próprio corpo em diferentes culturas. Literatura e personalidades indígenas, afro-brasileiras e africanas:  Repertório oral da comunidade;  Diferentes linguagens pelas quais se expressa a pluralidade cultural;  Contos e narrativas - histórias de vida - vevências;  Mitos e lendas indígenas, afro-brasileiras e africanas;  Genêros textuais diversos;  Provérbios africanos e locais;  A mulher negra e indígena na literatura. Pluralidade Cultural na formação do Brasil e tradições locais:  Cultura tradicional: os tipos de músicas e de danças do passado e do presente; produção artística como expressão da identidade etnocultural;  Brinquedos e brincadeiras de ontem e de hoje, festejos locais;

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 Inventário etnocultural da comunidade;  Moda e estilos afro-brasileiros – tecidos e estamparias afro;  Religiosidade afro no Brasil. Movimentos Sociais, lutas coletivas e educação:  Organização popular e lutas por direitos sociais;  Educação de qualidade como direito para todos(as) e dever do Estado;  Origens continentais das diferentes populações do Brasil;  Líderes afrodescendentes personalidades afro e indígena nacional e internacional;  Políticas afirmativas de educação;  Contribuições das diversas heranças etnoculturais, como mecanismos de resistência contra a homogeneização da população: racismo e discriminação;  O ser humano como agente social e produtor de cultura;  Formação dos quilombos no Brasil: origem, significado, contemporaneidade;  Povos e comunidade tradicionais; Dia da Consciência Negra e Dia Nacional de Zumbi dos Palmares;  Leis como princípios de cidadania;  Prática e valorização dos Direitos Humanos e outros. Os desafios já eram esperados, desde o início. Primeiro, por ser um trabalho remoto e muitas crianças não terem acesso favorável à internet, conhecimento das tecnologias adequadas ao ensino, motivação familiar, além do estranhamento das aulas online. Segundo, a resistência de estudantes e familiares em adequar-se às novas formas de ensino-aprendizagem. Por mais que tenham sugerido essas mudanças, não conseguiam reconhecer como aula, nada além de uma tarefa para ser preenchida no caderno. Consideramos o segundo como o fator mais impactante, pois o ensino bancário parecia ser bem presente na vida escolar deles(as). No contexto da pandemia percebemos com mais nitidez as desigualdades vividas pelas comunidades, através do racismo estrutural instalado. Para Batista, Rodrigues e Silva (2021, p. 21), As desigualdades socioeconômicas, raciais, não podem ser ignoradas no atual contexto de pandemia, ao ponto que o atravessamento do vírus por estruturas desiguais incide na consolidação das inúmeras vulnerabilidades nos mais diferentes espaços. De tal modo, a ideia de que a pandemia atingiria de formas iguais ricos e pobres foi desmascarada pela desigualdade eminente (BATISTA; RODRIGUES; SILVA, 2021, p. 21).

Mesmo diante disso, continuamos sugerindo a construção de conhecimentos através dos etnosaberes da própria comunidade e esperamos a adesão por parte de outras professoras da escola. O projeto Etnosaberes na Sala de Aula está sendo desenvolvido dentro das condições atuais, com o objetivo de se tornar permanente e inacabado. É preciso que haja flexibilidade para atender aos materiais estruturados e concomitantemente 9


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acessar os etnosaberes. As metodologias utilizadas até aqui permitiram as crianças pensar sua realidade, reconhecer a sabedoria dos mais velhos(as), identificar as potencialidades do território etnocultural, ampliando o repertório oral através de narrativas dos avôs e avós, contos e contação de história, confecção de jogos educativos e das próprias vivências comunitárias. O Mapa Afetivo do lugar foi uma atividade que gerou muitas descobertas e aprendizagens sobre os lugares geomíticos que fazem parte da memória coletiva, dando significado ancestral ao território. Para Cunha Junior (2019), Os lugares de memória fazem parte da construção histórica, formam um conjunto documental e são bem mais potentes que os lugares físicos de existência, pois são as revelações da consciência e das identificações do lugar. Podemos tomar ciência da existência de lugares contidos dentro das memórias de seus habitantes. (CUNHA JUNIOR, 2019, p. 88).

As crianças tiveram oportunidade de pensar sobre a importância dos elementos presentes em seu território. Com essas novas percepções, através das reflexões permitidas pelo mapa afetivo, outros olhares sobre as potencialidades locais foram sendo construídos. Algumas considerações A construção coletiva dos conhecimentos, promovida por uma prática pedagógica envolvida nos etnosaberes com as turmas do 1º ao 5º ano, tem sido muito relevante para o ensino e a aprendizagem dos(as) envolvidos(as). Nesse processo de criação e recriação do saber, aprendemos mutuamente e descobrimos potencialidades desvalorizadas pelo currículo convencional. O contexto que ainda estamos vivendo impossibilita maiores avanços, principalmente porque os(as) educandos(as) que moram nas comunidades ou periferias sofrem a negligência dos seus direitos educacionais, como o apoio pedagógico eficaz, acesso às ferramentas e suportes tecnológicos necessários à realização das aulas remotas, resultado do racismo estrutural instalado. É preciso que algo seja feito, e por mais que o sistema de ensino não ofereça as condições essenciais a uma educação que dialogue com os etnosaberes da comunidade, implementar o projeto Etnosaberes na Sala de Aula é uma das possibilidades para chamar a atenção dos(as) educandos(as) e comunidade, evitando uma evasão maior. Quando reconhecemos os(as) educandos(as) como sujeitos ativos, produtores(as) de conhecimentos, não podemos limitá-los somente a reprodução de uma tarefa sem conexão com seu contexto sociocultural. A luta contra as desigualdades sociais é permanente, quando mais se falando de ensino remoto, no entanto, percebemos algumas conquistas. Mesmo que a passos lentos, diante de tudo que foi apresentado, alguns resultados estão surgindo. As crianças começam a se envolver com outra maneira de aprender e ensinar. Os diálogos e reflexões apresentados por elas mostra uma ressignificação de sentido ao ensino. Os produtos didáticos construídos a partir dos

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conhecimentos adquiridos demonstram os pequenos avanços educacionais. O retorno para as crianças é fundamental para se deliciarem com os trabalhos desenvolvidos. A produção de pequenos vídeos, o Jornal do(a) Educando(a) sobre as temáticas apresentadas, do ponto de vista da aprendizagem dos educandos(as), tem gerado motivação. O uso de plataforma, como Padlet, tem facilitado à exposição dos materiais produzidos pelos(as) participantes.8 Natália Matos relatou sua experiência com a metodologia dos etnosaberes nas atividades de sua filha Marjorie Matos. Observou estar mais interessada quando as atividades se aproximam da sua realidade. Adora construir jogos educativos com materiais recicláveis, e apresenta muitos conhecimentos, a partir das atividades pedagógicas acompanhadas ou criadas por sua mãe. Natália tem conhecimentos e experiência com a pedagogia, mas reconhece que mesmo que as mães não tenham esses conhecimentos, é possível que as crianças se desenvolvam no ensino remoto, desde que as atividades tenham sentido para a vida delas.

REFERÊNCIAS CASTILHO, Suely Dulce de; SANTANA, Gonçalina Eva Almeida de. Etnosaberes e formação de professores quilombolas: reflexão a partir do olhar docente. Expressa Extensão. ISSN 2358-8185, v24, n1, p.40-54, JAN-ABR, 2020. CHAGAS, Rosilda Ribeiro; PASUCH, Jaqueline. Práticas Pedagógicas na Alfabetização de uma Turma Multisseriada no Campo. REP‟s - Revista Even. Pedagóg. Número Regular: Experiências em Educação do Campo: perspectivas e práticas pedagógicas. Sinop, v. 7, n. 3 (20. ed.), p. 1577-1603, ago./dez. 2016. ISSN 2236-3165. Disponível em: http://sinop.unemat.br/projetos/revista/index.php/eventos/index. Acesso em: 12 ago. 2021. SILVA, Luciana Maria da. Diversidade Cultural: o lugar dos etnosaberes na formação do professor. 2020. 111f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Educação- Supervisão pedagógica)- Faculdade de Ciências Sociais, Universidade da Madeira (UMA). Orientação: Jesus Maria Angélica Fernandes Sousa e Maria Isabel Nascimento Ledes. Funchal, 2020. CUNHA JUNIOR, Henrique. A espacialidade urbana das populações negras: conceitos para o patrimônio cultural. In: SANTOS, Marlene Pereira dos; CUNHA JUNIOR, Henrique (orgs.). Afro patrimônio cultural. Fortaleza: Via Dourada, 2019, p. 49 – 101.

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BATISTA, Maria Thais de Oliveira; RODRIGUES, Cícero Maxciel Elias; SILVA, Marta Soraya Sousa. Brasil: epicentro da pandemia e das desigualdades educacionais. In: SILVA, M. E. M. da.; COELHO, R. F. N. Educação e Saúde para a igualdade em relatos de experiências e pesquisas na pandemia: foco na educação especial, EJA, indígena, quilombola, básica e superior.. Fortaleza: Imprece, 2021.

Informações dos(as) Autores(as) Cláudia de Oliveira da Silva Universidade Federal do Ceará - UFC E-mail: claudia.quilombola@alu.ufc.br ORCID: Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/5022963161849482 Natália Albano de Matos Comunidade Camará – Caucaia/CE E-mail: nataliamattosoficial@gmail.com ORCID: Link Lattes:

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