cadernos kinoruss 1 TARKOVSKIANAS

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kinoruss

cadernos de pesquisa ano 1 n. 1 2011

TARKOVSKIANAS


CINEMA

TEATRO

TARK

TEMPO

ESPACO

MEMORIA


テ天SKI


EDITORA RESPONSÁVEL

Neide Jallageas CONSELHO EDITORIAL

Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Letras Orientais/Russo

Fabiola Notari Gabriela Soares Neide Jallageas Priscilla Herrerias Tieza Tissi

REVISÃO

Erivoneide Barros Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

Grupo de Pesquisa Eisenstein no Século XXI [GP E.XXI]

TRADUÇÃO

Anastassia Bytsenko Diego Moschkovich Gabriela Soares Neide Jallageas Noé Silva Tieza Tissi PROJETO GRÁFICO

Fabiola Notari COLABORADORES

Adolf Shapiro Alvaro Machado Anastassia Bytsenko Andriêi Andreiêvitch Tarkóvski Antonio Mengs Aury Porto Breno Morita Débora Bolsoni Diego Moschkovich Elena Vássina Jurij Alschitz Luah Guimarãez Lúcia Romano Luís Mármora Noé Silva SUPERVISÃO DE PROJETO

Arlete Cavaliere

http://www.kinoruss.com.br

Os cadernos de pesquisa kinoruss constituem-se em publicação eletrônica não comercial, semestral, editada pelo Grupo de Pesquisa E.XXI [GP E.XXI]. As opiniões expressas em seu conteúdo são de responsabilidade de seus respectivos autores. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio, sem a prévia autorização. Doações de materiais relevantes sobre o cinema russo, colaborações, sugestões e dúvidas poderão ser encaminhadas para kinoruss.cadernos@gmail.com.


















EDITORIAL

20

ANOTAÇÕES

24

memória escrita esquecimento fabiola notari

a ideia de mundo em A infância de Ivan tieza tissi

a construção do cinema poético erivoneide barros

a utopia e a ficção científica na literatura e no cinema: Solaris e Stalker de andriêi tarkóvski e suas fontes

gabriela soares

03 26 40

56

sobre o ator em tarkóvski - viver e confiar

priscilla herrerias

84 85 89 95

INTERSECÇÕES tarkóvski e seus atores: Hamlet kontchalóvski: acerca de andriêi o vagar perdido antonio mengs

s/título, 2011

102 débora bolsoni 109

polaroides de tarkósvki: entre rússia e itália

114

ENTREVISÕES da arte do ator a partir de stanislávski

115

entrevistas com os diretores adolf shapiro e jurij alschitz

para encenar dostoiévski 126

entrevista com mundana companhia

142

COMPLEMENTAÇÕES

70



20

EDITORIAL Os cadernos de pesquisa kinoruss integram o Projeto de Pesquisa Eisenstein no Século XXI - confluências potenciais entre o cinema e as artes de extração russa e propõem cumprir dois principais objetivos: disponibilizar os resultados do processo investigativo do Grupo de Pesquisa Eisenstein no Século XXI [GP E.XXI] e viabilizar interlocuções criativas com pesquisadores e artistas convidados. O GP E.XXI compõe-se de jovens pesquisadores que atuam junto ao Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura Russa do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (DLO/FFLCH/USP). As atividades do grupo concentram-se na pesquisa sobre a concepção eisensteiniana do cinema enquanto linguagem e o conceito de cinematismo, objetivando testar a sua pertinência na contemporaneidade, no campo das artes de extração russa: cinema e vídeo, artes cênicas e performáticas, artes visuais e literatura. Cinematismo é um conceito atribuído a Serguei Eisenstein, segundo o qual a linguagem do cinema constitui-se em uma espécie de observatório e celeiro de parâmetros que possibilitam que os demais sistemas artísticos sejam compreendidos e estudados, um em relação ao outro. Como parte de suas investigações, o GP E.XXI estuda a obra de cineastas russos em confluência com outras artes e os cadernos de pesquisa kinoruss, a cada número, apresentam um pequeno dossiê temático em torno do trabalho de determinado cineasta russo, registrando os estudos levados a cabo em cada semestre de pesquisa. Tal dossiê não pretende ser uma referência sobre este ou aquele cineasta. Sua ação se constitui em convite para entrever frestas através das quais possam ser realizadas novas interpretações e atualizações sobre a obra estudada, convocando aproximações de áreas pouco exploradas. Espera-se que, deste contato, artistas e pesquisadores possam entrelaçar poética e/ou conceitualmente a obra em estudo com outras obras e teorias afins. O primeiro número dos cadernos é dedicado ao cineasta russo Andriêi Arsiénievitch Tarkóvski (1932-1986), motivo pelo qual o dossiê inicial denomina-se TARKOVSKIANAS.


21 O sufixo ana surge, neste caso (e seguirá pelos números seguintes), junto ao nome de outros cineastas), para demonstrar potenciais de relação da obra e pensamento de um artista com outros artistas, outras obras e pensamentos. Tratando-se aqui de Tarkóvski, o conjunto de olhares sobre sua obra, ou em contato com ela, ainda que indiretamente, foi organizado em três blocos. No primeiro, estão as anotações, de autoria de cada uma das integrantes do GP E.XXI. O segundo bloco constitui-se de intersecções, em que procurouse destacar visões externas ao Grupo de Pesquisa, mantendo ainda o foco na obra cinematográfica, teatral e fotográfica do cineasta. O terceiro bloco, as entrevisões, busca transversalidades e se faz corpo através de diálogos com criadores das artes teatrais, examinando e sugerindo conexões de temas caros à obra de Tarkóvski: a direção de atores e o trabalho de adaptação de uma obra literária. No bloco anotações, o cinema de Tarkóvski é observado a partir de diferentes lugares: Erivoneide Barros investiga o conceito de poética em relação à linguagem cinematográfica para explorar os recursos que Tarkóvski utilizou na realização de seu filme de formatura", O rolo compressor e o violinista (1960); Priscilla Herrerias elege prioritariamente O Espelho (1973) e Andriêi Rublióv (1966) para discutir o trabalho que Tarkóvski realizava com os atores e que o indispunha com as diretrizes respeitadas pelos diretores soviéticos; Gabriela Soares coloca em pauta a construção de filmes que poderiam ser considerados adaptações, porém desviaram-se dos romances de ficção científica originais para tornarem-se obras únicas como Solaris (1972) e Stalker (1978), resgatando os textos que os originaram, o romance de Stanislaw Lem, Solaris (1961) e a novela de Arkadi e Boris Strugátski, Piquenique à beira da estrada (1971). Já o primeiro filme de sua série de longas, A Infância de Ivan (1961), é objeto de análise de Tieza Tissi, que estuda Iuri Lotman para abordar as fronteiras espaciais em sequências selecionadas, nas quais é possível observar a construção de um modelo de mundo. Também de A Infância de Ivan são os fragmentos de fotogramas que Fabiola Notari retrabalha em chapas metálicas gravadas e depois fotografadas, produzindo um sofisticado conjunto de imagens que abrem o caderno e o iluminam como fios de memória riscando o espaço eletrônico. Embora tenha sido cuidadosamente planejado, a trajetória deste primeiro número foi desenhada, em especial, pela generosidade daqueles que se reuniram em torno do interesse de alargar o campo de conhecimento sobre o cinema russo e as artes russas no Brasil e ofereceram suas colaborações. Também é estimulante para novas perspectivas de estudo, a investigação e descoberta de material audiovisual disponibilizado na internet, cujo conteúdo tem sido pouco discutido. Esse material foi selecionado e traduzido do russo para o português, especialmente para este número. Assim, o bloco intersecções se construiu em diálogo com as atividades de pesquisa e anotações através de especiais colaborações. O poeta espanhol Antonio Mengs ofertou significativo capítulo de sua pesquisa sobre Stalker, publicada na Espanha, mas inédita em português e para a qual a artista visual brasileira Débora Bolsoni emprestou páginas de seus desenhos, singularizados por elementos presentes no filme. Andriêi Andrêivitch Tarkóvski, filho do cineasta, atendeu a nossa solicitação e escolheu, dentre o acervo de luminosas polaroides realizadas pelo pai, uma fotografia da Rússia e outra da Itália, no momento em que o cineasta partia de seu país, pontuando os últimos anos de sua vida. Do material encontrado nas pesquisas pela rede web, alguns trechos de declarações do próprio Tarkóvski, junto aos seus atores, no momento em que encenava Hamlet nos palcos (anos 1970), foram capturadas algumas imagens em preto e branco e colhidas


22 algumas falas do próprio diretor que, depois de transcritas, foram gentilmente traduzidas pelo professor Noé Silva, do Departamento de Letras Orientais/FFLCH/USP, em colaboração com Gabriela Soares da Silva. O mesmo ocorreu com recente depoimento histórico do cineasta Andriêi Kontchalóvski, encontrado meio a milhões de informações na rede web, precioso por ser declarações de um antigo colega de Tarkóvski, a quem conheceu ainda no período dos estudos de cinema e foi seu companheiro nos primeiros filmes, tendo dele se afastado, principalmente, por discordância entre ambos sobre a direção de atores, dentre outras divergências que caracterizariam o afastamento de Tarkóvski de outros cineastas da Rússia soviética. O bloco entrevisões busca explorar possíveis pontos de contato que sugiram renovada compreensão do que ficou conhecido como método ou sistema Stanislávski, do qual Tarkóvski foi acusado de se afastar; busca ainda encorajar pesquisas sobre seus projetos inacabados, ou sequer iniciados, mas sobre o qual o cineasta muito escreveu, como foi o roteiro baseado em O Idiota, de Fiódor Dostoiévski, que ele, tantas vezes, comenta em seus diários, entrevistas e artigos. Para tanto, dois notáveis diretores da cena teatral russa e mundial, Adolf Shapiro e Iurij Alschitz responderam a questões que foram propostas pelo grupo e organizadas e traduzidas por Tieza Tissi, com a colaboração de Diego Moschkovich, Anastassia Bytsenko e a professora Elena Vássina, também do Departamento de Letras Orientais. E, para trazer a presença de Dostoiévski, uma homenagem ao desejo irrealizado de Tarkóvski, foi trazido para os cadernos a experiência de adaptação de O Idiota no Brasil. Com este objetivo, Alvaro Machado, editor e ensaísta brasileiro, responsável pelo primeiro volume mundialmente relevante sobre o cineasta russo Aleksandr Sokúrov (lançado em 2002), realizou, junto a esta editora, a entrevista com atores e realizadores de um dos principais grupos teatrais brasileiros, a mundana companhia, que levou aos palcos premiada adaptação brasileira de O Idiota, uma novela teatral, a partir do romance de Dostoiévski. A presença generosa de artistas e realizadores contemporâneos, do teatro e outras artes, acabou por traduzir-se em estímulo a renovadas leituras e investigações em campo russo e brasileiro. Se Tarkóvski é conhecido pela dimensão cinematográfica, faz-se rico perceber que ela também pode ser compreendida no contato com outras dimensões de sua produção, como, se nota, os seus elaborados roteiros que se constituem em peças literárias. O mesmo pode ser observado no estudo da direção artística da célebre encenação da ópera Boris Godunov (composta por Modest Musorgski, baseada em texto de Aleksandr Pushkin), a convite de Claudio Abbado para o Covent Garden (Royal Opera House, Londres, 1983). Outras dimensões desse contato é a sua histórica montagem teatral de Hamlet e a pungente série de fotografias polaroides que pontuam o olhar sensível que capturou as luzes da Rússia à Itália nos últimos anos de sua vida. Conceber, desenhar e produzir um espaço que discuta o campo artístico russo, em que a produção e reflexão de autores experientes e maduros ofereceu-se ao contato com o pensamento e realizações de jovens pesquisadores e artistas demonstrou ser um processo estimulante e enriquecedor. E, por fim, cabe dizer que a publicação em formato eletrônico é uma iniciativa que objetiva o acesso amplo, irrestrito e gratuito a este espaço que, apesar de modesto, almeja fomentar essa área de conhecimento no Brasil. TARKOVSKIANAS, o primeiro número dos cadernos de pesquisa kinoruss é lançado com este compromisso. Neide Jallageas



ANOTAÇÕES



A partir do conceito de oposições binárias na composição do espaço artístico, elaborado pelo semioticista e crítico formalista russo Iuri Lotman, o presente artigo analisa a composição do espaço nas imagens do filme A infância de Ivan, primeiro longa-metragem do cineasta russo (soviético) Andriêi Tarkóvski. Para tanto, propõe-se observar como tal composição espacial se constitui e cria um certo “modelo de mundo”.

A ideia de mundo em A infância de Ivan Tieza Tissi Primeira versão deste texto originalmente publicada na RevLet n.1, v.2. Jataí: Universidade Goiás, 2010.

Federal

de

Em seu livro, Andriêi Tarkóvski coloca o elemento tempo como matéria principal de sua obra cinematográfica. Embora seu conceito de tempo talvez pudesse ser desdobrado em tempo-espaço, ou cronótopo, na nomenclatura utilizada pelo filósofo e linguista russo Mikhail Bakhtin, o cineasta, em nenhum momento, se dispõe a fazê-lo; em seu livro, o cinema é sempre colocado como a única arte capaz de registrar uma impressão do tempo (TARKOVSKI, 2002). O cinema traria em si a possibilidade de imprimir o tempo na forma de um evento concreto, que pode ser constituído, nas palavras do autor, por um acontecimento, uma pessoa que se move ou qualquer objeto material; além disso, o objeto pode ser apresentado como imóvel e estático, contanto que essa imobilidade exista no curso real do tempo (TARKOVSKI, 2002, p.71). Mesmo que Tarkóvski construa suas imagens enfatizando a ação do tempo nos objetos, não é irrelevante que o autor do filme tenha selecionado cuidadosamente as imagens que deveriam compor sua obra e que, juntamente com sua equipe, tenha cuidado para que a luz que incide sobre os elementos da cena fosse uma e não outra, para que uns ocupassem o primeiro plano e outros, o segundo, para que a câmera o fotografasse de um ângulo preciso ao invés de outro. O meticuloso cuidado com que o cineasta compõe o espaço em A infância de Ivan (1961) acaba por construir um modelo de mundo. Partindo da relação entre os objetos selecionados pelo olhar da câmera e a subjetividade das personagens ou seu modo de agir no mundo, podemos perceber os contornos desse

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ao lado

moinho. (TARKOVSKI, 1961, 00:02:44)

modelo ou imagem de mundo. Em A estrutura do texto artístico, o semioticista e crítico formalista russo Iuri Lotman discorre acerca da relação homem-espaço e afirma que o espaço se apresenta ao homem na forma de objetos concretos quaisquer que o preenchem (LOTMAN, 1978, p. 375) e ainda, que um dado conjunto de objetos será considerado espaço, abstraindo-se daqueles todas as propriedades que não forem definidas por relações de aparência espacial. A estrutura do espaço na obra torna-se um modelo da estrutura do espaço do universo (idem, ibidem, p.361). Oposições binárias

Lotman compreende o texto artístico como uma seleção finita do espaço infinito do mundo e nós, calcados nesta noção, partiremos de algumas organizações espaciais do filme buscando levantar esses eixos espaciais (por exemplo, o eixo <alto-baixo>) que possibilitem a modelização do espaço de conceitos que não são de natureza espacial. Tomemos como exemplo meramente ilustrativo uma modelização espacial de função basilar na visão de mundo cristã, que atribui ao plano espacial <alto> o conceito moral de bem e ao plano <baixo>, o conceito de mal. Assim, associaremos conceitos de ordem não espaciais aos eixos espaciais. Aqui, falaremos novamente em fronteiras que, dentro do texto artístico, marcam a passagem de um espaço a outro, a saída ou adentramento em um espaço no qual não nos situávamos no momento imediatamente anterior. Na modelização espacial, pode acontecer de encontrarmos fronteiras claras dividindo um e outro espaço ou também fronteiras difusas. Na análise do presente texto artístico, o filme A infância de Ivan, encontramos uma manifestação específica de fronteiras que marcam claramente a passagem entre espaços, conservando, porém, elementos de um espaço em outro. Muitas vezes esses elementos são oriundos do tecido sonoro, mas há também objetos, imagens visíveis que perpassam a passagem entre espaços aqui considerados opostos, em nosso jogo de oposições binárias. A esse tipo de manifestação chamaremos interpermeabilidade, termo este que, apesar de não constar nos dicionários de nossa língua, pode comunicar a ideia de um espaço permeado pelo outro e vice e versa.


28 <Onírico> e <real>

(1)

Termo

Tarkóvski

utilizado em

Esculpir o tempo.

seu

por livro

A ação de A infância de Ivan é situada na Segunda Guerra Mundial, pouco antes da vitória russa sobre os nazistas. O personagem título, órfão, aos doze anos, trabalha como espião para o Exército Vermelho. A incompatibilidade entre a infância e a guerra é reforçada de maneira inusual no filme, pelas intersecções dos sonhos do garoto, como associações poéticas (1) no curso da narrativa. Não se trata de uma criança que se mostra fragilizada ou traumatizada pela guerra. As tintas do medo e do sofrimento são discretas. É a partir do contraste entre as duas figuras de Ivan o Ivan que vive na guerra e o Ivan que aparece em seus próprios sonhos que se materializa tal incompatibilidade. Serão, ao todo, quatro sonhos com tempos e texturas muito diversos das sequências da guerra. A alternância entre sequências do cotidiano de guerra junto ao Exército Vermelho e os sonhos faz-nos pensar em uma macroestrutura dividida inicialmente em dois espaços fundamentais, <onírico> e <real>, que podem ser também colocados como <espaço subjetivo> e <espaço objetivo>, tomando Ivan como referência. Essa cisão inicial dá corpo ao que podemos tratar como tema do filme, que seria a perda da infância de Ivan, contrapondo imagens de uma infância feliz com perpectivas de futuro à infância perdida na guerra. Ao inserir os quatro sonhos, que não são menos importantes que os planos da realidade objetiva, Tarkóvski potencializa a dimensão da crueldade da infância roubada pela guerra. Na primeira tomada do filme, vê-se o busto de um garoto, sem camisa, que olha por detrás de uma teia de aranha presa ao tronco de uma árvore. A trama da teia, em primeiro plano, funde-se à trama dos galhos da árvore, mais acima. Aqui temos a presença de um símbolo e arriscaremos uma leitura simbólica, como em alguns outros momentos da análise, sem deixarmos de olhar para a construção do espaço como elemento concreto constitutivo do universo artístico em questão.

(2) CIRLOT, 1984.

A teia de aranha tem seu simbolismo, conforme sintetizado no Dicionário de Símbolos, de Cirlot (2), equivalente ao do tecido em geral, por sua constituição de trama; subtrai-se da teia de aranha, como do tecido, o sentido de trama da vida, associado à ideia de destino. Colocado atrás da teia, em segundo plano, o garoto observaria, com expressão angustiada, seu próprio destino. Adiante, o movimento circular da câmera que se inicia junto ao voo da borboleta e depois se separa dela, mantendo no centro a criança imóvel, retomará a ideia de trama da vida.


29 Neste movimento de câmera, a impressão que se tem é de que o mundo é que gira em torno de Ivan. Em seguida, o olho da câmera desce veloz do alto da estrada, passando rapidamente por uma figura feminina para se deter na encosta de terra com raízes. A música recebe agudos acelerados que provocam certa angústia durante a descida. Quando, no final do sonho, a expressão alegre da mãe é nublada ao som de tiros de metralhadora e o menino grita por ela, a descida acelerada ganha o sentido de uma fatalidade - algo que vem de cima -, como se fosse determinado pelos deuses, um acontecimento que não podemos evitar. O plano simbólico deste sonho, que sobrepõe o som de tiros à imagem da mãe, sugere-nos a presença de sua morte no plano <real>. Há uma comprovada ausência da figura materna, nesse último plano, que contrasta com sua presença no plano <onírico>. Nele o espectador entra em contato com uma criança que se move pelo mundo natural ensolarado. O fato de estar sem camisa neste e em outros dois sonhos, e nunca nos planos do espaço <real>, corrobora para a construção de um espaço de liberdade e de integração à natureza; Ivan é a criança que, extasiada, descobre o mundo. Há, porém, uma oscilação em seu estado de espírito entre a alegria despreocupada da criança e a apreensão que colabora para a construção da eminente perda do paraíso (no sentido bíblico). Este tema da reconstrução e perda do paraíso se repetirá em todos os sonhos. Nos dois primeiros e no último, Ivan reviverá a morte da mãe. A separação entre a criança e a mãe seria um marco definitivo na infância, podendo, analogamente, ser comparada à perda do paraíso.

esquerda

Ivan em sua infância sonhada. O sonho retoma o espaço de paz, espaço possível somente no passado. (TARKOVSKI, 1961, 00:00:57) direita

Ivan no espaço <real> rebate a indagação do tenente e ordena-lhe contactar o quartel. (TARKOVSKI, 1961, 00:07:52)


30 No plano objetivo do filme, o plano do <real>, a recorrência dos sonhos mantém uma espécie de segundo plano da narrativa que faz com que paire sempre sobre o menino, espião de guerra destemido, decidido a não abandonar suas missões, assombrosamente independente e maduro, a dificuldade de lidar com a morte da mãe. A ausência concreta da figura materna é tanto mais sentida não porque o menino demonstre sofrer, mas porque em sonhos ele é criança e a mãe é viva. Convivem, como define Jallageas a infância na paz, roubada pela guerra e o eclipse de sua ausência . (2007, p. 135). A ideia do eclipse coloca a infância na paz como um legado sempre presente, embora não tangível, pairando sobre a infância da guerra. Ambas não existem isoladamente, estão sempre se contaminando de forma recíproca. Com a entrada do som de tiros, no primeiro sonho, Ivan perde o contato com a mãe e acorda. Está deitado no chão, sobre o feno, em um lugar escuro e fechado. Quando sai para o espaço aberto, percebemos se tratar de um moinho. Há uma tomada de câmera das pás do moinho alinhadas em eixo vertical e eixo horizontal contra o céu, formando uma cruz. Tal símbolo será retomado em outros momentos ao longo do filme, nunca de maneira direta e evidente. Uma das variantes possíveis para uma leitura simbólica da cruz aproxima este símbolo ao símbolo da árvore, de modo a entender a primeira como o eixo do mundo, já que o eixo vertical da cruz seria a ponte que uniria dois mundos (terreno e celeste) e o eixo horizontal, que corta a passagem, corresponderia ao eixo do mundo. Nessa variante, ainda mencionada por Cirlot, a cruz simbolizará a conjunção de contrários, em que se casam o princípio espiritual e vertical com a ordem da manifestação e da terra (CIRLOT, 1984, p.195, VB Cruz.) Se tomarmos, prioritariamente, o sentido de ligação entre planos, a imagem da cruz formada pelas pás do moinho marca a passagem de Ivan do plano do <onírico> para o plano do <real>. No eixo horizontal, podemos ver apenas uma das pás, o que poderia ser lido como uma cisão no eixo do mundo, da qual falaremos adiante. Essas primeiras tomadas do <real> opõem consideravelmente tal espaço ao espaço <onírico>. Podemos caracterizar este último a partir de elementos presentes nos


31 quatro sonhos, como espaço da natureza intocada, espaço aberto, quente, iluminado pelo sol. Nele, Ivan se locomove descalço e sem camisa. É uma criança integrada ao mundo. Em oposição, o <real> apresenta-se inicialmente como espaço fechado, artificial, construído pelo homem, frio, escuro. Nesse espaço, Ivan está sujo e com roupas rasgadas, veste seu jorro e abotoa o casaco com a máxima seriedade, tem gestos maduros; enquanto desempenha sua função de espião, comporta-se e move-se como um adulto, firme e seguro em suas atitudes. Assim é quando rebate a indagação do tenente sobre a marca em suas costas e ordena que entre em contato com o quartel. Outra situação em que age com maturidade é quando, depois de ter atravessado o rio, à noite, indagado se tem fome, Ivan respira e responde: depois . Prefere, antes, escrever as informações coletadas em sua missão. Ivan volta a assumir a forma de criança, em termos de movimento corporal, apenas quando, adormecido, é carregado até a cama pelo tenente. Temos aqui uma das mais fortes características não espaciais relacionadas às oposições espaciais basilares do filme: o espaço <onírico> corresponde ao espaço da infância de Ivan ao passo que, no espaço <real>, Ivan é forçosamente maduro e convive com sua infância perdida. No primeiro, existe a figura da mãe e no segundo, a ausência de tal figura. Atribuímos, então, aos espaços <onírico> e <real> as particularidades temporais de passado e presente, respectivamente. Ivan transita entre esses espaços, unindo-os sem que eles se confundam. Entre esses dois planos, associando o <onírico>, enquanto espaço subjetivo, ao plano espiritual e o <real>, enquanto espaço objetivo, espaço do confronto sujeito-mundo, ao plano terreno, Ivan é o atravessador do eixo vertical, simbolizado na cruz. No espaço <real>, que é o espaço da guerra, enquanto espião do Exército Vermelho, Ivan terá também o papel de atravessador. Se prosseguirmos com a simbologia da cruz, observaremos que, neste plano, Ivan se movimenta no eixo horizontal. Quando entram os créditos iniciais do filme, marcando o final do prólogo, o garoto acaba de atravessar a floresta morta, inundada e arrasta um pedaço de maneira, um tronco caído pelo rio. Quando Ivan some atrás da folhagem, o letreiro marca o início do filme apresentando o título Иваного Детство (Ivanovo Diêtstvo/A infância de Ivan). Com a imagem poética do sonho ainda ressoando na memória, lemos as palavras traduzidas por A infância de Ivan no momento do desaparecimento do menino em uma paisagem bem menos acolhedora que a primeira. De qual infância trata o filme? Dessa infância na guerra? Ou da infância perdida? Parece-nos que a intersecção dos planos <onírico> e <real>, com o letreiro inicial do filme que sobe no momento em que a personagem título não pode ser vista, após termos confrontado os dois espaços fundamentais do filme, assegura que esses espaços são inseparáveis já que, em um, há sempre a latência do outro. Assim, o <real> é tanto mais cruel porque Ivan carrega em sua consciência todos aqueles elementos associados ao espaço <onírico>: mãe, infância, sol, calor, natureza viva, paz. E, em confronto com o <real>, a criança está sempre reelaborando a perda de todos eles. O inverso também acontece, já que todos os sonhos terão sinais da iminência da tragédia. Portanto, os dois planos espaciais aqui citados, embora não se confundam, são permeáveis um ao outro e Ivan transita entre eles. Ainda de acordo com Jallageas (2007), podemos entender essa ligação entre planos, como um fenômeno de refração dos tipos de energia que se movem em ondas, análogo ao fenômeno observado pela física. Assim, a infância perfeita é refratada por outra, a infância legada pela guerra' (JALLAGEAS, 2007, p. 173).


32 A perspectiva do poço

No segundo sonho de Ivan, aquilo que chamamos interpermeabilidade entre eixos é potencializada. Aqui, notamos uma interessante inversão de perspectiva em mais de um sentido. A passagem para o plano <onírico> evidentemente requer um corte técnico, mas aqui, é executada como se não houvesse corte espacial. A passagem se dá em continuidade à sequência anterior, na qual Ivan está dormindo na cama do abrigo ao som de uma goteira. O som da goteira assume o primeiro plano do tecido sonoro e a câmera enquadra a goteira pingando na mão do menino, com a parede de madeira, supostamente do abrigo, como fundo. Um lento travelling alcança a parede. Então percebemos que nós, espectadores, com a perspectiva colada à de Ivan, estamos no fundo de um poço de madeira e já não podemos saber se a goteira na mão do menino fazia parte do <real> (no abrigo) ou do <onírico>. Há aqui uma intersecção espacial entre os dois planos, marcada tanto pelo elemento sonoro, que representa uma goteira, quanto pela composição espacial. A câmera passeia pelo chão do abrigo até focar, ao lado da cama, uma bacia com água em que está gotejando. A câmera sobe no sentido da goteira e enquadra a mão do menino que, pendendo para fora da cama, encontra a linha da goteira. O eixo vertical é desenhado pela goteira que corta o plano verticalmente de cima para baixo. Formando o eixo horizontal, temos o braço esticado de Ivan e a continuação dessa linha horizontal dada por seu corpo adormecido sobre a cama. Temos a ilusão de que a parede por trás da mão que se molha é a do abrigo, mas, quando a câmera focaliza nela e começa a subir, percebemos que é uma parede de madeira - não mais de pedra - e se trata da parte interna de um poço. Passamos do espaço <real> para o espaço <onírico> acompanhados pelo elemento sonoro da goteira e pela ilusão de que seguimos a mesma parede do abrigo até o fundo do poço. Após esse travelling, do ponto de vista do espaço concreto, estamos no fundo do poço, <embaixo>, de onde avistamos <em cima>, fora do poço, Ivan e a mãe. Mas nós, grudados ao olhar da câmera, ainda seguimos a perspectiva de Ivan. O menino está, então, em desdobramento: ao mesmo tempo em que se olha, se vê olhando-se. De nossa perspectiva, estamos em um espaço escuro e estreito, o poço é quadrangular e bastante profundo. O Ivan da superfície atira uma pena para dentro do poço perguntando à mãe se ele é fundo. A pena desce e a câmera sobe, mantendo-se ainda do lado de dentro do poço, mas já bem perto dos rostos de Ivan e sua mãe que olham agora o fundo do poço através dos olhos do espectador. Em um complexo jogo de refração, a câmera assumirá o ponto de vista do Ivan de fora do poço e, de sua perspectiva, veremos seu próprio reflexo junto ao da mãe, no fundo do poço, onde ele procura uma estrela. Ao avistar uma estrela no fundo, inicia o seguinte diálogo com a mãe:

“Ivan – Por que está brilhando? Mãe – Porque é noite para a estrela. É por isso que está brilhando. Ivan – É realmente noite, agora? Não, é dia. Mãe – É dia para você e para mim, mas é noite para a estrela.” (TARKOVSKI, 1961, 00:16:31)


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35 Nesse diálogo, Tarkóvski que, embora não o assine, é também responsável pelo roteiro do filme (condição inquestionável na sua concepção de autoria do diretor), constrói uma espécie de espelho invertido. A estrela brilha no fundo do poço - plano <baixo> - e o menino a observa de cima. Comumente as estrelas ficam no alto, no céu, mas nesse caso, no que podemos chamar de entrada no sonho, partimos da perspectiva do Ivan do plano <real>, no fundo do poço, para a perspectiva do Ivan do plano <onírico> que, de cima, observa o poço. Do ponto de vista do olhar da câmera, invertemos a perspectiva. Agora, faremos a inversão de volta com o Ivan do <onírico> esticando a mão para tocar a estrela. Junto com o menino, a câmera volta para o fundo do poço, agora totalmente escuro, com uma pequena estrela de brilho intenso sob a água. A perspectiva volta a ser a do início do sonho, quando entramos no fundo do poço, só que não vemos mais a figura de Ivan: a mãe está sozinha e Ivan foi arrancado do plano do sonho, <em cima>. No contrapeso da descida de Ivan, sobe um balde. Lembremos que, quando o espectador subiu o poço, colado ao olhar da câmera, descia, imediatamente antes, uma pena. Entra o som dos tiros, o balde cai no poço, também uma rede ou lenço cai, e, com um corte, vemos o lado de fora do poço, com o balde em primeiro plano e, em segundo, a mãe caída de bruços no chão. Ivan acorda. O poço, enquanto construção vertical, cumpre, aqui, a mesma função do eixo vertical da cruz, ou da árvore, no que concerne à ligação <céu> <terra> ou o princípio espiritual e manifestação terrena. Ivan assume a posição de céu da estrela e pode mirá-la de cima. Quando a avista, lá embaixo, é seu reflexo junto à mãe, pintado em preto, na água iluminada pelo dia claro de fora do poço, que se vê. A estrela brilhante é percebida no reflexo negro. Os opostos <dia> e <noite> se aproximam nessa situação em que mãe e filho estão no espaço <dia> e podem observar logo abaixo a <noite>. Tendo entrado no sonho pelo fundo do poço, na construção espacial da memória do espectador, <embaixo>, no plano da estrela, dorme o Ivan no plano <real>. Os planos <real> e <onírico> estão se mirando.

esquerda

Entrada do sonho. (TARKOVSKI, 1961,00:16:35)

Esse sonho de travessia coloca novamente a questão sobre a dualidade dos pontos de vista. Qual é a infância de Ivan? É a infância de paz do mundo <onírico> que se perdeu ou a infância do mundo <real>, da guerra? Quem é Ivan? É o órfão que sonha com sua infância feliz ou é a criança do sonho que se vê, na guerra, a sonhar?

Ivan estica o braço. (TARKOVSKI, 1961,00:16:54)

O eixo da pá quebrada direita

A câmera assume o ponto de vista de Ivan e da mãe. (TARKOVSKI, 1961, 00:16:34)

Ivan toca a água. (TARKOVSKI, 1961,00:17:11)

Na passagem para o terceiro sonho, Ivan acaba de


36 jantar e deita-se no chão do mesmo abrigo do sonho do poço. A água aparece novamente como um meio condutor entre os planos <onírico> e <real>. Quando Ivan se deita, ouve-se o som de uma goteira e a entrada no sonho se faz debaixo de chuva. Por uma estrada ladeada de árvores, aproxima-se um caminhão carregado de maçãs. Na caçamba, sobre as maçãs, vão Ivan e uma menina. Por três vezes ele lhe oferece uma maçã e, por mais duas vezes, vemos somente as negativas da menina. É muito forte a simbologia da maçã na cultura ocidental para que possamos desprezá-la. Evocando o mito de Adão e Eva, inferimos, na relação das crianças, um prenúncio da relação homem-mulher, invertendolhes os papéis, já que é Ivan quem oferece as maçãs. Na história bíblica, Eva oferece a Adão a maçã e, por ele comê-la, ambos caem do paraíso. A menina do sonho não aceita a maçã, mas isso não é suficiente para evitar a queda de Ivan, se pudermos entender o Paraíso como o próprio universo <onírico> onde estaria a infância perdida. Sobre as repetidas passagens de câmera pelo rosto da garotinha, Tarkóvski escreve que: Queríamos captar, nesta cena, o pressentimento da criança de que estava em curso uma tragédia iminente (2002, p.32). A troca da figura materna pela figura da garotinha, a quem Ivan insiste em presentear, desloca o garoto da infância para a puberdade, com a descoberta (ou somente intuição, ainda) do amor. No plano <real> que está como suporte deste sonho, Ivan está prestes a partir em sua última missão, da qual não voltará. O sonho parece prosseguir no eixo horizontal da cruz (aquele que tem um pedaço faltando), adiantando-se ao futuro não vivido de Ivan. O eixo horizontal, a pá ocultada do moinho, seria completado no plano <onírico>. A situação do plano <real>, metaforizada na pá quebrada, faz que o eixo vertical abarque os desdobramentos do eixo do mundo impedidos pela anormalidade da guerra. Centro

Se, no terceiro sonho, Ivan ultrapassa a fronteira entre a infância e a puberdade, no último, avança até a ponta do eixo horizontal, cruzando a fronteira da morte. À queda de Ivan, morto, olhos parados, no bunker nazista, sobrepõe-se a imagem do rosto iluminado da mãe, sorrindo-lhe. Como no primeiro sonho, o menino bebe a água do balde, que a mãe lhe oferece. Não há tiros, agora. A mãe se despede e segue pela beira da água. Ivan brinca com várias crianças. Estão na praia, o dia é quente e muito claro e o menino é o centro da brincadeira. No jogo de esconde-esconde, ele deve procurar os outros e conta o tempo sozinho, com o rosto encostado em uma árvore seca (eixo vertical), único na extensão horizontal da praia. À procura, Ivan encontra a mesma menina das maçãs, que foge esperando ser alcançada. Os dois riem muito e, num braço de areia, ele a alcança, mas não para, segue sozinho para dentro da água. A árvore morta surge novamente durante a corrida e, ao final, Ivan aponta para o horizonte, momento em que a árvore aparece outra vez... Ela encobre o sol e a câmera fecha no tronco escuro. Entra o letreiro marcando o fim . Esse avanço simbólico pelo eixo horizontal, como eixo da vida na terra, faz que Ivan salte da puberdade à morte, chegando ao fim de seu eixo horizontal, pelo sonho eixo vertical. A árvore morta está fincada na areia como o moinho e o poço, em sua função de condutor, como ponte que une os mundos terreno e celeste, ligando matéria e espírito. A sobreposição do horizonte, construído pela imaginação do espectador, pela árvore, devolve o símbolo da cruz aos últimos instantes do filme. Percorrendo uma enorme extensão horizontal, Ivan encontra a árvore, passagem vertical, na conjunção dos eixos.


37 Agora, observando a todos como espaços interdependentes na macroestrutura do texto artístico, temos a possibilidade de retomar as associações temporais que lhes cabem. Ao espaço <real>, o tempo presente e ao <onírico>, o passado e o futuro. A guerra, disseminada por todo o espaço <real>, com influxos no <onírico>, é uma situação que extravia o passado e, com ou sem a morte, apropria-se do futuro. Mesmo o tempo presente será vivido em função dela. Retomando Lotman, podemos, a partir do recorte de oposições binárias que escolhemos e da análise de suas interrelações, notar como o modelo espacial do mundo torna-se um elemento organizador, em volta do qual se constroem também as suas características não espaciais (LOTMAN 1978, p. 363). Deste modo, inferimos sentido ao texto artístico. Nessa organização, a guerra interpõe-se entre o sujeito e seu destino. Sob sua ação, os espaços tornam-se dúbios, de fronteiras flexíveis a guerra desestabiliza as fronteiras. Com sua infância roubada pela guerra, Ivan tem o eixo horizontal de sua vida cindido por sua morte prematura. Em sonhos, no eixo vertical da cruz, viverá, simbolicamente, as experiências das quais a guerra o privou: o convívio com a mãe, a puberdade e o caminho de encontro à morte. No plano <real>, a morte lhe chega repentinamente, pelas mãos dos nazistas. Nesse último sonho, Ivan corre em direção ao horizonte, que representa o eixo de sua vida. Ali, ele chega ao ponto de sua morte. A guerra se assenhora de sua vida e morte. A imagem de mundo construída, no filme, é extremamente organizada em torno dos eixos vertical e horizontal e é autodesorganizadora pela natureza do comportamento espacial da guerra em relação às fronteiras. A guerra rompe fronteiras sejam elas de natureza espacial ou moral. Ainda assim, no sonho ligado à morte de Ivan, o garoto termina no centro da cruz, na cisão dos eixos aqui trabalhados como fundamentais. O tema da reconstrução e perda do paraíso, que perpassa os sonhos de Ivan, é refratado para o plano <real> na cena da chegada dos russos ao bunker nazista. O cenário de destruição que o espectador encontra e que esteve presente em todas as tomadas do plano <real> tem a iminência de um processo de reconstrução que começa com o reconhecimento dos mortos a partir dos dossiês encontrados em meio aos escombros. O soldado vai recolhendo os dossiês e narrando as sentenças a que foram condenados os prisioneiros: forca ou fuzilamento. Com a leitura da sentença de Ivan, inicia-se a reconstituição do cenário de sua morte. A própria narrativa seria o primeiro ato de reconstrução do eixo horizontal da imagem de mundo construída e que constrói o filme de Tarkóvski.


38 Bibliografia BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Trad. Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulus, 1990. Edição Pastoral. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (a teoria do romance). São Paulo: UNESP, 1993. CIRLOT, Jean-Eduardo. Dicionário de símbolos. Trad. Rubens Eduardo Ferreira Frias. São Paulo: Moraes, 1984. LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Trad. Maria do Carmo e Alberto Raposo. Lisboa: Estampa, 1978. JALLAGEAS, Neide. Estratégias de construção no cinema de Andriêi Tarkóvski a perspectiva inversa como procedimento. Tese (Doutorado). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. ______.O sol negro de Andriêi Arsiênievitch Tarkóvski (ou os primeiros quatro minutos e vinte e dois segundos que definiram um cinema). ARS Revista do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais. Vol. 5, n. 9 (1º Semestre 2007), p. 128-141. São Paulo: Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, 2007. TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. Trad. Jefferson Luiz Camargo (versão inglesa). São Paulo: Martins Fontes, 2002. Versão alemã: Die Versiegelte Zeit. Frankfurt-Berlin: Ullstein, 1985. original russo



Neste artigo, propõe-se analisar os elementos poéticos presentes no filme O rolo compressor e o violinista realizado por Andriêi Tarkóvski na conclusão do seu curso de graduação em cinema, no Instituto de Cinematografia de Moscou (VGIK). Trabalha-se com a hipótese de que a concepção estética desenvolvida na filmografia do cineasta já estaria presente nesse trabalho. Para essa leitura, recuperou-se o conceito de poética e a sua relação com a linguagem cinematográfica.

A construção do cinema poético Erivoneide Barros (1) Cecília Benevides de Carvalho –1964),

Meireles poeta

(1901

brasileira,

nasceu no Rio de Janeiro e inaugurou

sua

trajetória

poética em 1922. Sua poesia ficou marcada pela retomada de algumas características simbolistas, tais como a musicalidade, o misticismo e o desencanto, além de uma consciência

clara

da

efemeridade de todos os seres. (2) MEIRELES, Cecília. Viagem. In. Flor de poemas. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2003. p. 63. (3)

Fernando

Nogueira

Antônio

Pessoa

(1888-

1935), poeta português que, à frente do grupo Orpheu, inaugurou o Modernismo em Portugal. Contou com a colaboração de outros poetas como Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros.

Cecília Meireles (1), em seu poema Motivo (2), fala sobre o trabalho do poeta. Para ela, ser poeta é um estado pleno de alma, a única certeza de sua existência. Em síntese, ser poeta é destino. Fernando Pessoa (3) autopsicografa o fado do poeta, ou seja, o destino a que este está submetido e inclui um cúmplice: o leitor. O poeta compartilha a sua dor com outro (leitor) que passa a atribuir um novo sentido à dor primeira. Assim, para Pessoa, o poeta revela uma realidade, por vezes, oculta ao próprio sujeito. Para ambos os poetas, o intrigante do trabalho poético seria o alcance que ele atinge junto aos leitores. Parte dessa abrangência conquistada pela poesia deve-se ao antagonismo subjacente ao signo linguístico, já que a palavra possui o mesmo poder de revelar e ocultar; da mesma forma que liberta, aprisiona o ser que se dispõe a vivenciá-la. Os aspectos puramente formais não dariam conta de provocar tais sensações. Desse modo, surge o questionamento sobre o que seria o alicerce da poesia. Segundo Berrio & Fernández, o termo Poética deriva da palavra grega poiein e significa fazer ou produzir, e com esse termo Aristóteles queria representar a particularidade do discurso artístico para construir modelos da realidade como a mímese ou imitação (1999, p. 3). Nessa abordagem, o trabalho poético estaria relacionado à capacidade do discurso verbal de evocar o campo do imaginário e sentimental em seus leitores. O efeito poético seria alcançado quando o poeta suscita no leitor, por meio de imagens, sensações que não podem ser evidenciadas por palavras. Em geral, essa

40


41 experiência se revela em um momento de epifania, já que, naquele instante, o receptor da obra capta algo completo e infinito que rompe com a lógica racional. Não por acaso, na tradição clássica, ainda de acordo com Berrio & Fernández, A Poética tem por objeto o conhecimento literário como experiência, e suas reflexões, portanto, também pertencem ao tipo dos conhecimentos mais inconcretizáveis e experienciáveis (1999, p. 7). Na proposta de trabalho deste artigo, julga-se que a poética emerge da subjetividade de quem a produz e adquire uma nova forma quando atinge no leitor uma nova expressão de subjetividade. Desse modo, o valor poético de um texto estaria nas combinações imprevisíveis e na quebra das convenções da forma literária. O texto dotado de poeticidade seria aquele em que o poeta rompe com a possibilidade meramente retórica do discurso, a fim de atingir a construção de imagens que estimulam os sentidos do leitor. Esse processo de criar imagens por meio da palavra, de acordo com alguns segmentos que estudam a comunicação humana, seria possível graças à facilidade do artista em trabalhar com o hemisfério direito do cérebro, área responsável pelas habilidades criativas, tais como criar imagens e fazer associações. [...] as funções do hemisfério cerebral direito dizem respeito à apreensão global da realidade, muitas vezes baseando-se em uma de suas partes. Nós o acionamos quando conseguimos reconhecer uma música ouvindo apenas alguns acordes, quando identificamos uma pessoa pela voz, quando percebemos o lugar em que estamos por um detalhe [...]. Por apreender a realidade de modo global, o hemisfério direito é o responsável por nossa capacidade de generalização e de formação de conceitos abstratos (AGUIAR, 2004, p. 30).

A linguista Vera Aguiar salienta que o hemisfério direito [...] detém os processos primários, atemporais, de associações livres, expressos em uma linguagem arcaica, em que a gramática lógica está ausente [...] (2004, p. 31). A capacidade do poeta de realizar associações e desconstruções da lógica gramatical, a fim de construir as imagens poéticas, seria expressa por meio de escolhas de palavras retiradas do cotidiano que, em um novo eixo de combinação, passam a produzir novos significados. O cineasta russo Andriêi Tarkóvski parece ter percebido uma similaridade entre os efeitos causados no leitor, ao entrar em contato com um livro ou um poema, e o potencial da linguagem cinematográfica. Filho do poeta Arsiêni Tarkóvski, o diretor passaria a atribuir à arte um caráter espiritual, já que, para ele, a produção artística seria um caminho para que o homem buscasse respostas para a sua existência, conforme relata em seu Esculpir o tempo: A função específica da arte não é, como comumente se imagina, expor idéias, difundir concepções ou servir de exemplo. O objetivo da arte é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem (1998, p. 49).

Desse modo, o artista, segundo ele, carregaria uma fortuna, um destino doloroso: compreender a sua falta e levar outros a adquirirem a mesma consciência. Sobre isso, afirma que O artista é sempre um servidor, e está eternamente tentando pagar pelo dom que, como que por milagre, lhe foi concedido (1998, p. 41), ainda acrescenta que [...] o objetivo de toda arte [...] é explicar ao próprio artista, e aos que o cercam, para que vive o homem, e qual é o significado da sua existência (ibidem, p. 38) e conclui dizendo que O


42 (4)

Preferimos

inglesa

do

a

versão

título,

The

Steamroller and the Violin à versão brasileira, O rolo compressor e o violinista. (5) Diretor soviético, Andriêi Kontchalóvski trabalhou com Tarkóvski

em

O

rolo

compressor e o violino (1960), A infância de Ivan (1962) e em Andriêi Rublióv (1966). Os diretores

acabaram

rompendo por divergências estéticas

poeta não tem nada de que se orgulhar: ele não é o senhor da situação, mas um servidor. A obra criativa é a sua única forma possível de existência, e cada uma das suas obras é como um gesto que ele não tem o poder de anular (idem, ibidem, p.49). Neste artigo, propõe-se explorar os recursos que Andriêi Tarkóvski utilizou para realizar seu projeto artístico. Trabalha-se com a hipótese de que a construção de imagens, nos filmes de Tarkóvski, aproximar-se-ia da organização da linguagem poética e, para realizar esse diálogo, ele teria explorado elementos como a música, a concepção das imagens, a manipulação do tempo impresso nas películas do filme e, por conseguinte, o ritmo. Entende-se que as concepções artísticas apresentadas pelo diretor em entrevistas e textos teóricos estariam presentes em seus filmes desde o início de sua produção cinematográfica. Por esse motivo, escolheu-se como corpus o curta-metragem O rolo compressor e o violino (4).

Através de um espelho: a dialética interna na obra de Tarkóvski

O primeiro trabalho de destaque produzido por Tarkóvski foi realizado na conclusão de seu curso de graduação em cinema, na VGIK (Instituto de Cinematografia de Moscou), no ano de 1960. O filme foi dirigido por Tarkóvski e o roteiro escrito em parceria com Kontchalóvski (5). Para Tarkóvski, a importância de O rolo compressor e o violino está no fato deste pertencer a um período que o cineasta nomeou de ciclo de autodeterminação. Sobre essa etapa, fala-nos o cineasta: Deste processo fizeram parte os meus estudos no Instituto de Cinematografia, o trabalho num curta-metragem para a obtenção de meu diploma e, depois, oito meses de trabalho no meu primeiro longa-metragem (1998, p. 11). A constituição do enredo do filme de iniciação de Tarkóvski possui uma aparente simplicidade, tanto na forma quanto no conteúdo. O foco da narração concentra-se na amizade entre o garoto, Sasha, estudante de violino, e o operário Serguei, condutor de um rolo compressor que pavimenta a entrada do prédio em que o menino mora. Desde as primeiras cenas do filme, a presença do mundo infantil é constante. Nas paredes do prédio, há desenhos compostos por traços simples, remetendo ao mundo lúdico que é reforçado em várias cenas, com as brincadeiras constantes. A crítica de cinema Maia Turóvskaia afirma que o tema da infância de O rolo compressor e violino é uma expressão embrionária do que se tornou a busca artística de Tarkóvski tematicamente, estilisticamente e em muitos outros aspectos (1989, p.22, tradução nossa).


43 Pode-se compreender melhor a afirmação acima ao perceber a aproximação feita por Tarkóvski entre a psicologia infantil e a imaginação do poeta, declarando que, em ambos, as impressões do mundo são imediatas, por mais profundas que sejam essas ideias sobre o mundo (TARKOVSKI, 1998, 45). A opção pela busca do pueril como elemento da constituição narrativa, embora seja mais acentuada nessa obra, aparece em outros longas-metragens de Tarkóvski, tal como vemos em A Infância de Ivan (1961), O Espelho (1974) e O Sacrifício (1986). Em cada um dos longas, assim como em seu trabalho de formação, a infância surge como um elemento que provoca os sentimentos do espectador: a ingenuidade das brincadeiras e as travessuras da infância revelam a surpresa diante da descoberta da vida. Sobre A Infância de Ivan, diz o cineasta: Também os quatro sonhos baseiam-se todos em associações bastante específicas. O primeiro deles, por exemplo, do começo ao fim, até as palavras: Mamãe, veja ali um cuco! , é uma de minhas primeiras recordações da infância. [...] Em geral, as recordações são muito caras às pessoas. Não se deve ao acaso o fato de estarem sempre envolvidas por um colorido poético. As mais belas lembranças são as da infância (1998, p. 29).

O cineasta buscou elaborar suas imagens para que o efeito perturbador e transformador fosse imediato em quem assistisse a um de seus filmes, já que, para ele, era fundamental a participação do público no processo de codificação e decodificação do objeto artístico. Em seus escritos, o cineasta deixa claro que o artista precisa provocar seu espectador, leválo a um crescimento espiritual.

(6) É comum, em textos poéticos, a infância surgir como “um tempo perdido”, tal como observou Proust. A infância

emerge

representante

como

de

um

momento em que o poeta vivia uma plenitude espiritual ao entrar em contato com o mundo pela primeira vez. Como exemplo, destacamos dois

poetas

brasileiros:

Manuel Bandeira e Manoel de Barros.

Nessa perspectiva estruturada por Tarkóvski, as lembranças da infância constituem imagem lírica por excelência, já que esse mundo mítico torna-se simples e delicado, diante das exigências do mundo adulto, permitindo ao sujeito recuperar as experiências primordiais de sua constituição (6). Já em O Espelho, o universo infantil surge em fragmentos como reminiscências, oscilando entre as memórias da infância do protagonista e as vivências de seu filho. Nas sequências do filme, o cineasta privilegia a inocência infantil, por meio de atitudes cotidianas, para contrapor ao sofrimento da mãe do protagonista e da sua ex-esposa . Em O Sacrifício, a docilidade do pequeno, intensificada pelo silêncio gerado por uma cirurgia na garganta, é a única atitude capaz de acolher e entender o sacrifício do pai, Alexander. Em seus filmes, Tarkóvski deixar-nos-ia entrever a sua


44 Em seus filmes, Tarkóvski deixar-nos-ia entrever a sua postura diante do processo de criação artística, já revelada na concepção de O rolo compressor e o violino. A criança, quando brinca, interfere no mundo interno e externo e propõe uma nova construção da realidade. O diretor esclarece sua percepção ao afirmar que: O poeta tem a imaginação e a psicologia de uma criança [...]. É claro que, ao falarmos de uma criança, também podemos dizer que ela é um filósofo: isso, porém, só pode ser afirmado num sentido bastante relativo. E a arte se esvai diante de conceitos filosóficos. O poeta não usa descrições do mundo: ele próprio participa da sua criação (1998, p. 45).

Essa aproximação seria possível por meio da simplicidade das imagens. A obra de arte não deveria ser apenas um acúmulo de imagens alegóricas que, no máximo, exigiria do espectador um trabalho de elucidação de elementos simbólicos sem gerar reflexão, mas sim um meio para atingir aquilo que não pode ser expresso em palavras, alcançar o que há de mais profundo em nossos sentimentos, evocando lembranças e experiências obscuras da nossa própria experiência, abalando e afetando a nossa alma como revelação (TARKOVSKI, 1998, p. 126). No processo de construção artística, o cuidado com os detalhes na constituição da imagem e o corte do excesso para chegar à síntese essencial, a fim de trabalhar com a sugestão poética, já que para o cineasta a imagem poética é capaz de exprimir a totalidade do universo (TARKOVSKI, 1998, p. 123), seriam uma responsabilidade do artista com o seu público. Sobre a importância da síntese artística, Tarkóvski fez a seguinte afirmação: Toda criação artística luta pela simplicidade, pela expressão perfeitamente simples, o que implica chegar aos níveis mais distantes e profundos da recriação da vida. Esse, porém, é o aspecto mais doloroso do trabalho de criação: descobrir o caminho mais curto entre aquilo que se quer dizer ou expressar e sua reprodução definitiva na imagem consumada. A luta pela simplicidade é a dolorosa busca de uma forma adequada para a verdade que se conquistou. Deseja-se intensamente realizar grandes coisas com a máxima economia de meios (1998, p. 133).

No filme que analisamos e em outras obras de Tarkóvski, fica clara a preocupação com a imagem. Assim como o poeta particulariza cada um dos elementos retirados do real, dando-lhes uma dimensão única, a composição de cada plano assumiria um aspecto fundamental na constituição de seu projeto artístico, como lemos abaixo. A imagem é uma impressão da verdade, um vislumbre da verdade que nos é permitido em nossa cegueira. A imagem concretizada será fiel quando suas articulações forem nitidamente a expressão da verdade, quando a tornarem única e singular como a própria vida é, até mesmo em suas manifestações mais simples (1998, p. 123).

Ao captar, sinteticamente, de forma única os elementos da vida, o cineasta despertaria a percepção artística de seu público que, por meio da sensibilidade, apreende (ou não) a diversidade de significados presentes em uma ação ou objeto particularizados pela imagem. A escolha da arte literária, como contraponto para as reflexões sobre a arte cinematográfica, deu-se porque Tarkóvski (1998) percebeu que em ambas as manifestações artísticas há liberdade para que seus realizadores possam escolher os


45 elementos que desejam e, posteriormente, organizá-los de maneira criativa por meio das imagens. Todavia o cineasta ressalta que existe uma distinção fundamental entre as duas formas artísticas: enquanto a literatura retrata a realidade por meio da palavra sendo apenas uma representação, o cinema expõe de maneira direta a realidade por meio da imagem. A poética na linguagem cinematográfica

(7) Nota de introdução do romance A Paixão Segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

A poética perpassa pelos sentimentos e sentidos do leitor buscando uma nova forma de expressão ao criar um espaço que permita ao espectador atualizar o sentido da obra. Ou ainda o artista procura, segundo palavras de Clarice Lispector, pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente . (7) Assim, na arte literária, a poética está ancorada no trabalho que o poeta realiza com a estrutura verbal para alcançar um determinado objetivo. O poeta transforma a palavra (signo) em imagem (ícone), potencializando o seu efeito sobre o leitor. Décio Pignatari afirma: O poeta é um ser de linguagem. O poeta faz linguagem, fazendo poema. Está sempre criando e recriando a linguagem. Vale dizer: está sempre criando o mundo. Para ele, a linguagem é um ser vivo. O poeta é radical (do latim, radix, radicis = raiz): ele trabalha as raízes da linguagem. Com isso, o mundo da linguagem e a linguagem do mundo ganham troncos, ramos, flores e frutos. É por isso que um poema parece falar de tudo e de nada, ao mesmo tempo (2005, p. 11)

Na linguagem cinematográfica, a maneira como o diretor explora recursos como a lente utilizada, a luz, as cores, o som, o cenário, a escolha de ângulos, dentre outros elementos, são fundamentais para que a composição fílmica ganhe um caráter poético e, consequentemente, ultrapasse os limites do enredo, ao eliminar o meramente convencional. Sobre esse dado, afirma Turóvskaia: Quando a narrativa simples não pode conter a pressão das ideias despertadas pela história, surge a necessidade de trabalhar não no prosaico, forma central do enredo, mas na composição , forma poética. Isto é o que cada vez mais aconteceu nos filmes de Tarkóvski (1989, p. 101, tradução nossa).

Segundo Tarkóvski, um elemento fundamental para a criação da verdadeira imagem cinematográfica nasceria da


46 manipulação do tempo impresso na película, tornando o ritmo um elemento importante na constituição e significação do filme. Para o cineasta russo, O fator dominante e todopoderoso da imagem cinematográfica é o ritmo (1998, p. 134). Marcel Martin explica: O ritmo nasce da sucessão dos planos conforme suas relações de duração (que para o espectador, é a impressão de duração determinada tanto pela duração real do plano quanto por seu conteúdo dramático, mais ou menos envolvente) e de tamanho (que se traduz por um choque psicológico tanto maior quanto mais próximo for o plano). [...] É do ritmo que a obra cinematográfica obtém a ordem e a proporção, sem o que não teria as características de uma obra de arte (2003, p. 144).

Podemos exemplificar, no primeiro filme de Tarkóvski, a consciência sobre a composição, com uma cena emblemática. Durante o trajeto que Sasha realiza até a escola de música, o garoto se detém em frente a uma loja de espelhos e fica extasiado diante das imagens projetadas na vitrine. São cenas cotidianas: uma mulher carregando uma sacola, máquinas em uma construção, o bonde passando, um garoto brincando e um vendedor de bexigas. A composição dessas imagens ocorre através de uma correspondência interna. O elemento que ganhará destaque em cada cena aparece pré-anunciado na cena anterior; seja de forma direta, como acontece com as bexigas, ou de maneira metonímica, na transformação de maçãs em um pequeno barco vermelho, por exemplo. A fusão fragmentada dos planos dá ao público uma sensação de aspectos temporais e espaciais diferentes. O encantamento cinematográfico também parece estar impresso nesses planos. As imagens refletidas que o garoto admira são as mesmas que compõem o cenário cotidiano, no entanto, ao serem projetadas em uma espécie de grande tela fragmentada, evoca o prazer da descoberta. Sobre os efeitos que a imagem cinematográfica cria, quando entra em contato com o olhar do espectador, Tarkóvski declara: [...] abre-se diante de nós a possibilidade de uma interação com o infinito, uma vez que a grande função da imagem artística é ser uma espécie de detector do infinito... em direção ao qual nossa razão e nossos sentimentos elevam-se num ímpeto alegre e arrebatador (1998, 128).

As imagens vão se sobrepondo a partir de associações metonímicas gerando uma micro-narrativa. Assim, poderíamos sugerir que há um filme dentro de outro filme. Nessa composição tarkovskiana, cenas do cotidiano são capturadas e ressignificadas. Tal procedimento é comum no trabalho poético, uma vez que o poeta possui o dom de retirar circunstâncias simples e rotineiras da passagem efêmera do tempo e as eterniza, transformando-as em arte, ou seja, extraindo o essencial. Octávio Paz afirma que: Na criação poética não há vitória sobre a matéria ou sobre os instrumentos, [...], mas um colocar em liberdade a matéria. Palavras, sons, cores e outras matérias sofrem uma transmutação mal ingressam no círculo de poesia. Sem deixarem de ser instrumentos de significação e comunicação, convertem-se em outra coisa . Essa mudança ao contrário do que ocorre na técnica não consiste em abandonar sua natureza original, mas em voltar a ela. Ser outra coisa quer dizer ser a mesma coisa : a coisa mesma, aquilo que real e primitivamente são (1982, p. 26).


47 O fio condutor dessa nova narrativa é a música. A melodia doce e hipnotizante presente, nessa sequência, conduz o estado epifânico de Sasha (e do público) diante da vitrine de espelhos. Tarkóvski revela plena consciência sobre a importante relação que há entre a música e a imagem, afinal através da música, o diretor pode ampliar a esfera de percepção da imagem visual do espectador e, assim, conduzir as suas emoções em determinada direção (1998, 190). Para reforçar a importância da música no processo de apreensão emocional de uma sequência, destaca-se, em O rolo compressor e o violino, o encontro entre Sasha e uma garotinha também estudante de música. A fim de construir um espaço que permita a interferência da leitura do espectador, a imagem, como significado, se origina a partir da harmonia musical escolhida. Enquanto Sasha troca olhares com a garota, o tom melódico e suave preenche a cena. A leveza das notas completa a situação vivida pelas crianças. A preocupação com a música é um fato constante nos filmes posteriores de Tarkóvski.

(8) Aqui, não nos referimos ao desejo

erótico.

Fazemos

alusão ao desejo enquanto motor

da

busca

do

conhecimento. Para tanto, não podemos nos furtar a teoria freudiana sobre a sexualidade infantil nem a sua relação com a curiosidade epistemológica. Sobre essa relação, afirma Maria Cristina Kupfer: “O importante a ser ressaltado é a filiação da curiosidade

intelectual

à

curiosidade sexual, à imagem fantasiada da cena primária. Não é preciso ir muito longe para estabelecer essa filiação. Basta lembrar o termo bíblico para designar que houve uma relação

sexual:

Adão

conheceu a Eva... Pode-se dizer então, que, para Freud, a

mola

propulsora

do

desenvolvimento intelectual é sexual. Melhor dizendo, a matéria de que se alimenta a inteligência em seu trabalho investigativo é sexual”. In. Freud e a educação. São Paulo, Scipione, 1989. p. 8384.

O encontro dos garotos ocorre na sala de espera da escola de música. Sob a observação de uma terceira pessoa (a mãe de outro aluno), Sasha e a garota iniciam uma troca de olhares reveladora de um desejo latente (8). A aproximação é feita pela menina, porém é o pequeno violinista que provoca a continuação da conversa, ao tirar uma maçã do bolso e lustrá-la em seu suéter. Ao entrar para fazer o teste, Sasha retira do bolso a maçã e a coloca ao lado da garota. A partir desse momento, desenvolve-se uma cena silenciosa, marcada apenas pelos movimentos da menina, dividida entre o desejo e a censura. A intensidade das sensações demonstrada apenas pela sutileza do olhar é captada pelo público, mas não é suficiente para que este pré-conceba o desfecho da narrativa. Na cena, a ação ocorre para além do significante, isto é, extrapola os elementos meramente narrativos. O trabalho poético requer a participação plena de quem decide vivenciá-lo. Desse modo, o silêncio é um meio de expressar as emoções potencializando o efeito da imagem sobre quem a contempla. Deleuze, ao comentar o cinema mudo, afirma que a imagem vista conservava e desenvolvia alguma coisa natural, encarregava-se do aspecto natural das coisas e dos seres (2007, p. 267). A potencialidade da imagem, sem o acompanhamento de falas, parece se manter no cinema de Tarkóvski em que, por vezes, o silêncio é mais eficiente do que a palavra e outros sons que enganam e ocultam a verdade essencial. Assim sugeriríamos que o silêncio permite o contato direto entre as sensibilidades dos sujeitos envolvidos no ato criativo e acentua as implicações da experiência visual vivida pelo espectador. O poeta Octávio Paz afirma que o mundo do homem é o


48 mundo do sentido (1982, p. 23) e, portanto, até no silêncio o homem é capaz de transmitir significados. O silêncio, atrelado ao trabalho poético, ou seja, a exploração dos aspectos da linguagem cinematográfica, permitiria ao artista extrair da imagem sua potencialidade máxima. Tendo em vista essa possibilidade, Tarkóvski declarava: meu desejo é realizar filmes que não tragam peças de oratória e propaganda, mas que ofereçam a oportunidade de uma experiência profundamente íntima (1998, p. 221). Essa experiência a que o diretor russo alude é um procedimento de transformação da realidade do espectador por meio da exploração ampla da imagem. Nessa perspectiva, há a possibilidade do leitor contribuir com sua leitura. A participação do espectador, no processo de ressignificação da arte, é algo precioso para Tarkóvski, já que, de acordo com suas concepções, era possível mudar a alma por meio da manifestação artística. Sobre esse diálogo entre autor e público, lemos: Sei de antemão que não devo contar com uma reação unânime por parte do público, não só porque algumas pessoas irão gostar do filme, e outras o acharão detestável, mas porque é preciso levar em conta que o mesmo será assimilado e analisado de várias maneiras diferentes até mesmo pelas pessoas que o receberam de espírito aberto. E o fato de que serão muitas as interpretações só pode me deixar feliz (1998, 203).

Na sequência do encontro entre Sasha e a garota, não podemos nos furtar à importância do triângulo maçã/ homem/ mulher. Segundo a mitologia cristã, o primeiro ato de rebeldia do homem ocorreu quando este foi seduzido pela beleza de um fruto vermelho. Eva, tentada pela serpente, julgou o fruto agradável e o desejou. Ao ingeri-lo, o primeiro casal descobriu o bem e o mal, saiu do estado de alienação.

A história cristã não deixa dúvida sobre as consequências do ato de Adão e Eva. Homem e mulher passaram a ser responsáveis por suas atitudes, a sofrer diante das dificuldades cotidianas e a ter de aprender a conviver com a condição humana, desprovidos dos cuidados divinos. A cena da maçã nos remete a um caminho de percepção de uma realidade desconhecida do próprio sujeito. Ao manter uma intertextualidade com o texto bíblico, Tarkóvski parece recuperar o livre arbítrio, a dialética entre o bem e o mal e abrir um acesso ao conhecimento de uma verdade interior, afinal, a descoberta da nudez do casal ia além da questão corpórea, ela assinala o reconhecimento da identidade do EU. Esse tema foi novamente sugerido por Tarkóvski na construção de Stalker (1978) e Nostalgia (1983). Vale ressaltar que, ao contrário do texto bíblico, a maçã é oferecida pela figura masculina. O garoto, portanto, ocuparia o lugar do artista que desestrutura os conceitos pré-estabelecidos, inquieta e traz perigo aos Egos conformados (com a mesma forma). Para o crítico Philippe Willemart, O objetivo essencial da literatura, da pintura ou da música, da escultura, da arquitetura etc., ou sua função estética não é primeiramente ser admirada; a beleza é apenas uma isca, para não dizer uma armadilha, destinada a atrair o olhar ou o ouvido (2007, 72). Ao buscar o inefável, o artista conduz seu público a olhar além da imagem e ler um pouco de si dentro do som, da cor e do movimento. Outro elemento estético presente na obra de Tarkóvski é a presença de sonhos. Na arte do século XX, os surrealistas, embebidos da teoria freudiana, perceberam que o mundo onírico possuía uma linguagem e forma de construção fecunda para o processo artístico. A metáfora e a metonímia, recursos amplamente utilizados na poética, são estruturas similares à condensação e ao deslocamento, mecanismos fundamentais no processo de


49

ao lado

O rolo compressor e o violinista. (TARKOVSKI, 1960, 00:08:04 a 00:08:27)


50


51 elaboração dos sonhos. Cabe ressaltar que Tarkóvski não estava interessado em abordar o simbolismo comumente atribuído aos sonhos. O cineasta russo via nos sonhos uma outra realidade vinda do próprio sujeito, uma possibilidade diferenciada de tempo e espaço em relação ao presente do eu que sonha. Essa situação ocorre no desfecho de O rolo compressor e o violino, quando, após ser proibido pela mãe de realizar o desejo de ir ao cinema com seu amigo Serguei, Sasha busca na fantasia uma solução para o conflito. O garoto vira o relógio e suspende o tempo, abre espaço para realização de seu desejo: no infinito do espelho, Sasha cria o seu desfecho da narrativa indo ao encontro de Serguei, correndo atrás do rolo compressor, enquadrado em um plano geral estático. A cena finaliza com Sasha a bordo do rolo compressor que sai do espaço da tela permanecendo na cena apenas algumas aves. Turóvskaia vê esse final como tipicamente tarkovskiano e completa Os sonhos podem compensar os duros traumas da realidade (1988, 25). Procedimento similar está presente na construção de A infância de Ivan, em que os sonhos são contrapontos poéticos em meio ao caos da guerra. Em O Sacrifício, uma das cenas mais emblemáticas do longa foi idealizada a partir de um sonho do diretor, conforme declara a esposa de Tarkóvski, Larissa Tarkovskaia:

(9) DOSSIÊ Tarkovski (Stalker + Nostalgia

+ Sacrifício).

Volume IV. Entrevistas com o diretor de fotografia de Alexander

Stalker

Kniazhinski; o designer de

Em seu último filme, O Sacrifício, ele [Andriêi] usou um de seus sonhos [...]. Foi um sonho que Andriêi teve em 1978, quando ainda morava em Moscou. A vida era difícil. Estávamos dormindo em cama no campo e foi por isso que ele sonhou com a morte em uma cama no campo, comigo sentada ao seu lado e lágrimas rolando sobre meu rosto frio. Ele estava vendo tudo isso de cima, como se fosse do céu. Ele me contou que tudo parecia leve e suave [...] (9)

produção de Stalker Rashit Safiullin. Cenas inéditas da casa de Tarkovski. Trailler de Nostalgia.

(making of de Sacrifício) Dirigido Tarkovski,

por de

Andrei Michal

Leszczilowski. Biografias dos atores e equipe técnica. Galeria de Pôsteres. Arquivo de Fotos. Trailler original de Andrei Rublev. Continental Home Video. DVD (123 min.), 4:3,

letterbox,

colorido,

NTSC, dolby digital 2.0, em russo.

A síntese da linguagem

Documentário

Legendas

em

português, inglês e espanhol.

A busca de liberdade formal na criação artística sempre foi um traço almejado por Andriêi Tarkóvski. Em várias entrevistas, amigos afirmavam que o cineasta havia sido o único diretor russo/soviético a fazer exatamente o que queria. Isso foi possível graças a sua concepção artística clara e sedimentada presente em seus filmes e em seu legado crítico. Ao buscar, na poética, elementos para colocar em prática seu projeto artístico, Tarkóvski parece ter dialogado com Octávio Paz, quando este afirma que a poesia está em obras plásticas e musicais, quando os autores respeitam duas características:


52 [...] de um lado, fazerem regressar seus materiais ao que são matéria resplandecente ou opaca e assim se negarem ao mundo da utilidade; de outro, transformarem-se em imagens e desse modo se converterem numa forma peculiar de comunicação (1982, p. 27).

Como vimos, ao longo deste artigo, o valor poético surge da habilidade do poeta de manipular o seu material artístico para provocar uma experiência transformadora em quem o vivência, tal como fez Andriêi Tarkóvski. Sobre a necessidade da construção poética no cinema, o cineasta fez a seguinte explanação: não podemos perceber o universo em sua totalidade, mas a imagem poética é capaz de exprimir essa totalidade (1998, p. 123). Acompanhando a filmografia de Tarkóvski e estabelecendo relação com seu trabalho de graduação, fica evidente que, ao terminar seu curso, o cineasta já apresentava o perfil estético que procuraria desenvolver em todos os seus filmes. Acreditamos que dessa prematura e sólida certeza de seu compromisso artístico surgiu a necessidade de criar uma obra crítica em que pudesse explanar suas convicções e de certa forma se justificar diante de uma crítica interna que não soube compreender seus filmes.

acima

O rolo compressor e o violinista. (TARKOVSKI, 1960, 00:04:08)


53

(10) Aqui fazemos referência ao espaço proibido presente no longa-metragem Stalker (1978). Segundo a professora Neide Jallageas, “a história toda trata da condução do Escritor e do Professor pelo Stalker, com o objetivo de alcançar a Sala proibida no interior da zona onde o visitante deve expressar o seu desejo”.

In.

JALLAGEAS,

Neide. Estratégias de construção no cinema de Andriêi Tarkóvski: a perspectiva inversa como procedimento. 2007. Tese (Doutorado). Pontifícia

São

Paulo:

Universidade

Católica de São Paulo, 2007. p. 139.

O desejo de Tarkóvski de ver a arte cinematográfica sendo apreciada pelo público em geral e, consequentemente, gerando reflexão e aprimoramento espiritual está impresso em O rolo compressor e o violino. Todo artista, consciente ou inconscientemente, espera que sua obra seja vista, gere transformação e modifique a sociedade em que vive. Na década de sessenta, Tarkóvski defendia a ideia de que poucos cineastas teriam conseguido atingir a especificidade da linguagem cinematográfica, fato que prejudicava a relação do público com o potencial do cinema como arte, já que a exploração do cinema comercial e a sua utilização restrita ao entretenimento levariam as pessoas a deixarem de sentir qualquer necessidade de beleza ou de espiritualidade, e [a consumirem] os filmes como se fossem garrafas de Coca-Cola (1998, 216). Ao evocar o tema da infância em seu filme inaugural, por meio do viés poético, o cineasta buscava o contato [...] direto com o mundo verdadeiro, substancial... (1998, 110). Tarkóvski buscava extrair de seus espectadores uma postura ativa e crente diante da arte, da mesma maneira como uma criança possui fé diante do mundo que cria e dá forma. O uso da linguagem cinematográfica poética aprimorada em toda a sua filmografia permitiu a Andriêi Tarkóvski a convicção de ser (e certamente foi) uma espécie de Stalker capaz de revelar o caminho para que seu público pudesse entender os mistérios presentes na existência de cada indivíduo, intuir os segredos da Zona (10).


54 Bibliografia AGUIAR, Vera Teixeira de. O verbal e o não verbal. São Paulo: Unesp, 2004. (Coleção Paradidáticos). BERRIO, Antonio García; FERNÁNDEZ, Teresa Hernández. Poética: tradição e modernidade. Trad. Denise Radanovic. São Paulo: Littera Mundi, 1999. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo, Cinema 2. 1. ed. Trad. Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2007. MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Brasiliense, 2003. PAZ, Octávio. O arco e a lira. 2. ed. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. 9. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005. TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. Trad. Jefferson Luiz Camargo (versão inglesa). São Paulo: Martins Fontes, 2002. Versão alemã: Die Versiegelte Zeit. Frankfurt-Berlin: Ullstein, 1985. original russo. TUROVSKAYA, Maya. Tarkovsky Faber, 1989. Original russo.

Cinema as poetry. Trad. Natasha Ward. London, Boston: Faber and

WILLEMART, Philippe. O tecer da arte com a psicanálise. In. Revista Literatura e Sociedade: psicanálise. Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada/ Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas. São Paulo: USP/ FFLCH/ DTLLC, nº 10. 2007. p. 70-79.



O presente trabalho propõe fazer uma análise comparativa entre os filmes Solaris e Stalker do cineasta russo Andriêi Tarkóvski e os textos literários dos quais esses se originaram, o romance Solaris de Stanislaw Lem e a novela Piquenique à beira da estrada dos irmãos Arkadi e Boris Strugátski. O artigo focaliza o emprego da ficção científica como procedimento constitutivo dessas obras literárias, e a recusa, a transgressão e as especificidades que esse gênero assume no cinema de Tarkóvski.

A utopia e a ficção científica na literatura e no cinema:

Solaris e Stalker de Andriêi Tarkóvski e suas fontes Gabriela Soares da Silva Introdução

Andriêi Arsiénevitch Tarkóvski (1932-1986), filho do poeta russo Arsiêni Alexandrovitch Tarkóvski, é um cineasta russo soviético aclamado pelos seus sete longasmetragens: A infância de Ivan (1961), Andrei Rublev (1966), Solaris (1972), O espelho (1975), Stalker (1979), Nostalgia (1983) e O Sacrifício (1986). Além disso, também é reconhecido como um importante pensador e teórico do cinema. Tarkóvski vivenciou a censura e as imposições do regime soviético no âmbito intelectual e artístico, porém buscou libertar-se dessas amarras e, na sua produção artística, pode-se notar a tensão produzida por essa atitude. Moldou o seu discurso para fugir dos ditames e conseguiu, por meio de caminhos tortuosos, uma linguagem poética única que expressa os anseios e os tormentos da realidade: a arte como ciência é um meio de assimilação do mundo (TARKOVSKI, 2002, p.39). De sua filmografia, propõe-se abordar dois filmes, Solaris e Stalker, cujo traço comum está na peculiaridade do uso transgressivo do gênero de ficção científica das obras literárias das quais originalmente partiram os seus roteiros e a introdução de motivos que costumam ter um papel periférico em tal gênero. Para adentrar no assunto, cabe fazer algumas considerações sobre a narrativa utópica, muito empregada na ficção científica, e a sua contextualização no cenário soviético. A narrativa utópica

A busca do domínio da realidade pelo governo soviético não se limitava apenas às formas de censura. A isso se somava o intento de promover a utopia política do comunismo em todas as esferas do pensamento.

56


57 (1) The Soviet artist should reflect in his or her works the grate

achievements

of

socialist construction and educate soviet readers in the spirit of party consciousness and socialist patriotism. (Esta e as traduções a seguir foram realizadas pela autora). (2) Em Tarkóvski, é possível perceber uma oposição a essa visão da arte com funções objetivas e pedagógicas: “Se houvéssemos sido capazes de prestar atenção à experiência da arte e de permitir que ela nos modificasse de acordo com os ideais que expressa, já teríamos nos transformado em anjos há muito tempo. A arte tem apenas a capacidade,

Por volta dos anos 30, o papel da arte foi redefinido e passou a ocupar um lugar de extrema importância para o projeto de construção do comunismo. Não só a arte em geral, mas também o artista em pessoa deveria tomar a frente de tal projeto: O (ou a) artista soviético deve refletir em seu trabalho as grandes realizações da construção socialista e educar os leitores soviéticos no espírito da consciência partidária e do patriotismo socialista (1) (WACHTEL; VINITSKI, 2010, p. 214). Ao fazer isso, a recepção da obra artística passa a ser de inteira responsabilidade do artista. Uma sociedade mais justa, fundada em bases igualitárias, sem concorrência entre os seus membros, com seres humanos melhores, que trabalhassem em prol do bemestar comum, humildes e ilustrados ao mesmo tempo: esse seria o fim último da luta contra o capitalismo. Tal sociedade utópica servia como horizonte projetado pela propaganda política e, nesse sentido, a arte era utilizada como veículo da ideologia vigente e, por conseguinte, adquiria uma função edificante; cabia a ela ensinar as massas quem eram os seus inimigos e em benefício de que (ou quem!) deveriam lutar. (2)

através do impacto e da catarse, de tornar a alma humana receptiva ao bem” (TARKOVSKI, 2002, p. 55). (3) La dinámica fundamental de cualquier política utópica (o de cualquier utopismo político) radicará siempre, por lo tanto, en la dialéctica entre

la

identidad

y

la

diferencia, en la medida que dicha política tenga por objetivo imaginar, y a veces incluso hacer realidad, um sistema radicalmente distinto a este.

A revolução russa de 1917 conseguiu infundir, em parte da intelligentsia, um sentimento de transformação. A sociedade arcaica e burguesa não precisava mais permanecer; eliminar o czar e sua família seria apenas o início. Na literatura, a insatisfação com esse sistema já se mostrava desde o século anterior. Pode-se citar, como exemplo, o revolucionário, filósofo e crítico Nikolai Gavrílovitch Tchernichévski (18281889) com o seu romance O que fazer? (Chto delat'?) em cujas páginas nascia o protótipo de um herói abnegado e devotado a uma causa. Tal herói transformou-se no arquétipo, se podemos falar assim, do bolchevique, do homem soviético do futuro (homus soviéticus). Esse herói arquetípico alia-se ao descontentamento com a ordem vigente criando um cenário favorável ao surgimento de uma utopia. A dinâmica fundamental de qualquer política utópica (ou de qualquer utopismo político), portanto, sempre terá raízes na dialética entre identidade e diferença, na medida em que tal política tenha por objetivo imaginar, e às vezes inclusive trazer para a realidade, um sistema radicalmente distinto deste (JAMESON, 2009, p. 9) (3)

A partir dessa imagem, delineava-se a possibilidade de um futuro distinto e, para tanto, seria necessário esmagar qualquer resquício do passado nocivo que pudesse atrapalhar. Tem-se como um dos resultados e, talvez, o que está no cerne das mudanças radicais, a eliminação da memória, das ideias e de indivíduos atrelados ao passado e, portanto, conservadores.


58

(4) [la] creación [utópica] debe ser motivada, debe responder a

dilemas

ofrecer

específicos

solución

problemas

y

para

sociales

fundamentales de los que el utópico piensa que guarda la llave. (5) Obra dos irmãos Arkadi Strugátski e Boris Strugátski, um estudioso de línguas e um astrônomo, criadores de Mir Poldnia (Mundo do meio-dia ou Universo do meio-dia). Possuidores de um trabalho profícuo com quase trinta novelas e uma série de contos. (6) Escritor polonês, nascido em 1921, na cidade de Lviv (atual Ucrânia). É reconhecido como um dos escritores de ficção científica mais lido no mundo. Publicou contos, poemas e ensaios científicos.

Em tais circunstâncias, a utopia surge para cumprir o papel de substituir a imagem de um mundo em destruição, ou que se deseja destruir. Por conseguinte, [a] criação [utópica] deve ser motivada, deve responder a dilemas específicos e oferecer soluções para problemas sociais fundamentais dos quais o utópico pensa guardar a chave. (4) (Idem, p. 27). No caso soviético, a substituição do sistema de valores viria através da revolução a qualquer custo já que, à revolução socialista, seguiu um regime sangrento que tentou podar todas e quaisquer liberdades individuais. Como manifestação contrária a isso, através da exacerbação, surge a narrativa utópica negativa (ou antiutópica). Pode-se citar como exemplo o romance Nós, do escritor Evgueni Zamiatin. O autor apresenta como seria o mundo almejado pelo projeto utópico-revolucionário: uma sociedade fundamentada na transparência absoluta e no controle das relações interpessoais. Na narrativa, isso é manifesto pelas edificações de vidro que permitem que todos sejam vigiados e o seu grau de independência, limitado; com personagens que não utilizam nomes, mas números; uma sociedade absoluta e perversamente controlada, sem quaisquer resquícios de liberdade e com a despersonalização do ser em nome do bem comum. No âmbito da ficção científica, o teórico Fredric Jameson (2009, p. 98) enxerga Piquenique à beira da estrada (5), que dá origem ao filme Stalker, como uma utopia inversa, pois os objetos que configuram o progresso, os símbolos do futuro, são vistos do outro lado do espelho, isto é, pelas formas cósmicas que passaram pela Terra e deixaram meras carcaças sem utilidade alguma. Solaris, o romance de Stanislaw Lem (6), não recusa esses símbolos do futuro. Ao contrário, põe em jogo a significância deles ao abordar o tema da incomunicabilidade com o desconhecido. Assim, os símbolos do futuro, vistos pela chave da utopia, não trazem consigo necessariamente a ficção científica, mas ela pode facilmente apropriar-se do utópico e utilizá-lo como tal. A ficção científica, enquanto gênero na literatura e no cinema, usualmente, está voltada para o futuro, para o desenvolvimento dos sistemas sociais e tecnológicos, espaços e tempos distintos dos nossos, e é nisto que reside a sua fácil adaptação à narrativa utópica. O ato de criar mundos alternativos necessita que esses se afastem do nosso, mas sempre resgatando nosso mundo de alguma maneira, para que seja possível o reconhecimento daquilo que deve ser abandonado a fim de que a utopia seja escolhida. Descolar o conhecimento do mundo real em detrimento


59

(7) Conceito derivado do estranhamento formalista. Segundo Chklóvski, “para produzir um fato artístico a partir de um objeto, deve-se destacar este último dos fatos da vida. Para isso é necessário sacudir as coisas do mesmo modo que Ivan, o Terrível, costumava sacudir seu lacaio. É necessário extraí-las do contexto

de

associações

habituais, revolvê-las como lenha no fogo. O artista é sempre o instigador de uma revolta das coisas. Com os poetas,

as

coisas

se

amotinam, livram-se dos seus velhos nomes e, ao assumir

outros

adquirem

novos,

um

novo

aspecto”.(2003, p. 273) (8) Em depoimento

sobre

Andriêi Tarkóvski, Arkadi Strugátski, contando como foi trabalhar com Tarkóvski em Stalker, rememora que em certo

momento

composição perguntou

do ao

da

roteiro

cineasta:

“¿Escucha Andrei, para que necessitas la ciencia ficción em la película? ¡Eliminémosla!”

(2001,

p.182), ao que Tarkóvski concordou plenamente e admitiu que essa já era uma ideia que lhe passava pela cabeça.

de outro, necessita de elementos responsáveis pela distinção do usual daquilo que é criação. O estranhamento cognitivo (7) é uma função epistemológica da ficção científica (JAMESON, 2009, p.10), que põe em jogo os nossos conhecimentos prévios possibilitando a criação de universos inimagináveis. Para a ficção científica, sacudir a realidade é um fator que está na raiz da sua criação. A partir de alguns elementos que caracterizam os livros que embasaram o roteiro cinematográfico de Stalker e Solaris, como gênero de ficção científica, propõe-se aqui, como uma das questões, saber como tal gênero é utilizado nos filmes de Tarkóvski e que diferenças essenciais o diretor promove. O cineasta russo levanta uma questão primordial que pode ajudar a entender algumas escolhas feitas por ele nas adaptações de Solaris e Stalker. Para Tarkóvski, saber o que é específico da linguagem cinematográfica é indispensável e, para tanto, se faz necessário desvincular o cinema das outras artes. No caso da literatura, não é diferente. Porém, surge a necessidade de pensar como lidar com um roteiro desenvolvido a partir de um texto literário. Para o próprio Tarkóvski, esse embate possui desfecho, Quando um escritor e um diretor partem de diferentes pressupostos estéticos, o impossível chega a um acordo ( ) Quando se verifica um tal conflito, só existe uma solução: transformar o roteiro literário em uma nova trama (...) . (TARKOVSKI, 2002, p. 14). Pode-se afirmar que esse é o caso dos roteiros de Solaris e Stalker. No caso do primeiro, o roteiro do filme foi escrito pelos mesmos autores do livro, porém com as modificações que interessavam a Tarkóvski, que iam sempre em direção à recusa da ficção científica (8). Isso se revela com mais clareza na construção das personagens: se, no livro, a sua profundidade e densidade psicológica inexistem, por serem questões secundárias, em Tarkóvski esse fator adquire o papel principal. Em Solaris, de certa maneira, também ocorre algo parecido, pois Tarkóvski muniu-se de diversas tentativas e estratégias para apagar o elemento de ficção científica, mas o tema principal do romance se mantém: o da incompreensão e incomunicabilidade com o desconhecido. Nesse sentido, ao invés de tratar as películas de Tarkóvski como adaptações de obras literárias, é mais acertado pensar em recriações, pois não há uma mera tentativa de transpor palavras em imagens, visto que o filme trata do enredo e do gênero de uma perspectiva distinta dos livros. Stalker é um exemplo privilegiado disso. Piquenique à beira da estrada retrata espaços isolados conhecidos por Zonas, em que a realidade não é a mesma do restante do mundo. A Zona teria sido criada a partir da passagem de seres


60 (9) Stalker é uma palavra de origem inglesa que se refere à pessoa que segue e observa, que espreita, faz tocaia.

alienígenas por esses locais, provocando uma ruptura com a realidade. Esses espaços foram alvos de estudo por parte das autoridades, mas pouco se descobriu sobre eles, exceto que são extremamente perigosos, pois o inimaginável pode acontecer lá, fato corroborado pelo desaparecimento de várias expedições. Em consequência, a Zona foi isolada e cercada para proteção contra os seus perigos. Surgem os stalkers (9), nome dado pelos irmãos Strugátski, em sua novela, aos indivíduos que vivem à margem da lei, homens que ingressam ilegalmente na Zona para subtrair dela objetos de valor, alheios ao conhecimento humano e cobiçados no mercado negro. Esses resquícios seriam os dejetos da fugaz passagem alienígena, os restos de um piquenique. Em contrapartida, o filme de Tarkóvski não é uma adaptação fidedigna. O Piquenique à beira da estrada é recriado. O título da película centra o espectador na figura do stalker. A narrativa dos Strugátski mostra como os stalkers retiram objetos de dentro da Zona e como fazem para vendê-los no mundo fora dela. O interesse pelo material é grande e se difunde rapidamente, a demanda gerada pelo comércio desse material faz da atividade do stalker praticamente uma profissão, e que esses indivíduos dependam da Zona para sobreviverem. Num excerto do texto, vemos o temor de um desses stalkers ao pensar na possibilidade de não conseguir mais adentrar no espaço proibido: (...) vão fechar a Zona com uma parede, do cemitério até o velho rancho. Daqui a nada acabou a vida fácil dos stalkers... ( ) Meu Deus, a neura com que eu fiquei! Lá vou estar eu outra vez a contar os tostões: isto posso comprar, isto já não posso (...) (STRUGÁTSKI, s/d, p. 50)

(10) '¿Como quieres que sea?' (...) '¿Como podría saberlo? Pero no quiero esse bandido vuestro en el guión'

No filme de Tarkóvski, a ação está centrada em apenas um stalker. É ele que nos guia pela Zona, é a partir da sua experiência que podemos conhecê-la. A importância dele é uma das mudanças que contribuíram para o rumo próprio que tem o filme em relação ao livro. Já na construção do roteiro, Tarkóvski pediu a Arkadi Strugátski que o stalker fosse completamente diferente do que ele o havia criado: Como você quer que seja? Como eu poderia saber? Porém não quero esse bandido de vocês no roteiro. (10) (STRUGASTSKI, 2001, p. 181). Talvez, seja possível atribuir a essa mudança na natureza da personagem que, ao contrário do que aparece no livro, em que o objetivo principal dos stalkers, ao penetrar na Zona, é motivado materialmente, à mudança de título para Stalker. Em consequência, o foco não está mais na visita misteriosa e no que ela deixou para trás, mas o efeito que a Zona produz nos indivíduos que transitam por ela.


61 A Zona afigura-se como um espaço-tempo em suspensão, um lugar fechado porque proibido, mas que dentro de si contém labirintos indeterminados, portadores de mistérios infindáveis, uma cavidade que transporta para outra realidade e, consequentemente, um espaço que permanecerá sempre desconhecido, por mais hábeis que sejam os stalkers, pois está em incessantes e imprevisíveis modificações. O tempo carrega a densidade do passado humano através dos objetos ancestrais que podem ser encontrados na Zona, mas também está voltado para os anseios imediatos daqueles que buscam explorar esse espaço e, mais além, volta-se para o futuro, na sua capacidade ou possibilidade de realizar os anseios daqueles que buscam, nesse lugar, uma esperança. Voltados para o futuro, ainda, estariam se resgatarmos da narrativa dos irmãos Strugátski, os restos do piquenique alienígena com seus dejetos potencialmente tecnológicos para nós, humanos, e, portanto, sempre dirigidos para um uso posterior. Se a tecnologia alienígena são restos e tentamos potencializar o nosso futuro a partir dela, o que é a utopia coletiva senão um fracasso completo construído sobre detritos desconhecidos? Tarkóvski resgatou no filme algo muito importante projetado no espaço do texto literário: o contraste entre a Zona e o mundo fora dela. Refletindo sobre a possibilidade de não mais poder penetrar na Zona, as personagens descrevem um motivo que incentiva a fuga: contemplar apenas a paisagem do seu próprio mundo: E tom cinza, o cinza em todo lado. O cinza todos os dias, todas as tardes, todas as noites . (STRUGÁTSKI, s/d, pp. 50-51) A imagem da película mostra vivamente a oposição entre os dois espaços. A cidade, em que vive o stalker, é um lugar cinzento, escuro, degradado, frio; a Zona, em contrapartida, é dotada de uma vegetação abundante, mas não como num idílio, pois ela recobre os restos da civilização anterior ao piquenique . Desse modo, ela é um espaço misterioso e insondável. À semelhança disso, o oceano de Solaris (tanto no filme como no romance) também é um espaço misterioso e que somente pode gerar conjecturas acerca da sua natureza, pois se mostra materialmente impenetrável.


62 Solaris trata da história de um psicólogo, Khris Kelvin, enviado para uma estação espacial que orbita em torno do planeta Solaris para verificar problemas vivenciados pelos cientistas que estão na estação: suicídio, loucura, etc. Quando a personagem chega à nave, descobre que eventos estranhos têm ocorrido, que visitantes vêm e vão do lugar e, logo, ele próprio vivencia essa experiência com o surgimento da sua esposa Hary, que se suicidara no passado. No filme Solaris, o elemento de ficção científica é mais presente do que em Stalker, já que há um contato direto com o universo alienígena. As personagens estão dentro de uma estação espacial, sondando a superfície aquosa do planeta alienígena. Entretanto, assim como em Stalker, nesta película, Tarkóvski aborda outras questões que não as de ordem tecnológica e científica; e as que o são, o diretor subverte, levando-as para outro campo de questionamento. No romance de Stanislaw Lem, todos os aspectos que envolvem a natureza do planeta e as pesquisas em torno dele são explicados e especulados racionalmente pelo viés da ciência, embora, justamente nisso, exista uma tensão fundamental: a presença dos visitantes e a sua relação íntima com o inconsciente de cada pessoa responsável pela sua existência e a incompreensão e incomunicabilidade com seres de origem e função indeterminados e, ainda, o questionamento sobre como determinar o que é humano e o que não o é, como definir e encontrar a razão do ser em algo que aparentemente é alheio à sua existência. Essas abordagens de ordem científica são desenvolvidas no decorrer da narrativa. O autor apresenta as descobertas e as discordâncias existentes no âmbito da solarística (os estudos sobre Solaris) fazendo uma imagem retrospectiva de tudo o que se descobriu e o que se especula sobre o planeta. No trabalho de Tarkóvski, essas considerações são postas logo nas cenas iniciais e não através dos livros ou da memória da personagem, mas com um depoimento em vídeo de um dos pesquisadores envolvidos numa das expedições exploratórias ao planeta. O cineasta apresenta as questões fundamentais e coloca de lado os detalhes, obtendo, com

ao lado

Solaris. (TARKOVSKI, 1972, 00:16:31)


63

(11) Além de extensores, fungóides,

simetríades,

vertebridal, entre outros. (12) El problema de los visitantes es tanto una clave del “pensamiento” del océano sensible como una especie de distracción de ese problema de ciencia ficción más “puro”, en el sentido en que introduce cuestiones

sobre

el

significado personal o íntimo de las apariciones, cuyo origen

parece

sencillamente

en

la

registrados en la memoria (ya sea de manera consciente o cualquier

y

O surgimento de alucinações dos visitantes que aparecem na estação espacial e interagem com as personagens é um fator que perde parte do seu potencial científico e transforma-se numa questão de ordem filosófica, isto é, não é necessariamente o que eles são ou do que são constituídos, mas porque eles surgem e porque se apresentam como vestígios de algo que está na mente das personagens.

radicar

intensidad con la que están

inconsciente)

isso, efeitos importantes na filmagem no que se refere a não permitir que o espectador veja as imagens produzidas pelo oceano de Solaris no livro de Lem denominam-se mimóides (11) que são descritas e debatidas em minúcias, fazendo com que o leitor acredite nelas. Em Tarkóvski, essas imagens, que não ganham nome, permanecem misteriosas, vetadas ao espectador, permitindo, ao final do filme, surpresa e, principalmente, ambiguidade.

no

con

otra característica

de la posible relación (aunque la culpa es, por supuesto, el

O problema dos visitantes é tanto um acesso para o pensamento do oceano sensível como também uma espécie de desvio desse problema mais puro da ficção científica, no sentido em que introduz questões sobre o significado pessoal ou privado das aparições, cuja origem parece ter raízes simplesmente na intensidade com a qual estão registradas na memória (seja de maneira consciente ou inconsciente) e não com qualquer outra característica da possível relação (ainda que a culpa seja, supostamente, o magnificente mais óbvio do vestígio em questão). (JAMESON, 2009, p.141) (12)

magnificador más obvio de dicho vestigio).

da esquerda para direita

Stalker. (TARKOVSKI, 1979, 00:12:30 e 00: 46:32)

O oceano de Solaris revela-se como a fonte de tais aparições. Tal fato é atribuído ao bombardeamento da superfície do planeta com raios X. Essa iniciativa humana visaria romper uma barreira existente para encontrar uma porta de comunicação. Numa perspectiva psicanalítica, Slavoj i ek (2009) recupera a ideia de Lacan do Vazio central da Coisa impossível-real , isto é, a falta que estrutura o campo do visível (inclusive na arte cinematográfica, como nos filmes em que o


64 principal não é posto em cena), uma ausência que permanece totalmente alheia ao humano, não causando uma ruptura ou um questionamento do indivíduo; e a transpõe para a Coisa impossível/ traumática que se refere a algo insondável, inexplicável em nosso universo e com a qual entramos em choque (é aqui que i ek situa o Solaris de Tarkóvski). Essa coisa não necessariamente é exterior ao homem, pode encontrar-se no seu interior. As narrativas de ficção científica e gêneros afins lidam com esses dois níveis de alteridade. A resposta de Solaris (possivelmente aos raios x) vem por meio da interferência dos visitantes na estação. A incompreensão e o medo gerado por tais aparições esbarram na questão da linguagem de comunicação: o humano e a Coisa-Solaris são incomunicáveis. Segundo i ek: (...) a comunicação com a Coisa-Solaris falha, não porque Solaris seja demasiado estranho, precursor de um intelecto infinitamente superior às nossas faculdades limitadas que travam conosco jogos perversos cuja lógica permanece eternamente para além da nossa compreensão, mas porque nos leva demasiado perto daquilo que, em nós, tem de se conservar afastado se quisermos manter a consistência do nosso universo simbólico. (2009, p. 115)

Desse modo, o problema estaria no encontro com a fratura existente em nós mesmos, pois o que o oceano traz para dentro da estação não é nada além do que está dentro do ser. Em Stalker, a incomunicabilidade com o outro também se apresenta na Zona. Esse espaço constitui-se como uma Coisa-insondável, não pode ser apreendido em sua totalidade. Por mais que se adentre nele, há algo de intransponível que impede uma compreensão absoluta do que é a Zona e qual a sua função. Para cada um dos autores, então, esta representará uma potencialidade diferente, o lugar do enriquecimento material (principal abordagem dos Strugátski), dos desejos realizáveis (questão fundamental no filme de Tarkóvski), do conhecimento, da esperança, mas sem deixar de ser o lugar do mistério, do mutante, do inapreensível. O fator de estranhamento em Solaris é ressaltado por elementos contrastivos. No início do filme, a água aparece em abundância e vivacidade, com o verde da vegetação pulsando em seu movimento. Após isso, quando Kelvin está estático, enquanto a chuva cai,


65

torrencialmente, a água contamina toda a cena, mostrando, mais uma vez, a sua presença intensa e hipnotizadora. Em contrapartida, dentro da estação espacial, a água aparece precariamente, como se vê nas cenas em que Kelvin se queima ou quando a visitante no papel de mãe lava-lhe o braço. Mas, sobretudo, a oposição absoluta é com o oceano de Solaris cuja aparência é opaca, fantasmal, quase de morte. Ainda no campo das oposições, antes de Kelvin deixar a Terra, os relatos do que acontece em Solaris são tratados como alucinações. O próprio ato de afastamento do real contribui para o estranhamento, pois produz um efeito mais amplo quando nos deparamos com os visitantes de Solaris, não como frutos da imaginação, somente, mas como seres que se materializam e deixam marcas reais da sua presença dentro da estação. A personagem Hary, a esposa falecida de Kelvin, é constituída pelo oceano e tem existência material, mas não se reconhece numa foto dela mesma, não tem consciência de onde provém. Através do espelhamento no outro, isto é, na interação com Kelvin e no confronto com as memórias deste, Hary começa a entender quem ela não é, e enveredar numa busca pelo ser. Impõe-se uma questão de ordem filosófica: o que é que constitui e distingue o ser humano, se Hary sente, se apaixona, possui uma subjetividade própria e consciência suficiente para saber que ela não é a verdadeira Hary, por que ela não é considerada humana? Se pensarmos nas raízes do ser, daquilo que inicialmente contribui para a construção da sua identidade, o fato de Hary não ter uma origem definida, um passado, uma memória, a destitui de uma existência real enquanto indivíduo. Ao dar-se conta do seu não-ser e do quanto Kelvin sofre pela sua presença, ela caminha para diversas tentativas de suicídio. A memória, o passado é o que remete à origem e consequentemente à existência. Para Tarkóvski, o tempo é essencial, é o que possibilita uma existência real, sem isso, o ser se torna insustentável: Privado da memória, o homem torna-se prisioneiro de uma existência ilusória; ao ficar à margem do tempo, ele é incapaz de compreender os elos que o ligam ao mundo exterior em outras palavras, vê-se condenado à loucura . (TARKÓVSKI, 2002, p. 65). O passado é o responsável por conferir realidade à existência, isto é, (...) o passado é muito mais real, ou de qualquer forma, mais estável, mais resistente que o presente, o qual desliza e se esvai como areia entre os dedos, adquirindo peso material somente através da recordação (Idem). Hary não possui esse passado. Se ela existe a partir das recordações de Kelvin, ela não é nada além de uma materialidade falsa, pois ela não se autoconstitui, daí as várias lacunas que Hary tem naquilo que estabelece a continuidade no tempo da sua existência. A presença dos visitantes e como ela deve ser enfrentada é levantada por um dos pesquisadores da estação como um fator científico a ser estudado e resolvido e não como Kelvin lida com isso, por meio de uma questão da consciência e da moral, ligando-se a ela por laços emocionais. O tempo, que na visão de Tarkóvski assume uma natureza irreversível (Ibidem), que implica a impossibilidade de o passado retornar ou modificar-se, aqui parece tentar ser revertido, mas é, na afirmação de Hary, enquanto ser, no momento em que é aniquilada, fazendo uma escolha por si própria, deixando de ser a Hary do passado de Kelvin, que o tempo da vida se recompõe: o que está morto, está morto e não deve retornar. A questão da existência e da possibilidade de se lidar com outras formas de vida, de se construir uma alteridade torna-se evidente. O oceano de Solaris e o humano são incomunicáveis. O homem precisa do homem , disse a personagem Snout, isto é, o homem precisa de um espelho. Atente-se para o fato da enunciação ter sido feita dentro de


66 um espaço especial da estação, a biblioteca, que está plena de uma atmosfera terrena e humana, completamente oposta ao restante da instalação. A Coisa-inalcançável, mesmo quando se apresenta ao lado, não pode ser inteiramente compreendida. É assim com a Zona em Stalker e com o oceano Solaris, há algo de insondável em ambos e pode custar a vida ou a sanidade (ou os dois) de quem tentar fazer diferente. O medo surge porque também há algo de insondável em nós mesmos, aquilo que faz com que os que ingressam no cômodo potencialmente realizador de desejos da Zona tenham medo de desejar e os que orbitam em Solaris assustem-se com as visitas surgidas a partir de si próprios. O tempo

A questão do tempo fez os irmãos Strugátski mudarem o rumo do roteiro de Stalker, porque, para Tarkóvski, o modo como o tempo flui e o que ele representa constitui um fator de primeira importância. A tentativa de fazer um longo e talvez único plano sequência (JALLAGEAS, 2007, p.141) chocava-se com o roteiro original. De fato, Piquenique à beira da estrada não conta a história de apenas uma incursão pela Zona, há outros espaços e personagens, bem como um transcorrer de tempo constantemente determinado pelos eventos da narrativa (através de indicação da passagem do tempo por meio das horas, dias, etc), ao contrário do realizado em Stalker. Podemos, então, falar de uma poética da memória (TARKOVSKI, 2002, p.65) em que o passado, ou o tempo propriamente dito, constitui-se na matéria do próprio texto. Em Stalker, o tempo age de maneira peculiar. A incursão pela Zona se assemelha a um estado de suspensão, é uma jornada longa em que o tempo transcorre de maneira indeterminada mesmo que seja contínuo. Em Solaris, o tempo irreversível entra em choque com outras camadas temporais. É o tempo da Terra, resgatado pela memória, buscando fios mais longínquos até as lembranças da infância; é o tempo da estação espacial, o agora no qual a aparição de Hary tenta romper com a determinação da transitoriedade inexorável da vida humana, mas não consegue. E, por fim, um tempo eterno no qual Kelvin aparentemente retorna para a casa paterna, mas esta se encontra no meio do oceano de Solaris, mais uma projeção desencadeada pela personagem, talvez o desejo mais profundo de retornar a Terra. Considerações finais

A subversão feita por Tarkóvski do gênero de ficção científica é inteligível na comparação entre os filmes e as suas fontes literárias, porque é no paralelo das diferenças que se evidenciam as questões principais, os motivos que movem a ação de cada história. É somente nesse movimento que Stalker e Solaris podem ser encarados como uma não aceitação da utopia tecnocrática e como uma problematização da ciência como fator nãonaturalizado e que, portanto, constituindo-se num tópico secundário nos dois filmes. A não-ficção científica é uma resistência às correntes impostas pelo regime soviético em nome de um certo projeto de utopia coletiva e é ainda mais por reverter isso direcionando a ficção para a realidade interior do ser, nas buscas individuais que se afiguram na forma do desejo (em Stalker, a motivação é a busca pelo quarto capaz de realizar qualquer coisa que o indivíduo peça; em Solaris, a culpa e o remorso transfiguram-se na vontade da


67 personagem de ter Hary de volta). Em Solaris, essa recusa está no princípio que norteia as personagens: a procura da origem, da Terra, da casa. Natália Bondartchuk, atriz que interpreta Hary, ao falar sobre a diferença entre o romance de Lem e o filme de Tarkóvski, afirma que o primeiro escreveu sobre o contato com uma consciência cósmica e, o segundo fez um filme sobre a Terra (2001, p.106). Essa questão pode ser representada em apenas um recurso que Tarkóvski se apropriou de Lem, mas deu um destino específico, a folha de papel picado colocada na ventilação. Em Lem, o recurso aparece, porém nada se fala a respeito; em Tarkóvski, ele representa tudo o que há de mais terreno, desde o barulho das folhas, até o sentimento nostálgico que remete às raízes e à memória. Em Stalker, a não-ficção científica está naquilo que impele tanto o stalker, quanto aqueles que o acompanham até a Zona. O desejo interior, uma busca por algo que, de fato, não se encontra nela, mas, assim como em Solaris, encontra-se dentro do próprio ser, sem que esse desejo encontre forma ou satisfação.


68 Bibliografia BONDARCHUK, Natalia. Encuentros en Solaris . In: Varios autores. Acerca de Andrei Tarkovski. Madrid: Ediciones Jaguar, 2001, pp.101-117. CHKLOVSKI, Viktor. Os paralelos em Tolstói . Trad. André Pinto Pacheco. In: TOLSTÓI, Liev. O diabo e outras histórias. São Paulo: Cosac Naify, 2003. JALLAGEAS, Neide. Estratégias de construção no cinema de Andriêi Tarkóvski a perspectiva inversa como procedimento. Tese (Doutorado). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. JAMESON, Fredric. Arqueologias Del futuro: El deseo llamado utopía y otras aproximaciones de ciência ficción. Trad. de Cristina Piña Aldao. Madri: Editora Akal, 2009. LEM, Stanislaw. Solaris. Trad. Reinaldo Guarany. São Paulo: Circulo do Livro, sd. STRUGATSKI, Arkadi e Boris. Piquenique à beira da estrada. Alfragide: Editoral Caminho, sd. STRUGATSKI, Arkadi. Así Le veía yo . In: Varios autores. Acerca de Andrei Tarkovski. Madrid: Ediciones Jaguar, 2001, pp.179-183. TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. Trad. Jefferson Luiz Camargo (versão inglesa). São Paulo: Martins Fontes, 2002. Versão alemã: Die Versiegelte Zeit. Frankfurt-Berlin: Ullstein, 1985. original russo WACHTEL, Andrew Baruch; VINITSKI, Ilya. The future as present In: Russian Literature. Malden (USA)/ Cambridge (UK): Polity Press, 2010, pp. 204-232. ZAMIATIN, Eugene. Nós. Trad. Lia Alverga Wyler. Rio de Janeiro: Anima, 1983. I EK, Slavoj. Andrei Tarkovski ou a Coisa vinda do espaço interior . In: Lacrimae Rerum: ensaios sobre cinema moderno. Trad. Isa Tavares e Ricardo Gozzi. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 99-122.



O presente estudo visa investigar o papel do ator no cinema de Andriêi Arsiénievitch Tarkóvski (19321986). Partindo do princípio de que os filmes do cineasta russo (soviético) não são centrados em acontecimentos organizados por relações de causa e efeito e investem no poder das imagens para possibilitar ao espectador uma postura ativa e livre, pretendemos examinar o convite que faz Tarkóvski a seus intérpretes, para que contribuam com este acontecimento: a "não-interpretação".

Sobre o ator em Tarkóvski - viver e confiar Priscilla Herrerias 1. Sobre a "Necessidade Interior", a liberdade do artista e a do público

Se o artista é livre, ou antes, se seu único e imutável compromisso é consigo mesmo, como o defendeu com ardor o artista plástico russo Vassíli Kandinski (1866-1944), quaisquer procedimentos, formas, métodos, podem ser, por consequência, usados pelo artista, independentemente da época, de modismos ou tendências, desde que justificados por sua "necessidade interior". Mas, se por um lado, ter "os olhos permanentemente abertos para sua própria vida interior [...], ouvidos sempre atentos à voz da Necessidade Interior" (KANDINSKY, 1996, p. 86) é a única verdadeira atribuição do artista, por outro, os que se aventuram a seguir tal lema como fonte segura para criação de suas obras são frequentemente incompreendidos; ficam sozinhos, por vezes isolados, como na ponta de um triângulo, esperando para que outros atinjam amanhã, o lugar que ocupam hoje. O cineasta russo (soviético) Andriêi Arsiénievitch Tarkóvski (1932-1986) é certamente um desses artistas, que ao longo de três curtas, sete longas-metragens, roteiros escritos em parcerias e um documentário para a televisão, foi fiel à sua crença interior, a despeito das imensas dificuldades encontradas a incompreensão de colegas cineastas, a burocracia na aprovação de projetos e, por vezes, a longa espera para o lançamento de filmes, como no caso de Andriêi Rublióv (1966), que levou seis anos para ser lançado entre tantos outros obstáculos, que certamente o levaram ao exílio em 1983, quando decidiu não voltar à União Soviética por achar que seria impossibilitado de prosseguir sua carreira cinematográfica. Tarkóvski tinha plena consciência do eixo estrutural que a necessidade interior exercia em sua obra. Não se deve entendê-la aqui como uma vontade independente, ou mesmo egoísta da parte do artista, mas quase que como uma obrigação, uma inquietação permanente em sua alma. Como confessou o diretor:

70


71 (1) Tarkovsky in London [071984]. http://people.ucalgary.ca/~t stronds/nostalghia.com/The Topics/Tarkovsky_in_ London.html. Acesso: 08 jan.

Durante as preparações para se fazer um novo filme é muito claro para mim que não tenho a permissão de considerá-lo como uma forma de arte independente, uma criação livre, mas como a implantação de algo que está me pressionando de dentro e que não é uma questão de prazer, mas antes, um dever dolorido, às vezes um peso. (1)

2010. As traduções, quando não

mencionadas

bibliografia, são da autora.

na

A essa sensação de peso, soma-se outro princípio em que se baseava o cineasta, o de que o artista é sempre um servidor, "eternamente tentando pagar pelo dom que, como por milagre, lhe foi concedido" (TARKOVSKI, 2002, p. 41). A possibilidade de se fazerem concessões, portanto é inexistente: "A única condição para lutar pelo direito de criar é a fé na própria vocação, a presteza em servir e a recusa às concessões" (TARKOVSKI, 2002, p. 42). Ouvir e ater-se a todo custo à "necessidade interior" é para Tarkóvski, característica dos grandes artistas: A mais absoluta prova de genialidade que um artista pode dar é não desviar-se nunca da sua concepção, da sua ideia, do seu princípio, e de fazê-lo com tanta firmeza que nunca perca o controle sobre essa verdade, não renunciando a ela mesmo que isso lhe custe o prazer do seu trabalho (TARKOVSKI, 2002, p. 90).

Tais convicções, presentes desde o início de sua carreira, renderam a Tarkóvski a fama de inflexível e pouco diplomático, já que "defendia suas concepções sobre o cinema com toda e qualquer pessoa" (TUROVSKAYA, 1989, p. 27), sendo que esta não era apenas uma face de sua forte personalidade, mas sim "um aspecto essencial de seu talento" (TUROVSKAYA, idem). A liberdade pela qual lutou por toda vida para criar sua obra, Tarkóvski também defendeu para o público. Acreditava que este deveria ser totalmente livre para interpretar e relacionar os filmes com suas próprias vidas, criando-se assim um enorme círculo de associações individuais, pessoais. Para tanto, solicitava dos espectadores uma postura ativa, uma plateia que criasse junto ao cineasta, em uma relação de "coautoria" (TUROVSKAYA, 1989, p. 27). Segundo o próprio cineasta: Através das associações poéticas, intensifica-se a emoção e torna-se o espectador mais ativo. Ele passa a participar do processo de descoberta da vida, sem apoiar-se em conclusões já prontas, fornecidas pelo enredo, ou nas inevitáveis indicações oferecidas pelo autor. Ele só tem à sua disposição aquilo que lhe permite penetrar no significado mais profundo dos complexos fenômenos representados diante dele. Complexidades do pensamento e visões poéticas do mundo não têm de ser introduzidas à força na estrutura do que é


72 manifestamente óbvio (TARKOVSKI, 2002, p. 17).

Nesse trecho de Esculpir o tempo, Tarkóvski defende a "lógica da poesia", no lugar da lógica linear estruturada nas relações aristotélicas de causa e efeito. Para que o espectador possa participar ativamente do filme, é necessário que o cineasta propicie tal espaço, que certamente, não se encontra em soluções simplistas, "prontas", de sequências lineares. Tarkóvski aposta no poder e concentração das imagens, sempre em associação com os sons e a música, para uma comunicação direta e intensa com a plateia. São as imagens e não o enredo linear que propiciam a co-autoria do indivíduo na plateia, que a partir delas tece suas associações. A experiência pessoal de cada membro do público tornase, portanto, a chave que permite a conexão com a obra, ou antes, sua co-criação. Devemos destacar, no entanto, que a possibilidade de múltiplas interpretações oferecida pelos filmes de Tarkóvski não lhe rendeu apenas a emoção de espectadores altamente afetados pelas obras, como muitos expressaram em cartas ao cineasta, mas também foi alvo do desagrado de um público mais acostumado à condução rigorosa de obras estruturadas em acontecimentos, perfeitamente encadeados pelas relações de causa e efeito. O cineasta não ignorava tal fato, acreditava, porém, no dever do artista em respeitar a inteligência do público e a função da arte em educá-lo: Se tentarmos agradar o público, aceitando acriticamente suas preferências, isso significará apenas que não temos respeito algum por ele, que só queremos o seu dinheiro. Em vez de educarmos o espectador através de obras de arte inspiradoras, estaremos apenas ensinando o artista a garantir seu lucro. De sua parte, o público satisfeito com aquilo que lhe dá prazer continuará firme na convicção de estar certo, uma convicção no mais das vezes sem fundamento. Deixar de desenvolver a capacidade crítica do público equivale a tratá-los com total indiferença (TARKOVSKI, 2002, p. 210).

Da mesma maneira que o enredo não impõe nada ao público, deixando que as imagens o levem a assisti-lo "ativamente", também é necessário que os atores não infundam às personagens ideias pré-concebidas; os atores não devem construí-las a partir dos acontecimentos do enredo, devem apenas permitir que elas sejam reveladas, no momento presente de cada cena. Para tanto, Tarkóvski os convida a não "interpretarem". É sobre este convite que gostaríamos de tratar.

Como o Escritor em Stalker (1979). http://people.ucalgary.ca/~tstronds/no stalghia.com/theNews.html. Acesso: 14 jan. 2010.


73 2. Sobre os atores

2.1 A escolha dos atores

Tarkóvski sempre deixou claro que os atores em seus filmes são mais um elemento constituinte da paisagem, componentes da imagem; constantemente apontou a diferença entre a interpretação que deve existir no cinema e no teatro, já que neste último o ator tem uma responsabilidade muito maior, uma vez que se comunica diretamente com a plateia, é criador junto com ela. No cinema, ao contrário, esse contato é mediado pela câmera, pelo olhar do diretor e finalmente pela montagem. Se no teatro o ator deve ser consciente de toda a trajetória de sua personagem e das relações que se estabelecem com as demais, no cinema tudo pode ser fragmentado e não necessariamente o ator precisa conhecer o filme como um todo. Para Tarkóvski, como veremos a seguir, o ator pode se beneficiar ao não conhecer o futuro de sua personagem, para que os momentos registrados pela câmera sejam genuínos, autênticos, únicos. (2) Entrevista a Rafael Llano, Teatro Imeni Mossoveta [0511-2000]. http://www.andreitarkovski. org/vita/terekho Acesso:

11

jan.

Tradução da autora.

va.html. 2010.

Margarita Terékhova, atriz de O espelho (1974), em que representa duas personagens, afirma que Tarkóvski "não exigia nada dos atores, apenas os escolhia. O que lhe interessava era a essência da pessoa, sua constituição psicofísica. Por isso muitos de seus atores reaparecem em cada filme" (2). Esse interesse de Tarkóvski também explica a opção do cineasta pela presença de não-atores em algumas de suas obras. Em O espelho, além da própria mãe do cineasta, Maria Ivánovna Tarkóvskaia, cuja história inspira todo o filme, está presente também a diretora de produção, Tamara Ogorodnikova, na misteriosa cena do chá. Tamara também aparece em Solaris (1972), como a segunda mulher (ou irmã) do pai de Kris Kelvin.

Como o pintor de ícones Andriêi Rublióv na obra homônima (1966). http://people.ucalgary.ca/~tstronds/no stalghia.com/theNews.html. Acesso: 14 jan. 2010.


74

(3)

Curta-metragem

realizado ainda na VGIK Escola de cinema de Moscou, em que se formou Andriêi Tarkóvski.

Devemos ressaltar ainda a presença de crianças em O rolo compressor e o violino (1960) (3), A infância de Ivan (1961), Andriêi Rublióv (1966), O espelho (1974), Stalker (1979) e O sacrifício (1986). Para Maia Turovskaia, primeira crítica da obra de Tarkóvski, o cineasta quase que intuitivamente associava alguns rostos com determinadas ideias, como no caso de Tamara, com o conceito de lar, família (TUROVSKAYA, 1989, p. 83). O mesmo se daria com o ator Nikolái Grinko, que representaria para Tarkóvski o ideal de paternidade - em Andriêi Rublióv, o ator representa o mentor de Andriêi; em Solaris, o pai de Kris Kelvin; e em O espelho, por sua idade não condizer com o papel de pai, representa o chefe (na indústria gráfica em que trabalha como revisora a mãe, representada por Margarita Terékhova). Se por um lado Tarkóvski incluía em seus filmes nãoatores e crianças, por outro, como muitos diretores, também tinha seus atores preferidos, dentre eles o próprio Nikolái Grinko e principalmente Anatoli Solonitsin. Este último marcou presença em Andriêi Rublióv (representando a personagem título), Stalker, Solaris e O espelho. O roteiro de Nostalgia (1983) havia sido escrito especialmente para ele, que para tristeza de Tarkóvski, já se encontrava gravemente enfermo quando do convite do diretor. A parceria entre ambos também inclui Hamlet, no Teatro Lenkom (Lênin Komsomol), em 1977, em uma montagem que agradou imensamente ao público (e nem tanto à crítica). O Hamlet de Solonitsin fora retratado não como um herói clássico, "distante" e que falava em versos, mas como um homem extremamente comum, que poderia ser o vizinho de qualquer um dos espectadores (TUROVSKAYA, 1989, p. 126). Como relata a atriz Margarita Terékhova, que na peça representou o papel de Gertrudes, mãe de Hamlet, para quase desespero de todo elenco, Tarkóvski anunciou já no primeiro dia de ensaio, que a estreia se daria em dez dias. O receio do diretor, segundo Terékhova, era de que as performances ficassem frias, congeladas pela repetição dos ensaios "o que mais temia era que nós, atores, resultássemos falsos". (4)

(4) Entrevista a Rafael Llano, Teatro Imeni Mossoveta [0511-2000]. http://www.andreitarkovski. org/vita/terekho Acesso:

11

jan.

Tradução da autora.

va.html. 2010.

O ator protagonista de Hamlet era considerado por Tarkóvski como essencial ao seu trabalho, desde o primeiro personagem dado a ele, o pintor de ícones Rublióv. Se não havia um papel para Solonitsin (como no caso de O espelho), escreviase um especialmente para ele (no filme citado, um médico passante, que trava diálogo com Margarita Terékhova). Se Grinko, por exemplo, personificava para o cineasta o ideal de paternidade e seus possíveis desdobramentos autoridade, segurança, virilidade Solonitsin, por sua vez, era flexível, adaptável, nas palavras de Tarkóvski, "um ator de


75 cinema nato, muito sensível e emocionável. Era muito fácil contagiá-lo com emoções e chegar, assim, ao estado de espírito desejado" (TARKOVSKI, 2002, p. 173). Tais características davam a Solonitsin a possibilidade de realizar diferentes papéis sem, contudo, esforçar-se em construir ou interpretar personagens. Seu talento residia na habilidade em deixar-se afetar pelos estímulos do diretor. O resultado, como o desejava Tarkóvski, era a expressão cristalina, pura, da verdade existencial. (5) (5)

Vide

Olga

Surkova

interviews Tarkovsky [20-01-

2.2 Duas tarefas: Viver e confiar

1985]. http://www.andreitarkovski. org/articulos.html. Acesso: 08 jan. 2010. (6) Conferencia en los Cursos de Verano de la Universidad Complutense, San Lorenzo de El Escorial (Madrid) [03-072003]. http://people.ucalgary.ca/~t stronds/nostalghia.com/The Topics/On_Acting.html. Acesso:

08

jan.

Tradução da autora.

2010.

Nos filmes de Andriêi Tarkóvski, pode-se notar uma qualidade expressiva dos atores muito peculiar, uma ausência de esforço em "interpretar", como se "pertencessem" integralmente às imagens propostas pelo cineasta. Os atores não tentam "explicar" ou "justificar" as ações das personagens, nem tentam "convencer" o público da trajetória realizada por elas; ao contrário, há uma entrega completa às circunstâncias que formam cada imagem, ao seu tempo presente, ao segredo inato a cada uma delas. Esse "não expressar nada", que Tarkóvski pedia a seus atores, embora pareça simples, apresenta-se como um grande desafio. O grande ator sueco Erland Josephson (1923-), presença constante nos filmes de Ingmar Bergman (1918-2007) e que trabalhou com Tarkóvski em Nostalgia e O sacrifício assim resume: É muito difícil para o ator não querer comunicar algo, porque nós queremos enriquecer nosso papel com nossas próprias experiências nas ações, no começo, no fim, em todo momento. Queremos transmitir o máximo de informação possível sobre a personagem que interpretamos, mas com Tarkóvski se tratava de outra coisa: que o público pudesse por si só, sem nossa ajuda, adivinhar muitas coisas sobre a personagem. Tratava-se de que o público mesmo pudesse criar algo sozinho, sem ser forçado a isso pelos intérpretes. (6)

Tarkóvski certamente estava ciente de um dos paradoxos da arte do ator: ao querer comunicar algo, o ator passa instantaneamente a não comunicar esse algo; comunica, por sua vez, apenas o seu desejo de comunicar. Se tal paradoxo já é marcante no teatro, no cinema amplia-se muitas vezes, já que a câmera capta todos os pequenos gestos, todas as pequenas alterações de expressão do ator. Se uma das premissas de Tarkóvski era sempre propiciar autonomia à plateia, fazia-se necessário, então, que os atores alcançassem uma qualidade de representação não


76 impositiva, que possibilitasse ao público exercer livremente seu papel de receptor ao que as imagens comunicavam. Nesse sentido, o cineasta criticou duramente os atores que se esforçavam por representar. Tal atitude equivaleria a uma falta de respeito com a sensibilidade da plateia, a extinção de toda e qualquer possibilidade de mistério: Quando faço um filme, tento não atormentar meus atores com discussões, e não admito que o ator estabeleça uma ligação entre o trecho que está representando e o filme em sua totalidade; às vezes, não permito que ele o faça nem mesmo com relação às cenas imediatamente anteriores ou posteriores (TARKOVSKI, 2002, p. 171).

(7) Konstantin Serguêievitch Alekséiev, mais conhecido por Konstantin Stanislávski, foi ator, diretor, pedagogo e escritor

russo,

fundadores, Vladímir

um

dos

junto

com

Nemiróvitch-

Dântchenko (1858-1943), do Teatro de Arte de Moscou (TAM).

O

"sistema"

Stanislávski, impulsionado pelo projeto do TAM de renovação da arte teatral em todos

os

âmbitos,

é

o

resultado da experimentação prática

contínua

Stanislávski,

de que

sistematizou e teorizou sobre os

seus

procedimentos

artísticos e de seus atores, baseado

na

indissolúvel

unidade física e psíquica.

A afirmação de Tarkóvski certamente se choca com os pressupostos de muitas linhas de pesquisa de interpretação teatral, dentre elas, uma das mais importantes, a de Konstantin Stanislávski (7) (1863-1938). O método sistematizado pelo ator e diretor russo exigia do intérprete uma participação ativa no processo de criação do espetáculo, o que incluía, dentre muitos aspectos, a compreensão intelectual total da obra a ser encenada, através da elucidação pormenorizada dos acontecimentos presentes no enredo, dos desejos e vontades das personagens e dos obstáculos que a elas se colocam; ao ator cabe a tarefa fundamental do desenvolvimento da trajetória da personagem, uma linha definida de ação dentro do espetáculo, a construção detalhada do papel. Para a diretora teatral e pesquisadora Nair D'Agostini, no "sistema" Stanislávski, juntamente com o diretor, o ator dá vida àquilo que está entre linhas, "colocando seus próprios pensamentos e estabelecendo sua própria relação com as personagens da obra e as condições em que vivem" (D'AGOSTINI, 2007, p. 35). Todo o material levantado por meio do estudo teórico-prático do texto, as contribuições do diretor e as experiências pessoais passam a ser parte espiritual e física do ator, que o levará "a uma ação real, autêntica e produtiva, intimamente unida à trama da obra" (D'AGOSTINI, 2007, p. 35). Assumindo as diferenças de linguagem entre cinema e teatro, Tarkóvski abole estes procedimentos em seu trabalho com os atores. Tal extinção pode ser justificada por dois motivos: o primeiro encontra-se na atribuição dada à montagem, à lógica interna da ação - a responsabilidade pelo encadeamento, ritmo e conexão entre as ações não cabe ao ator (como acontece no teatro), mas ao diretor, que juntamente com o editor/montador, organiza as cenas e episódios de acordo com sua concepção total do filme. A outra razão está na própria natureza das personagens tarkovskianas não possuem trajetórias completas, cronologicamente organizadas; suas ações exteriores são infinitamente menos ricas que seus


77 mundos interiores. Sobre esta questão, o próprio diretor declarou que para ele, "os personagens mais interessantes são aqueles exteriormente estáticos, mas interiormente cheios de energia de uma paixão avassaladora" (TARKOVSKI, 2002, p. 14). A habilidade do ator em construir uma personagem autônoma nunca foi de valor a Tarkóvski, pelo contrário, como já mencionado anteriormente, muitas vezes teve de lutar contra ela, para que o ator pudesse viver o momento da cena confiando plenamente em sua direção. Tal confiança é considerada vital para o cineasta, o elemento que possibilita o mergulho profundo em estados emocionais, de onde a personagem possa emergir. Se em certas tradições teatrais a personagem é detalhadamente construída, no cinema de Tarkóvski, a busca é por revelá-la. Esta é, portanto, uma das tarefas do diretor: instilar vida no ator, inspirá-lo, para que sua expressividade possa ser autêntica, cristalina, para que simplesmente transpareça "a absoluta veracidade do estado interior das personagens" (TARKOVSKI, 2002, p. 25). A própria concepção de mise en scène do cineasta nos ajuda a entender a ideia de "revelar" a personagem. A mise en scène não deve ilustrar a vida, mas sem exprimi-la, expondo o caráter das personagens e seus estados psicológicos: "Sua função é surpreender-nos pela autenticidade das ações e pela beleza e profundidade das imagens artísticas" (TARKOVSKI, 2002, p. 23). A mise en scène, desse modo, precisa estar "livre de ideias óbvias" (TARKOVSKI, 2002, p. 16). Se o próprio roteiro, o trabalho não interpretativo dos atores e a montagem empenham-se para dar liberdade ao espectador, também a mise en scène estabelece-se para que o público possa apreciá-la e dela tirar suas próprias conclusões, sem que nenhum tipo de imposição seja feito a ele. Dessa maneira, estabelecem-se dois pontos principais no que se refere ao trabalho do ator na obra tarkovskiana: a presença absoluta no momento da cena o viver e a confiança cega, como a de uma criança, no diretor. 3. Considerações sobre o ator no teatro e no cinema

Andriêi Tarkóvski, em Esculpir o tempo, nos conta das dificuldades que os atores enfrentam para viver o momento presente da cena e confiar em sua direção. Para muitos, não ter o controle sobre o percurso da personagem que representam, sua história, as relações que estabelecem com outras personagens e seu papel no filme como um todo é um grande pesadelo. Como o próprio Tarkóvski afirma, tais questões podem ser vitais ao trabalho do ator em certas tradições teatrais, em que a clareza dos princípios teóricos é fundamental para que o ator possa construir sua personagem, sob a orientação do diretor. Deve-se destacar, entretanto, que dentro das pesquisas sobre a arte do ator no âmbito teatral, muito já foi dito sobre a autenticidade da expressividade de uma ação física, ou ainda, do poder da simples presença cênica do ator. Diversas linhas de pesquisa se orientam por tais princípios, em que a necessidade da construção de personagens ou mesmo de uma dramaturgia pré-estabelecida é inexistente. O próprio Konstantin Stanislávski, que pode ser considerado um dos primeiros atores-pesquisadores (além de diretor e teórico) do século XX que se debruçou sobre o estudo da arte do ator, nos últimos anos de vida, deu grande ênfase às ações físicas, desenvolvendo todo um "sistema" a partir delas.


78 Outros pesquisadores depois de Stanislávski também investiram nas experiências com as ações físicas, pesquisando cada vez mais a potencialidade da presença psicofísica do ator, desenvolvendo a encenação do espetáculo ou sua dramaturgia a partir do trabalho dos atores. Essa observação é, obviamente, geral, se levarmos em conta a gama de diferenças entre os trabalhos de diretores e pesquisadores sobre o ator, como Stanislávski e o "sistema das ações físicas", Meyerhold (18741940) e a biomecânica, Grotowski (1933-1999) e o conceito de "ator-santo", Eugenio Barba (1936-) e a Antropologia Teatral, sem mencionarmos os estudos contemporâneos sobre a performance, a dramaturgia do ator e as pesquisas na fronteira entre teatro e dança. Assim resume as mudanças no ofício do ator, na história recente do teatro, o pesquisador e também ator Renato Ferracini: Desde Stanislávski, passando por Meyerhold, Artaud e agora Grotowski [...] o ator, cada vez mais, passa a ter domínio de sua arte. Cada vez menos ele está atrelado ao texto literário e/ou dramático e cada vez mais vai encontrando parâmetros objetivos de articulação de seu corpo e sua alma, sem a necessidade de uma personagem. Cada vez menos, vê-se "perdido"com a falta de técnicas objetivas que permitam a seu corpo articular seu fazer teatral, e cada vez mais encontra ferramentas para que essa articulação seja realizada (FERRACINI, 1998, p. 68/9).

(8) Termo usado por Eugenio Barba para esclarecer que o instrumento de trabalho do ator não é somente seu corpo, mas seu corpo e alma (in FERRACINI, 1998, p. 26). Lembremo-nos do ideal de Antonin Artaud (1896-1948), para quem o ator é um "atleta do coração" (ARTAUD, 1993, p.

129),

ou

seja,

seus

instrumentos de trabalho são, além do próprio corpo físico, suas emoções, sensações e afetividade.

Para o diretor e pesquisador italiano Eugenio Barba, um dos criadores do Odin Teatrex (Dinamarca, fundado em 1964) e do conceito de Antropologia Teatral, "trabalhar um ator é, sobretudo, preparar seu corpo não para que ele diga, mas para que ele permita dizer" (BARBA, SAVARESE, 1995, p. 187). Notamos, no pensamento de Barba, que a expressividade do ator, portanto, não nasce de uma intenção racional previamente antevista por ele, mas antes, de seu estado de presença plena, no tempo absoluto do "agora", em que todos os artificialismos são extintos. O ator não quer comunicar; seu corpo-em-vida (8) é o próprio meio com que se comunica à plateia, ao mesmo tempo em que é, por si só, a própria mensagem. Ao público, portanto, nada é imposto. Com estas observações, nota-se que os princípios básicos sobre os quais trabalhava o ator de Tarkóvski a presença plena e a confiança no diretor são os mesmos que orientam e alicerçam as pesquisas de muitos encenadores e pesquisadores teatrais contemporâneos. A busca de Tarkóvski pela verdade de cada momento, pela autenticidade de cada imagem, pelo diálogo direto com o espectador, através do trabalho "cristalino" dos atores, parece ser ainda a investigação de muitos artistas da cena e do cinema de hoje, mesmo depois dos mais de vinte anos da morte de Tarkóvski.


79 Considerações finais

Para concluir, gostaríamos de retornar ao cinema, examinando uma afirmação de Walter Benjamin em seu reconhecido texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica: "O ator cinematográfico típico só representa a si mesmo" (BENJAMIN, 1994, p. 182, grifo do autor). No contexto em que fora escrita, a declaração de Benjamin era certamente uma crítica, pois se no teatro o ator era senhor de sua arte, no cinema perdia o domínio de seu instrumento - corpo e voz para a imaterialidade da luz e sombra; sua atuação como um todo deixava de lhe pertencer para ser reorganizada no processo de montagem, e, finalmente, o contato direto e "quente" com a plateia dava lugar à intermediação "fria" da máquina. Mas gostaríamos de analisar a afirmação de Benjamim perspectiva.

a partir de outra

Se no teatro contemporâneo a fronteira entre personagem e ator está cada vez mais tênue, por vezes mesmo, como observado anteriormente, a personagem já não existe, pode-se dizer que o objetivo de Tarkóvski, o de que o ator representasse uma verdade existencial, torna-se cada vez mais pertinente. Ao examinar-se a presença de Anatoli Solonitsin em filmes tão distintos como Andriêi Rublióv, Solaris, Stalker e O espelho, em que as personagens são muito diferentes entre si, fica claro que o ator não estava preocupado em construí-las, mas em viver cada momento preciso dentro das circunstâncias propostas por Tarkóvski. O resultado é verossímil, autêntico, natural. O ator certamente não se esforça para representar uma personagem, nem tampouco em representar a si mesmo, embora o modo como reaja a tais circunstâncias seja seu, inerente a seu caráter, fiel à sua estrutura emocional e intelectual. Seu compromisso está na autenticidade de suas ações, na liberdade e prontidão em reagir e na capacidade de estar presente. Nesse sentido, o ator não tem o objetivo de representar-se a si mesmo, ao mesmo tempo em que a forma adotada por ele para reagir aos estímulos propostos pela situação ficcional é sua, pessoal. Daí surge a singularidade de cada ator. Tarkóvski deixava claro que não se importava com os recursos utilizados pelo ator para realizar o que lhe era pedido, nem a forma de expressão que ele adotaria; para o diretor, o ator tem de "expressar em circunstâncias específicas um estado psicológico peculiar apenas a ele próprio [...] fazendo-o da maneira que melhor se ajusta a ele" (TARKOVSKI, 2002, p. 172, grifo nosso). Pode-se dizer que a afirmação de Benjamim, por conseguinte, acaba de certa maneira, sendo pertinente. Deve-se ainda reafirmar a admiração que Tarkóvski nutria pelo ator que é mestre em seu ofício. O fato de não se importar com a forma utilizada pelo ator para atingir o que lhe era solicitado, demonstra sua confiança na liberdade e autonomia deste. Erland Josephson recorda-se de que Tarkóvski sempre acolhia a improvisação dos atores, concessão que jamais experimentara com Bergman, por exemplo. (9) Para finalizarmos, gostaríamos de remeter-nos ao início deste texto. Impelido em todos os seus filmes por sua "necessidade interior", Tarkóvski realizou suas obras não como "um indivíduo sortudo, a quem tudo sai bem sem esforço" (KANDINSKY, 1996, p. 128), mas como um dever, em um empenho espiritual para construir imagens poéticas harmoniosas. O fato de as condições ideais para a criação da obra de arte serem


80 inexistentes, nunca o fez desistir. Enfrentando todos os problemas para a realização e divulgação de seus filmes, sejam os de ordem burocrática (ou no caso da União Soviética de seu tempo "gravemente" burocrático), ou as dúvidas e incertezas artísticas, ou ainda as dificuldades em viver fora de sua pátria, Tarkóvski nunca se desviou de seus princípios, ideias e convicções, pagando o alto preço de ser um verdadeiro artista. Recusou-se a transformar seus filmes em imposições de suas próprias ideias suas obras são, obviamente, altamente pessoais, filtradas por suas concepções subjetivas, mas que talvez, por este mesmo motivo, nada imponham ao espectador, respeitando, acima de tudo, sua liberdade. Para tanto, também se recusou a transformar seus atores em porta-vozes, dandolhes antes, na ficção, o sopro da vida.

9) Conferencia en los Cursos de Verano de la Universidad Complutense, San Lorenzo de El Escorial (Madrid) [03-072003]. http://people.ucalgary.ca/~t stronds/nostalghia.com/The Topics/On_Acting.html. Acesso: 08 jan. 2010.


81

Anatoli Solonitsin (Hamlet) junto a Margarita TerĂŠkhova (Gertrude), no Teatro Lenkom (1977). http://people.ucalgary.ca/~tstronds/no stalghia.com/theNews.html. Acesso: 14 jan. 2010.


82 Bibliografia ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 1993. Título original: Le théâtre et son doublé. Paris: Édition Gallimard, 1964. BARBA, E; SAVARESE, N. A arte secreta do ator Dicionário de antropologia teatral. Trad. Luís Otávio Burnier. Campinas: Editora da Unicamp, 1995. Título original: Anatomia del Teatro. Florença: Casa Usher, 1983. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. Vol. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. Título original: Auswahl in Drei Bäenden. D'AGOSTINI, Nair. O método de análise Ativa de K. Stanislávski como base para a leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator. Tese (Doutorado em Literatura e Cultura Russa). São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Departamento de Letras Orientais, 2007. FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. Dissertação (Mestrado). Campinas: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Departamento de Multimeios, 1998. KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte e na pintura em particular. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Título original: Du spiritual dans l'art. TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. Trad. Jefferson Luiz Camargo (versão inglesa). São Paulo: Martins Fontes, 2002. Versão alemã: Die Versiegelte Zeit. Frankfurt-Berlin: Ullstein, 1985. original russo TUROVSKAYA, Maya. Tarkovsky 1989. Original russo.

Cinema as poetry. Trad. Natasha Ward. London: Faber and Faber,

Documentos eletrônicos ANDREITARKOVSKY.ORG. http://andreitarkovsky.org/. Acesso: 08 jan. 2010. NOSTALGHIA.COM. http://people.ucalgary.ca/~tstronds/nostalghia.com/. Acesso: 08 jan. 2010



INTERSECÇÕES


85

Hamlet Гамлет


86

Ficha Técnica Autor: William Shakespeare Direção: Andriêi Tarkóvski Elenco: Anatoli Solonitsin e Margarita Terékhova e Ina Mikháilovna Tchurikova Local: Lenkom Teatro, Moscou Ano: 1977


87

Andriêi Tarkósvki Андре́й Тарковский

Eu diria que o drama, a tragédia de Shakespeare e, em particular, a de Hamlet não é, absolutamente, o fato dele morrer fisicamente como resultado da obsessão pelo sentimento de vingança ou pelo sentimento de justiça. Não se trata disso, de maneira nenhuma.

Trata-se, sim, de que ele se condena à morte, ocupando-se de ... pretendendo corrigir este século desarticulado A pessoa que se condena a servir, por assim dizer, às pessoas, ao desejo de restabelecer a linha rompida do tempo, isto é, entregando-se, por assim dizer, ao processo histórico em prol dos outros, é um catalizador de tal processo. Em geral, de um certo modo, dissolvendo-se definitivamente, irrevogavelmente, nesse processo.

Ina Mikháilovna Tchurikova Инна Михайловна Чурикова

Ofélia é uma pessoa viva e, por isso, nada que é humano me é estranho. E ela ama o Hamlet, eu nem sei pelo que mais: se pelo fato de ele ser uma pessoa tão interessante, ou se porque ele é um príncipe? Em todo o caso, ela ama o príncipe. Acho que Ofélia quer muito ser rainha. E, para ela, a mãe dele, Hamlet, é sua rival.

100


88 Я бы так сказал, что драма, трагедия Шекспира, и в частности, трагедия Гамлета, заключается вовсе не в том, что он гибнет физически в результате, там, я не знаю там, одержимости чувством мести или чувством справедливости. Вовсе не в этом дело.

А дело в том, что он обрекает себя на смерть, вот занимаясь тем, что... собираясь справлять вот этот вывихнутый век. Тот человек, который обрекает себя на служение, так сказать, людям, на желание соединить разорванную нить времени, то есть отдаваясь, так сказать, историческому процессу в служении, является катализатором его. И вот в этом процессе в общем каким-то образом окончательно, бесповоротно растворяясь.

Офелия живой человек, поэтому ничто человеческое мне не чуждo. И она любит Гамлета, я даже не знаю за что больше: за то, что он человек такой интересный, или за то, что он принц? Во всяком случае, она любит принца. Я думаю, что Офелии очень хочется быть королевой, и мать его, Гамлета, для неё cоперница.

páginas anteriores e abaixo

Fragmentos do programa Dois Tarkovsky. http://www.youtube.com/watch?v=dsw RWrch3xc Acesso: 11/10/2011


89

Andriêi Kontchalóvski

Em quatro de Abril de 1934 nasceu Andriêi

Андрей Кончаловский

Tarkóvski, notável cineasta russo, pessoa que ocupa um lugar especial nos cinemas russo e mundial. Cada um dos seus filmes foi um acontecimento.

Ele fez os filmes: A infância de Ivan, Andriêi Rublióv, O Espelho, Stalker, Solaris, Nostalgia, O Sacrifício. (1) Kontchalóvski refere-

se ao VGIK (Vserosiski Gosudarstvenni U n i v e r s i t i é t i Kinematografi), a mais antiga escola de cinema do mundo. Fundada em

Ele poderia ter feito muito mais filmes, mas cada um deles lhe custava muito trabalho. E, após Rublióv, passaram-se vários anos até ele conseguir lançar outro filme.

Moscou, em 1919, teve entre o seu quadro de docentes

Serguei

Eisenstein, que por sua vez

foi

professor

de

Mikhail Romm, que seria

Andriêi era uma pessoa complexa, interessante, e nós fomos muito amigos, principalmente no início, depois de havermos concluído o curso na

orientador de Tarkóvski e

Universidade Estatal Russa de Cinema.

Kontchalóvski,

Propriamente falando, nós nos conhecemos na

dentre

outros. (N. da E.)

VGIK (1) e começamos a trabalhar quando ele já

(2) Mosfilm (Produtora de

terminava o curso e eu ainda estava no terceiro

Filmes de Moscou) foi uma

das

maiores

ano. Depois, escrevemos O rolo compressor e o

unidades de produção de

violinista para o seu trabalho de conclusão, roteiro

cinema

que ele encenou nos estúdios Mosfilm

existentes

na

Rússia. Criada em 1923, deixou de ser controlada integralmente

pelo

estado, passando a ser gerida

também

capital

por

privado.

Informações sobre sua atuação na Rússia podem ser

consultadas

em

http://www.mosfilm.ru/. (N. da E.)

(2).


90 В этот день четвёртого апреля тысяча девятьсот тридцать второго года родился Андрей Тарковский, замечательный русский режиссёр, человек, занимающий особое место в русском и мировом кино. Каждая из его картин становилось событием.

Он сделал такие картины, как Иваново детство, Андрей Рублёв, Зеркало, Сталкер, Солярис, Ностальгия, Жертвоприношение.

Он мог снять гораздо больше картин, но каждая картина давалась ему с огромным трудом. И после Рублёва у него перерывы были по несколько лет прежде, чем он мог пробить свою следующую картину.

Андрей был человек сложный, интересный, и мы с ним очень дружили, особенно в первое время после того, как мы закончили ВГИК. Собственно мы познакомились с ним в ВГИКе и начали работать, когда он уже заканчивал BГИК, а я был ещё на третьем курсе, и мы работали с ним над одним сценарием, потом мы написали Каток и скрипка для его дипломной работы, сценарий , который он снял в киностудии Мосфильм.


91 Nós dois fomos alunos de Mikhail Romm. Tarkóvski era admirável por sentir algumas coisas que ele próprio não conseguia reproduzir em palavras. E, quando eu trabalhava com ele, era comum ele não saber explicar o que necessitava. Além do mais, eu é que devia escrever o roteiro, e a sua definição do que precisava era uma coisa tão vaga, que é impossível transmiti-la pela dramaturgia.

Ele escrevia de improviso. Ele tinha uma ideia principal, que, depois, determinou todo o seu cinema.

Ele achava que era possível deter o tempo no filme, e que o instante é maravilhoso. E, nesse sentido, ele é um daqueles cineastas singulares, que fizeram filmes como arquitetura, como escultura.

É preciso ser uma pessoa intelectualmente preparada para assistir aos filmes de um diretor como Tarkóvski.

Os seus filmes talvez sejam meditações filosóficas, relacionadas mais com a espiritualidade do que com a alma. Ele pensava no espírito e, começando com Andriêi Rublióv, tentou fazer filmes, em certo sentido, deslocados da realidade, desprovidos até, talvez, de paixão, e ainda mais de sensualidade. Ele dizia que o espírito, em geral, era uma coisa fria, e a alma, quente.


92

Мы были оба учениками Ромма. Тарковский был удивителен тем, что чувствовал некоторые вещи, которые сам не мог произвести словами. И, когда я с ним работал, он часто не мог объяснить, что ему нужно. Причём я должен был писать, а его определении того, что ему нужно. Это было настолько расплывчато, что невозможно передать драмматургией.

Он писал инстантанно, у него была одна самая главная идея, которая потом определила веcь его кинематографа.

Он считал, что время можно остановить в картине, [и что] остановить мгновение это прекрасно. И в этом смысле это один из уникальных режиссёров, которые делал картины, как архитектуру, как скульптуру.

Нужно быть очень интелектуально подготовленным человеком, чтобы смотреть картины такого режиссёра, как Тарковский.

Его картины

─ это, может быть, филосовские

размышления, связанные с духовностью, с духовностью даже больше, чем с душой. Он думал о духе, и у него начинаясь с Андрея Рублёва, он старался делать картины в определённом смысле даже отрешённые, лишённые даже, может быть, от страсти, а уж особенно чувственности. Он говорил, что дух вообще тёплая.

─ это холодная вещь, а вот душа ─ это


93 Ele quis fazer filmes que fossem dedicados a problemas religiosos elevados. Não é à toa que um filme seu, em que tive a felicidade de colaborar, Andriêi Rublióv, recebeu um prêmio em Cannes e um prêmio do Vaticano, de críticos católicos.

Eu me lembro de que, quando trabalhávamos em Rublióv, ele ficava tão arrebatado pelos sonhos, que nas filmagens era muito duro com as pessoas, inclusive consigo mesmo.

Mas aí está a sua genialidade. Genialidade é a capacidade de atingir um alvo que ninguém vê. Tarkóvski tinha essa genialidade, uma vez que fazia mira e atingia os alvos invisíveis aos outros artistas. Esses alvos se tornavam visíveis somente depois de Tarkóvski colocá-los à mostra.

páginas anteriores

vídeo Vale a pena lembrar de Andriêi Kontchalóvski http://www.youtube.com/watch?v=SUps 6WsjK1o Acesso: 14/09/2011 direita

Soldado de óculos ( Andriêi Kontchalóvski) e Macha (Valentina Maliavina). (TARKOVSKI, 1961, 00:41:05 00:41:50)


94 Он хотел делать картины, которые были посвящены высоким религиозным проблемам. Недаром его картина, с которой я имел счастье иметь отношение, Андрей Рублёв, получила премию в Канне, премию Ватикана, премию католических критиков.

Я помню, что, когда мы с ним работали над «Рублёвым», его настолько заносило, [что] в съёмках он был жесток ко всем, в том числе и к себе, когда он снимал «Рублёва».

Но вот в этом была его гениальность. Определение гения ─ это способность попасть в цель, которую никто не видит. Вот Тарковский обладал тем самым гением, ибо он целился и попадал в те цели, которые не были видны другим художникам, и становились видны только после того, как Тарковский эти цели указал. Tradução de Noé Silva com colaboração de Gabriela Soares da Silva e Tieza Tissi.


95

O vagar perdido Antonio Mengs O cinema, como linguagem, articula-se na sucessão; como toda linguagem, cria um ritmo novo, uma inteligência específica; como linguagem artística, dispõe dessa liberdade exigida por seu objeto que a leva a distanciar-se, com propriedade, das estruturas convencionais. O cinema é outro tempo, um desvio do calendário e da hora, uma forma do vagar perdido . Dentre suas estruturas clássicas a mais simples é também, como na literatura, aquela que narra os fatos sequencialmente, o raciocínio linear: descreve o movimento, propõe o desenvolvimento e assinala um desfecho. Quando a arte toma consciência das formas de expressividade inerentes à nossa natureza psíquica, a busca da exatidão resulta em uma intenção de ordem autônoma. O artista pode ignorar qualquer uma dessas etapas e antecipar o futuro, postergar o passado, eliminar o nexo causal, repetir a mesma cena com ou sem variações, etc. O resultado será um tempo mais ou menos próximo ao da vida tal como a percebemos, um mundo diferente que cumpre sua particular função de significado. Esculpir no tempo, o título que Tarkóvski deu a suas memórias - citado frequentemente por sua eloquência -, resume em uma imagem a noção de que o tempo é o verdadeiro material cinematográfico. A música, o roteiro, a encenação, o tratamento da cor e a fotografia e, principalmente, a configuração do plano constituem os utensílios dos quais se vale o escultor para dar forma a essa inapreensível fluência, o tempo, necessariamente delimitado por si mesmo na duração objetiva do filme, porque um verdadeiro filme, com um tempo fixado com precisão no celulóide, que flui para fora dos limites do plano, vive no tempo apenas quando o tempo, por sua vez, vive nele (TARKOVSKI, 1991, p. 143-144). Em Stalker o realizador fez uma abordagem oposta ao de seu antecessor, Zerkalo (O Espelho), elaborado sobre a base de uma complexa e intrincada estrutura tempoespacial. Aqui considerou imprescindível levar ao extremo a simplicidade narrativa, de maneira que o tempo percebido pelo espectador, amoldando-se à sequência natural dos fatos, resulta próximo ao tempo da vivência. Não há saltos para o passado e sequer para o futuro, como tampouco extrapolações de lugar. Inclusive a visão de Stalker, a única sequência psicológica do filme, se diferencia apenas no tempo e na cenografia, em relação


96 às outras: nós a percebemos em continuidade, pertencendo à mesma trama do conjunto (TARKOVSKI, 1991, p. 219). Esta aproximação da simplicidade, no entanto, possui matizes que a diferenciam por completo do que poderíamos denominar um padrão narrativo, pois Tarkóvski, partindo da estrutura linear clássica, vai romper a dimensão do tempo através da revelação de seus pontos de fuga. Ao contrário do que é usual no cinema, e talvez pelo fato das personagens de Stalker serem elementos de um conjunto integrado, não há especial interesse em falar sobre elas, sobre suas vidas e de suas circunstâncias, mas sim deixálas que falem por si. Contemplado a partir deste ponto de vista, a abordagem da personagem denota imediaticidade, respeito e caracterização não subordinada a elementos contingentes: observamos à nossa frente três pessoas sobre as quais nada sabemos e nada nos é contado. Tampouco essas pessoas se conhecem, por isso mal podem nos dar referências umas das outras. Não apenas somos privados do conhecimento das circunstâncias objetivas nas quais se desenvolve a vida dos protagonistas, mas também desconhecemos por que foram retirados dela e transpostos para um contexto incomum. O grau de abstração em que são focalizados é evidente: três figuras, homens apenas, meio à natureza inculta, cujas vestes tão neutras fazem com que pareçam estar nus, sem história ou origem, representando uma função. Homens que se separam de um caminho - que não corresponde exatamente às suas expectativas - e se desviam por uma senda alheia ao tumulto da sociedade, da vida da cidade, no campo. Homens que se veem inesperadamente envolvidos pelas implicações de um excurso, em todos os sentidos.

(1) Cf. LLANO, Rafael, Andrei Tarkovski - vida y obra. Valencia:

Generalitat

Valenciana.

Instituto

V a l e n c i a n o

d e

Cinematografía, vol. I, p. 5456, em que é sublinhado o precoce

interesse

de

Tarkóvski pelos fenômenos paranormais.

Para além da abordagem incidental, evidencia-se a delicadeza com que Tarkóvski interpreta essas ausências temporais, tais como os acampamentos de verão ou as excursões juvenis - talvez ele tivesse em mente a expedição geológica da qual ele mesmo participara - e que assinalam uma experiência singular em determinada etapa da vida (1). Depois de um tempo, notamos que aquilo nos transformou, em um momento de desvio, retorna à memória sob a forma de fuga e com o desejo de ausentar-se das ocupações habituais e compromissos, para sugerir essa ação perigosa ou a necessidade de um breve retiro, uma suspensão das circunstâncias da vida. O pouco que sabemos de Stalker deve-se a sua mulher. Ela não apenas dá a entender - através de seus cuidados e reprovações - parte da história passada entre ambos, mas também do que aflui na própria base da ação, pois o amor da


97 mulher está de acordo, ou melhor dizendo, está na mesma frequência que impulsiona a vontade que Stalker tem de servir. Se tentarmos esquematizar o sistema de relações em um diagrama, poderíamos concluir que a mulher (x), aponta para o marido (y), como um índice, como uma flecha em direção à função de busca. Esta, que implica ação e criação, tem o seu eixo naquela, a terra passiva do amor. A mulher, o modo indicativo, a espreita, o reconhecimento da Zona, vinculam-se como um relógio que marca outra hora, uma hora de outro tempo. E esse outro tempo exerce uma irresistível, mas não ilimitada força de atração sobre o Escritor (a) e o Professor (b) até sua esfera.

a b y x

Assim, ao dizer que sabemos um pouco mais apenas sobre Stalker, deixando de lado os escassos dados sobre a família e o trabalho, na realidade estamos dizendo dele e de sua mulher, como um todo. Stalker nunca perde seu centro e, ainda que a mulher não participe diretamente na ação, ele tem nela uma presença invariável. Antes de regressar ao mundo, em um breve monólogo introspectivo pleno de nostalgia, ele fala sobre ela:

“Que fazer? Deixar tudo. Tomar minha esposa e vir morar aqui. Para sempre. Aqui não há ninguém e ninguém a ofenderá.”

São as palavras de um Stalker abatido, desiludido, que observa como seu esforço por levar seus clientes a um nível superior de experiência fracassa mais uma vez, que sente a esterilidade de seu empenho e considera inútil seguir arriscando a segurança dos seus. Ficamos tristes com o abatimento de Stalker e o escutamos em silêncio, respeitosos, mas suas últimas palavras semeiam a inquietude, ou o estranhamento, pois levantam uma nova questão: por que a mulher é ofendida? No filme, não se presencia nada nesse sentido. Temos que supor que, devido à atividade marginal de Stalker, a mulher seja maltratada por parte da sociedade, talvez por parte das autoridades? É uma possibilidade. Há outra: o mundo ofende ao amor. A presença na Zona dessas pessoas que não se atrevem a chegar até o final ofende à Zona, ofende a Stalker e, portanto, à sua mulher - ofende ao amor. Recordemos o célebre verso de Maiakóvski, em seu poema inacabado, A barca do amor se chocou contra a vida cotidiana (verso presente no poema de despedida escrito em 1930).


98 Stalker, que é linha de espreita, flecha da ação, sente que aquilo que o impulsiona e que sua mulher guarda - o amor, a devoção -, é constantemente ofendido.

(2)

É

bem

conhecida

a

admiração que Tarkóvski nutria pelo diretor francês. (3)

“Pered

novimi

zadachami”. Entrevista de Andriêi Tarkóvski concedida a Olga Surkova, publicada na revista russa Iskusstvo Kino, 1977

(7),

Tradução

p.

116-118.

para

a c e s s í v e l

o

inglês e m

http://www.nostalghia.com.

Embora as palavras do roteiro sejam, como vimos, muito importantes, grande parte da expressividade de um filme, em que se faz uso exaustivo do plano médio e primeiro plano, recai, sem grande margem de erro, sobre o conjunto dos gestos e sobre os rostos. E conseguir a naturalidade, em um filme de características semelhantes, supomos, não deve ser tarefa simples. E ainda, a interpretação tenderá a seguir o conceito geral da música, nos filmes de Tarkóvski, ou seja, tenderá a fundir-se sem que se destaque e a escapar de qualquer tentativa pretensiosa; e ao mesmo tempo, possibilitar sua própria fuga como a porta se abre à alma, como se interpreta essa fuga estrutural nas personagens do filme? Natália Bondartchuk, atriz de Solaris, compara o trabalho dos atores, nos filmes de Tarkóvski, com os de Robert Bresson: os atores não interpretam, eles meditam diante da câmera. Tudo o que é superficial é eliminado, a alma é o que fala (BONDARCHUK, 1991,p. 107) (2). A câmera é testemunha imparcial do que resulta da introspecção que é exigida do ator como forma específica de seu trabalho. Não há nada implícito em sua tarefa, tudo há de ser explicitado obtendo de si mesmo a parte não educada profissionalmente falando -, a que não atua, a sua irredutível singularidade como ser humano ao se defrontar com uma situação concreta. Através desse procedimento, a personagem é revelada ao ator, e, no transcurso do caminho, é revelada aos espectadores à medida que o faz a si mesmo. Para o público, o significado do que sucede a cada um dos personagens em cada fotograma está envolto em mistério, e cada pessoa permanece como na vida real - um magnífico segredo, aquele que, em princípio, jamais poderá ser penetrado completamente (3) . Tarkóvski queria que os atores se expressassem segundo sua natureza e não de acordo com o que supostamente o diretor esperava deles: cada pessoa vive uma mesma situação de uma maneira própria, singular. Por exemplo, dentre aqueles que estão acometidos pela dor e a melancolia, uns preferem abrir-se, 'descarregar a alma', e outros se fecham e querem estar a sós com sua dor (TARKOVSKI, 1991, p.170). Por outro lado, cuidava para que tomassem conhecimento do que deveriam interpretar no roteiro apenas no momento da filmagem, com a intenção de colocá-los em situação semelhante à que se encontraria seu personagem na vida real: em completa incerteza a respeito do futuro. Desse modo, a interpretação não fica condicionada pelo conhecimento do que vai acontecer depois. Como você pode atuar com sinceridade se souber desde a primeira cena que vai morrer na última? Isso significa


99 que tudo o que acontece entre a primeira e as últimas cenas é falso , conta Leila Alexander sobre o que Tarkóvski lhe teria dito. (ALEXANDER, 1991, p. 221). E mais, para Tarkóvski, os diálogos contidos no roteiro não passavam de mera declaração de intenções, de modo que Os atores que memorizam seus papéis a partir do roteiro sabem que quando eu começar a filmar tudo será mudado (SJÖJAN, 1991, p. 137). Em suma, parece que o diretor buscava nos atores a mesma atitude com a qual ele mesmo se defrontava na filmagem, a mesma abertura, a mesma sujeição ao mistério, com total respeito pelo seu caráter e individualidade. Não devia ser fácil transmitir aos integrantes da equipe esse estado de disponibilidade ativa, de expectativa constante; ainda menos para aqueles atores habituados a trabalhar sobre um roteiro, que esperavam instruções precisas do que deveriam fazer - não Grinko ou Solonitsin (Professor e Escritor, respectivamente), que haviam trabalhado em filmes anteriores com Tarkóvski, mas talvez Kaidanóvski (Stalker) e Alisa Freindlikh (sua mulher). No entanto, Tarkóvski sabia encontrar as palavras adequadas para trabalhar com seus atores, remetendo-os às próprias fontes de onde surge o filme: Deve haver um segredo entre vocês e eu. Nem tudo deve estar claro para vocês. Vocês devem estar em um estado de incerteza, o resultado deve ser inesperado, imprevisível, interessante. Como se estivessem enamorados (ALEXANDER, 1991, p. 221).

(4) “Pered novimi zadachami”. Entrevista

de

Andrêi

Tarkóvski concedida a Olga Surkova, publicada na revista russa Iskusstvo Kino, 1977, p. 116-118. Tradução para o inglês

acessível

em

http://www.nostalghia.com. (5) Conferência Josephson

de Erland

nos Cursos de

Verano de la universidad Complutense, San Lorenzo de El Escorial (Madrid), em 3 de julho de 2002. Acessível em http://www.andreitarkovski. org.

As

apreciações

Josephson

são

interessantes

de

bastante para

a

compreensão do ponto de vista dos atores.

Por trás desse esforço por distanciar-se de toda farsa, exageros ou maneirismos, há um desejo de autenticidade que revela o genuíno interesse de Tarkóvski para nos transmitir suas inquietudes com a maior precisão. Não é possível descrever a alma sem permitir que se descreva a si mesma. Ainda menos se se pretende que aflore no ator aquilo que temos em comum, aquilo que nos une como seres humanos. O paradoxo cinematográfico consiste exatamente nisto, que uma alma viva é reconstruída em um frio e mecânico espelho (4). As condições em que se produz a descoberta da personagem não deixam margem a dúvidas: na interpretação, caminhar é sair ao encontro. E, à medida que se consiga um caminho de sinceridade, do outro lado, aguardam os espectadores, porque, recorda Erland Josephson, Tarkóvski queria que os espectadores fossem, na medida do possível, o verdadeiro personagem do filme (5). O delicado mecanismo do relógio tarkovskiano não satisfaz a todos igualmente, como não poderia deixar de ser. Custa compreender como uma pessoa a qual seus colaboradores definem como obstinado, que coloca desmedida ênfase no controle de todos aspectos relacionados com seu trabalho artístico, deixa um de seus pilares, o trabalho com os atores, quase no ar. Mas se considerarmos que o controle sobre


100 os meios não significa falta de disponibilidade, o paradoxo é apenas aparente: Tarkóvski, como Stalker, se ocupará tão somente de abrir a grade para a liberdade interior. Shavkat Abdusalamov assim o compreende, ao estabelecer uma diferença implícita entre saber navegar e saber por onde navegar, quando diz: Não gosto das pessoas que sabem por onde navegar. Eu não sei onde navegar, e a partir dessa ausência de conhecimento, a partir deste vagar perdido, aparece algo diferente, mais caro e mais verdadeiro (ABDUSALAMOV, 2001, p. 206). Tradução de Neide Jallageas.


101 Bibliografia ABDUSALAMOV, Shavkat. Efectos retroactivos. In: TARKÓVSKAYA, Marina (org.). Acerca de Andrei Tarkovski. Trad. L. Aragón; J. Gil Fernández; T. Pérez Hernandez. Madrid: Ediciones Jaguar, 2001. Original russo. O Tarkovskom, 1988. ALEXANDER, Leila. Secretos y sacramentos de Andrei Tarkovski. In :TARKÓVSKAYA, Marina (org.). Acerca de Andrei Tarkovski. Trad. L. Aragón; J. Gil Fernández; T. Pérez Hernandez. Madrid: Ediciones Jaguar, 2001. Original russo. O Tarkovskom, 1988. BONDARCHUK, Natalia. Encuentros en Solaris. In TARKÓVSKAYA, Marina (org.). Acerca de Andrei Tarkovski. Trad. L. Aragón; J. Gil Fernández; T. Pérez Hernandez. Madrid: Ediciones Jaguar, 2001. Original russo. O Tarkovskom, 1988. SJÖMAN, Vilgot. DOS VEES MOSCÚ. DOS ENCUENTROS CON ANDREI TARKOVSKI. In: TARKÓVSKAYA, Marina (org.). Acerca de Andrei Tarkovski. Trad. L. Aragón; J. Gil Fernández; T. Pérez Hernandez. Madrid: Ediciones Jaguar, 2001. Original russo. O Tarkovskom, 1988. TARKOVSKI, Andrei. Esculpir en el tiempo. Reflexiones sobre el cine. Trad. Enrique Banús. Madrid: Rialp, 1991. Versão alemã (a partir do original russo: Sapetschatljonnoje wremja). SCHLEGEL, Hans-Joachim. Die versiegelte Zeit. Gedanken zur Kunst, zur Ästhetik und Poetik des Films. Berlin: Verlag Ullstein GmbH, 1988. TARKÓVSKAYA, Marina (org.). Acerca de Andrei Tarkovski. Trad. L. Aragón; J. Gil Fernández; T. Pérez Hernandez. Madrid: Ediciones Jaguar, 2001. Original russo. O Tarkovskom, 1988.









109


110

“Na sua obra, tanto cinematográfica quanto fotográfica, Andriêi Tarkóvski insistia na criação de uma imagem artística, livre de símbolos e dogmas, em que a força das imagens permanece em sua percepção direta, na união espiritual entre o espectador e o artista, porque, como ele mesmo repetia: ‘A imagem não é este ou aquele significado expressado pelo diretor, senão um mundo inteiro que se reflete em uma gota de água, em uma gota de água apenas!’” Andriêi Andreiévitch Tarkóvski, apresentação das polaroides de Andriêi Tarkóvski no catálogo da mostra Fidelidad a una obsesión: La obra fotográfica de Andrei Tarkovsky, realizada na Fundación Luis Seoane, em Coruña, Espanha, 2009


111

RĂşssia, Miasnoie, 26 de setembro de 1981.


112

Itรกlia, Bagno Vignoni, 1979-1982.



ENTREVISÕES


115

a arte do ator a partir de stanislávski entrevistas com os diretores Adolf Shapiro e Jurij Alschitz

(1) Trata-se dos atores da mundana

após

companhia

três

estudos,

semanas

que, de

apresentaram a

proposta cênica intitulada Tchekhov4. (N. da A.)

Em 2010, a edição do Ecum (Encontro Mundial de Artes Cênicas), sediado no Brasil, promoveu o encontro entre artistas e pesquisadores russos e brasileiros nas cidades de Belo Horizonte e São Paulo. Dentre os diretores pedagogos convidados, recebemos Jurij Alschitz discípulo e colega de Anatóli Vassíliev. Simultaneamente, a convite da Funarte/SP (Fundação Nacional de Artes regional de São Paulo), o diretor Adolf Shapiro encontrava-se com um grupo de atores (1) para estudar cenicamente as peças de Anton Tchekhov, em comemoração aos 150 anos de nascimento do autor. Destes primeiros contatos entre os artistas dos dois países, surgiu o desejo de novos encontros. Alschitz vem trabalhando os contos de Tchekhov com o grupo mineiro Galpão e prepara-se para o primeiro encontro com atores em São Paulo, também para estudos cênicos da obra em prosa de Tchekhov. Em setembro de 2011, Adolf Shapiro encontra-se novamente, em São Paulo, com a mundana companhia para iniciar o processo de uma nova montagem. Esses encontros, entre outros, vêm gerando discussões e reflexões acerca da arte do ator e do fazer artístico. Nesses espaços de discussão, têm-se deparado com preconceitos e mal-entendidos, têm-se olhado para os próprios dogmas e dúvidas e, daí, um crescente desejo de aprofundar e ampliar os encontros entre artistas e intelectuais, além de propor um diálogo entre intelectuais e artistas flexibilizando essa fronteira frágil entre o pensar e o fazer teatral.


116

Entre as certezas, as dúvidas e as impressões nebulosas de nossas expectativas em relação aos artistas russos das artes cênicas, surge frequentemente o nome de Konstantin Stanislávski que fundou o Teatro de Arte de Moscou, na virada para o século XX, e é considerado um artista de suma importância para as artes cênicas no ocidente. Tendo consolidado a figura do encenador na Rússia, Stanislávski foi imortalizado menos por suas encenações do que por suas técnicas de trabalho com o ator, que são habitualmente nomeadas por Sistema de Stanislávski . A disseminação do chamado sistema , no ocidente, deu-se por meio de edições norte-americanas de seus escritos, mutiladas por seu primeiro editor e traduzidas, a seguir, para diversas línguas. Por mais de um século, atores de várias partes do mundo depararam-se (e ainda se deparam) com muitos equívocos advindos de uma maneira dogmática e equivocada de compreensão do ofício do ator, gerados a partir da crença cega em um sistema de trabalho criado por Stanislávski. Em torno desses mitos e equívocos, os pedagogos Shapiro e Alschitz responderam algumas questões formuladas pelo kinoruss discutindo o trabalho de Stanislávski como proposta estética, ética e filosófica, a comercialização do sistema" no ocidente, sua apropriação pelo regime stalinista e a relação com as peças de Tchekhov. Falam, ainda, sobre sua própria relação com a criação artística, sobre o caráter incontrolável da arte e sobre um teatro único, sem fronteiras. Em entrevistas pautadas pelas mesmas perguntas, os dois artistas revelam olhares diferentes sobre os temas mencionados e oferecem novos pontos para prosseguirmos as investigações e reflexões acerca de práticas no e em torno do teatro, aproximando a reflexão à prática teatral. Tieza Tissi


117


118

Adolf Shapiro 1 - Que modificações a abertura da Rússia, com a queda da URSS, trouxe para o teatro russo? Como esse momento de mudanças influenciou seu trabalho como diretor?

da esquerda para direita

diretor Adolf Shapiro http://www.ufimtsev.com/lados/photoalbum/architecture-and-interiors-inphotos/famous-people-photo/AdolfShapiro-img20081005139435sm315.html Acesso: 14/09/2011.

peça Tchekhov 4

Uma

Experiência Cênica encenada por mundana companhia fotografias de Beatriz Jardim

Shapiro - Surgiu uma nova estrutura econômica e social da vida pública. Isso ocorreu tão subitamente e desenvolveu-se tão rapidamente que os artistas, assim como o restante da sociedade, ficaram um tanto perplexos e não puderam imediatamente encontrar seus [próprios] caminhos na nova realidade. Junto ao vivificante processo de renúncia da censura e da cultura do autoritarismo, na condição de liberdade, muito daquilo que se constituía como um verdadeiro valor ficou sujeito a dúvidas. Inclusive o teatro de repertório, a ideia do teatro casa, tão importante para Stanislávski. Para isso, contribuiu, de muitas maneiras, a invasão agressiva do teatro comercial, de entretenimento, concebido pelo mau gosto que copia os modelos norte-americanos. Mas esse período já foi percorrido e, agora, sucede o processo de divisão dos teatros que possuem diferentes objetivos e tarefas. Quanto a mim, nos dias de ímpeto revolucionário, nos quais o objetivo era a formação de novos Estados no território da antiga URSS, no turbilhão desse movimento, houve a destruição do Teatro de Riga, que eu dirigi por trinta anos. (Agora, na Letônia, esse erro foi reconhecido e me pediram desculpas, mas, evidentemente, não podem fazer o tempo voltar atrás.) Eu fui embora para Moscou, renunciei à ideia de criar um novo teatro e comecei a realizar montagens, a escrever um livro e a conduzir masterclasses... Desse modo, os conhecidos eventos históricos fizeram com que eu vivesse dois destinos como diretor. Um,


119 cultivando por décadas o meu próprio teatro e, o outro, na qualidade de encenador, em vários teatros de Moscou, São Petersburgo e para além das fronteiras da Rússia. 2 - O senhor dirige muitos espetáculos fora da Rússia. Em sua visão, em que nível se encontra a compreensão do sistema de Stanislávski fora da Rússia? Shapiro - Eu tenho medo de generalizações, elas sempre possuem um caráter de aproximação. Dentro das fronteiras de um país, é possível encontrar pessoas e teatros que tenham aprendido bem o sistema de Stanislávski e há outros que juram lealdade a Stanislávski, mas não têm noção de seus fundamentos. Aliás, isso pode ser observado inclusive na Rússia. Tal é o destino de qualquer doutrina. Não apenas no que diz respeito ao teatro. Tanto a Bíblia quanto a Torá ou o Corão são interpretados por seus seguidores de maneiras diferentes. Resta confiar nos intérpretes que conheçam bem o objeto e que a sua visão esteja mais próxima da verdade. (1)

O

termo

russo

é

nastroiênie. Em traduções literais do francês, pode-se encontrar o termo 'estado

3 - Como Stanislávski trabalhava com seus atores nas montagens dos textos de Tchekhov? Havia algum treinamento específico quando ele ensaiava com seus planos ou ele simplesmente ensaiava peças de acordo com um plano elaborado?

d'alma' ou, do espanhol , 'estado de ânimo'. (N. da O.) (2) Na tradução em espanhol de seus manuscritos sobre a arte do ator (rabota aktiori), Stanislávski

define

seu

conceito de “superobjetivo” da seguinte forma: “Assim como do grão nasce a planta, de uma ideia ou sentimento particular do escritor, brota sua obra. (...) transmitir todo este material espiritual é o objetivo

principal

do

Shapiro - Nesse período, ele não conduziu aulas especiais sobre o ofício do ator. Mas, não se deve esquecer que era próprio de Stanislávski transformar cada ensaio em uma aula. E isso já se manifestava naquela época. Quanto aos planos de direção , começando a estudar a direção [teatral], ele procurava seguir rigorosamente o plano de encenação, mas, com o passar do tempo, se afastava disso cada vez mais, indo para o lado da improvisação com uma direção indicada. Nesse sentido, os trabalhos com A gaivota e com As três irmãs tinham diferenças consideráveis.

4 - Após ter dirigido inúmeras montagens de textos de Tchekhov, de que forma o senhor pensa que as peças deste autor influenciaram Stanislávski em seu modo de pensar e fazer teatro?

espetáculo. (...) a este fim essencial, que mobiliza todas as forças psíquicas e os elementos da atitude do ator em

seu

personagem,

[ c h a m a r e m o s ] superobjetivo

da

o

obra.”

(Stanislávski. El trabajo Del

Shapiro - Os textos de Tchekhov determinaram significativamente o destino de Stanislávski enquanto diretor. O trabalho com eles impeliu-o a uma série de descobertas. O subtexto, estado de humor (1), super objetivo (2), o segundo plano, a quarta parede, tudo isso começou a ser elaborado e formulado durante o trabalho com as peças de Tchekhov.

actor sobre si mismo – El trabajo sobre si mismo em El proceso vivencias.

creador Buenos

de

lãs

Aires:

Quetzal, 1980). (Tradução e N. da O.)

5 - O senhor estudou com Anatoli Vassíliev, que foi discípulo de Mária Knebel que, por sua vez, estudou com o próprio Stanislávski. Em sua opinião, há uma nova geração de pessoas que desenvolvem o sistema?


120 Shapiro - Essa pergunta é muito complexa. De fato, o importante não é ser um discípulo, mas um continuador. Eu, por exemplo, considero Grotowski o melhor continuador de Stanislávski. Vassíliev domina o método brilhantemente, embora ele tenha se afastado do teatro psicológico na direção do teatro lúdico. Entre os mestres que trabalham atualmente na Rússia, é possível destacar Fomenko, Dodin, Jenovatch. Entre os diretores que apareceram recentemente, Karbauskas.

6 - Há vários historiadores das artes russas do século XX que afirmam que o Método Stanislávski teria sido apropriado (e distorcido) para elaborar os cânones do Realismo Socialista, que passaram a ser aplicados não apenas ao teatro, mas também à pintura e ao cinema. Em seu ponto de vista, essa ação do período stalinista teria contribuído para uma compreensão equivocada, ou um desvio da proposta de Stanislávski nos países do continente americano? Shapiro - Não, eu não concordo. Os cânones do realismo socialista e do sistema de Stanislávski são coisas diametralmente opostas. O método de Stanislávski está inextrincavelmente ligado ao psicologismo. Em minha opinião, o realismo socialista o exclui. Esse é um estilo convencional voltado para o enaltecimento de fundamentações ideológicas. Sua estética é semelhante a outras implantadas em qualquer país totalitário na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini, na Coréia do Norte etc. Na expressão realismo socialista , a segunda palavra é muito mais importante que a primeira. Houve muitos equívocos, porque Stanislávski foi reconhecido pelo regime soviético e, graças a isso, passaram a identificar seu nome com ele [com o regime]. Talvez os comunistas gostassem muito da própria palavra sistema , talvez lhes parecesse que, com ele, fosse possível controlar justamente o que há de mais incontrolável a arte.

7 - Em depoimento escrito sobre Andriêi Tarkóvski, Andriêi Kontchalóvski enfatiza que a primeira grande divergência sua com Tarkóvski, em final dos anos 1960, quando ambos trabalhavam em Andriêi Rublióv (divergência esta que resultaria na inimizade de ambos até o final da vida de AT) foi sobre o trabalho com os atores, afirmando que Tarkóvski desconhecia o método Stanislávski. Kontchalóvski diz também que outros diretores russos do período sequer podiam ouvir o nome de Stanislávski. Em seu ponto de vista, esta reação procedeu de um desconhecimento por parte dos diretores de cinema? Shapiro - Eu acho que isso foi uma reação num momento em que o sistema de Stanislávski era declarado como o único modo de trabalho possível no teatro soviético. Todo o resto da rica herança, como Meierhold e Taírov, foi estigmatizado como formalismo, como algo alheio à arte socialista. É como se Stalin o tivesse nomeado seu representante no teatro. (É claro que o próprio Stanislávski não tinha nenhuma relação com isso). Tal fato prejudicou, acima de tudo, os ensinamentos de Stanislávski, já que muitos começaram a identificar sua figura com a de um modelo enfadonho, rígido, de arte de cartaz. São as deformações daquele tempo. Por isso, quando, no final dos anos cinquenta, começou-se a trincar a ideologia comunista e surgiu a possibilidade de se conhecer diversas formas de teatro, nesse momento, os jovens deram as costas para Stanislávski, voltando-se para outro lado ou, mais precisamente, para diversos lados. No entanto, muitos pedagogos (entre eles Mária Knebel) empreenderam a tarefa de reverter a imagem distorcida de Stanislávski e mostrá-lo como grande inovador e reformador do teatro. Em muito, eles alcançaram esse objetivo.

Tradução de Tieza Tissi com colaboração de Diego Moschkovich, Anastassia Bytsenko e Elena Vássina.


121


122

Jurij Alschitz 1 - Que modificações a abertura da Rússia, com a queda da URSS, trouxe para o teatro russo? Como esse momento de mudanças influenciou seu trabalho como diretor?

(1) Perestróika é palavra russa

que

significa

literalmente reestruturação. Remete

ao

período

de

reestruturação política e econômica da antiga URSS, conduzido por Gorbachev, a partir de 1985, juntamente c o m

a

g l a s n o s t

(transparência) que permitiu certo “afrouxamento”

da

censura que restringia a liberdade de expressão. (N. da O.) (2)

Trata-se

fundada

da

pelo

pedagogo

escola

diretor

russo

e

Alschitz - Após as revoluções, as perestróikas (1) e as modificações, eu deixei a Rússia e o teatro Escola de Arte Dramática (2). Eu sempre me irritei com a massa de pessoas, com as paradas, as demonstrações, as revoluções. A multidão em atividade me causa repulsa e eu me sinto especialmente desnecessário. Tendo saído, eu comecei a estudar teatro ainda mais; não como produção, mas como conhecimento, como pedagogia, como atividade investigativa e científica. A encenação de espetáculos supõe algum tipo de relação com o público. Depois da revolução, perdi a vontade de me relacionar com as pessoas que vinham se entreter no teatro. Assim, graças ao exílio cívico e artístico eu preservei e abri o Teatro para mim e, espero, para outras pessoas, muito mais do que eu faria na atual situação teatral na Rússia, pois eu me dedico apenas ao teatro. As revoluções, onde quer que estejam, não podem influenciar minha vida artística.

Anatóli

Vassíliev, em Moscou, no ano de 1987. (N. da O.)

2 - O senhor dirige muitos espetáculos fora da Rússia. Em sua visão, em que nível se encontra a compreensão do sistema de Stanislávski fora da Rússia?

da esquerda para direita

Jurij Alschitz orienta os atores (treinamento para montagem do conto A Dama e o cachorrinho de Anton Tchekhov em San Vito al Tagliamento, Itália, 2010) Fotografias de Carl-Eric Reidler cedidas por Vera Bonilha

Alschitz - Eu não enceno tanto assim, porque eu não falo sobre teatro com desconhecidos. Eu, agora, não utilizo essa terminologia encenar espetáculo . Criam-se condições, um campo artístico energético, um espaço onde algo possa nascer.


123 Há um provérbio que diz que colhemos aquilo o que plantamos. Eu me relaciono apenas com meus alunos, podem ser atores, diretores maduros muitos já com mais de 50 [anos]. Mas, tão logo eles recebam o status de meus alunos, eles já podem criar algo em cena. Eles chegam com diferentes conhecimentos sobre teatro e sobre Stanislávski. Eu não ensino a eles o método de Stanislávski do mesmo modo que eu aprendi com meu pedagogo Iuri Malkóvski, [que foi] discípulo direto de Stanislávski. Hoje é estranho falar sobre métodos e sistemas fechados. Sistemas semelhantes ao de Stanislávski, de Brecht ou de Grotowski devem ser descobertos e preenchidos com novos estudos. Caso contrário, são dogmas. Essa é a pior coisa no teatro e em qualquer arte. O sistema de Stanislávski funciona apenas quando se une ao artista. Se há um artista, chega-se a um resultado. Se não há artista, nada vai ajudar. Se o ator compreende ou não o sistema de Stanislávski... qual é a diferença?! Minha aluna preferida é uma atriz que chegou a mim sem saber nada sobre Stanislávski e agora interpreta de tal modo que o próprio Stanislávski teria ficado muito feliz. O sistema de Stanislávski não consiste apenas em métodos e técnicas de interpretação, ele é ética, é um olhar estético, filosófico, é uma determinada crença. E aqui, a partir desse ponto de vista, o nível de compreensão de Stanislávski na Europa, Rússia, Ásia e América é extremamente baixo. 3 - Como Stanislávski trabalhava com seus atores nas montagens dos textos de Tchekhov? Havia algum treinamento específico quando ele ensaiava com seus planos ou ele simplesmente ensaiava peças de acordo com um plano elaborado? Alschtiz: Nunca ouvi falar sobre treinamento de Stanislávski para o trabalho com peças de Tchekhov. Mas, novamente, o que se entende por treinamento? Realmente, pode-se considerar uma preparação especial o que ele explorou com os atores em Liubímovka ou em Ialta. Pelo que sei e vi dos vários esboços em seu museu-casa, desde o início de seu trabalho como diretor, ele acreditou nos planos de trabalho, mas com o tempo, começou a duvidar cada vez mais da vitalidade de seus planos . Para ele, o plano sempre foi como uma preparação para os ensaios. Ele chegava com um plano e depois o modificava partindo da situação real.

4 - Após ter dirigido inúmeras montagens de textos de Tchekhov, de que forma o senhor pensa que as peças deste autor influenciaram Stanislávski em seu modo de pensar e fazer teatro? Alschitz - Eu não encenei Tchekhov muitas vezes, mas trabalho com ele a cada ano, em diversos países. Tchekhov sempre se apresenta sob aspectos diferentes para mim. Eis que ontem trabalhei com duas cenas de A gaivota com atores italianos e, de repente, vi no texto uma frase que nunca tinha visto, ainda que tenha analisado esse texto centenas de vezes. Encenar Tchekhov modifica o diretor, porque seria, no mínimo, inconveniente propor para o novo trabalho o que já foi realizado no trabalho anterior. Suponhamos que seja possível elaborar um caminho de trabalho com Shakespeare. Com Tchekhov também é possível, claro, mas há uma sensação de embaraço, há algo constrangedor. O próprio material de suas peças e, sobretudo, de sua prosa muda a qualidade da relação com ele. Eu penso que Stanislávski foi bastante rígido, mas foi um artista sensível.

5 - O senhor estudou com Anatoli Vassíliev, que foi discípulo de Mária Knebel que, por sua vez, estudou com o próprio Stanislávski. Em sua opinião, há uma nova geração de pessoas que desenvolvem o sistema?


124 Alschitz - Sem dúvida. A questão é em que direção eles o irão desenvolver. Pronunciam-se as palavras e os juramentos de lealdade, mas há muita especulação. No Ocidente, o nome de Stanislávski é uma marca. Ele é comercializado por dezenas de oportunistas do teatro. O negócio deles vai bem no mundo todo. Mas é claro que existem aqueles que tratam essa situação de forma criativa. Eu não acho que desenvolvo o sistema de Stanislávski tal como foi criado por ele. Interessa-me o teatro em que não existe sistema, ou melhor, um teatro em que existam muitos sistemas móveis, que se cruzem, se mesclem, que se dissolvam uns nos outros. Hoje, me parece uma bobagem falar sobre a vantagem deste ou daquele sistema. O mundo já mudou muito e nós não somos pessoas de um único sistema, nós simplesmente não podemos viver desta maneira, por isso eu entendo assim o desenvolvimento de Stanislávski. Alguém pode chamar isso de destruição do sistema. Mas não é assim. Eu simplesmente vejo o teatro de um ponto em que já não há mais fronteiras, um teatro em que não há diferença entre um sistema e outro, entre Stanislávski, a Ópera de Pequim, a Commedia dell'Arte e Grotowski. O teatro é apenas um.

5 - Há vários historiadores das artes russas do século XX que afirmam que o Método Stanislávski teria sido apropriado (e distorcido) para elaborar os cânones do Realismo Socialista, que passaram a ser aplicados não apenas ao teatro, mas também à pintura e ao cinema. Em seu ponto de vista, essa ação do período stalinista teria contribuído para uma compreensão equivocada, ou um desvio da proposta de Stanislávski nos países do continente americano? Alschitz - A pergunta é formulada em russo ou traduzida de um jeito que eu não compreendo sobre o que se trata. Assim, eu respondo brevemente. O sistema artístico não é ideologia, mas muitas vezes um substitui o outro. Isso está errado. Está escrito que o Realismo Socialista é um método, isso não é assim. É ideologia. Misturando esses conceitos nós damos possibilidade para a especulação. Na URSS, era assim. O sistema de Stanislávski foi vítima do sistema estatal.

6 - Em depoimento escrito sobre Andriêi Tarkóvski, Andriêi Kontchalóvski enfatiza que a primeira grande divergência sua com Tarkóvski, em final dos anos 1960, quando ambos trabalhavam em Andriêi Rublióv (divergência esta que resultaria na inimizade de ambos até o final da vida de AT) foi sobre o trabalho com os atores, afirmando que Tarkóvski desconhecia o método Stanislávski. Kontchalóvski diz também que outros diretores russos do período sequer podiam ouvir o nome de Stanislávski. Em seu ponto de vista, esta reação procedeu de um desconhecimento por parte dos diretores de cinema? Alschitz - É possível falar a vida toda sobre o sistema de Stanislávski - é estética, ética, mas é também um conjunto de procedimentos que, no momento de sua utilização, no nível consciente, pode despertar o nível subconsciente do ator. Se Tarkóvski conhecia ou não o sistema de Stanislávski, só seria possível obter a resposta dele mesmo. Mas seus filmes são feitos de tal maneira que dirigem e tocam, justamente, o subconsciente, os instintos de atores e espectadores. Nesse sentido, Kontchalóvski parece-me menos interessante, embora ele provavelmente conheça todo sistema de Stanislávski de cor.

Tradução de Tieza Tissi com colaboração de Diego Moschkovich, Anastassia Bytsenko e Elena Vássina.


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para encenar Dostoiévski entrevista com mundana companhia (1)

(1)

Entrevista

de

Alvaro

Machado e Neide Jallageas com a mundana companhia em fevereiro de 2011, sobre a adaptação feita para O Idiota, de Dostoiévski. Entrevista concedida por Luah Guimarãez, Aury Porto, Lúcia

Romano

e

Luis

Mármora.

o Idiota fotografia de Ligia Jardim cedida por Aury Porto

Entre 2010 e 2011, a mundana companhia, baseada em São Paulo, obteve enorme sucesso de crítica e de público com O Idiota, uma Novela Teatral a partir do clássico de Dostoiévski. A montagem percorreu o interior do estado de São Paulo e capitais de todo o Brasil. Fato notável: embora a companhia tenha escolhido jamais ultrapassar cem espectadores por sessão, opção que gerou proximidade entre atores e plateia, as salas estiveram lotadas em todas as apresentações realizadas. No primeiro semestre de 2011, a montagem ganhou o prêmio especial da Associação Paulista de Críticos de Arte, e, no mês de setembro, foi indicada ao Prêmio Shell em quatro categorias. Foi indicada, ainda, para o Prêmio Questão de Crítica da cidade do Rio de Janeiro, em nove categorias, incluindo a especial de roteiro adaptado (por Aury Porto). O trabalho da mundana para a adaptação das 683 páginas da tradução de O Idiota por Paulo Bezerra (ed. 34, São Paulo, 2002) apresentou uma dinâmica sem paralelo na história teatral brasileira, integrando diversos métodos de construção de diálogos e interpretação, de maneira inteiramente original. O processo de adaptação e ensaios tomou dois anos de trabalho de uma equipe liderada pelos atores e dramaturgos Aury Porto e Luah Guimarãez, também fundadores da mundana, com colaborações da diretora Cibele Forjaz e do dramaturgo e tradutor Vadim Nikitim em certas fases do projeto. Por fim, passaram a integrar o texto teatral colaborações dos dez atores presentes no elenco, oriundos das melhores companhias paulistas de teatro, como Oficina, Latão e Vertigem.


Na entrevista a seguir, dramaturgos e atores nos informam sobre o processo e peculiaridades do trabalho de adaptação e falam sobre afinidades encontradas nos contextos sociais da Rússia do final do século XIX e a realidade brasileira atual, entre outros temas. No espírito dos cadernos de pesquisa kinoruss, antes de conhecermos o processo teatral da mundana, vale a pena traçar um paralelo e recordar brevemente outros dois significativos esforços de transposição da linguagem dos grandes romances de Dostoiévski para a cena, por parte dos cineastas Serguei Eisenstein e Andriêi Tarkóvski ainda que a companhia brasileira não tenha se valido diretamente do rico acervo de textos de teoria cinematográfica russa em sua composição. Já nos anos 1930, Serguei Eisenstein (1898-1948) formulou exercícios de criação cinematográfica a partir de um exemplo de adaptação de parte do núcleo de O Idiota. E, depois dele, outro importante cineasta russo, Andriêi Tarkóvski (1932-1986) expressou com frequência sua profunda admiração pelo autor de Karamázov. Nas anotações dos diários tarkovskianos e em outros textos de sua autoria, lemos que as narrativas do escritor russo foram por ele constantemente visitadas e interpretadas do ponto de vista da realização cinematográfica. Dostoiévski é a personalidade mais citada em seu livro Esculpir o Tempo (ed. Martins Fontes, 1991), seguido de Ingmar Bergman e Liev Tolstói. E a frase de abertura dos diários de Tarkóvski (datada de 30 de abril de 1970) refere-se justamente ao filme que ele pretendia adaptar a partir de Dostoiévski, sendo que o papel de Mishkin seria desempenhado por Anatoli Solonitsin, o ator que interpretara Andriêi Rublióv no filme homônimo de 1966. Em 1983, Tarkóvski concluía a montagem de Nostalgia na Itália e também viajava para Londres, onde, a convite de Claudio Abbado, fazia a direção artística da ópera Boris Godúnov, de Mussórgski. Preparava-se, ainda, para filmar O Sacrifício nas proximidades de Estocolmo. Em meio a estas atividades, recebia dos estúdios de Moscou a cobrança de cumprimento de um contrato que, conforme alegavam, ele assinara, para escrever um


o Idiota fotografia de Cacá Bernardes cedida por Aury Porto

roteiro de O Idiota. É o que consta em seus diários. Sabe-se, no entanto, que Tarkóvski não retornaria à Rússia e morreria dois anos depois, em Paris, vitimado por um câncer pulmonar O Idiota, projeto que não chegou a realizar, encontra eco nos personagens desempenhadas por Erland Josephson, em seus dois últimos filmes. O louco Domênico, em Nostalgia (1983) e o ator Aleksander, em O Sacríficio (1985), aproximamse, por vezes, de características que lembram o Príncipe Mishkin. Tarkóvski já havia realizado o seu terceiro filme, Andriêi Rublióv, quando escreveu sobre seus procedimentos fílmicos, texto logo publicado em uma das mais importantes revistas russas, a Vopróssi Kinoiskússtva (Assuntos da Arte Cinematográfica), em 1967. O texto revela suas premissas sobre a linguagem do cinema em relação à literatura, o que o leva a tecer considerações sobre O Idiota. Tarkóvski comenta em especial o último episódio, quando o príncipe Míchkin acompanha Rogójin ao quarto onde, atrás das cortinas da cama, Nastácia Filíppovna jazia morta e, como dizia Rogójin, já cheirava . Eles sentam em cadeiras, no meio de uma enorme sala, um de frente para o outro, tão próximos que seus joelhos se tocam. Ao relembrar a forma pela qual Dostoiévski constrói a narrativa, Tarkóvski exclama: Imagine tudo isso e você fica atemorizado . Para o cineasta, nessa singularidade dos dois corpos, em meio à grande sala, com os joelhos roçando, está a maestria do escritor. Tanto quanto ele, para um diretor de cinema, a criação de uma mise en scène, deve ser elaborada a partir do estado psicológico dos personagens, para encontrar a continuação e o reflexo desse estado e da dinâmica interna da situação, de modo a voltar-se para a única verdade, como se os fatos fossem diretamente observados em sua originalidade estrutural . Ao montar O Idiota, uma novela teatral, a mundana companhia parece ter-se valido do pensamento tarkovskiano para elaborar sequências que primam por afastar a montagem daquilo que o cineasta considerava banalidades da simulação , ou ideias óbvias . Porém, para tanto, formularam todo um método próprio. Neide Jallageas - O romance foi dividido por seu autor em quatro partes. Já a novela teatral da mundana é composta de três atos. Essa redução tem a ver com a proposta de encenar O Idiota em três dias consecutivos, como estava sendo feito inicialmente por vocês [mais tarde os atos foram condensados em dois dias] Aury Porto - Nós não chamamos atos , e sim partes . Já a divisão do roteiro dramatúrgico foi estabelecida na forma de capítulos. Foram criados doze capítulos, divididos em três partes. Nem todos os capítulos (dos cinquenta do livro) foram utilizados. Houve uma adaptação: às vezes três capítulos foram condensados numa única cena. Há capítulos que nem entraram. A estrutura da adaptação é mais próxima de um romance do que

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de uma peça de teatro. Alvaro Machado - Vocês elegeram as partes a serem mostradas em função de ganchos, de culminâncias da ação, com atenção especial para os picos de um eletrocardiograma , por assim dizer? Aury - Sim, os picos de ação constituem exatamente pontos de partidas de ação e de emoção! Luah Guimarãez - Bem no começo de tudo, o Aury tinha uma imagem que eu adorava. A primeira proposta dele de apropriação do romance foi feita por meio de um desenho que era como um eletrocardiograma, para começarmos a entender as tensões dramáticas de Dostoiévski e do gênero folhetim. O desenho que ele apresentou indicava os picos de tensão de todos os capítulos. Alvaro - Esse eletrocardiograma aponta padrões de comportamento, de ritmo, ou é algo muito

variável? Aury - Sim, há padrões. Também segui os movimentos de sístole e diástole, ou seja, os movimentos de bombeamento do sangue no coração. Essa é uma imagem que Euclides da Cunha usou para falar dos rios da Amazônia, de suas enchentes e vazantes. Dostoiévski também fez isso com o romance, ao tempo em que foi publicado como folhetim. São movimentos necessários para prender o leitor e fazer com que ele queira seguir a narrativa Alvaro - O escritor utilizava, então, ganchos semelhantes aos que assistimos numa moderna telenovela? Aury - O folhetim literário se tornou a radionovela, e esta derivou na telenovela. A partir deste movimento de sístole e diástole, chegamos à imagem do eletrocardiograma. Você pode observar que cada capítulo é encerrado por Dostoiévski de um jeito que você fica curioso com a continuidade daquilo. Veja, por exemplo, os capítulos que apresentam a carta de Hippolit, um personagem difícil, antipático, mas muito importante. Nestes capítulos, o autor começa com as tensões de Ragójin e termina com o suicídio de Hippolit. Havia, portanto, ali, uma pedreira de conteúdo para transmitir. E, nos capítulos que selecionamos, há sempre uma ação forte emocionalmente, ou uma ideia defendida com muita força. Alvaro - Você chegou a memorizar os números dos principais capítulos onde isso acontece? Aury - Ele faz isso em quase todos os cinquenta capítulos. São poucos em que ele não procede dessa maneira. Sei de tudo isso porque li várias vezes, fiz a decupagem, e não usei tudo porque também há personagens que eu não uso. Por exemplo, o momento em que Nastácia joga o dinheiro no fogo: esse é um ponto essencial. Neide - A primeira parte da peça parece seguir fielmente o romance. Depois vocês vão sintetizando tanto personagens quanto espaços e tempos. Gánia, por exemplo, assume uma parte do discurso de Hippolit a pistola, o suicídio , só que de maneira um tanto diversa. Daí percebe-se que vocês não se preocuparam tanto em seguir a literalidade da ação, e sim a tensão dramática e psicológica de um personagem que agrega esta tensão. Aury - Quanto à primeira parte, que é quase um quarto do livro, ela se passa em apenas um dia, ou quinze capítulos. Dessa parte nós excluímos vários personagens. Tiramos, por exemplo, Ivan Fiódorovitch [marido de Lisavieta]. Mas, no romance, Ivan alimenta uma relação muito importante com Totski, pois ele também deseja Nastácia. E isso representa


um ponto de tensão muito importante entre ele e Lisavieta. Esta sabe que há alguma armação dele com Nastácia, que será presenteada por ele com um colar de pérolas. Mas nós matamos este personagem. A relação de Totski com Ivan Fiódorovitch, uma relação entre homens de poder manipulando uma mulher, ou seja, esse mundo totalmente patriarcal, de homens controladores, não está em nossa adaptação. Neide - Porque no romance é o General Iepántchin [Ivan Fiódorovitch] quem faz a negociação do casamento de Nastácia com Gánia. Luah - Sim, porque o general tem seus interesses nela, situação que é muito bem conduzida por Dostoiéski. Você tem de ler com olhos de lince e compreender que sim, ele também quer comer da fruta . E ele a perde, na festa de aniversário. Não foi fácil esta decisão de retirá-lo. A gente tinha uma simpatia quase nojenta , mas uma simpatia de fato pelo General Iepántchin, porque ele é interessante também mais à frente, em relação ao noivado de Aglaia, pois ele compreende completamente a filha. Essa cena é linda, pois ela fica dizendo não amo, não amo, não amo ; e ao mesmo tempo o pai e a mãe olhando para a filha e dizendo ela ama . É muito bonito. Aury - Há sínteses também na primeira parte, embora elas sejam mais evidentes na segunda. A irmã de Gánia, Vária, foi retirada, e a ação de cuspir, que é super importante, ficou reservada para Kólia. Uma outra coisa é que retiramos Ferdítchenko. E dele há só uma pequena fala que dá uma certa graça ao General Ívolguin, mas que, na verdade, é de Ferdítchenko. Dostoiévski cria personagens duplos e Ferdítchenko é um deles, ele espelha Liébediev, embora seja mais asqueroso, mais bufão que Liébediev, que tem mais força na trama inteira do que Ferdítchenko. Portanto, eliminar Ferdítchenko foi mais fácil. Alvaro - E quanto a Hippolit, personagem com ideias tão radicais, ligado ao romantismo, por que desapareceu por completo? Luah - Dostoiévski anuncia por meio dele toda a série de suicidas que criará depois. O ator que interpretar os suicidas em Dostoiévski não pode deixar de começar por Hippolit. Aury - Quando mostrei isso à Cibele e à Luah, elas não ficaram convencidas, mas isso é dramaturgia, e a gente só percebe mesmo que dá certo é no teatro. Essa síntese foi muito bem feita por Silvio [Restiffe], porque outro ator poderia produzir uma quebra , ou seja, não conduzir o personagem de modo que Hippolit ficasse sintetizado em Gánia. Porque ninguém se convence de que o Gánia do romance vai se suicidar, o personagem é de uma mediocridade que nem disso parece capaz. Mas quem faz isso de forma convincente é o Silvio. Mesmo com a dramaturgia desenvolvida como foi, o ator poderia produzir a quebra , ou seja, não construir um personagem que espelhasse outro. Luah - Lembro que em determinado momento o Silvio entrou em crise e pediu um workshop só para ele, como se pudesse jorrar ideias e textos para conseguir chegar a essa síntese. Alvaro - Então houve colaborações de cada ator depois da dramaturgia pronta? Houve leitura crítica da diretora Cibele Forjaz? Aury - Sim, ela colaborou no processo depois de pronta a dramaturgia. Estávamos trabalhando na dramaturgia eu, Luah e Vadim [Nikitin]. Cibele estava no projeto, mas naquele momento estava fazendo outra coisa. Mais tarde, quando fui fechar a dramaturgia, que tem cenas inteiras de Vadim, Cibele e Luah colaboraram com a leitura crítica e propuseram mudanças. Por isso elas são colaboradoras, e não só apreciadoras.

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17 131 Luah - Mas há um momento em que Cibele chega com a equipe artística inteira e durante dez dias nós improvisamos todo o romance. Vadim nos entregava roteiros completos, com começo, meio e fim, escritos por ele. Não era bem dramaturgia. Eram contaminações e provocações. Nós revezávamos todos os personagens. Nesse momento percebemos que em três dias havíamos conseguido o começo, o meio e o fim e que poderíamos trabalhar com o caráter episódico, em três dias. E então Aury passou nove semanas trabalhando sozinho. No fim de cada semana, trazia um capítulo apenas, mas esse abarcava todas as nossas influências, tudo o que a gente havia vivido nos dez meses anteriores. Aury - Havia um roteiro que eu escrevia e para o qual fazia escolhas. Eu comparava o livro com uma minissérie de tevê feita na Rússia, que Elena [Vássina] passou para a gente, revia os filmes que adaptaram o romance, relia o livro, e foi assim em todos os dias desse período de nove semanas que passei no [Vale do] Matutu [MG], no sítio de Sergio, imerso no trabalho das cinco da tarde às sete da manhã. Depois havia o dia em que eu me encontrava com Luah e Cibele para dar o retorno do que tinha feito. Luah - E ele vinha com umas novidades... Um dia chegava com um sorrizinho e dizia que havia matado o General Iepántchin, porque tinha que fazer opções. Num outro dia matou a Nina, e em outro a mãe de Gánia, que só aparece na peça através do seu retrato na parede. Aury - Nós começamos a trabalhar em março de 2008, pesquisando o livro, estudando, lendo em público. Depois veio outra fase, na qual ficamos só eu, Vadim e Luah. E então houve essa fase dos experimentos que Luah acabou de mencionar e já estávamos no final de 2008. Quando o texto ficou pronto e nós o lemos já era junho de 2009. Então passamos um tempo atrás de recursos e também esperando Cibele se livrar de um outro compromisso. E quando começamos a ensaiar era outubro de 2009. Estreamos em março de 2010. Foram dois anos, do começo do trabalho até a estreia. Alvaro - Fazer essa peça foi uma opção de vocês dois? Aury - Sim, era um desejo meu antigo, que Luah reacendeu. Alvaro - E qual foi sua motivação inicial? Aury - Eu tinha lido uns contos de Tchekhov enquanto estudava psicologia na Universidade Federal do Ceará. Mas queria conhecer outro autor russo. Numa ida à biblioteca estranhei um título: O Idiota. Nunca havia visto alguém dar um nome desses para um romance. Adorei o romance e o personagem. E Luah sabia disso há mais de vinte anos, antes de a gente fundar a mundana. Eu era amigo do Celso Nunes, diretor de teatro e coordenador do Departamento de Artes Cênicas da Unicamp. Quando cheguei para morar em São Paulo, Celso me levou para conhecer o departamento, onde encontrei algumas pessoas, entre elas a Luah. Luah - A gente se reencontrou em 2000 e ficamos muito próximos por causa de uma militância no movimento Arte contra a Barbárie. E depois no trabalho com a Lei do Fomento Teatral. Nesse momento, Aury foi fazer Os Sertões, com o Teatro Oficina, e eu fui fazer a Mostra de Dramaturgia com o Renato Borghi. Quando isso acabou, conversamos de novo e ele propôs A Queda, de Camus, com adaptação e direção dele, e após A Queda veio O Idiota.

Aury - Em meio a isso tudo fiz também Das Cinzas (adaptação de um texto do Beckett), com


Renée Gumiel. Portanto O Idiota é a terceira montagem da mundana. Se considerarmos também o Tchekhov, com o diretor Adolf Shapiro, já é a quarta. Luah - Voltando à adaptação de O Idiota, quando os atores chegaram, em outubro, todos foram ler o romance e começaram a fazer defesas absurdas de seus personagens para as contribuições narrativas. E eu estava observando ontem na camarinha, ou vitrine [espaço de concentração e camarim, sem paredes, dos atores, visível antes de cada encenação], que a gente chegou a uma coisa que talvez não houvesse no primeiro roteiro: há quase uma leitura pública do livro em conjunto com a plateia, ou seja, em todas as inserções narrativas de Vanderlei [Bernardino] e Sylvia [Prado] isso está mais concentrado neles é como se não fizéssemos a cena segundo o eletrocardiograma , mas quase como se Dostoiévski estivesse presente, escrevendo. Isso é muito bonito: o livro vai se tornando um personagem. Para o público, imagino que deve ser uma emoção perceber a relação da literatura com o teatro. Ou seja, para quem não leu o romance e corre para casa para conferir o texto, separando o que assistiu daquilo que está lendo. Principalmente no episódio da morte de Nastácia, na parte final, quando Vanderlei lê a última parte e diz que se o médico entrasse ali naquela hora já não reconheceria Míchkin. Isso é muito forte! Aury - De cada capítulo foi feito um workshop. Então há uma contribuição dos atores em todas as coisas do espetáculo. A camarinha, por exemplo, saiu de uma proposta de workshop do Sergio Siviero. A ideia mesmo da camarinha, de a gente trocar de roupa na frente do público, dar as coisas para o público cheirar, se aproximar... tudo isso resultou desse workshop do Sergio. Não é uma ideia pura , do tipo da diretora que pensa e propõe em casa. Alvaro - E a camarinha é uma coisa que funciona bem, estimulando o público a espelhar-se nos atores /personagens? Neide - A mim parece um movimento ritualístico, de quebra do espaço. De vocês saírem de um espaço cotidiano para entrarem no espaço misterioso, da arte, do teatro. De vocês incorporarem o papel e entrarem em contato com o público, se contaminando e contaminando o público. o Idiota fotografias de Cacá Bernardes cedida por Aury Porto

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Luah - A Cibele tem um sistema que pratica desde o nascimento da sua Companhia Livre. Ela analisa uma cena completa - que em nosso caso a gente chamou de capítulo - como uma unidade de ação, como se estivéssemos lendo realisticamente. Coletivamente, nós demos um nome a cada unidade de ação. Então, para cada unidade dessas, ela pedia a cada um dos atores para trazer um workshop. E a cada duas semanas tínhamos de chegar a uma cena acabada, porque criávamos ao mesmo tempo que ocupávamos determinado espaço de um Sesc no interior de São Paulo. Havia dias em que cada ator dirigia sua própria cena, sem o público externo, e apresentava à diretora. Assim, é como se Cibele fosse tecendo um fio terra, uma costura, como uma grande Penélope, a partir daquilo que representava o coração da cena, para depois a gente fazer uma segunda leitura e a junção de todos os materiais. Alvaro - Então ela revelou a esperteza de deixar a coisa fluir bastante e o caldo fermentar, para só depois meter a colher ... Aury - Sim, foi muito esperta nesse sentido. Ela tem esperteza artística (essa é uma expressão da Cacilda Becker.) Luah - Houve ainda outros processos de criação. Por exemplo, o objeto trepa-trepa, da cena 10, não foi ideia nossa, não saiu de workshop nosso, nem da cabeça de Cibele. Foi criação da cenógrafa Laura Vinci. Ela não queria que o hotel fosse um dado realista e ficou experimentando... A princípio foi difícil para os atores trabalhar com essa estrutura, mas depois Lu Favoreto contribuiu com um trabalho de corpo. Neide - Esse momento de Nastácia e Aglaia no trepa-trepa é muito forte, mas se você ficar preso ao objeto, não funciona. Na terceira vez em que assisti, percebi que não importa o objeto. Dessa última vez, o objeto desapareceu completamente, ou seja, o suporte sumiu, os corpos ganharam sentidos e tudo ficou muito forte: o movimento dos corpos, as falas, o enfrentamento das duas mulheres, a tensão crescente. Foi assim que entendi esse elemento: não como elemento cênico propriamente, mas como um suporte do movimento . Sem ele não existiria a performance, essa dança nervosa dos corpos, esse cara-a-cara. Seria apenas o diálogo entre Nastácia e Aglaia, o que enfraqueceria muito a cena. Alvaro - Outro objeto que me chamou atenção foi aquele banco de jardim tão pequeno, desproporcional ao corpo dos atores... Lúcia Romano -

Houve a vontade de criar uma ambiência não realista. O diminuto dá esse

sentido. Aury - Há alguma coisa de infantil no banco, assim como no trepa-trepa. Os jogos e o encanto da infância perpassam o romance inteiro. Lúcia - Ou a metáfora da criança perpassa o romance inteiro. Aury - E, se prestarmos atenção, os jogos amorosos acontecem de um jeito tão infantil gente os joga do mesmo jeito de quando éramos crianças, no parque.

a

Lúcia - É que tudo parece tão da natureza humana, parece que está ali desde o início, desde a sua matriz na criança: todas aquelas maldades, os desejos Luah - A Laura [Vinci] trouxe o objeto no improviso e a gente se apaixonou por aquele banquinho, que está conosco desde os primeiros workshops. Ele saiu do workshop de cenografia de areia . A areia é para nós o tempo, o tempo do teatro, acontecendo junto e


diante do espectador. Lúcia - O trepa-trepa que Cibele propôs causou estranhamento no início. Antes era apenas um exercício com quatro cadeiras num mesmo plano, muito bom. Sabíamos que seria uma cena simples, no sentido do desenho em nossa cabeça, para que aparecessem bem as relações entre os quatro personagens. E quando Cibele propôs o trepa-trepa, enfatizou que as relações deixavam de ser horizontais e que haveria outras possibilidades de interação. Por exemplo, o eixo vertical, que é muito difícil de se ter em um palco italiano. Alvaro - Aliás, falando em palco italiano ou na ausência dele, vocês propõem uma ocupação do espaço bem diversa. Esta proposta foi por causa das características diferentes de cada espaço Sesc no qual tiveram de se apresentar, de cada cidade do interior de São Paulo, ou foi uma ideia de vocês? Aury - Foi nossa proposta para o Sesc. A gente propôs fazer ensaios abertos em cada unidade do Sesc no interior, com um ou dois capítulos. Só que quando fazíamos, era uma espécie de ocupação, porque não havia cenário pronto, estávamos ensaiando, não havia nada pronto. Então fomos experimentando: a cada capítulo um lugar. O Sesc sempre permitiu que a gente ocupasse o espaço que achássemos o mais apropriado. Na nossa experiência com Tchekhov [dirigido por Shapiro], foi um pouco parecido. Lúcia - Mas com o circuito do Sesc isso foi ainda mais provocador, porque tivemos que pensar tudo: que tipo de iluminação teríamos, que tipo de relação com o espectador, que atmosfera para cada capítulo... E nesse momento você já está escolhendo os elementos. Algumas dessas escolhas persistiram no desenho final da cenografia. Pudemos testar se ali seria um palco italiano ou arena, se havia muita luz, se o espaço era claustrofóbico... todas essas qualidades. E quando se opta diretamente por um desenho de cenografia não há como ter as explorações que aconteceram durante as viagens. Neide - Mas isso também provoca no público um desnorteamento temporal. Primeiro há um desnorteamente espacial, porque você circula pelo espaço e muitas vezes perde a referência. Depois também há um desnorteamento temporal, porque os caminhos se desfazem, se confundem, e acabamos perdendo a sequência. O tempo e o espaço se transformam, se confundem. Eu e Alvaro notamos isso principalmente porque tentamos refazer o percurso de memória, depois de assistir a peça, e perdíamos a sequência. Luah - Nesse sentido, o espaço e o tempo de fato se transformam. A cenografia os transforma. Aury - Sobre essa pergunta em torno da relação espaço-tempo, noto também que a maioria dos capítulos dos workshops tem nome de casa. Porque os espaços situam-se no interior da casa de cada um dos personagens. Neide - É assim que compreendo: o espaço rege o trânsito dos personagens pela sequência de cenas, muito mais do que o tempo. Aury - Isso! Porque a inspiração para dar nome aos nossos capítulos, para dividir os espaços, vem do romance. Existem as fendas , que são aqueles lugares que entram pela subjetividade, mas a gente sempre passa de um espaço para outro. O Míchkin passa para um espaço, e para outro, e mais outro o romance vai acompanhando o seu percurso pelas casas das pessoas. As pessoas habitam aqueles espaços e ele é o estrangeiro, ele é quem está voltando, que não tem casa, que vai passando pelos lugares, entrando nas vidas dos outros. Esses espaços são privados, mas mesmo dentro das casas os espaços são públicos,

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isto é, normalmente as coisas acontecem nas salas. Quase não há quartos, nem banheiro. Isso é uma característica de Dostoiévski. Neide - Isso é o que o público também experimenta, caminhar por um labirinto. É o que acontece, por exemplo, quando Míchkin vai ao aniversário de Nastácia e entra em um labirinto na companhia do general Ívolguin (na peça quem o acompanha é Kolia). É como se ele fosse completamente cego. É difícil para ele chegar em algum lugar e então ele vai tateando, se perdendo e se achando... Aury - No labirinto que é a cidade de São Petersburgo, que Ívolguin conhece, mas que em alguns momentos desconhece, porque bebeu e porque é a pessoa que é E nesses momentos ele vai conduzindo Míchkin, que também é assim, que vai passando de um lado para o outro sem muita lógica. Luah - Isso do labirinto também faz parte de minha vivência com o romance. Como é importante viver a cidade pelos olhos de Míchkin, que conheceu São Petersburgo há muito tempo e não se lembra mais de quase nada... E então devolvemos esse sentido labiríntico para o espectador de uma maneira poética, e não de maneira literal. Não precisamos indicar ao espectador que aqui é a rua tal . De alguma maneira, o conhecimento disso está ali. Neide - Vocês trabalham o romance de maneira não literal e em especial, de uma forma incrível, todo um longo trecho do livro quando Liébediev interpreta o Apocalipse. Isso ocorre logo após o ataque epiléptico de Míchkin, quando Liébediev entra com aquela turba toda. Era preciso mostrar que ele é um intérprete do Apocalipse e mostrar a maneira como ele o faz, e vocês sintetizaram toda essa passagem. Conseguiram condensar páginas e páginas de todo o discurso de Liébediev. Está tudo, tudo ali, com som, movimento, roupas gestos... e, no entanto, quanto dura isso na peça, dez minutos? Aury - Aquele capítulo inteiro dura dezessete minutos. E essa parte a que você se refere dura menos de cinco. Alvaro - Vocês cronometraram todos os capítulos? Aury - Quase todos. Eles têm entre vinte e vinte e cinco minutos. Há variações, dependendo do ator e do espaço ocupado. Luah - Gostaria de voltar um pouco, para falar do esqueleto do processo de montagem. Nos dez dias iniciais em que improvisamos o romance, houve um jogo. Os roteiros-envelopes que nós apelidamos carinhosamente de envelope do Vadim eram entregues bem antes para a equipe artística (a figurinista, a cenógrafa, a iluminadora e a produtora), e apenas no próprio dia para nós. Então eles nos surpreendiam. Por exemplo, no primeiro dia de ensaio, havia duzentos passarinhos vivos, presos numa gaiola, para a cena da Suíça, de Marie, com um piso todo branco. E quando nós chegávamos, às quatro horas da tarde, e víamos toda aquela movimentação na Companhia Livre, tudo aquilo acontecendo e a gente ainda elaborando o roteiro... Então às oito horas esse roteiro tinha que ser interrompido, as portas abriam para o público, a gente vestia os figurinos que a Joana [Porto] tinha imaginado e nós, atores, íamos reconhecer dez minutos antes tudo o que a Laura havia proposto! Lúcia -

Então adaptávamos aquele roteiro imaginado ao espaço que se apresentava ali, na

hora. Luah - Era uma proposta cenográfica de intervenção, de contaminação. Por exemplo, a cenografia trouxe a água, que acabou sendo a piscina da casa de Ragójin. Essa piscina havia sido testada antes, na festa de aniversário de Nastácia, mas ficou um tanto esquisita. Foi


quando percebemos que o elemento apropriado ali não era a água, e ele ficou para o capítulo seguinte. Alvaro - A água é um elemento significativo no espetáculo. É uma referência a São Petersburgo e seus canais? Ou um elemento ligado à emoção? Luah - A casa de Ragójin é úmida, verde, com musgo, escura, não haveria como ser diferente... Aury - Pensamos na qualidade do espaço descrito por Dostoiévski para a casa de Ragójin. Ela é realmente verde-escura, úmida, fechada... Lúcia - Tem muitas portas para se chegar Luah - Para chegar até o coração da casa, que é a mãe Alvaro - E a chuva, por que a colocaram no encerramento? Luah - Ela

é a redenção, a ressurreição! O título que nós demos ao Capítulo 12 é Ressurreição . Então é a chuva, o Ama o próximo como a ti mesmo de Mateus, uma citação que inspira Dostoiévski a fazer Míchkin, a fazer gente boa, e isso não serviria para Os Demônios, por exemplo. Aury - Voltando, decidimos as escolhas pela via do espaço, mais do que pelo tempo.

Lúcia - Sim,

as fendas permitem a intervenção de um tempo não linear . Elas estão lá para

isso. Aury - E o espectador se perde no tempo por causa do espaço. Alvaro - Recapitulando, o que são mesmo as fendas ? Lúcia - Alguns trechos nós chamávamos fendas , ou seja, os delírios, os flash-backs em que a caminhada de Míchkin é interrompida. Luah - E aquele personagem, o ator que fazia esse personagem, tinha então o direito a se expressar da maneira que quisesse, no improviso. Lúcia - Como numa suspensão do tempo dramático. Luah - Mas então devíamos voltar para a ação real... Neide - A entrada de Míchkin na casa de Ragójin representa uma dessas fendas? Lúcia - Sim. E também as canções, ou quando se descreve a sensação de ser olhado.

Esse é um lindo capítulo, pré-ataque epilético. Míchkin está muito confuso. Vê uma faca, mas depois a faca já não está mais naquele lugar, e então percebe pessoas olhando. Há também uma questão da cor e da iluminação que se encontra sempre na encenação, embora às vezes de maneira sutil. No romance o banco é verde, e em sua casa Liébediev está sentando em um banco verde, numa mesa verde, sob um carramanchão. Na casa de Ragójin também há essa cor. O verde perpassa o livro todo. Aury -

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Neide - Os brincos de Nastácia, por exemplo, não são esmeraldas no romance, e sim diamantes. Alvaro - Por que vocês incorporaram elementos brasileiros, como Chacrinha, marchinhas de Carnaval, umbanda e candomblé? Há no romance toda uma discussão específica da Rússia e sobre aquele período histórico. Aury - Bem, em primeiro lugar, porque somos brasileiros e porque estamos fazendo a obra hoje. E essa intersecção espaço e tempo é muito forte na cena, porque, de fato, a gente não se transpôs para a Rússia, nem para o século XIX. Luah - Tomei um choque quando vi a primeira cena da minissérie russa O Idiota, de dez capítulos, produzida em 2003 para a TV (que utilizamos como estudo para a dramaturgia). Nós estávamos então começando o trabalho e pensando sobre qual dramaturgo chamaríamos. E essa produção é super-realista, embora com atores maravilhosos , mas fiquei assustada com isso, e então decidimos chamar Vadim Nikitin, que teria como nos ajudar nesse trânsito, porque Vadim tem a ligação com a cultura russa, mas também é um absoluto brasileiro. Na medida em que nos aproximamos e lemos, nos apropriamos!

o Idiota fotografias de Cacá Bernardes cedida por Aury Porto


Aury - Tratou-se de uma linguagem escolhida pelas pessoas envolvidas nesse projeto. Alvaro - E quanto às muitas músicas de carnaval e de candomblé? Aury - Saíram de um workshop, da nossa cabeça. Não tem nada que ver com Vadim, isto foi da criação dos atores. A cena com as marchinhas foi constituída justamente na época do Carnaval, num sítio onde estávamos recolhidos. Os atores se apropriaram de um bloco na cidade de Aiuruoca [MG]. Cibele nos dava corda Alvaro - Não existe a intenção de olhar para meados do século XIX, sobre as questões políticas surgidas aí e que continuaram através do século XX? Lúcia - Para mim foi importante entender algumas questões do romance como questões históricas mais amplas. Por exemplo, o lugar da mulher, no personagem Aglaia, e que tipo de drama ela vive. Tive de me reportar à existência dessa moça dentro de uma família, o que significa assumir um romance com um sujeito totalmente fora dos padrões para o percurso dela. Porque depois ela foge com um falso conde, um falso nobre, e se junta à revolução polonesa. Ela tem posição de confronto para com as regras de uma mocinha de família respeitável. Se não pensarmos os personagens como sujeitos históricos, fica impossível, alguns ficariam mais frágeis. Acho importante fazer um paralelo do que seria romper com alguns lugares e posturas determinadas para esses personagens hoje em dia. Eles não são sujeitos a-históricos, mas estão em um caldo pré-revolucionário que até hoje é exemplo de transformação radical. Para os personagens femininos isso é muito importante. Luah - Quando de alguma maneira compreendi a questão de Nastácia tomei um choque. A questão dela seria apenas a da virgindade? Porque hoje em dia não faria o menor sentido trabalhar com essa questão. Aí comecei a cavar espaços: por que ela não vai embora, simplesmente abre a porta e vai embora? Essa questão para mim começou a se ampliar Lembro que passei uma semana inteira em crise, mas por causa disso fui mais fundo. Para mim, há uma virada quando no romance ela ouve o boato de que Totski quer se casar com uma beldade de São Petersburgo. Naquele momento, Dostoiévski diz que ela se altera completamente. Lúcia - Aí percebemos que, naquele contexto, ela só seria respeitada se casasse, que o casamento legitima a vida adulta da mulher, que então era criada para isso. As duas, Aglaia e Nastácia, situam-se nesse momento , precisam estabelecer esse laço familiar para poderem existir. Luah - Vocês perguntaram sobre a contribuição dramatúrgica de cada ator. Pois há uma da Lúcia que não existia no romance. Depois da cena do trepa-trepa, há uma cena em que Aglaia, próxima do banco verde, fala e sai, fecha a porta. Colocar, com essa fala final, um ponto final para o espectador foi um trabalho da Lúcia. Neide - Gostaria de estabelecer uma relação entre essa montagem e a encenação que vocês fizeram com o diretor Adolf Shapiro, Tchekhov à quarta potência. Vocês já haviam feito O Idiota, e então foram trabalhar Tchekhov, que é totalmente diferente. Depois vocês retornaram a O Idiota. Eu assisti à montagem de O Idiota antes, quando vocês montaram em Santos, no final de 2010, e também agora, depois de terem feito Tchekhov à quarta. E nesta última montagem notei que vocês estão interpretando alguns tons abaixo . Aury -

Em Santos, nos galpões, havia um ambiente mais barulhento no entorno, com o

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movimento do porto. Talvez estivéssemos um tom acima por causa disso. Mas pode ser que sua apreciação valha, pode ser que agora tenhamos mais conteúdo. Pode ser que Shapiro tenha nos legado maior versatilidade interna. Lúcia - O Shapiro nos propôs questões que com certeza não se resolveram ali no momento da encenação de Tchekhov, mas que são muito apropriadas a todo material dramatúrgico. Não é à toa que Stanislávski e Tchekhov representam o encontro de uma forma de fazer teatro e um exemplo de linguagem dramatúrgica. E nós sabíamos que isso não iria ser encerrado ali. As perguntas, os pedidos que ele nos fazia sobre a relação entre os atores, a avaliação de que o resultado do tecido de uma cena se faz com atores, pessoas e personagens que têm necessidade de interação... As relações não existem antes, mas passam a existir propriamente no jogo das potências em cena. É inevitável a gente trazer isso para O Idiota, e também inevitável trazer isso para a vida da gente como intérpretes. Então, se pensarmos a construção dramatúrgica de um jeito bem estendido, essa característica estará sempre presente, porque o texto que acontece em cena é um conjunto de muitas coisas porosas. Das coisas que são ditas, das ações, do jeito que você se desloca, de como você olha para o outro: isso tudo vai alterar totalmente o sentido do texto. Alvaro - Pensando nesta questão de Stanislávski e Tchekhov, com a Cibele vocês privilegiaram algum método mais brechtniano ou stanislavskiano? Luah - Eu gosto de pensar que a gente reúne tudo. Luis Mármora - A Cibele trabalha com essa pluralidade das cenas. Cada cena pede da gente um tom. Por exemplo, a cena de Gánia ao telefone: aquilo é Nelson Rodrigues, é rodrigueano. Então, pelos caminhos do imaginário, a gente vai acessando alguns canais. Claro que existe uma trajetória única do personagem, mas cada cena é dimensionada de uma maneira, e Cibele nos estimula a isso. Quando unimos tudo, ela veio nos lembrar disso, que uma coisa estava impregnando a outra, não existindo um puro Pavlóvski, ou um puro Tchekhov. Aury - Nas referências dadas para o capítulo 7, que é o da casa do cavaleiro pobre, por exemplo, há mais olhares do que falas. Por certo tempo o texto não quer dizer exatamente o que os personagens querem dizer, até que o Gánia explode no final, mas até então fica uma coisa porque Aglaia está vindo com um objetivo, mas aparentando outro, Lisavieta está querendo saber de uma coisa, mas está percebendo uma outra coisa Cibele foi notando e reforçando isso nas cenas. Já o capítulo 5, da casa do irmão, é mais expressionista. Assim, ela foi dando valores para cada capítulo e buscando para cada um uma referência estética. Porque ela não tem uma única preferência, e de modo geral nós não rejeitamos nenhuma escola. Lúcia - Um bom coreógrafo, por exemplo, quando põe uma companhia para dançar, não vai pedir para um bailarino que é muito bom em saltos para ficar rastejando. Ele vai utilizar a habilidade corporal, o próprio treino do bailarino para a composição de sua coreografia. Eu acho que Cibele fez isso. Ela não tentou, de maneira nenhuma, encaixar esses atores dentro de um mesmo tipo ou dentro de uma mesma escola de interpretação. Por exemplo, o Luís é muito bom narrador. Ela manteve, nos momentos do Luís, espaços grandes de narrativa. Eu digo narrador no sentido mesmo do fabulador que conta uma história. Ela vê na Sylvia e no Fredy [Allan] uma habilidade na relação com o espectador, com o improviso, neste teatro aberto, sem quarta parede, que é o Oficina, e assim ela manteve isso. Manteve não só a referência literária, do tipo de dramaturgia presente naquela cena, ou de uma referência de


linguagem teatral, mas preservou a característica de ator e sua temperatura. Isso é um ganho da linguagem, de polifonia na interpretação. Alvaro - E a grande inspiração para isso teria sido a escrita polifônica de Dostoiévski. Luís - Por exemplo, essa coisa intensa das vozes de bichos que desenvolvemos no processo desses três meses de ensaios , mais o trabalho da Cibele com a preparadora corporal Lu Favoreto... enfim: essa inspiração dos bichos para o eixo corporal foi muito forte. Esse é um outro sentido da construção do personagem, para mim muito forte. É onde tudo se organiza. Por exemplo, é onde me apoio para diferenciar o Totski do General, dois personagens que faço. É um trabalho importante e é muito bom isto estar explícito na encenação, refletindo algo que no processo de ensaio era criar um código de relação entre os atores, e que para nós foi muito importante energeticamente. Luah - O diálogo do intérprete com essa inspiração dos bichos é algo muito vivo. Além disso, a cada dia há uma plateia diferente, há a companhia dos outros atores, há a busca dessas parcerias de que Lúcia falou e o que Shapiro injetou em nossa veia: você não está sozinho.

Ficha Técnica Assistência de cenografia e objetos: Tatiana Tatit, Marília Teixeira Autor: Fiódor Dostoiévski

Cenotecnia e maquinaria: Haroldo Alves, Squadrart Cenotecnia,

Tradução: Paulo Bezerra

Pigari Cenografia, Paulo Sérgio Alves, Sandro Roberto da Silva

Roteiro adaptado: Aury Porto

Supervisão de direção de cena [estreia]: Elisete Jeremias

Colaboração dramatúrgica: Vadim Nikitin, Luah Guimarãez, Cibele

Direção de cena: Dani Colazante e Jamile ValenteFigurinos: Joana

Forjaz

Porto

Direção: Cibele Forjaz

Assistência de figurino: Bia Rivato

Assistência de direção: Ivan Andrade

Costureiras: Bene Calixto, Leci Andrade, Alice Ferraz

Elenco: Aury Porto, Freddy Allan, Luah Guimarãez, Lúcia Romano, Luís Mármora, Sergio Siviero, Silvio Restiffe, Sylvia Prado, Vanderlei Bernardino Consultoria teórica: Elena Vássina Direção de movimento: Lu Favoreto Direção vocal e interpretativa: Lucia Gayotto Direção musical, trilha sonora, música ao vivo: Otávio Ortega Gravação, operação de som, música ao vivo: Ivan Garro Participações: Adriano Salhab [rabeca], Celso Sim [composição e

Camareira: Ana Paula Mondenez Luz: Alessandra Domingues_casadalapa Assistência de luz [estreia]: Tábatta Martins Assistência de luz, operação de luz e projeção: Luana Gouveia Imagens para projeção: Manoel Hayne Arte gráfica: Simone Mina Assistência de arte gráfica: Natalia Zapella Fotografia: Cacá Bernardes, Maurício Shirakawa

voz], Guilherme Calzavara [trompete e caixa], Mariana Carneiro da

Fotomontagem: Simone Mina, Natalia Zapella

Cunha [violoncelo]

Identidade visual da companhia: Pedro da Costa Lyra

Engenharia de áudio: Ricardo Câmera

Direção de produção: Marlene Salgado

Estúdio de gravação: Estúdio Gaia

Produção executiva: Berenice Haddad

Cenografia: Laura Vinci

Produção: mundana companhia

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COMPLEMENTAÇÕES


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MEMÓRIA ESCRITA ESQUECIMENTO

A série de fotografias memórias (2011), apresentada neste caderno (p.3-16), surgiu a partir do meu interesse pelo filme do cineasta russo Andriêi Tarkósvki, A Infância de Ivan (1961), mais especificamente pelo trecho 00:52:31 a 00:52:47, no qual Ivan brinca com uma lanterna, na escuridão de um cômodo, simulando um ataque ao inimigo. Ao iluminar uma parede, é possível identificar inscrições, textos escritos em cirílico que denunciam a guerra, os ataques e seus mortos. À medida em que a criança agita a lanterna, ouvem-se vozes, sons e gritos, que levam Ivan a sair correndo em desespero. Em meio a linhas, pontos, manchas e fragmentos, entre contrastes, construções e desconstruções de imagens, sou levada à busca incessante pela materialização da memória, pela dilatação do tempo que, a meu ver, o texto e a escrita podem trazer como experiência. Desde sua origem, a escrita nasce como desenho, como expressão primordial do homem que quer e necessita se comunicar com o outro, não é à toa que, ao longo do tempo, este gesto aparentemente despreocupado se transformou em elemento fundamental para o desenvolvimento de muitas sociedades ditas complexas. A escrita nos possibilita perpassar diferentes tempos e espaços, tanto por sua semântica - letras, palavras e frases - quanto por sua configuração espacial - pontos, linhas, desenhos -, conduzindo seu observador a uma experiência que vai além do visual. Sendo escrita, memória e esquecimento os eixos principais da minha busca poética, apropriei-me de alguns trechos dessa sequência em que Tarkóvski faz uso dos elementos gráficos do alfabeto cirílico e transformei-os, traduzindo-os em outro tipo de gravação, ou seja, deslocando-os da luz cinematográfica para a gravação sobre chapas metálicas. Segundo Benjamin, na tradução, algo do original é perdido, porém em uma nova leitura, em uma nova tradução, o que se deve passar, a história, ganha uma sobrevida, um outro significado ao mesmo tempo complementar e sobreposto ao original. Entre escolher usar essas chapas metálicas, imprimindo-as como matrizes de gravura ou mantê-las como objetos no mundo, resolvi mais uma vez transformá-las. E foi, por meio da linguagem fotográfica, que alcancei meu objetivo com uma nova tradução. O grafismo, que antes denunciava a guerra, transforma-se em desenho gravado, marca feita entre vazios e cheios, que encontra na fotografia o lugar de descanso, entre o que se disse e o que se consegue ler, ou inscrição de desespero, entre o lembrar e o esquecer. Fabiola Notari


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Filmografia

(em ordem cronológica)

O ROLO COMPRESSOR E O VIOLINISTA (1960). Direção: Andrei TarkovskI. Roteiro: Andrei TarkovskI, Andrei KonchalovskI, S. Bakhmetyeva. Intérpretes: Igor Fontchenko, Vladimir Zamanski Natalya Arkhangelskaia. Direção De Arte: S. Agoyan. Fotografia: Vadim Yusov. Música: Vyatcheslav Ovitchinnikov. Produção: Mosfilm Children's Film Unit. Continental Home Vídeo. Dvd (44 Min.) Dual Layer, 4:3 Fullscreen, Cor, Ntsc, Dolby Digital 2.0, Em Russo. Legendas: Português, Inglês E Espanhol. Original Em Russo: Katok I Skhipka. A INFÂNCIA DE iVAN (1961). Direção: Andrei Tarkovski. Roteiro: Mikjail Papava E Vladimir Bogomolov. Intérpretes: Kolia Burlaiev, Valentin Zubkov, Evgueni Zharijov, Andrei M. Konchalovski. Direção De Arte: Yevgueni Tcherniaiev. Fotografia: Vadim Yusov. Música: Vitcheslav Ovitchinnikov. Edição: G. Natanson. Produção: Mosfilm. Continental Home Vídeo. Dvd (90 Min.), 4:3, Cor/pp, Ntsc, Dolby Digital 2.0 E 5.1, Em Russo. Legendas: Português, Inglês E Espanhol. Original Em Russo: Ivanovo Destvo. ANDREI RUBLEV (1966). Direção: Andrei Tarkovski. Roteiro: Andrei Tarkovski; Andrei Mikhalkov-konchalovski. Intérpretes: Anatoli Solonitsin, Ivan Lapikov, Nikolai Grinko, Nikolai Sergeiev, Irmã Raush Tarkovskaia, Nikolai [kolia] Burlaiev. Direção De Arte: E. Chernyaev, E. Novoderezhkin, S. Voronkov. Fotografia: Vadim Yusov. Música: Vitcheslav Ovitchinnikov. Edição: Ludmila Feignova. Produção: Mosfilm. Continental Home Video. Dvd (205 Min.), 2.35:1 Widescreen, Cor/pp, Ntsc, Dolby Digital 2.0, Em Russo. Legendas: Português, Inglês, Espanhol. Original Em Russo: Strasti Pa Andrieiu. SOLARIS (1972). Direção: Andrei Tarkovski. Roteiro: Andrei Tarkovski, Friedrich Gorenstein. Intérpretes: Natalia Bondartchuk, Donatas Banionis, Anatoli Solonitisyn. Direção De Arte: Mikhail Romadin. Fotografia: Vadim Yusov. Música: Eduard Artemiev, J. S. Bach. Edição: Ludmila Feignova. Produção: Mosfilm. Continental Home Vídeo. Dvd (166 Min.) Dual Layer, 16:9 Widescreen Anamórfico, Cor/pp,Ntsc, Dolby Digital 2.0, Em Russo. Legendas: Português, Inglês E Espanhol. Original Em Russo: Saliaris. O ESPELHO (1974). Direção: Andrei Tarkovski. Roteiro: Andrei Tarkovski, Aleksandr Misharin. Intérpretes: Margarita Terékhova, Filip Yankovski, Ignat Daniltsev, Oleg Yankovski, Yuri Nazarov Anatoli Solonitisyn. Direção De Arte: Nikolai Dvigubski Romadin. Fotografia: Gueorgi Rerberg. Música: Eduard Artemiev, J. S. Bach, H. Purcell, G. B. Pergolesi. Edição: Ludmila Feignova. Produção: Mosfilm. Continental Home Vídeo. Dvd (101 Min.) Dual Layer, 4:3 Fullscreen, Cor/pp, Ntsc, Dolby Digital 2.0, Em Russo. Legendas: Português, Inglês E Espanhol. Original Em Russo: Zierkalo. STALKER (1979). Direção: Andrei Tarkovski. Roteiro: Andrei Tarkovski, Arkadi E Boris Strugatski.. Intérpretes: Anatoli Solonitisyn, Alexandr Kaidanovski, Nikolái Grinko, Alissa Freindikh, Natasha Abramova. Direção De Arte: A. Merkúlov. Fotografia: Aleksandr Kniajinski. Música: Eduard Artemiev, Ravel, Beethoven. Edição: Ludmila Feignova. Produção: Mosfilm. Continental Home Vídeo. Dvd (134 Min.) Dual Layer, 4:3 Fullscreen, Cor/pp, Ntsc, Dolby Digital 2.0, Em Russo. Legendas: Português, Inglês E Espanhol. Original Em Russo: Stalker. NOSTALGIA (1983). Direção: Andrei Tarkovski. Roteiro: Andrei Tarkovski, Tonino Guerra. Intérpretes: Oleg Yankovski, Erland Josephson, Domiziana Giordano, Patrizia Terreno. Direção De Arte: Andréa Crisanti. Fotografia: Giuseppe Lanci. Música: Beethove, Debussy, Verdi, Wagner. Edição: Erminia Marani, Amadeo Salfa, Roberto Puglisi. Produção: Sob Film (união Soviética); Raí 2 Tv (itália). Continental Home Vídeo. Dvd (121 Min.) Dual Layer, 4:3 Letterbox, Cor/pp, Ntsc, Dolby Digital 2.0, Em Russo E Italiano. Legendas: Português, Inglês E Espanhol. Original Em Italiano: Nostalghia. O SACRIFÍCIO (1986). Direção: Andrei Tarkovski. Roteiro: Andrei Tarkovski. Intérpretes: Erland Josephson, Susan Fleetwood, Valérie Mairesse, Allan Edwall, Gudrun S. Gisladottir, Sven Woller, Filippa Franzén, Tommy Kjllqwist. Direção De Arte: Anna Asp. Fotografia: Sven Nykvist. Música: J. S. Bach, Watazumido-shuso, Chants De Bergers De Dalécarlie Et De Härjedalen. Edição: Andrei Tarkovski, Michal Leszczylowski. Produção: Argos Films (paris); Svenka Filminstitutet (stockholm). Argos Filmes. Dvd (142 Min.), 4:3 Fullscreen Letterbox, Cor/pp, Mono Orig., Em Russo, Italiano E Sueco. Legendas: Português, Inglês E Espanhol. Original Em Sueco: Offert.


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Adolf Shapiro

nasceu na Ucrânia. É formado em direção pelo Kharkov

Theatre Institute. Durante trinta anos, dirigiu o Teatro Nacional da Juventude, na Letônia. Na Rússia, concluiu seus estudos avançados de diretor sob a orientação de Mária Knebel, que trabalhou diretamente com Konstantin Stanislávski e Mikhail Tchekhov. Encenou diversos espetáculos pela Rússia e países da antiga União Soviética e também em países como Itália, Iugoslávia, Canadá, Estados Unidos, Alemanha, Colômbia, Venezuela e Finlândia.

Alvaro Machado

é jornalista brasileiro, colaborador de jornais e revistas na

área cultural, e editor-responsável por Opera Prima Editorial. Entre os livros que organizou estão Manoel de Oliveira, Cinema Político Italiano, Amos Gitai Percursos e Aleksandr Sokúrov, todos pela Cosac Naify. Pela Opera Prima, escreveu o estudo introdutório e as notas de Orgia

Os diários de

Tulio Carella, Recife, 1960 , publicado em 2011.

Anastassia Bytsenko

nasceu em São Petersburgo, na Rússia. Trabalha no Brasil

como tradutora e desenvolve atualmente pesquisa de doutorado sobre o teatro de Liev Tolstói no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura Russa da Universidade de São Paulo (USP). Realizou traduções de russo para português de ensaios de Liev Tolstói como Shakespeare e o Teatro, dentre outros. Assina com Neide Jallageas a versão brasileira de A Perspectiva Inversa, de Pável Floriênski, inédito em português. Traduziu ainda artigos e ensaios em periódicos especializados. Andriêi Andreiêvitch Tarkóvski

nasceu na Rússia e reside atualmente em Florença. É

presidente do Institut International Andreï Tarkovski, cujo objetivo é divulgar a produção artística e textual de seu pai, o cineasta russo soviético Andriêi Arsiénievitch Tarkóvski. Organiza e edita livros dentre os quais destacam-se os diários de Tarkóvski, os roteiros de seus filmes, o livro Esculpir o Tempo e publicações das fotografias polaroides do cineasta sendo que, ano a ano, essas obras vêm recebendo novas edições revistas e traduzidas para as mais diversas línguas.

Antonio Mengs

é espanhol. Formado em Filologia Árabe pela

Universidade Autônoma de Madri. Desenvolve suas atividades artísticas no campo da poesia e da fotografia, que dá a conhecer pela internet, interessando-se particularmente pelo cinema de Aleksandr Sokúrov e também de Andriêi Tarkóvski sobre o qual publicou, pela editora Rialp (Madri), o título Stalker, de Andrei Tarkovski, em 2004.


148 Arlete Orlando Cavaliere

é brasileira. Livre-docente e professora titular do

Departamento de Línguas Orientais (FFLCH/USP) e professora convidada da Universidade Estatal Lomonóssov de Moscou. Pesquisa teatro, literatura e cultura russa além de publicar obras sobre a estética teatral. Traduziu e publicou, mais recentemente, os livros Teatro Completo de Nikolai Gógol (Editora 34) e Teatro Russo: Percurso para um estudo da paródia e do grotesco (Humanitas), resultantes de pesquisa realizada nos arquivos de Moscou. É supervisora do Projeto Serguei Eisenstein em confluência com o cinema e as artes na Rússia do Século XXI.

Aury Porto

é artista de teatro e exerce as funções de ator, produtor,

adaptador e diretor. Por nove anos, trabalhou na Companhia Teatro Oficina Uzyna Uzona tendo sido um dos idealizadores da monumental montagem teatral de Os Sertões, de Euclydes da Cunha. Também atuou em Boca de Ouro de Nelson Rodrigues e Os Bandidos de Frederich Schiller, dirigidas por Zé Celso Martinez Corrêa. Em 2007, fundou com Luah Guimarãez a mundana companhia em que dirigiu, adaptou, produziu e atuou em A Queda de Albert Camus; produziu, dirigiu e atuou em Das Cinzas de Samuel Beckett em 2009; adaptou, produz e atua em O Idiota - uma novela teatral de Fiódor Dostoiévski desde 2010.

Breno Morita

é artista brasileiro, bacharel em artes visuais pelo Centro

Universitário Belas Artes de São Paulo, e pesquisador do GP E.XXI (Grupo de Pesquisa Eisenstein no Século XXI). Como artista, apresentou seus trabalhos na Mostra Didática Sokúrov Oriental e em exposições nas galerias da Belas Artes de São Paulo.

Débora Bolsoni

é artista e educadora brasileira, mestranda em Poéticas

Visuais (ECA-USP). Estudou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage no Rio de Janeiro e Desenho na Saint Martin School of Art em Londres. Em 2011, ocupou a sessão de projetos especiais da MACO (Mexico Arte Contemporanea – Zona-MacoSur) com curadoria de Adriano Pedrosa (Cidade do México) e realizou juntamente com Alexandre da Cunha a exposição Dublê – dupla retrospectiva dos 10 anos de carreira de ambos com curadoria de José Augusto Ribeiro, em São Paulo.

Elena Vássina

é pesquisadora e professora russa. Possui Pós-

doutorado (1996) em Teoria e Semiótica da Cultura e Literatura pelo Instituto Estatal de Pesquisa da Arte (Moscou). É professora de Teatro, Literatura e Língua Russa junto ao Departamento de Línguas Orientais

(FFLCH/USP), onde também orienta projetos de Mestrado e Doutorado nesta área.

Traduziu e organizou diversos livros, entre eles Tipologia do simbolismo nas culturas russa e ocidental (Humanitas). Colabora ativamente com grupos de teatro brasileiros e russos estimulando e apoiando o intercâmbio entre as duas culturas.

Erivoneide Barros

é

professora

brasileira,

licenciada

em

Letras,

psicopedagoga e pesquisadora do GP E.XXI (Grupo de Pesquisa Eisenstein no Século XXI). Atualmente é mestranda em Arte e Cultura Russa pela Universidade de São Paulo (USP), com ênfase na relação entre poética russa e cinema russo.


149 Fabiola Notari

é artista e pesquisadora do GP E.XXI (Grupo de Pesquisa

Eisenstein no Século XXI). É mestre em Poéticas Visuais pela Faculdade Santa Marcelina (FASM), na linha de pesquisa em artes e práticas experimentais com a dissertação linhamanuscrita: relações poéticas entre memória, escrita e esquecimento. Desde 2010, é artista residente e organizadora do espaço coletivo Estúdio Valongo localizado no centro histórico de Santos.

Gabriela Soares da Silva

é pesquisadora brasileira na área de Literatura Russa e

Soviética, possui graduação em Letras. Atualmente é mestranda do programa de Literatura e Cultura Russa da Universidade de São Paulo (USP), com ênfase em tradução. É pesquisadora do GP E.XXI (Grupo de Pesquisa Eisenstein no Século XXI).

Jurij Alschitz

nasceu na Ucrânia. É diretor e pedagogo teatral formado

pela escola de artes teatrais GITIS, em Moscou. Fundou, juntamente com Anatoli Vassíliev, a Escola de Arte Dramática, também em Moscou. Como coordenador do European Association for Theater Culture (EATC), tem trabalhado com atores de diversas partes do mundo. Como pesquisador convidado pela Unesco, vem mapeando diretores de teatro e suas metodologias de trabalho por todo o mundo para a criação do Laboratório e Biblioteca de Treinamento Mundial de teatro.

Luah Guimarãez

é brasileira. Atua na área das Artes Cênicas como atriz,

produtora e realizadora. Fundou com Aury Porto a mundana companhia em 2007. Formada em Artes Cênicas (UNICAMP), participou do Fall Studio Session ministrado pela companhia novaiorquina Saratoga Internacional Theater Institute – SITI, e mantém o sistema Viewpoints como fonte de treinamento e pesquisa. Dentre os seus trabalhos de maior visibilidade em teatro estão: O Idiota uma novela teatral (2010-11) realizado pela mundana companhia e dirigido por Cibele Forjaz; Tchekhov 4 uma experiência cênica (2010), dirigido por Adolf Shapiro.

Lúcia Romano

é atriz e pesquisadora brasileira. Mestre em Comunicação

e Semiótica (PUC-SP) e doutora em Artes Cênicas (ECA-USP). Leciona no Intituto de Artes (Unesp), integra a Cia Livre de Teatro. Especialista em Dança-Teatro (USP e Dance Studies no Laban Centre/London). Recebeu os prêmios Qualidade Brasil 2008, Shell 2007, Mambembe 1989, APETESP 1989, APETESP 1998, Mambembe 1995, APCA 1987. Seus últimos trabalhos são O Idiota e Raptada pelo raio, ambos com direção de Cibele Forjaz. Publicou o livro O Teatro do Corpo Manifesto: Teatro Físico e colaborou no Dicionário de Teatro Brasileiro, ambos pela Editora Perspectiva.


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Luís Mármora

é ator brasileiro, formado pela Escola de Arte Dramática

EAD/ECA/USP. Foi um dos artistas fundadores da Cia. São Jorge de Variedades e nela trabalhou por dez anos, além de dirigir As Bastianas, texto de Gero Camilo. Em 2006, convidado pela Companhia do Latão, atuou em O Círculo de Giz Caucasiano de Brecht. Em 2009, estreia Gardênia, espetáculo inspirado em O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel García Márquez e, na música, cria, junto a artistas de diferentes núcleos teatrais de São Paulo, a Banda Hamlet e seu primeiro experimento cênico-musical. Atua há 11 anos em projetos pedagógicos de relevância (Teatro Vocacional e a Escola Livre de Teatro de Santo André e EAD/ECA/USP).

Neide Jallageas

é brasileira. Contemplada com bolsa Fapesp, realiza pós-

doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Russo (DLO/FFLCH/USP), pesquisando a obra de Serguei Eisenstein em confluência com o cinema e as artes na Rússia do Século XXI. Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) quando investigou o cinema de Andriêi Tarkóvski. Mestre em Estética do Audiovisual (ECA-USP), traduziu um conto de Clarice Lispector para a linguagem do vídeo e da fotografia, trabalho que se encontra em acervos públicos (Mam-SP, Coleção Pirelli-Masp e SescSP). Coordena o GP E.XXI (Grupo de Pesquisa Eisenstein no Século XXI).

Noé Silva

é pesquisador brasileiro, possui doutorado em Literatura

Russa pela Universidade Estatal M. V. Lomonóssov (1989). Atualmente é professor doutor da Universidade de São Paulo (USP) na área de Literatura Russa, atuando principalmente nos seguintes temas: Tradução, Literatura Russo-Soviética, Cultura Russa, Crítica Literária e Semiótica.

Priscilla Herrerias

é atriz brasileira e mestre em Literatura e Cultura Russa

pela Universidade de São Paulo (USP), tendo pesquisado a poética dramática de A. Tchekhov. Dentre os espetáculos em que atuou, destacam-se Réquiem, de Hanoch Levin, com direção de Francisco Medeiros e Tchékhov 4 - uma experiência cênica, com direção do encenador russo Adolf Shapiro. É pesquisadora do GP E.XXI (Grupo de Pesquisa Eisenstein no Século XXI).

Tieza Tissi

é atriz brasileira, mestranda em Literatura e Cultura

Russa pela Universidade de São Paulo (USP), na linha de Teatro Russo. Traduziu diretamente do russo as partituras de Stanislávski e pesquisa a relação entre as formas poéticas deste com as de Anton Tchekhov. É pesquisadora do GP E.XXI (Grupo de Pesquisa Eisenstein no Século XXI).


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Imagens não creditadas no texto

O espelho, 1974 (capa, 69, 153) Tempo di Viaggio, 1983 (19, 143) A infância de Ivan, 1961 (25) O rolo compressor e o violinista, 1960 (39) Stalker, 1979 (55) Nostalgia, 1983 (155, 156) Débora Bolsoni, sem título, 2011 (102 - 108)


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Sobre

Os cadernos de pesquisa kinoruss são parte integrante do site kinoruss.com.br. Todo o material apresentado aqui tem por objetivo estimular a investigação e o estudo de cinema e vídeo na Rússia e nos países da antiga União Soviética. Este site contém informações de propriedade de outros indivíduos e entidades. O material apresentado aqui é feito para fins de arquivamento e informativas somente e não se destina a infringir os direitos de propriedade dos donos originais. kinoruss cuida dos direitos autorais dos trabalhos apresentados e oferece links para seus autores. No entanto, se houver uma falha, pedimos que entre em contato. Note que a doutrina do uso justo, estabelecido

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CINEMA

TEATRO

TARK

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ESPACO


テ天SKI


ISSN 2237-2105


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