kinoruss
cadernos de pesquisa ano 3 n. 4 2013
EISENSTEINIANAS Maturidade e Subvers達o
PODER
CINEMA
EISEN MONTAGEM
V I D A DRAMATURGIA
CINEMATISMO
ÚROV STEIN
EDITORA RESPONSÁVEL
Neide Jallageas
PRODUÇÃO EDITORIAL
Erivoneide Barros Fabiola Notari Neide Jallageas
PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS E REVISÃO
Erivoneide Barros
REVISÃO
Tieza Tissi
PROJETO GRÁFICO
Fabiola Notari
GP E.XXI
Breno Morita Erivoneide Barros Fabiola Notari Neide Jallageas Tieza Tissi
COLABORADORES
Anastassia Bytsenko Arlindo Machado Bruno Barretto Gomide Daniela Mountian Elena Vasilevich Irene Machado José Manuel Mouriño Lara Souto Santana Naum Kleiman Néle Azevedo Vanessa Teixeira de Oliveira
SUPERVISÃO DE PROJETO
Arlete Cavaliere
APOIO
http://www.kinoruss.com.br Os cadernos de pesquisa kinoruss constituem-se em publicação eletrônica não comercial, semestral, editada pelo Grupo de Pesquisa E.XXI [GP E.XXI]. As opiniões expressas em seu conteúdo são de responsabilidade de seus respectivos autores. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio, sem a prévia autorização. Doações de materiais relevantes sobre o cinema russo, colaborações, sugestões e dúvidas poderão ser encaminhadas para kinoruss.cadernos@gmail.com.
EDITORIAL
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monumento mínimo em sangue néle azevedo
03
ANOTAÇÕES
23
Processos de construção: a composição arquitetônica em Aleksandr Niévski erivoneide barros
Sobre a expressividade do elemento gráfico em Aleksandr Niévski
breno morita
25 37
Eisenstein no Brasil
fabiola notari
61
No apartamento de Serguei neide jallageas
85
Notas sobre Fábrica do Ator Excêntrico (FEKS) 95
INTERSECÇÕES Plasticidade de tramas ressonantes no espaço cinemático: o exemplo de Aleksandr Niévski de Serguei Eisenstein
97
irene machado
Ivan, o terrível: e a imagem enigma 115
vanessa teixeira oliveira
Bazin versus Eisenstein: como entender a polêmica 131
arlindo machado
David Vigódski em um conto cinematográfico 147 bruno barretto gomide
O filme frente a seu abismo: Eisenstein e o ensino de cinema
155 josé manuel mouriño 187
ENTREVISÕES Olga e Niévski: desenhos de Serguei Eisenstein
189 naum kleiman 207
Ivan, o terrível. Cartas de Mikhail Nazvánov anastassia bytsenko
223
COMPLEMENTAÇÕES
tieza tissi
95
18
EDITORIAL Serguei Mikhaílovitch Eisenstein. É este o cineasta que o quarto número dos cadernos de pesquisa kinoruss celebra com um dossiê que tende a privilegiar a produção de seus últimos anos. Esse período - entre os anos 1930 e meados de 1940 - traz marcas indeléveis da tensão existente entre o poder e a arte, tanto na biografia do múltiplo artista, teórico profícuo e professor irreverente que foi Eisenstein, quanto na história do cinema e da cultura russa. Ricas miradas sobre os seus últimos filmes são aqui oferecidas através dos jovens pesquisadores do GP E.XXI, em pós-graduação na Universidade de São Paulo, cuja cadência dialoga com o ritmo correspondente dos pesquisadores mais experientes, que aqui comparecem provindos do Brasil, da Espanha e da Rússia. Fica evidente, por meio do que nos chega, que essa camada, dita seminal, da produção eisensteiniana, inquieta o espírito do Século XXI e se insinua como um veio de conhecimento que se renova e busca olhares também renovados. Sabe-se que, tanto Aleksandr Niévski quanto as duas partes de Ivan, o Terrível são produções que, com frequência, são consideradas controversas, quando comparadas com seus filmes anteriores. É comum ler e ouvir que Eisenstein teria se inclinado à ditadura do Realismo Socialista ou, ainda, que sendo sonoros, tais filmes não teriam alcançado, na prática, o que o cineasta enfatizara em seu rico legado teórico, ao tratar da montagem de recursos visuais e sonoros. Por outro lado, trata-se ainda de obras produzidas quando do ápice do Realismo Socialista, cujo estudo, mesmo na Rússia, apenas há pouco vem ganhando nova amplitude e compreensão. Entre nossos colaboradores, nota-se o afã de buscar, através do instrumental teórico, artístico, estético e semiótico, desconstruir estereótipos. Os estudos e projetos artísticos aqui apresentados trazem elementos vigorosos para se alcançar o frescor de uma leitura contemporânea diante dos textos (entendidos em sentido amplo), quase centenários, do grande mestre que foi e continua sendo Eisenstein. É com prazer e gosto pelo aprendizado, pela troca e pela ampliação dos estudos sobre Eisenstein que recebemos o texto de grande fôlego de Vanessa Teixeira de Oliveira, que traz Ivan, o Terrível à luz da imagem enigma , da magia da arte que, por meio de seus estudos, ganha a força de conceitos através dos quais é possível traçar hipóteses sobre alguns dos motivos que teriam incomodado tanto a Stálin a ponto da segunda parte do
19 filme (Ivan), concluída em 1946, ter sido exposto a severa censura e, consequentemente, sua exibição ter sido permitida apenas em 1958, dez anos após da morte de Eisenstein. O grande ator russo, Nikolai Tcherkássov, no projeto gráfico de Fabiola Notari, ganha a merecida estatura daquele que desempenhou tanto o papel do Tsar Ivan (o Terrível) quanto o príncipe e herói Aleksandr Niévski. Do trabalho de Tcherkássov enquanto ator, primeiramente excêntrico e depois trágico, ocupa-se Naum Kleiman, cujo texto foi vertido do russo para o português por Tieza Tissi e Elena Vasilevich. Tieza, generosamente, anota esclarecimentos sobre essa concepção para o leitor brasileiro, pouco familiarizado com a teoria e a prática do excentrismo que, por sua vez, foi e ainda é, tão caro aos artistas e teóricos russos, e cuja formalização se deu no início do Século XX, através da Fábrica do Ator Excêntrico, a FEKS, descrita pela pesquisadora do GP E.XXI de forma breve, porém esclarecedora. Ainda em torno de Ivan, o Terrível, Anastassia Bytsenko resgata das páginas da Iskusstvo Kino, tradicional revista russa sobre cinema, criada nos anos 1930 e em pleno vigor ainda hoje, as reveladoras cartas do ator Mikhaíl Nazvánov encaminhadas à sua esposa, Olga Viklandt, em Moscou. Nazvánov, que em Ivan interpretou o Príncipe Kúrbski, relata não apenas a solidão e a ansiedade que acometia um artista naquele período de guerra (a Segunda), mas também o que significava, sob a direção de Eisenstein, trabalhar como ator, sendo que hoje o que eram cartas íntimas - trocadas entre os cônjuges -, são preciosas notas históricas, sobre o contexto do set de Alma-Ata, capital do Cazaquistão, onde Eisenstein e sua equipe filmavam Ivan, salvaguardados da invasão nazista no território russo, nesse período de guerra. Mas é debruçando-se sobre o filme Aleksandr Niévski, que precede Ivan, que as luzes dos pesquisadores tonalizam conceitos saturados, tais como os de que Eisenstein não teria tido liberdade para dirigir esse filme, preso que estava pelos rídigos cabrestos do Realismo Socialista e que, por outro lado, sendo esse o primeiro filme sonoro do mestre russo, ainda que em parceria de ninguém menos que Prokófiev, não teria alcançado os ideais que Eisenstein teorizara sobre a sonorização no cinema. Erivoneide Barros, integrante do GP E.XXI, que desenvolve pesquisa de mestrado sobre Eisenstein, na USP, demonstra como Eisenstein buscou elementos da cultura medieval russa e, mais propriamente na arquitetura, para compor o cenário de Aleksandr Niévski. A pesquisadora discute como, nesse movimento, o cineasta retoma as investigações que realizara quando dos anos em que lecionou na escola de cinema VGIK, agregando ainda a bagagem estética e intelectual apreendida e nutrida quando de sua viagem pela Europa, Estados Unidos e Mexico. No mesmo sentido segue a seleção de imagens levadas a cabo por Naum Kleiman junto a essa editora, em junho último, no Centro de Pesquisa Eisenstein, no Apartamento Museu de Eisenstein, em Smoliênskaia, Moscou, fundado por Kleiman junto à viúva do diretor, Pera Atásheva. Naum revela, através do conjunto de imagens da personagem Olga, de Niévski, como o processo de desenhá-la, teve por modelo o ícone medieval da princesa canonizada, de mesmo nome e, ainda, como esse recurso à iconografia medieval marca toda a produção de Eisenstein, e não apenas Niévski ou Ivan. Já o cineasta e pesquisador José Manuel Mouriño coloca em cheque o espaço da sala de aula e o papel do autor mestre (ocupado por Eisenstein durante bons anos), buscando desmonstrar os possíveis limites entre educação e arte cinematográfica.
20 Mouriño coloca em questão a fecundidade das atividades pedagógicas de Eisenstein na VGIK frente ao exercício da liberdade criativa, quando essa deveria articular-se, quando não submeter-se, à funcionalidade da qual o cinema deveria ter por norte no período revolucionário; tendo em vista os objetivos e o papel da educação no processo que sucedeu a Revolução. Breno Morita, outro pesquisador do GP E.XXI, mestrando da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, investigando o conceito de imagem em Eisenstein, analisa o elemento gráfico na montagem eisensteiniana, justamente em Niévski, dando continuidade à pesquisa cuja gênese e desenvolvimento pode ser observada a partir de publicação de sua autoria no segundo número do kinoruss, e que alcança nesse, maior fôlego e profundidade. Irene Machado discorre sobre o tecido sonoro-acústico, também em Aleksandr Niévski, defendendo a continuidade e o desenvolvimento dos experimentos de Eisenstein, envolvendo signos de natureza não visual, no exercício teórico e prático constante de qualificar a montagem como ato de pensamento, redimensionando as relações sensórias da história humana, articulando distintas temporalidades - presente passado e futuro através de uma partitura cinética, cuja plasticidade audiovisual do espaço de ressonância acústica constrói o campo de sentidos do filme. David Vigódski, contemporâneo de Eisenstein e ativo intelectual russo, que já conhecemos do caderno kinoruss anterior, ressurge através da pena eletrônica de Bruno Gomide que, a cada mergulho nos arquivos russos de Vigódski, atualiza sua pesquisa, e agora nos traz uma pérola de rara qualidade, prima-irmã do conceito de cinematismo eisensteiniano e reflete o internacionalismo dos anos trinta. Vigódski dedica-se a traduzir um novo contexto soviético que refletirá a realidade com a qual Eisenstein se confronta quando retorna da América onde deixa inacabado Que Viva o México!. Já Arlindo Machado contribui para os estudos contemporâneos sobre Eisenstein retomando Bazin, que, morto Eisenstein, irá combater o seu conceito de montagem, sem que pudesse Eisenstein responder à altura. Hoje, mortos Bazin e Eisenstein, poderá o leitor contemporâneo, se tiver vontade, paciência e uma certa obstinação de ler com atenção os textos do francês e, ainda, o do russo-letão (como bem lembra Machado), e examinar acuradamente como essa contenda, contemporaneamente encontra espaço e, mais ainda, é pertinente: Eisenstein foi efetivamente compreendido? Ou, Eisenstein foi realmente lido? Ou antes, o que, da produção teórica e cinematográfica de Eisenstein foi apreciado e estudado com o frescor que novos tempos propõem? E que novos tempos são esses se não se reconhecer, no limite do conhecimento, o desconforto diante da montagem explicita e desarticuladora da integridade do espaço representado proposto por Eisenstein, e retomado por Arlindo Machado? Enfim, esse número do kinoruss dedicado a Eisentein busca estimular a continuidade e o aprofundamento desses questionamentos, propostas e caminhos, abertos à pesquisa, ao estudo, à publicação. Assim quando, inundados pela lembrança de uma escadaria, um dia em Odessa, reconhecemos a esperança e o desespero em Odessa sob os olhos de hoje, e interpretamos por um ponto de vista particular, as figuras de gelo de Néle Azevedo que derretem diante de nossos olhos e que, nesse kinoruss recuperamos nas primeiras páginas, apenas porque as imagens da desintegração desses corpos foi registrada em fotografia, assim como um dia, a encenação da chacina em Odessa foi encenada por um artista, que resgatou a memória dos degraus e da queda.
21 Ainda retomando o projeto gráfico, é de Fabiola Notari o ensaio em páginas amareladas, com anotações em azul: introdução ao seu doutorado, pistas da pesquisa que ela inicia nesse semestre: o que Eisenstein significou no Brasil no período em que foi exibido? Onde foi exibido? Apenas em São Paulo, no Rio, ou no Brasil todo? A memória de Eisenstein. Essa importa não apenas aos russos, é o que declara esse caderno: o pensamento de Eisenstein nos importa. Conversando longamente com dois grandes admiráveis estudiosos da obra de Eisenstein, Naum Kleiman e Vladímir Zabródin (nomes que são desconhecidos da grande maioria dos pesquisadores brasileiros) - em Moscou, ambos com mais de setenta anos de idade - pude observar que os olhos desses velhos sábios trazem um frescor que nossos jovens pesquisadores vêm se esforçando para alcançar qual seria o sentido de estudar Eisenstein no século XXI.
22
ao lado
Retrato de Eisenstein.
ANOTAÇÕES
This essay present the use of the landscape in the
Neste ensaio, apresenta-se a utilização da
film Aleksandr Nievski, of Sergei Eisenstein, as an
paisagem no filme Aleksandr Niévski, de Serguei
element of film language that contributes to the
Eisenstein, como um elemento da linguagem
construction of the subject according to the project
cinematográfica que contribui com a construção do
of the filmmaker. Also it present a brief reflection on
tema de acordo com o projeto do cineasta. Também
this feature and beginning their artistic Eisenstein's
se apresenta uma breve reflexão sobre este recurso
still in the theater.
e o início da atividade artística de Eisenstein ainda no teatro.
Processos de construção: a composição arquitetônica em Aleksandr Niévski Erivoneide Barros A imagem é uma impressão da verdade, um vislumbre da verdade que nos é permitido em nossa cegueira. A imagem concretizada será fiel quando suas articulações forem nitidamente a expressão da verdade, quando a tornarem única e singular como a própria vida é, até mesmo em suas manifestações mais simples . Andriêi Tarkóvski
(1) Todas as traduções para a língua portuguesa foram realizadas pela autora.
( 2 )
D o m é n i k o s
Theotokópoulos foi pintor, arquiteto e escultor. (3) EISENSTEIN, 1982, p. 156157.
Na teoria de Serguei Eisenstein (1898-1948), há uma preocupação constante em definir os elementos específicos da linguagem cinematográfica a fim de explorá-la de modo mais eficiente de acordo com o tema que o cineasta deverá desenvolver. Assim, Eisenstein engloba todos os aspectos envolvidos na produção de um filme como sendo relevantes em sua composição, afinal apenas abarcando todos os elementos pode-se criar, no espectador, a impressão do objeto ou, mais ainda, pode-se criar aquela impressão que o autor, transformando as relações reais, quer imprimir na percepção do espectador (EISENSTEIN, 1982, p. 156 (1)). Os elementos da linguagem cinematográfica evocados pelo teórico-cineasta, na citação acima, são aspectos da montagem, da mise en scène, enquadramentos, escolhas de planos, a cor (ainda que sejam as nuances entre o preto e o branco), a música e o conjunto arquitetônico de cada filme; sendo justamente este último elemento o que nos interessa de modo peculiar. Em artigo dedicado ao artista El Greco (2) (15411614), Eisenstein (3) pontua como o conjunto arquitetônico de um objeto artístico contribui para criar na percepção do espectador a imagem do fenômeno apresentado pelo idealizador da obra. O cineasta elucida que o artista não tem um
26
27 compromisso com a realidade , portanto é livre para propor distorções, em uma determinada paisagem, que sejam necessárias para contribuir com a expressividade artística.
(4) EISENSTEIN, 1982, p. 163. (5) Idem, p. 167.
(6) Atualmente a pintura, cuja procedência é o Monastério de San Juan de los Reys, compõe o acervo do Museu Del Greco, na cidade de Toledo. (7) Sobre a análise detalhada da obra, ler EISENSTEIN. El Greco. In Cinematismo. (referência completa no final do ensaio). (8) EISENSTEIN, 1982, p. 156.
Ao analisar a pintura em que é retratada a cidade de Toledo, vislumbrada, na obra, como um dos possíveis cenários do apocalipse, Eisenstein defende que o pintor não realizou apenas um estudo topográfico, mas reavaliou os elementos de Toledo e seus arredores em benefício de seu ritmo, destruindo as uniões reais e criando novas que respondam à concepção daquela imagem que surge a partir destas novas uniões (4). Assim, torna-se fundamental a composição arquitetônica ser uma peça da natureza recomposta a 'imagem e semelhança' próprias do autor (5).
Como observarmos no quadro acima (7), há vários elementos da composição arquitetônica organizados para favorecer a composição do tema, tal como observara Eisenstein. De acordo com o cineasta, ao construir um conjunto arquitetônico a seu modo, acentuando os elementos desejados, o artista favorece a criação, na percepção do espectador, da imagem do fenômeno (8), como pontuamos acima. O escritor brasileiro Mário de Andrade (1893-1945) apresenta, em seu romance Amar, verbo intransitivo, por meio da voz do narrador, um recurso que aproximamos do modo como o conjunto arquitetônico pode ser determinado pela necessidade expressiva do conjunto da obra. Vejamos um
28 trecho inicial do romance:
(9) In. ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo (Idílio). 16. ed. Villa Rica Editoras: Belo Horizonte/Rio de Janeiro, 1995. p. 50.
(10) A escolha por manter a noção de arquitetura advém da compreensão aqui posta do termo como a técnica de projetar e construir ambientes, pois entendemos que o cineasta compõe o espaço fílmico do modo que julga necessário para seu projeto artístico.
(11) Nome dado à cidade de São Petersburgo entre os anos de 1914 e 1924. (12) SKLOVSKI, 1973, p. 56.
acima
El Greco. Vista e plano de Toledo, 1610-1614
Bem diferente dos quartinhos da pensão... Alegre, espaçoso. Pelas duas janelas escancaradas entrava a serenidade rica dos jardins. O olhar torcendo para a esquerda seguia a disciplinada carreira das árvores na avenida. Em Higienópolis os bondes passam com bulha quase grave soberbosa, macaqueando o bem-estar dos autos particulares. É o mimetismo arisco e irônico das coisas ditas inanimadas. São bondes que nem badalam. Procedem como o rico-de-repente que no chá da senhora Tal, família campineira de sangue, adquire na epiderme do fraque a macieza dos tradicionais e cruza as mãos nas costas que importância! pra que a gente não repare na grossura dos dedos, no quadrado das unhas chatas. Neto de Borbas me secunda desdenhoso que badalo e mãos ásperas nem por isso deixam de existir, ora! O badalo pode não tocar e mãos se enluvam. (9)
No trecho acima, o narrador conduz o leitor a entrar na arquitetura visualizada pela governanta Elza, recém-chegada à casa do adolescente Carlos a quem a novata deveria dar as primeiras lições amorosas. No relato, a condição econômica da família que recebia Elza é fornecida não por uma descrição minuciosa dos objetos da casa, mas é a evocação do mundo externo por meio da metáfora do bonde visualizado pelas duas janelas (os dois olhos para o novo mundo!) que faz referência ao comportamento soberbo e superficial da elite paulistana. Aqui, parece-nos que os elementos arquitetônicos evocados ou suprimidos pelo narrador são uma escolha do artista e contribui com o ato de construir a percepção que se pretende imprimir à composição da obra. No cinema, a paisagem arquitetônica, aqui entendida como composição arquitetônica (10) já que se trata de um processo de formação e ordenamento, no espaço, de componentes da linguagem cinematográfica, é um elemento essencial e, ainda que o diretor deseje, não há como suprimi-lo totalmente. Como ressalta Marcel Martin, [...] o cinema é a primeira arte em que a dominação do espaço pôde se realizar de forma plena (2003, p. 196). Dentro dessa perspectiva, entendemos a possibilidade do cineasta exibir apenas o que julgar necessário e da maneira como almeja. Nesses casos, o uso da câmera é um aliado importante para a composição da obra, tal como verificaremos adiante. Este preâmbulo faz-nos pensar nas primeiras atividades artísticas exercidas por Serguei Eisenstein, no início do século XX. Então estudante de engenharia do terceiro ano, em Petrogrado (11), o jovem Eisenstein entra, efetivamente, em março de 1918, para o exército vermelho e recebe a qualificação de técnico de construções militares (12) . Primeiramente, dedica-se à construção de trincheiras e depois tem os seus dons artísticos aproveitados, sobretudo como cenógrafo do grupo teatral do front ocidental. Como lembra Vanessa Teixeira de Oliveira, para a cultura revolucionária, a criação de imagens e a realização de encenações teatrais eram atividades privilegiadas pelo seu forte poder de agitação e propaganda (2008, p. 03). Nesse período, Eisenstein trabalha
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(13) SKLOVSKI, 1973, p. 67.
intensamente na composição de desenhos e projetos para a construção de cenários. Jay Leyda pontua que os arquivos de Eisenstein contêm um grande número de desenhos teatrais datados para seu trabalho com os teatros do exército entre 1917 e 1920 (1987, p. 07). De acordo com Leyda, nem todos foram produzidos, mas eles indicam a intensidade de seus estudos teatrais mesmo enquanto ele se movia de front a front (Idem). Posteriormente, como lembra Viktor Shklóvski (18931984), na biografia dedicada a Eisenstein, o jovem é convidado a integrar o Conselho do Teatro Central do Proletkult também como idealizador de cenários e já na sua primeira produção acaba também assumindo a posição de codiretor. (13) Partindo desse breve apanhado, propomo-nos, neste ensaio, a rastrear a gênese da estruturação da composição arquitetônica do filme Aleksandr Niévski (1938) e a verificar uma possível aproximação entre as experiências do cineasta com a produção de cenários em sua fase inicial e a composição deste filme de sua maturidade artística. Para traçar este percurso, trabalharemos com dois conceitos centrais: a noção de composição arquitetônica e a concepção de uso do espaço fílmico, para examinarmos as possíveis inovações na linguagem cinematográfica que esses dois elementos permitiram. O 'escoramento' da estrutura fílmica
(14) De acordo com a pesquisadora Maria Ferretti, S h u m i á t s k i
p e d e
pessoalmente a Iósef Stálin que proíba Eisenstein definitivamente de se dedicar
Após receber a missão de filmar a história do príncipe Aleksandr Niévski, contra a vontade do secretário de cultura Boris Shumiátski (14), Eisenstein inicia um processo de pesquisa para retomar elementos da cultura russa medieval que o auxiliasse na composição do tema que deveria desenvolver: o patriotismo. Sobre a importância da história para a composição do filme, o cineasta indaga:
à cinematografia; pedido que não é aceito por Stálin. Ao contrário, o líder supremo soviético ordena que Eisenstein retome suas atividades. In. FERRETTI, Maria. Memoria pubblica e costruzione dell'identità
Mas como andávamos no século XIII? Como articulávamos, comíamos e nos conduzíamos? Dever-se-ia reproduzir o estilo das encantadoras esculturas da catedral de Santa Sofia, e mesmo o das miniaturas mais recentes da crônica de Koenigsberg? Como usar roupas que impõem, queiram ou não, gestos de ícone inspirados na escola de Novgorod? Como criar o contato com sêres [sic] ao mesmo tempo longe e perto de nós? (EISENSTEIN, 1969, p. 44).
collettiva nell'Urss degli anni trenta: l'Aleksandr Nevskij. In PITASSIO, Francesco (Org.). La forma della memoria: memorialistica, estética, cinema nell'opera di Sergej Ejzentejn. Udine: Fórum, 2009. pp. 23-57.
No relato que faz em suas reflexões, o cineasta alude ao fato de contemplar a mesma arquitetura que seus ancestrais contemplaram, de se aproximar das linhas das construções antigas, verificar as proporções das catedrais e, sobretudo, verificar que através dos séculos uma mesma linguagem nos reaproxima, a linguagem três vezes santa de um grande povo de trabalho (EISENSTEIN, 1969, p. 45). Desse modo, a construção do tema partiria da essência que emana da alma do povo russo, verdadeiros construtores da história ímpar de sua nação. A aproximação entre os elementos que contemplava no passado e que são revisitados no presente é registrada pelo
30
(15) EISENSTEIN, 1987, p. 38. (16) Idem, p. 76. (17) Nas citações, foram respeitadas as traduções (e/ou transliterações) presentes nos livros de referência. (18) EISENSTEIN, 1987, p. 76.
a direita
Aleksandr Niévski (EISENSTEIN, 1938, 00:17:18 a 00:17:20)
cineasta em suas memórias, ao relatar as lembranças de sua infância quando realizava visitas ao mosteiro do santo Aleksandr Niévski (15), ou durante suas viagens de navio em que via a cidade de Novgorod banhada pelo luar [em que] inúmeras igrejas brancas brilham, recortadas contra a sólida escuridão (16). Eisenstein pontua: Alexandre Nevski (17) me traz não só a Novgorod, mas também a Pereslavl, encantadora cidadezinha feita daqueles mesmos cubos brancos, com domos em forma de cebola (18) . Todas essas imagens da composição arquitetônica parecem ter ficado retidas na memória de Eisenstein e foram apresentadas e trabalhadas quando da produção do filme de 1938, conforme vemos nas imagens abaixo.
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(19) Eisenstein viaja com uma delegação, no final dos anos vinte, para estudar o cinema sonoro fora da União Soviética. Inicia sua peregrinação em Berlim, passa por vários países da Europa até sua chegada aos E.U.A e, posteriormente, ao México, onde tem a interrupção das filmagens de Que viva México! (Da Zdravstvuiet Meksika!, 1931). Retorna a Moscou em 1932. (20) Um conjunto de indicações destinado a todas as formas de manifestação artística na URSS. Tais diretrizes compuseram a estética oficial, na União Soviética, a partir dos anos 30.
Embora Aleksandr Niévski tenha uma gênese complexa, graças à situação política que a União Soviética (URSS) passava nos anos trinta (19) com as perseguições e as prisões constantes, o filme carrega algumas inovações estéticas relevantes, além de ser o primeiro filme sonoro concluído por Eisenstein nos anos trinta. Longe de ser apenas uma peça de propaganda do governo stalinista, em especial um culto à figura de Iósef Stálin (1878-1953), ou reproduzir fielmente as diretrizes do realismo socialista (20), o diretor parece preocuparse com os estudos estéticos que produzira durante os anos em que lecionou na escola de cinema, além dos conhecimentos adquiridos em sua viagem pela Europa e os Estados Unidos, incluindo a famosa e tumultuada passagem pelo México. Nos artigos desenvolvidos por Eisenstein nos anos trinta, a expressividade da imagem cinematográfica tem o seu valor atribuído não mais apenas à organização realizada no processo de montagem, mas o cineasta defende que todos os elementos da sintaxe cinematográfica estão envolvidos no processo de construção do tema, como pontuamos anteriormente. Essa organização de todos os elementos a favor da expressividade do tema deve criar uma unidade por meio da estruturação dos elementos da linguagem cinematográfica, tal como elucida Eisenstein: A obra cinematográfica se baseia, da mesma maneira, não numa desvantagem mútua de certos domínios da expressão, na neutralização de uns em proveito de outros, mas na aparição justificada em primeiro plano, no momento dado, dos meios de expressão graças aos quais, num determinado instante, exprime-se plenamente o elemento que, nas condições presentes, conduz diretamente ao rendimento mais completo da matéria tratada, do pensamento, do tema, da idéia [sic] da obra (1969, p. 139).
Dentro dessa visão, parece-nos que a composição arquitetônica realizada por Eisenstein, em Aleksandr Niévski, não foi um conjunto de elementos aleatórios que serviram para construir apenas um cenário, mas compõe um projeto maior de experiências estéticas que o cineasta já desenvolvia desde as primeiras experiências no teatro e que foram aprimorados ao longo de sua trajetória artística. No artigo aqui já citado, dedicado ao artista El Greco, Eisenstein apresenta os elementos da pintura conjugados como em uma construção. É interessante verificar que a mesma descrição que o cineasta-teórico faz da obra de El Greco poderia ser usada como bússola para compreensão de seu próprio método; vejamos a proposição: El Greco pintou esse quadro em seu ateliê. Para isso, não fez estudos fora nem tomou notas a lápis, pois não podia ver as edificações a partir do lugar que elegeu. Para desenhá-las, deveria tê-lo feito do alto, na cidade, na catedral ou em outra parte. Mas El Greco representou Toledo tal como a havia conhecido em sua estadia de tantos anos e em seus passeios aos arredores (EISENSTEIN, 1982, p. 160-161).
32 Conforme vemos acima, são as lembranças pueris do cineasta conjugadas com os elementos coletados em seus estudos, a base para a construção da cidade de Novgorod: o espaço é projetado, tal como ocorre na construção de El Greco, para que os elementos da composição arquitetônica favoreçam a composição do tema. Todavia, cabe ressaltar, são as lembranças do cineasta os principais motivadores para o projeto arquitetônico do filme. Ainda que o cineasta tenha voltado às cidades, recolhido informações nos locais em que visitou e lido as crônicas históricas que narram os feitos do período medieval, não será mais aquele período histórico, trata-se sempre de uma releitura, de uma visão específica do artista. A arquitetura do filme é limitada aos elementos urbanos; as sequências em que aparecem elementos como os lagos, a vegetação, o céu, a terra, cujo conjunto denominaremos de composição arquitetônica natural, ocorrem em maior número, fato que pode estar ligado às indicações do realismo socialista de valorização da terra mãe. As únicas exibições das cidades, composição arquitetônica urbana, ocorrem nas sequências dedicadas à cidade de Novgorod e na sequência intitulada Pskov. Todavia, nesta última, o projeto é totalmente diferente, pois o subtema que deve prevalecer é a destruição deixada pelos inimigos alemães. Já Novgorod surge em dois momentos distintos em que há uma valorização, a partir do uso específico do enquadramento e do ângulo da câmera, da composição urbana. Citamos como exemplo desta composição a catedral, as casas de madeira e a ponte. Sobre esta última, mais uma vez o cineasta recorreu à memória para embasar a composição arquitetônica, conforme vemos em seu seguinte relato: Quando preparávamos a filmagem de Alexandre Nevski precisávamos construir uma ponte de comprimento adequado e para isso recorremos ao pequeno lago do estúdio, que ela atravessava numa diagonal. Por mais estranho que pareça, não foi a lógica que sugeriu essa solução, mas a memória! (EISENSTEIN, 1987, p. 114).
Em Aleksandr Niévski, o espectador não tem acesso aos conjuntos arquitetônicos de forma abrangente, como, por exemplo, uma espécie de panorâmica que apresenta a vastidão das terras russas neste período. Ainda que haja uma composição em que seja explorada uma duração maior dos planos, privilegiando um caráter descritivo da imagem cinematográfica que, neste caso, aproxima-se mais do cinema de argumento, isto é, um tipo de fazer cinema em que a força do enredo adquire um lugar central, a arquitetura de Novgorod e Pskov é apresentada de forma fragmentada, aspecto que está presente nas obras eisenstenianas do período revolucionário, conforme pontua Marcel Martin: Eisenstein cria um espaço virtual suscitando em nosso espírito a idéia [sic] de um espaço único que jamais nos é representado como totalidade. Com efeito, é absolutamente impossível, vendo o filme, ter uma idéia [sic] precisa da topografia da cidade de Odessa, de sua enseada, de seu porto e da posição do encouraçado em relação às escadarias (2003, p. 198).
Assim, dentro desse universo sintético, uma das primeiras preocupações de Eisenstein era como criar, a seu modo, a onipotência das catedrais de Novgorod, transmitir ao espectador a sua suntuosidade. Para resolver essa demanda fundamental para a estrutura artística, o cineasta decide trabalhar a composição arquitetônica para favorecer, no momento da filmagem, um jogo por meio da profundidade de campo. A fim de compreendermos melhor este procedimento, comparemos as duas imagens ao lado. Na primeira imagem, temos o esboço do que deverá ser a parte dos fundos da catedral. Para contribuir com a criação da percepção de grandiosidade que o espectador deverá ter em relação a esta construção, ao lado, é inserida uma maquete que fará alusão a outra parte da cidade. Na segunda imagem, produto final presente no filme, a catedral e alguns telhados encontram-se mais próximos à câmera e, no segundo plano, está a
33 maquete que vimos anteriormente, formando a profundidade de campo. A composição estética criada, desde os planos iniciais em relação à profundidade de campo, é fundamental para criar, como denomina Marcel Martin, uma direção 'sintética' . Sem recorrer à mudança de plano, por meio de cortes, os personagens parecem estar incrustados no cenário , tornando-se, assim, mais um dos elementos da composição arquitetônica. Cabe ressaltar, que, no momento em que o filme é produzido, final da década de trinta, Eisenstein já havia adquirido maturidade artística e a produção intelectual de seu país sofria alterações significativas cuja gênese foi acompanhada bem de perto pelo cineasta. Esses fenômenos de mudança social, cultural e política geraram várias reflexões em artigos escritos pelo diretor do célebre Encouraçado Potiómkin (Bronenosets Potiomkin, 1925) que o permitiu (ou impulsionou) buscar novas formas de expressividade.
Esse diálogo entre os elementos arquitetônicos e as personagens parece contribuir para propor uma ligação da aproximação do povo russo que viveu no século XIII e os espectadores que assistirão à obra no século XX. Todos são elementos do mesmo conjunto arquitetônico. Nas imagens extraídas do filme, vemos como o enquadramento da câmera favorece a visualização da catedral embora esteja em segundo plano:
34
(21) Adotamos este termo das Memórias de Eisenstein. Ao analisar a obra de Púshkin, o cineasta nomeia de micromontagem a habilidade do poeta de relacionar diferentes elementos no mesmo enquadramento.
(22) EISENSTEIN, 1982, p. 157.
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Bastidores da filmagem (LEYDA; VOYNOW, 1982, p. 102)
Aleksandr Niévski. (EISENSTEIN, 1938, 00:12:51, 00:17:43 e 00:17:59)
ao lado
Aleksandr Niévski. (EISENSTEIN, 1938, 00:20:55)
Outro elemento que acompanha Eisenstein desde suas experiências no teatro, passando por seus clássicos realizados no período das vanguardas, são os grafismos. As linhas que demarcam à tela, frutos da composição arquitetônica, contribuem para uma resolução artística que conduz a noção de micromontagem (21) . Na imagem abaixo, o elemento arquitetônico 'desenhado' na tela cria uma justaposição de três elementos diferentes em um mesmo enquadramento,conforme imagem abaixo. Na imagem, as linhas retas do primeiro plano delineiam os grupos que delegam sobre o futuro da cidade de Novgorod. Após a invasão de Pskov, torna-se emergente a tomada de decisão, assim ocorre uma divisão entre aqueles que desejam a presença do príncipe Niévski, como líder, e aqueles que se recusam a aceitá-lo. Assim a tensão se dá nessa clara divisão, em que cada patamar corresponde a um grupo de representantes que expressam suas opiniões favoráveis ou contrárias à liderança de Niévski. Essa impressão de separação que será diluída com a proposta futuro de união, realizada por Aleksandr Niévski, em que todos estão direcionados para uma mesma causa, é dada pela composição arquitetônica do plano e a sua relação com os primeiros planos de cada uma das três partes, que surgirão nos planos seguintes. É interessante que o sucesso obtido pelo filme e a sua repercussão posterior cujos aspectos foram altamente discutidos pela crítica, aparentemente não geraram uma indagação sobre a fidelidade do conjunto arquitetônico, sendo o filme, muitas vezes, abordado como um modelo fidedigno do universo medieval russo. Parece-nos que a questão da realidade, neste filme, foi tão burilada pelo cineasta que a licença criativa dessa paisagem (22) passou despercebida. Eisenstein, no artigo sobre El Greco, reforça que o autor não tem nenhum compromisso com a realidade, já que o espectador acolhe a imagem final. Sobre isso, afirma o teórico: Cativa-nos a imagem terminada, obtida como resultado da permutação dos elementos da paisagem e nos sentimos dispostos a considerála, ao mesmo tempo, como a representação real desta paisagem (EISENSTEIN, 1982, p. 157).
35 Embora, como assinalamos acima, o contexto histórico em que Aleksandr Niévski foi produzido seja um período em que o artista era cerceado, muitas vezes, de sua liberdade criativa e intelectual, não podemos renegar o valor estético e as experimentações realizadas em todos os aspectos da linguagem cinematográfica, pois, ao analisar apenas um aspecto da sintaxe cinematográfica, dentro de um conjunto de possibilidades estéticas, conseguimos verificar que as vivências iniciais de Eisenstein não foram simplesmente apagadas, mas se transformaram com a evolução de sua teoria e dos recursos técnicos para a realização do cinema. O trabalho cuidadoso e minucioso realizado pelo cineasta na produção de Aleksandr Niévski, em relação à produção da composição arquitetônica do filme, é apenas um pequeno ponto de uma maturidade artística em torno do conjunto que envolve o ato de realizar cinema que perpassam todos os níveis da sintaxe cinematográfica e que necessitam serem revisitados pela crítica eisensteniana contemporânea.
ao lado
Cartaz do filme Aleksandr Niévski. (EISENSTEIN, 1938)
36 Bibliografia EISENSTEIN, Serguei. El Greco. In. Cinematismo. Argentina: Domingo Cortizo Editor, 1982. __________________. Memórias Imorais: uma autobiografia. Trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. __________________. Reflexões de um cineasta. Trad. Gustavo A. Doria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1969. LEYDA, Jay; VOYNOW, Zina. Eisenstein at work. New York: Pantheon, 1982. MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Brasiliense, 2003. OLIVEIRA, Vanessa Teixeira de. Eisenstein ultrateatral: movimento expressivo e montagem de atrações na teoria do espetáculo de Serguei Eisenstein. São Paulo: Perspectiva, 2008. SKLOVSKI, Viktor. Eisenstein. Barcelona: Editorial Anagrama, 1973.
Given the large scope of Eisenstein's concept of
Considerando a abrangência do conceito de montagem
montage, this article analyzes the montage within the
de Serguei Eisenstein, este artigo analisa a montagem
plan in different parts of his Alexander Nevsky (1938).
no interior do plano de diferentes trechos de seu filme
Approaching the issue from a expanded understanding
Aleksandr Niévski (1938). Partindo de uma
of the concept of image derived from the writings of the
compreensão alargada do conceito de imagem oriundo
filmmaker, the image is not considered as that which is
dos escritos do cineasta, considera-se a imagem não
presented to the eyes, but as a kind of synthesis made
como aquilo que se apresenta ao olhos, mas como uma
possible by the different perceptual qualities of the
espécie de síntese de diferentes qualidades perceptivas
viewer's mind. Thus, among the different layers that
na mente do espectador. Assim, das diferentes
constitute the image, the emphasis of the analysis rests
camadas que compõe essa imagem, a ênfase das
in the montage of the graphic qualities within the
análises se dá na montagem das qualidades gráficas no
frame.
interior do quadro.
Sobre a expressividade do elemento gráfico em Aleksandr Niévski Breno Morita Este artigo apresenta uma dentre as abordagens de Eisenstein em relação à imagem. De difícil circunscrição, esse conceito foi abordado, por este autor, nas duas últimas edições dos cadernos de pesquisa kinoruss, ambas dedicadas a Aleksandr Sokúrov. Anteriormente foi introduzida uma abordagem sobre a imagem em relação à noção de representação: referindo-se, cada uma delas, a maneiras diferentes e complementares de lidar com a questão. No presente artigo, o acesso à questão da imagem se dá por outras vias. Também correlata ao conceito geral de montagem eisensteiniana, a discussão orbitará a proposição de Eisenstein relativa à expressividade do conteúdo gráfico na composição do quadro. Ciente da problemática que o tema suscita, a intenção primeira é menos delimitar à questão e mais contribuir para a difusão de diferentes matizes que o pensamento de Eisenstein, sobre a montagem, oferece à produção e crítica da arte. Para esse estudo, serão tomados como referência artística alguns quadros selecionados do filme Aleksandr Niévski (1938).
(1) Apesar de a câmera ser
Por que Niévski?
operada por Eduard Tisse, eles já vinham trabalhando juntos desde A Greve (1924) com grande afinidade. Sobre a relação entre eles, do ponto de vista de Eisenstein, recomenda-se a leitura de 25 e 15 (Eduardo Tissé) (EISENSTEIN, 1969, p.18791).
Sua escolha se deve à maneira pela qual o cineasta trabalha a composição gráfica dos quadros (1) e pelo momento de sua produção. Esse foi seu primeiro filme sonoro e o primeiro que ele conseguiu finalizar desde O velho e o novo (1929) (também conhecido como A linha geral). Mas esse intervalo de tempo em sua filmografia não foi de ociosidade, tampouco motivado por questões pessoais. Desde 1929, ele teve dois filmes interrompidos por motivos políticos, O Prado de Bejin (Bejin Lug, 1935) e Que Viva México! (Da Zdravstvuiet Meksika!,
38
39 1931), tendo enfrentado grandes pressões contra seu trabalho. O segundo deles, produzido no México, foi pensado e filmado durante sua viagem ao exterior para estudar a dimensão sonora no cinema (passando por países da Europa e pelas Américas). Durante esse período, apesar da lacuna de nove anos em sua filmografia, Eisenstein desenvolveu suas pesquisas escrevendo e produzindo proficuamente (filmes curtos e outros inacabados, projetos de filme, textos, aulas, desenhos, etc.). Assim, Aleksandr Niévski é o primeiro de seus filmes finalizado após esse longo e conturbado período. Algumas das ideias que vinha desenvolvendo tanto teoricamente quanto em desenhos, projetos e filmagens a respeito da composição do quadro, da relação entre imagem e som e do trabalho do ator, Eisenstein consegue por em prática nesse filme. Algumas questões conceituais
(2) Para maiores informações sobre a relação entre ambos, em obras traduzidas para o português, sugerem-se os seguintes artigos: Forma e conteúdo: prática (EISENSTEIN, 2002b, p.105145) e PRKFV (Serguei Prokofiev) (EISENSTEIN, 1969, p. 159-61).
Uma vez que o artigo se propõe a discutir questões relativas à expressividade do conteúdo gráfico na composição do quadro, uma primeira pergunta pode ser elaborada: por que empregar o termo quadro e não plano ou fotograma? Para responder a esta pergunta, faz-se necessário levar em consideração uma importante característica do filme: esse é o primeiro filme sonoro de Eisenstein (com trilha de Serguei Prokófiev (2) ). Como o interesse é abordar a expressão gráfica da composição, sem considerar, ao menos não suficientemente, sua dimensão sonora, eis um primeiro entrave à utilização do plano como unidade de referência. Outra questão, não menos importante, é que, na concepção eisensteiniana, um plano adquire seu sentido em relação a outro(s) plano(s), qualidade essa que também não será pormenorizada. Assim, o conceito de plano não é adequado uma vez que não é desenvolvida sua dimensão sonora, tampouco suas relações com os elementos anteriores e ulteriores. Outro termo que também será posto de lado é fotograma. Ele refere-se a cada uma das imagens fotográficas que compõe a película fílmica e que, projetadas em um dado movimento ordenado, são percebidas, na tela de projeção, como que em movimento. O fotograma, considerado isoladamente ou sem a devida mediação técnica, não manifesta a dimensão mecânica do movimento e, do ponto de vista da expressividade gráfica, os possíveis movimentos dentro do quadro interessam para a análise. Assim, opta-se pelo termo quadro na medida em que, pela falta de uma noção mais exata, possibilita um recorte mais específico da composição visual sem que se incorra em outras questões intrincadas que fogem ao intuito do artigo. Aporte eisensteiniano
A extensa contribuição legada por Eisenstein para as artes torna necessário definir alguns parâmetros que
40 referenciam a abordagem a ser empregada. Seu conceito de montagem no cinema advém de uma noção mais abrangente que é sua teoria geral de montagem. Segundo ela, dois elementos de uma determinada qualidade, quando justapostos, podem produzir um terceiro elemento qualitativamente diferente, que extrapola a simples soma deles. Como exemplo, pode-se citar seu interesse pela escrita ideogramática japonesa, em que, por meio da junção de dois caracteres descritivos, produz-se algo graficamente indescritível, por exemplo, a figura de uma orelha perto do desenho de uma porta = 'ouvir' (EISENSTEIN, 2002a, p.36). Essa compreensão é, para Eisenstein, um dos caminhos para a intensificação da expressividade na arte. Ambas as dimensões acompanharão a discussão: o salto qualitativo da justaposição de elementos distintos e suas possíveis qualidades expressivas. Retomando a proposição inicial do artigo, outras duas perguntas pedem esclarecimentos: 1) O que se entende por expressividade? e 2) O que está sendo chamado de elemento gráfico no cinema? Expressividade
Antes de desdobrar a ideia de expressividade, vale explorar um pouco a concepção de Eisenstein sobre o movimento expressivo. Um caminho para isso passa pelo que V. V. Ivánov identificou como as tentativas de Eisenstein de descobrir o sentido gestual primitivo de um termo (IVÁNOV, 2009, p. 38), isto é, uma busca pela maneira em que os gestos, anteriormente à palavra, possibilitam a expressão humana. Para Eisenstein, a gestualidade possui uma capacidade expressiva que antecede e subsiste na expressividade das palavras. Em Montagem 1937 (EISENSTEIN, 2010, pp.11-58), o cineasta oferece um caminho possível para uma compreensão mais afinada do que seria esse sentido gestual primitivo de um termo . Tomando como exemplo a aversão, ele propõe o seguinte procedimento para se buscar sua gestualidade primitiva: elencar o maior número possível de variantes da aversão para, então, entre elas, buscar sua invariante. Aversão leve e aversão absoluta. Da careta à náusea. Aversão física e aversão moral. Aversão em diferentes épocas e aversão na mais ampla variedade de circunstâncias. Deixe o leitor imaginar essas expressões ocorrendo realmente diante dele. Deixe-o mentalmente experimentar e expressar fisicamente tais instâncias diversas de aversão. É uma legião de variações de expressão.
(3) Todas as traduções do inglês para o português foram feitas pelo autor.
Toda essa legião, entretanto, pode ser reduzida a um denominador comum. Sua multiplicidade é um conjunto de variantes baseadas em um mesmo esquema básico, que irá permear todas as instâncias e variedades. Além disso, qualquer movimento que não esteja ligado a essa espinha dorsal ou não corresponda a este esquema nunca será lido como aversão. Qual é esse denominador comum? (EISENSTEIN, 2010, p. 22).(3)
41 Para responder a essa pergunta, Eisenstein recorre à origem etimológica da palavra que, segundo ele, vem do latim: a-vertere= virar-se ao lado oposto (EISENSTEIN, 2010, p. 22). Assim, o movimento básico que encarna todas as expressões de aversão é o afastar-se. Qualquer que sejam as variantes, todas terão como invariante o movimento de afastamento, de repulsão. Assim ele conclui: O que isso mostra? Que o termo em si, convertido a partir de seu sentido figurativo metafórico de volta ao movimento físico que era o protótipo de sua atitude psicológica correspondente retornando, na verdade, a seu sentido motor primário vem a conter a fórmula exata, ou esquema, que caracteriza de igual maneira todos os diferentes matizes de sentidos e que também serve como sua designação geral (EISENSTEIN, 2010, p.23).
(4) Tal concepção levou Eisenstein a estudar os ritos de tribos antigas. “Para ele, os ritos mais antigos eram aqueles em que o movimento ainda não se tornara palavra” (IVÁNOV, 2009, p. 40). Para aprofundamento sugere-se o artigo A forma do filme: novos problemas (EISENSTEIN,
Com este exemplo, Eisenstein procura mostrar que, na base daquilo que a palavra é capaz de expressar, existe um componente de experiência física que, antes da possibilidade do emprego das palavras como meio de expressão, era expresso por meio do corpo (4). Sobre isso, Ivánov traz importantes contribuições mostrando de que maneira estes estudos de Eisenstein estavam em sintonia com uma variedade de outras pesquisas em campos tão distintos quanto os da antropologia, psicologia, semiótica, biologia, etc. (IVÁNOV, 2009, pp.11-67). De maneira geral, o que aparece como elemento comum a esses diferentes campos, e é o ponto que interessa neste artigo, é o estudo de um tipo de organização denominado por Eisenstein de pensamento sensorial (ou prélógico).
2002a, p.120-40).
Sabemos que na base da criação da forma existem processos de pensamento sensorial e de fantasia. O discurso interior está exatamente no estágio da estrutura sensorial da imagem não tendo ainda atingido a formulação lógica com a qual o discurso se reveste antes de sair para o mundo (EISENSTEIN, 2002a, p.125-6).
Esse componente anterior no sentido de mais ancestral do pensamento lógico é, para Eisenstein, muito importante para se intensificar a expressividade da obra de arte. O primeiro deles o pensamento pré-lógico organiza-se por meio de uma lógica associativa e é mediado por formas sincréticas de expressões, isto é, utilizando-se simultaneamente gestos, sons, cores, formas, etc,; o segundo o pensamento lógico é mediado, primordialmente, pela palavra e organiza-se pela lógica da racionalidade. Dessa maneira, para constituição da arte, Eisenstein toma como necessária a coexistência de uma componente regressiva sem a qual não haveria forma com uma componente progressiva sem a qual não haveria conteúdo (IVÁNOV, 2009, p.81).
42 [...] para lograr uma impressão sensorial artística, usamos, como um método de composição, uma das leis do pensamento primitivo que aparecem em determinadas épocas como as normas e práticas do comportamento cotidiano. Usamos uma construção de um tipo de pensamento sensorial e, como resultado, em vez de um efeito lógico-informativo , recebemos da construção, na verdade, um efeito emocionalsensorial (EISENSTEIN, 2002a, p.127).
(5) Sobre a concepção desse conjunto monístico em
Eisenstein, ao buscar meios científicos para a constituição da linguagem cinematográfica se debruça em estudos sobre a constituição da formação do homem e da língua. Encontrando aí subsídios que confluem em direção à existência de um tipo de pensamento que antecede o pensamento lógico. Esse pensamento, nomeado de pré-lógico, é uma das chaves importantes para se compreender a concepção de expressividade em sua teoria. Assim, o movimento expressivo, retomando o exemplo citado da aversão, é aquele que consegue, através de um pensamento sensorial sincrético (que ainda não diferencia racionalmente os sentidos), expressar a aversão ao espectador. Por sua vez, a expressividade é a capacidade deste determinado conjunto monístico (5) fazer-se (sensorialmente) compreendido pelo espectador.
Eisenstein recomenda-se Fora de quadro (EISENSTEIN, 2002, p.35-48)
Movimento gráfico no teatro, uma passagem para o movimento gráfico no cinema
Tendo dado alguns passos em direção a uma proposição sobre o movimento expressivo, vejamos uma das elaborações de Eisenstein sobre a expressão espacial no palco do teatro. No intuito de trazer esclarecimento sobre isso, ele relata uma de suas aulas em que propôs aos alunos pensar a encenação teatral de uma passagem do livro Père Goriot, de Balzac. O trecho escolhido é aquele em que Vautrin, no momento de sua prisão, esbraveja um discurso acusatório. Para maior concisão, retomemos a síntese desse trecho oferecida por Eisenstein: Anteriormente, antes da polícia aparecer, Vautrin era Monsieur Vautrin, o mais rico e mais respeitado dentre os inquilinos de Madame Vauquer. Ele era carne da carne e sangue do sangue daquela respeitável sociedade da qual todos os desagradáveis habitantes daquela casa também pertenciam. A polícia aparece. A máscara cai (ou melhor, a peruca!). Vautrin é exposto: ele é Jacques Collin, um detento foragido. Ele foi expulso do círculo das pessoas respeitáveis. Nos últimos momentos, antes de ser levado pelos policiais, ele se desgarra e esbraveja uma provocação para a sociedade que o afastou. Ele acusa aquilo. Neste momento, os inquilinos da Madame Vauquer este pequeno grupo de pessoas representam toda a sociedade burguesa. Vautrin se opõe a isso com toda sua força e coragem. Ele sozinho é contraposto à sociedade e a combate. Aquilo não é mais que ele, um criminoso. É igualmente repleto de pessoas vis, e assim por diante (EISENSTEIN, 2010, p.19).
43 Retomando a proposição de Eisenstein a seus alunos, como montar isso no teatro? Ele cita cinco diferentes respostas dadas por seus alunos. Em uma delas, Vautrin, tendo se soltado dos polícias, sobe irado em uma mesa (ilustração 1) e esbraveja apontando para todos os outros que ficam ao seu redor olhando para ele. Nas outras quatro respostas diferentes (ilustração 2), Vautrin, se desgarrando da polícia e, ora sobe uma escadaria enquanto grita suas acusações (A), ora pula no fosso da orquestra (B), enquanto o restante fica em um nível acima e nas outras duas respostas (C e D) Vautrin corre para diferentes cantos, afastando-se do grupo (EISENSTEIN, 2010, p.17-8). Eis suas ilustrações conforme presentes em Montagem 1937:
Conforme comentado pelo próprio Eisenstein, nenhuma delas está errada do ponto de vista de um naturalismo : todas as opções são aceitáveis. Entretanto, enquanto esquemas gráficos, elas são expressivamente diferentes. Se olharmos para a ilustração 2 (mostrando as versões A, B, C, D da cena de Vautrin) sem saber do que se trata, uma coisa é absolutamente clara: uma certa unidade é contraposta a uma certa massa (ou grupo de unidades). (...) [Se olharmos para a ilustração 1] Você poder lêla de várias maneiras: como um pai benevolente abençoando seus filhos obedientes, ou como um grupo de pessoas lançando-se contra um criminoso por todos os lados, mas de maneira alguma como um grupo fechado opondo-se a um indivíduo ou vice-versa (EISENSTEIN, 2010, p.20-1).
Essa diferença na disposição dos corpos é o que Eisenstein chama de esquema ou representação gráfica. Para se alcançar expressividade, é necessário que sua estrutura possua também um esquema gráfico de uma leitura metafórica que defina o conteúdo psicológico da cena e da interação entre as personagens (EISENSTEIN, 2010, p. 20). Assim, para ele, entre as possibilidades de atuação deste trecho, a melhor, do ponto de vista da expressividade, é aquela cujo movimento das personagens no palco reforce a oposição entre Vautrin e os outros inquilinos. Essa disposição é o que Eisenstein chama de esquema gráfico: um conteúdo abstrato que por meio de uma apreensão sensorial dos acontecimentos em outras palavras, por meio do pensamento sensorial (pré-lógico) expresse o conteúdo principal da cena, no caso a oposição entre o indivíduo e o grupo.
44 Movimento gráfico no cinema
A passagem desse pensamento do teatro ao cinema, para Eisenstein, passa pela percepção da mudança de planos de uma linguagem em relação à outra: A composição gráfica da composição da tomada é o olho dando um passeio no plano da tela, isto é, a mise-en-scène do olho, transferido do plano horizontal do palco para o plano vertical da tela do cinema (EISENSTEIN, 2010, p.21-2).
Considerando que, no teatro, o gráfico toma forma pela disposição dos corpos no espaço cênico, em outras palavras, no plano horizontal referenciado pelo chão; no cinema, esse espaço de organização é alterado do espaço cênico para a tela, passando do horizontal para o vertical. Essa ênfase na superficialidade da tela implica mudanças na maneira de se pensar a construção e a apreensão dos elementos do quadro. Entretanto, apesar desta nova configuração, o conteúdo gráfico, considerado como o olho dando um passeio , continua relacionado ao pensamento sensorial. Assim, a ideia da fusão de componentes regressivos e progressivos , do pré-lógico e do lógico, mantém-se, mas diferentemente. Esse modo de pensar a construção da imagem será importante na análise da composição gráfica de alguns quadros de Aleksandr Niévski (1938). Para uma maior compreensão dessa abordagem da expressividade gráfica do quadro, segue mais um exemplo dado por Eisenstein, desta vez sobre como enquadrar uma barricada. Eisenstein, assim como na cena de Vautrin, ressalta que ambas as possibilidades são corretas do ponto de vista naturalista, possuindo, em termos figurativos, os mesmos elementos: rua, casas, placa e barricada. Em termos de expressividade, a segunda (ilustração 4) é muito mais intensa. A diferença recai justamente sobre seu conteúdo abstrato: a composição do quadro. Vejamos a seguir sua análise desse exemplo:
45 1. Se tomarmos o plano das casas e o plano da barricada, nós vemos que na ilustração 3 eles estão simplesmente justapostos. Na ilustração 4, o plano da barricada corta o [plano] da parede das casas. 2. Se olharmos para linha da base da barricada, podemos ver que na ilustração 4 [...] essa linha corta a estrada. 3. Se seguirmos a linha da parte superior da barricada na ilustração 4, nós vemos que isso é mostrado como uma linha denteada, que parece evocar as fases de um luta: cada pico do contorno pontiagudo é um ponto de conflito nas mudanças da sorte dos lados opostos. (...) 4. A bandeira corta para o céu em um ângulo caracteristicamente agudo. 5. Por fim, na ilustração 4, o máximo da metáfora é obtido pelo local em que se coloca a placa da loja, com seu pretzel estilizado. Aqui, o que normalmente é visto sobre nós foi trazido para baixo: a placa de pretzel foi colocada no nível do pé da barricada, neste caso não a colocando fisicamente sob a barricada, mas por meios puramente composicionais. A diferença entre esses dois exemplos reside no fato de que no primeiro rascunho a placa da loja não pode ser interpretada de nenhuma outra maneira que não em seu nível naturalista, enquanto o subtexto da placa de pretzel no segundo rascunho é lido não como uma placa derrubada , mas como invertida : aquilo que estava acima agora se encontra abaixo. E somos levados a adotar essa leitura metafórica pelo fato de que a remoção da placa foi feita não fisicamente, mas pela composição, isto é, pelo ponto de vista que o evento é observado (EISENSTEIN, 2010, p. 25-6).
Como é possível notar, esse tipo de leitura, ao pensar a composição do quadro em termos do plano vertical da tela, volta sua atenção às relações entre os planos, entre linhas e planos e as linhas entre si. Outros elementos importantes são o espaço ocupado (superior/inferior, direito/esquerdo) e, conforme veremos adiante, a ocupação compositiva de cada figura no quadro. Todos esses elementos fazem parte desta dimensão abstrata que, propostos em função de um pensamento pré-lógico, articulam-se com a expressão do conteúdo em um nível sensorial. Assim, concomitante à dimensão figurativa do quadro cuja leitura e percepção pertencem ao nível do pensamento lógico Eisenstein preocupa-se em como elaborar sua dimensão abstrata cuja percepção é da ordem do sensorial. Introduzidos alguns parâmetros de análise, vejamos algumas das maneiras que esses elementos podem se apresentar na prática cinematográfica. Para isso, foram selecionados alguns quadros de diferentes momentos do filme Aleksandr Niévski, reunidos em função de determinadas qualidades gráficas. Cada conjunto pretende ressaltar os seguintes esquemas gráficos: o reforço à relação hierárquica (mesmo que temporária) entre as personagens do quadro; evidenciação de elementos figurativos por meio de elementos abstratos e a composição de diferentes planos em um mesmo enquadramento com fins a uma dinamização de sua percepção. Como pode ser observado nas ilustrações 5, 6, 7 e 8, uma relação hierárquica pode ser graficamente enfatizada por meio da composição. Nos exemplos citados, nota-se que a importância de cada personagem é diretamente proporcional ao tamanho e posicionamento de sua figura no quadro. Para além desta relação de tamanho, cuja utilização se assemelha nas quatro ilustrações em questão, outro elemento gráfico, esse diferente em cada um dos exemplos, pode coexistir e reforçar ainda mais tal hierarquia: as linhas arquitetônicas do cenário em relação às personagens. Na ilustração 5, o arco que está no edifício distingue zonas de cor que, graficamente, marca a distinção entre o espaço ocupado por um e por outro, separando-os por meio de planos cromáticos distintos. Na ilustração seguinte (6), aquele mesmo arco, agora em outro enquadramento, pode ser percebido como um elemento que intensifica a verticalidade da relação visual entre as personagens, quase que acompanhando a altura de suas cabeças. Na ilustração 7, pode-se notar que as sombras na parede formam um padrão vertical: as faixas mais escuras recortando as mais claras e elas, por sua vez, reforçando os espaços de cada elemento figurativo do quadro. Na ilustração 8, a relação entre os personagens e a arquitetura não só separa os personagens como intensifica a relação de poder entre o príncipe Aleksandr Niévski e a personagem, como se a composição reforçasse a ideia de Niévski como protetor dela e, por extensão, do povo russo.
46
acima
Aleksandr NiĂŠvski. (EISENSTEIN, 1938, 00:25:41, 00:25:15, 01:43:34 e 01:42:24)
47 Na ilustração 9, o quadro não se restringe mais a dois personagens, tampouco ao elemento gráfico que se dá predominantemente pela arquitetura. Ele pode ser percebido pelo direcionamento de uma linha imaginária formada pelas cabeças dos prisioneiros na parte inferior do quadro e pelas duas fileiras de soldados, uma à esquerda e outra à direita do quadro. Visualizando-as todas ao mesmo tempo, pode-se notar uma composição triangular, cujo cume se direciona ao topo da escada (mais um dos elementos gráficos que direcionam o olhar ). A isso, se soma a arquitetura, que também pode ser vista como propositora de linhas: o arco que se encontra no topo da escada cria uma diferença cromática que desenha um semicírculo sobre os personagens de maneira a aumentar o contraste entre o fundo escuro e as roupas claras dos cavaleiros teutônicos, destacando-os. Assim como no exemplo de Eisenstein sobre como enquadrar expressivamente uma barricada, o conjunto de quadros a seguir procura ressaltar os elementos plano e linha e suas relações mútuas na composição e expressividade do quadro. Considerando que tais noções partem da premissa de uma percepção, espera-se que, visualmente, por meio das ilustrações subsequentes, a diferença entre planos e linhas, apesar de não ser precisa, tampouco necessariamente excludente, se mostre compreensível e relevante. Buscando o caminho mais didático para tal abordagem, as ilustrações a seguir foram subdivididas em três grupos. O primeiro enfocando as relações entre planos, seguido pelas relações entre linhas e, por fim, entre planos e linhas no interior do quadro. Relação entre planos (formas marcadas por cor e/ou textura)
Os dois primeiros quadros (10 e 11), graficamente, têm acentuados certa horizontalidade. Pode-se percebê-las em função da diferença das cores e texturas (visuais) entre a metade inferior e superior do quadro. Na ilustração 10, que enfatiza, por meio de seus esqueletos, um campo de guerra marcado também por irregularidades no relevo do terreno, com uma variedade de altos e baixos; por sua vez, no quadro seguinte, conforme ilustração 11, sua superfície, o limite entre as figuras do céu e do mar, é mais regular. Como nas irregularidades no enquadramento da barricada, no exemplo de Eisenstein, o terreno da guerra possui muito mais desníveis , como uma espécie de representação gráfica das intempéries da guerra enquanto que o quadro referente à paz possui uma composição mais regular, acentuada linearidade da linha do horizonte. Nos exemplos seguintes (ilustrações 12 e 13), o quadro em sua composição, uma predominância vertical. No primeiro deles, a diferença de cor, mais claro do lado esquerdo e mais escuro do lado direito, divide a composição em duas partes (três se considerarmos a parte superior do céu). No quadro seguinte, ilustração 13, a composição possui como elemento não apenas a diferença cromática, mas também de textura. O lado esquerdo, mais escuro, é majoritariamente ocupado por uma massa de corpos; enquanto que o lado direito é predominantemente tomado pelas lanças, que, do ponto de vista gráfico, podem ser percebidas como linhas verticais. Em uma abordagem sensorial, pode-se somar à composição do quadro e à figura das lanças, as tochas de fogo, exacerbando ainda mais isso que chamamos de verticalidade compositiva do quadro. Relação entre linhas
Como pôde ser visto na ilustração 13, linha e plano não são necessariamente excludentes, tais noções têm sua pertinência relacionadas mais a uma maneira de se organizar e propor uma visualidade que uma função classificatória bem definida. Neste sentido, será apresentado, em contraposição ao conjunto de quadros analisados anteriormente, uma abordagem com interesse na expressividade das linhas. Para uma melhor compreensão daquilo que é proposto como linha, contribui a definição de linha para a geometria, segundo a qual uma linha é uma sequência de pontos no espaço. Transpondo tal definição para o campo da visualidade, sua ideia geral vem da
48 Aleksandr Niévski. (EISENSTEIN, 1938, 00:23:00, 00:02:51, 00:04:20, 00:12:01 e 00:40:54)
49 presença de figuras semelhantes em uma dada composição, como poderá ser visto nos quadros a seguir. Nas ilustrações 14 e 15, a linha pode ser percebida como fruto da organização dos corpos no quadro. Em um caso, uma linha diagonal formada pelos corpos caídos, do canto superior esquerdo ao inferior direito e reforçado tanto pela iluminação quanto pelo movimento de câmera em diagonal; e, no outro, tanto pela massa de pessoas que formam a fila quanto pelos outros dois soldados segurando a lança, à direita do quadro. Nas outras duas ilustrações, 16 e 17, as linhas se insinuam em dois aspectos distintos. Primeiro, como visto no caso anterior, pela disposição dos corpos e, segundo, pelos orifícios do capacete. Detendo-se mais em cada um dos quadros, pode-se perceber que vários elementos se reforçam em função de uma determinada organização. No primeiro deles (16), o buraco por onde o soldado vê tem o formato de uma cruz. Essa forma replica-se nas bandeiras na ponta das lanças, na parte superior do quadro, e também pode ser considerada como manifestação da teoria da montagem, decomposta sob a forma da horizontalidade da fila de capacetes e pela verticalidade das lanças. Na ilustração 17, semelhante concisão plástica também pode ser considerada. Os orifícios para visão, neste outro tipo de capacete, reproduzem-se na disposição das fileiras dos corpos dos soldados: os três soldados à esquerda do quadro compondo uma linha oblíqua e os outros, à direita do quadro, uma segunda linha. Tal redundância, na teoria da montagem eisensteiniana, é fundamental para a agudez da provocação da dimensão pré-lógica no espectador, que, apesar de tais elementos não passarem necessariamente pelo filtro da lógica racional, sua expressividade age em camadas latentes da percepção do espectador. Nos casos vistos até aqui, a percepção das linhas se manifestava, principalmente, por elementos figurativos da composição, nos exemplos a seguir, ilustrações 18 e 19, correspondentes a um mesmo plano de filmagem, tanto as linhas quanto a colisão entre elas, se dá pelo movimento das espadas. Decompondo o quadro em camadas, podem-se distinguir três delas: uma primeira englobando as espadas, uma segunda com Niévski e a terceira como sendo o céu. Os movimentos expressivos da combatividade do cavaleiro são expressos pelos movimentos lineares de sua espada que alternam diagonais em uma e em outra direção. Traçando linhas imaginárias a partir do movimento das espadas na camada intermediária, temos sua intensificação pelas linhas expressivas das outras espadas na primeira camada. Relações entre linhas e planos
Tendo analisado alguns quadros do ponto de vista do plano (cores e texturas) e outros da linha (linearidade de elementos figurados e movimentos), examinemos agora alguns planos em que ambos os elementos gráficos permeiam intensamente sua composição. Na ilustração 20, a composição pode, em um primeiro momento, ser subdividida verticalmente: predominando, do lado esquerdo, o edifício e as fileiras de soldados teutônicos e prisioneiros; e, do lado direito, pelo cavaleiro teutônico sem capacete mais a fogueira. Examinando isoladamente um lado e outro, o primeiro deles também pode ser decomposto horizontalmente, de cima para baixo, pela linha de prisioneiros, pela de soldados e pelo edifício, reiterando-se aí uma relação vertical de poder com os soldados sobre os prisioneiros. Do lado direito, pode-se ressaltar o contraste cromático produzido entre a cor escura da fumaça e a cor clara do alemão. Voltando para uma apreensão geral do quadro, também neste caso, a sobreposição de elementos reforça tanto uma horizontalidade quanto uma verticalidade (incluindo-se, neste caso, o movimento ascendente do fogo e da fumaça). No quadro seguinte, há o predomínio da verticalidade. Niévski, após a vitória sobre os germânicos, discursa sobre a importância da união entre os russos para repelir qualquer invasão. Neste discurso ostensivo e belicoso, os elementos gráficos corroboram seu
51 conteúdo verbal pela ênfase com que as linhas arquitetônicas dos prédios isolam e destacam o príncipe e pela verticalidade com que se apresentam tanto a personagem, quanto o edifício e as lanças, figurativamente também compondo a dimensão bélica da imagem. Expressividade e montagem em Eisenstein
Conforme pontuado no decorrer do texto, esse artigo deteve-se em uma das dimensões da concepção de montagem legada por Eisenstein. Tomando sua teoria da montagem como eixo geral das discussões, as análises aqui apresentadas investigaram de que maneira as ideias de conflito e sobreposição de elementos distintos na provocação de um terceiro sentido podem servir também para se pensar a composição do quadro. Esse movimento envolve uma apreensão complexa do conceito de imagem que passa por diferentes maneiras de organização (lógica e pré-lógica). Dessa maneira, apesar do risco das análises dos quadros encaminharem na direção da ilustração de uma teoria, optou-se por buscar, em realizações específicas, subsídios para se aproximar de um pensamento alargado sobre a imagem. Sem a intenção de encaminhar conclusões ou cercear o conceito de imagem, o artigo vincula-se a uma investigação em processo sobre tal conceito no corpo teórico de Eisenstein. A dificuldade de sua circunscrição é intensificada pelo marcante interesse do cineasta em integrar diferentes aspectos das mais variadas dimensões que compõem o campo artístico. Como manifestação disso, seus textos e suas reflexões abarcam discussões sobre a articulação entre teoria e prática; proposição artística e percepção do espectador; agudez de instinto e sabedoria científica; pensamento sensorial (pré-lógico) e racional (lógico); e tantos outros pares que uma tal disposição investigativa, como possuía Eisenstein, esbarra ao se lançar no campo das artes. Essa transcendência de uma dimensão para outra, ao mesmo tempo que dificulta uma compreensão sobre suas contribuições, parece ser fonte abundante de reflexões. Tal interação entre as diferenças pode ser percebida na seguinte citação: Gosto de ver todos os fenômenos como uma espécie de estágio intermediário, uma espécie de hoje , com seu ontem e seu amanhã ; como algo dentro de uma sequência, tendo seus antes e seus depois ; isto é, com seus estágios anteriores e subsequentes (EISENSTEIN, 2010, p.21).
Como reforçado pela citação, apesar das limitações do recorte e da análise aqui desenvolvidas, cada um dos elementos que compõe uma obra estão relacionados com os demais. Assim, essa abordagem, mesmo que reduzida a uma dimensão específica do conceito de imagem que, por sua vez, é apenas um pequeno aspecto de sua produção, tal parcela, por ser atravessada por outras questões contíguas, pode contribuir para a compreensão e disseminação de aspectos mais gerais como, por exemplo, da relação entre o racional e o emocional na teoria de Eisenstein.
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Aleksandr Niévski. (EISENSTEIN, 1938, 01:29:40, 00:36:53, 00:23:59, 00:23:31, 01:06:47, 01:06:48, 00:23:59 e 01:40:30)
52 Bibliografia EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002a. Título original em inglês: Film form. _________________. O sentido do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002b. Título original em inglês: Film sense. _________________.Reflexões de um cineasta. Trad. Gustavo A. Doria. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969. [Tradução da edição em língua francesa publicada em 1958 por Editions du progrès,de Moscou] __________________. Towards a theory of montage. Trad. Michael Glenny. Nova Iorque: I.B. Tauris, 2010. [Selected Works Volume 2] IVÁNOV, Viatcheslav. Dos diários de Serguei Eisenstein e outros ensaios. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Noé Silva. São Paulo: Edusp, 2009.
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No apartamento de Serguei Neide Jallageas
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Notas sobre Fábrica do Ator Excêntrico (FEKS) Tieza Tissi Em comunicação intitulada O excêntrico e o trágico, Naum Kleiman, crítico russo e historiador de cinema, fala sobre a ligação de artistas da escola trágica russa de cinema com as práticas da FEKS, e do trabalho de Eisenstein no teatro e em seus filmes da década de vinte. Kleiman refere-se, especialmente, a Eisenstein e ao ator Nikolai Konstantínovitch Tcherkássov, que viveria a personagem de Ivan, em Ivan - o Terrível, último filme de Eisenstein. Uma das principais questões levantadas por Kleiman relaciona-se com a origem excêntrica da linguagem de artistas que, posteriormente, figurariam na escola trágica russa de cinema. A Fábrica do Ator Excêntrico [Fabrika ekstsentrítcheskaia aktiora] (FEKS), por onde passaram Eisenstein e Tcherkássov, foi um dos mais importantes grupos da vanguarda teatral e cinematográfica soviética. Criada por um grupo de Petrogrado (atual São Petersburgo), em 1921, a Fábrica lançaria seu Manifesto do Excentrismo no ano seguinte, com as assinaturas dos cineastas Grígori Kozíntsev, Gueorgui Krizik, Leonid Trauberg e Serguei Yutkévitch. Em seu manisfesto, a FEKS se declara apoiada sobre os pilares da exaltação da velocidade, glorificação da tecnologia moderna, estética do circo e do musichall tomados do futurismo italiano de Marinetti - e sobre o pilar do americanismo. No início do manifesto, ainda não traduzido para o português, os autores lançam quatro pontos importantes para a construção estético-ideológica do grupo:
LANCEMOS QUATRO ASSOBIOS 1. ao ator: da emoção à máquina, do sofrimento interior ao truque. Técnica-circo. Psicologia-patas para cima 2. ao diretor: a máxima imaginação, o Record de inventiva, a turbina dos ritmos 3. ao dramaturgo: caçador de truques 4. ao cenógrafo: cenografia correndo e trincando (...) (1)
87 (1) KOZINTSEV; KRIZICKY; TRAUBERG; YUTKEVITCH. Manifesto del excentrismo. In: RAPISARDA, Giusi (org.). Cine y vanguardia en la Unión Soviética: La fábrica Del Actor Excéntrico (FEKS). Barcelona: Editorial Gustavo Gili, S.A., 1978.
(2) Shklóvski desenvolverá essa ideia sob o conceito de
Na base da ideologia excêntrica, de acordo com a leitura de Rapisarda, editora do manifesto da FEKS, em tradução para o italiano, está a ideia da libertação pela técnica que, no cinema, se verá obrigada a converter-se em, acima de tudo, uma linguagem atenta ao seu próprio procedimento. O teatro sofrerá um deslocamento em relação ao teatro realista e naturalista que vinha se repetindo na Rússia desde a virada do século com as descobertas do Teatro de Arte de Moscou, sob direção de Konstantin Stanislávski e NemiróvitchDântchenko. Para o ator excêntrico, não importam o encadeamento de ações e nem o fluxo interno da personagem, procedimentos tão caros aos stanislavskianos. Elementos antes alheios ao teatro ganharão importância na cena, como as projeções cinematográficas, os jogos de azar e as técnicascircenses, num esforço conjunto para provocar no espectador não a ilusão da vida, mas a desautomatização da percepção. À maneira do estranhamento, estudado por Shklóvski, o cineasta Vladímir Nedobrovo discorre sobre tal preocupação nos trabalhos da FEKS: Nós já não enxergamos as coisas que habitualmente nos rodeiam. Como perdemos a faculdade de pensar, executamos nossos gestos habituais inconscientemente. A visão repetida de um objeto em um contexto determinado automatiza tal visão. (...) Para ver as coisas é preciso extraí-las do processo de automatização. Começaremos a ver um objeto de maneira nova, se o colocarmos em uma relação insólita com os demais objetos.(2) (NEDOBROVO, op. cit., p.88)
estranhamento – ver CHKLOVSKI, Viktor. A arte como procedimento. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (org.). Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1973. (3) Proletkult é a contração de Proletárskaia Kultura, que pode ser traduzido como Cultura Proletária. Após a Revolução de 1917, foram criados alguns comitês locais para a cultura, sempre com o nome Proletkult. (4) EISENSTEIN, 1983, p. 191. (5) OLIVEIRA, 2008, p. 6.
Tendo abandonado o curso de engenharia, Eisenstein, em 1920, entra como cenógrafo no Proletkult (3) de Moscou. Em 1923, monta como encenador sua célebre versão para o texto de Ostróvski, sob o nome O sábio, no Proletkult de Moscou. Em sua teoria da Montagem de Atrações, experimentada no teatro com a mencionada encenação, Eisenstein reitera o desejo de libertar o teatro do jugo da figuração ilusionista e da representação (4), em clara alusão ao legado naturalista do Teatro de Arte de Moscou. Desde 1921, Eisenstein tornara-se aluno do ator e diretor teatral Vsevolod Meyerhold nos Laboratórios Estaduais Superiores de Teatro (GVYTM) (5). A desautomatização e a libertação do jugo da figuração ilusionista já vinham sendo trabalhadas por Meyerhold desde sua ruptura com o Teatro de Arte de Moscou. A elaboração da biomecânica como procedimento de trabalho com o ator, um dos pilares do trabalho do diretor, rompia com a possibilidade da construção realista ou naturalista da personagem por parte dos atores. Na FEKS, o trabalho do ator deveria ser detalhadamente conduzido pelo diretor, em pleno acordo com o roteiro dos filmes. O ritmo dos movimentos dos atores deveria integrar-se
88 movimentos que o ator deveria propor era previamente estipulada pelo diretor do filme e tais movimentos só poderiam ser concebidos em linha oposta à dos movimentos do homem na vida cotidiana. Nesse sentido, os treinamentos emprestados das técnicas circenses ajudavam a libertar o ator do jugo dos movimentos ordinários. As técnicas que proporcionam maior estilização dos movimentos, sempre caras aos gêneros cômicos, ganhavam soberania e podiam transitar por outros gêneros. Assim, na formação da cinetragédia russa, encontram-se elementos da criação do trabalho do ator ligados às praticas cômicas e circenses, tão caros à produção da FEKS. Sobre a orquestração desses elementos considerados excêntricos no trabalho do ator em roteiros trágicos (como Ivan, o Terrível, de Eisenstein) Kleiman falará na conferência que se segue.
Referências bibliográficas EISENSTEIN, Serguei. Montagem de atrações. In: XAVIER, Ismail (ORG.) A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal: Embrafilme, 1983. KOZINTSEV; KRIZICKY; TRAUBERG; YUTKEVITCH. Manifesto del excentrismo. In: RAPISARDA, Giusi (org.) Cine y vanguardia en la Unión Soviética: La fábrica Del Actor Excéntrico (FEKS). Barcelona: Editorial Gustavo Gili, S.A., 1978. NEDOBROVO, Vladimir. FEKS: Kozíntsev y Trauberg, 1928. In: RAPISARDA, Giusi (ORG.). Cine y vanguardia em la Unión Soviética: la fábrica del actor excêntrico (FEKS). Barcelona: Editorial Gustavo Gili, S.A., 1978. OLIVEIRA, Vanessa T. de. Eisenstein ultrateatral: movimento expressivo e montagem de atrações na teoria do espetáculo de Serguei Eisenstein. São Paulo: Perspectiva, 2008. RAPISARDA, Giusi (ORG.). Cine y vanguardia em la Unión Soviética: la fábrica del actor excêntrico (FEKS). Barcelona: Editorial Gustavo Gili, S.A., 1978.
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O excêntrico e o trágico
Comunicação para a conferência internacional FEKS e excentrismo , Moscou, dezembro de 1989.
Naum Kleiman traduzido por Elena Vasilevich e Tieza Tissi
(1) A Fábrica do Ator Excêntrico [FEKS, Fábrika Eksentriceskovo aktiora] foi fundada em 1921 por Grigori Kôzintsiev (1905-1973) e Leonid Trauberg (19021990), e se manteve ativa até 1931, sendo um dos grandes importantes movimentos das vanguardas russas no campo do teatro e do cinema (N. da E.). (2) O autor refere-se à esposa de Nikolai Tcherkássov (1903-1966), ator russo que, dentre outros trabalhos, desempenhou o papel do Tsar Ivan, no filme de Eiseinstein, Ivan, o Terrível [Ivan Grozni] (1944-1945) (N. da E.). (3) Kleiman cita seu companheiro de trabalho, o historiador de cinema russo Leonid Konstantínovitch Kozlóv (1933-2006) (N. da E.).
Há um certo paradoxo na compreensão de excentrismo ; um paradoxo que se revela claramente na arte de todo o século XX, em particular nas práticas da FEKS (1) e de Eisenstein - sobre o qual, naturalmente, não posso deixar de falar (não poderia deixar escapar). Sobre a questão do paradoxo, eu poderia, aqui, apenas resvalar o assunto, que carece ser examinado em detalhes. Alguns anos atrás, Nina Nikoláievna Tcherkássova (2) convidou L. K. Kozlóv (3) e eu a participarmos da coletânea dedicada a Nikolai Konstantínovitch Tcherkássov, que fora editada pela então VTO atual União de Artistas do Teatro (4). Examinando a eventual publicação dos materiais literários e plásticos sobre o trabalho conjunto de Eisenstein e Tcherkássov, nós, primeiramente, levantamos uma questão: como é estranho que Tcherkássov, que começou seu caminho na arte como um destacado ator de expressão cômica (certamente a maioria dos presentes assistiu ao número cômico Pat-Patachom e Charlie Chaplin (5), em que Pat é representado por Tcherkássov), como é estranho que, justamente esse excêntrico, tenha posteriormente atuado em papéis trágicos como Ivan, o Terrível, de Eisenstein e Dom Quixote (6), de Kôzintsiev. Por outro lado, no início dos anos 20, quem poderia supor que os autores de O matrimônio (7) (e eu tenho em vista O matrimônio, de Kôzintsiev e de L. Trauberg) ou de Na vsiakovo mudretsa dovol'no prostoty (8) (e eu tenho em mente não a peça de Ostróvski, mas a encenação de S. Eisenstein) se transformariam depois em autores de cinetragédia, que a escola trágica russa de cinema, mais precisamente Ivan, o
91 (4) Em 1992, A Sociedade Teatral Pan-russa [VTO Vsierossískoe Teatralnoe obshéstvo], após a dissolução da União Soviética, passou a chamar-se União Teatral da Federação Russa [STDRF Soiuz teatralnikh deiatielei Rossískoi Federatsi], ou simplesmente União de Artistas do Teatro [N. da E.]. (5) Essa peça ficou em cartaz de 1926 a 1929, no Svobódni Teatr em Leningrado (N. da E.). (6) Don Kikhot foi finalizado em 1957 (N. da E.). (7) Baseado no texto dramático homônimo de Nikolai Gógol (1809-1852), escrito entre 1833 e 1835. Kôzintsiev e Trauberg montaram O Matrimônio [Женитьба] na FEKS, em 1922. (N. das T.) (8) Texto do dramaturgo russo Nikolai Aleksêievitch Ostróvski (1823-1886), cujo título foi traduzido do inglês por Todo sabichão tem um pouco de tolo. A tradução de Vinicius Dantas consta no artigo Montagem de atrações, de S. Eisenstein, publicado em coletânea organizada por Ismail Xavier [XAVIER, I. (org.) A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal: Embrafilme, 1983]. A encenação de Eisenstein, em 1923, baseada na peça de Ostróvski levaria o nome O sábio [Mudriets]. (N. das T.) (9) Hamlet (Gamlet, 1964) e Rei Lear (Korol Lir, 1970) foram os dois últimos filmes de Kôzintsiev (N. da E.). (10) Kómos é a raiz grega da palavra comédia. (N. da E.) (11) A excentríada pode se tratar, no caso, de jogos teatrais ou circenses estruturados a partir de recursos excêntricos. (N das T.)
terrível, Dom Quixote, Hamlet e Rei Lear (9), seriam criados exatamente pelas mesmas pessoas que iniciaram o gênero cômico excêntrico travesso? A formulação tragédia excêntrica nos esclarece um pouco sobre o próprio termo excentrismo , apenas por hábito, pressupõe um elemento cômico. Realmente o excentrismo denotaria kómos (10)? O caso é que a mesma palavra excentrismo significa deslocamento do centro, quando o eixo não passa pelo centro (isso asseguraria o movimento uniforme do círculo e, simultaneamente, asseguraria uma rotação estável, se assim pudermos dizer). O excentrismo cria, como depois de muito tempo escreveria Eisenstein, o desequilíbrio a violação do equilíbrio como condição legítima do movimento. Então, o deslocamento do eixo do centro habitual possibilita o movimento próprio não apenas da arte, como também da realidade. Mas, se o deslocamento do centro é a condição do movimento, isso significa que o excentrismo, na dimensão da história da arte, revelou-se, muitas vezes, em diferentes estilos ou em diferentes fenômenos de caráter expressivo. O mais provável é que a dramaturgia de Shakespeare tenha sido, do mesmo modo, uma excentríada (11), se falarmos do significado amplo da palavra, em relação a algum centro (por exemplo, o teatro medieval - dos milagres, moralidades, farsas), como posteriormente foram excêntricos Púshkin, em relação a Derjávin (13), e Gógol, em relação a Púshkin (12), e a nossa FEKS em relação a algum centro, a respeito do qual nós não podemos nos esquecer, mas que até agora nós não conseguimos definir e que era, penso, atual, em algum tempo - como centro e que, depois, passou a ser visto como condição estática , de movimento equilibrado, pode ser um movimento progressivo constantemente freado. Aparentemente, junto ao deslocamento do centro, os artistas que ousaram definir um novo centro, foram vistos como extravagantes. O mais provável é que a primeira reação aos deslocamentos daquele gênero fosse a compreensão dos deslocamentos como anomalias. Mas, todo o esquema, como dissemos, excentríada americana, é construído sobre o deslocamento do centro, da norma e, ao mesmo tempo em que supõe a afirmação desse centro, enfatiza a existência da norma. Eis a conclusão do paradoxo dos nossos trágicos que começaram como excêntricos. Quando se destaca que o chocante dos jovens feks aponta contra a arte elevada e, depois, se esclarece que nós mesmos lidamos com eles como arte elevada, há, neste paradoxo, uma situação culturológica absolutamente normal. O caso é que, deslocando seu sistema artístico do centro de outrora, os excêntricos atualizam tal centro. Pode-se até mesmo dizer que eles o preservam. É como se uma nova galáxia se formasse e nela houvesse naturalmente dois pontos centro e excentro , como se fossem os antigos velhos e novos centros .
92 (12) Aleksandr Púshkin (1799-1837) (N. da E.). (13) Gavril Románovitch Derjávin (1743-1816) (N. da E.). (14) Trágos é a raiz grega da palavra tragédia. (N. da E.)
(15) (1890-1960) (N. da E.) (16) Literalmente “Rompe-se a ligação do tempo”. (N. das T.) (17) Kleiman salienta se tratar da “então encenação teatral”, já que, posteriormente, em 1964, Kôzintsiev dirigiria o filme Hamlet. (N. das T.)
(18) Filmes realizados por Kôzintsiev e Trauberg (FEKS), respectivamente: O capote (Shinel, 1929); S.V.D. (1927) e Nova Babilônia (Novi Vavilon, 1920) (N. da E.). (19) Uma (Odná, 1931) foi dirigido por Kôzintsiev e Trauberg (N. da E.). (20) Filmes de Serguei Eisenstein, respectivamente: Encouraçado Potiómkin (Bronienossets Potiônkim, 1925) e Outubro (Oktiabr, 1927) (N. da E.).
ao lado
N. K. Tcherkássov ao centro, na personagem de Pat, do espetáculo teatral Pat, Patachon e Charlie Chaplin. (1926-1929)
Parece-me que não deveríamos jamais nos esquecer do gigante aparato cultural , como diziam nos anos 20, dos nossos jovens rebeldes, particularmente Eisenstein e os feks. E sua Gogolíada foi (pois, sob muitos aspectos, Eisensten começou como discípulo de Gógol e, somente depois, atualizou Púshkin para si, reunindo, em seguida, Púshkin e Gógol em um mesmo centro), entre outras coisas, a legitimação genealógica da excentríada: como princípio de arte e estilístico simultaneamente de trágos (14) e kómos. Pode ser que a particularidade da arte do século XX seja o aguçamento dos componentes trágicos do excentrismo. Lembremos a famosa expressão de Hamlet com a qual se debateu Boris Leonídovitch Pasternak (15), em sua tradução. Tradicionalmente na cultura russa fixou-se a tradução Porvalas' sviaz' vremion. (16) Mas em Shakespeare não havia isso e Pasternak, depois de longo tormento, na tradução para a então encenação teatral de Grigóri Mikhailóvitch Kôzintsiev (17), descobriu a magnífica fórmula: Viek vyvikhnul sustav - O século luxou a articulação . O século que luxou a articulação seria a marcha do tempo que se tornou excêntrica pela força dessa situação dolorosa, de choque a tragédia do século XX em muitos de seus aspectos. A aproximação do fenômeno trágico e cômico, intrínseca ao século que luxou a articulação , parece, chama nossa atenção pelas inúmeras predições que estavam no estágio inicial dos nossos inovadores, particularmente os feks. Se refletirmos, O capote, S.V.D. e Nova Babilônia (18) são tragédias históricas; sentimos o fenômeno trágico, talvez até, em Uma (19). Por outro lado A greve, O encouraçado Potiómkin e Outubro (20), se tomarmos o roteiro na versão de dois episódios (e não a de um, que passou para a película), são um determinado gênero de filmes de tragédia. E, por isso, nós precisamos observar o excentrismo da FEKS não apenas do ponto de vista da tradição cômica, da bufonaria, circense, de boulevar e de outras tradições populares nós precisamos compreendê-lo, o tempo todo, também como categoria da cultura elevada. O excentrismo da FEKS pertence à cultura elevada.
93 (21) Iúri Nikoláievitch Tiniánov (1894-1943), escritor russo e teórico da literatura (N. da E.). (22) Arkhaisti i novatori (1929) (N. da E.). (23) Vsiévolod Pudóvkin (1893-1953); Aleksandr Dovjênko (1894-1956); Dziga Viértov (1896-1954); Iákov Protazánov (18811945); Iúli Raizman (19031994); Roman Kármen (1906-1978) (N. da E.). (24) A palavra russa paputchik pode ser traduzida por aliado ou correligionário. (N. das T.) (25) A palavra russa zabliujdaiuchii (no corpo do texto está no plural) pode ser t r a d u z i d a
p o r
desencaminhado, perdido, extraviado. (N. das T.)
Por último, eu me permito recordar a observação de I. N. Tiniánov (21). No livro Arcaístas e inovadores (22) (que excentricamente deveria se chamar Arcaístas: inovadores!), ele fala sobre como nos gêneros baixos amadurecem as descobertas dos gêneros elevados. No território do melodrama de boulevar, do romance de um centavo, surgiu, na realidade, o enriquecimento da arte elevada , se nós ainda quisermos nos ater à terminologia clássica. Os feks, em minha visão, não são de modo algum um caso marginal em nosso cinema, como os compreenderam por tanto tempo. Na ciência cinematográfica acadêmica, supõe-se a existência de uma certa linha geral ou central em que estariam, na visão de uns Eisenstein, Pudóvkin, Dovjênko, Viértov e, na visão de outros Protazánov, Raizman,Por último, eu me permito recordar a observação de I. N. Tiniánov (21). No livro Arcaístas e inovadores (22) (que excentricamente deveria se chamar Arcaístas: inovadores!), ele fala sobre como nos gêneros baixos amadurecem as descobertas dos gêneros elevados. No território do melodrama de boulevar, do romance de um centavo, surgiu, na realidade, o enriquecimento da arte elevada , se nós ainda quisermos nos ater à terminologia clássica. Os feks, em minha visão, não são de modo algum um caso marginal em nosso cinema, como os compreenderam por tanto tempo. Na ciência cinematográfica acadêmica, supõe-se a existência de uma certa linha geral ou central em que estariam, na visão de uns Eisenstein, Pudóvkin, Dovjênko, Guerássimov e Kármen (23); e, ao lado, perto, mas mantendo certa distância os poputchiki (24) e os zablujdaiuchieisia (25). A mim parece que os feks moviam-se pela via principal da arte cinematográfica, assim como Kuleshóv, Medvedkin e muitos outros. E essa via principal, frequentemente, passa pela dualidade do cômico e do trágico do excentrismo.
ao lado
Cartazes dos filmes produzidos pela FEKS. (década de 20)
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INTERSECÇÕES
This essay discusses Eisenstein's intelectual cinema
Este ensaio discute o cinema intelectual de Eisenstein a
from the cognitive role of montage in the generation of
partir do papel cognitivo da montagem na geração do
the sensorial thinking. For this, image is taken as a
pensamento sensorial. Para isso, toma a imagem como
cinematic sign where audiovisual and kinetic semiosis
signo cinemático em que as semioses audiovisuais e
set up resonant frames which are responsible for the
cinéticas constroem tramas ressonantes responsáveis
plastic dimension of cinema. The analytical course was
pela dimensão plástica do cinema. O percurso analítico
performed according to the film Alexandre Nevsky.
foi realizado com base no filme Aleksandr Niévski.
Plasticidade de tramas ressonantes no espaço cinemático: o exemplo de Aleksandr Niévski de Serguei Eisenstein Irene Machado Montagem em signos cinemáticos
Ao discorrer sobre o papel cognitivo da montagem cinematrográfica, Serguei Eisenstein atribui à articulação de planos em diferentes ocorrências internas, bem como na interrelação de sequências fílmicas, o papel de projetar os fenômenos cinemáticos não apenas como trabalho composicional da imagem, mas, sobretudo, como ato de transformação sensorial e mental. Seguindo os passos de um discurso interior (EISENSTEIN, 1983; EIKHENBAUM, 1970, 1972, 1974, 1996; MACHADO, 1999), o papel cognitivo da montagem se realizaria até mesmo como capacidade do raciocínio na elaboração de sínteses dedutivas (EISENSTEIN, 2002, p. 14) a partir das quais premissas gerais de pensamento são submetidas a análises. Por conseguinte, o exercício da montagem se desenvolve como ato de pensamento, discurso interior, consciência que desperta a atenção analítica (GLENNY; TAYLOR, 1991, p. 298) e fixa o eixo construtivo do campo de sentido do filme. Contudo, não se trata de pensamento lógico e sim de pensamento sensorial que emerge dos caminhos tortuosos do discurso interior nutrido pelo movimento de suas formações imagéticas. No entender de Eisenstein, O discurso interior acha-se precisamente no estágio da estrutura imagético-sensorial, não tendo ainda alcançado a formulação lógica de que se reveste, antes de vir à tona. Assim como a lógica obedece a toda uma série de leis de construção, é bastante significativo que o discurso interior, esse pensamento sensorial, também ele esteja sujeito a particularidades estruturais e a leis não menos definidas. Estas são conhecidas e, à luz das considerações aqui tecidas, representam, por assim dizer, uma reserva inesgotável de leis para a construção da forma, cujo estudo e análise são de imensa importância para se dominar os mistérios da técnica e da forma (EISENSTEIN, 1983, p. 224).
Assim, do mesmo modo como o pensamento se elabora por meio dos raciocínios, a montagem se efetiva pelas articulações que emergem quando diferentes esferas da
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99 a percepção sensorial se encontram num vértice de estruturas mentais que se desenvolvem no circuito comunicativo entre o filme e os gestos de realizadores e de espectadores. O entendimento despertado em espectadores. Em ambos os casos, na montagem e no pensamento, o movimento cumpre caminhos e desenham diagramas de entendimento que sustentam os signos cinemáticos. Logo, o movimento não acontece somente na tela de projeção, mas, sobretudo, na tela da mente dos agentes envolvidos. O viés da compreensão que fez da montagem um processo cognitivo cujo método vincula o pensamento à construção da linguagem fílmica coloca pelo menos um problema para a análise semiótica. Ainda que por linguagem fílmica se entenda toda e qualquer elaboração da montagem composicional, sobretudo na articulação de seus elementos visuais (planos, tomadas, sequências), a linguagem do filme não se limita à sintagmática da imagem visual. Para além desse limite, desenvolve-se uma qualificada semiose cinemática envolvendo signos de natureza não visual. Como decorrência, observa-se que aquilo que se consagrou como imagem não se constitui a revelia de signos sonoros, da reverberação acústica, nem dos signos cinéticos e menos ainda dos signos táteis que se encarregam do contato no nível da percepção sensorial e até mesmo mental. Ainda que, do ponto de vista semiótico, possamos entender tal semiose como núcleo gerador das modelizações da linguagem, segundo os procedimentos observados por Iuri Lotman em diferentes sistemas de signos da cultura (LOTMAN, 1978), há muito o que se ponderar quando a análise se volta para o exame da linguagem fílmica fundada no movimento de imagens ou simplesmente da fotogenia (TYNIANOV, 1970). Paradoxalmente, quando S. Eisenstein propõe a montagem como empreendimento cognitivo (EISENSTEIN, 1969), é para as diferentes interações do signo cinemático que ele dirige sua proposição, quer dizer, para a imagem e o movimento em todo o gradiente de sua manifestação semiótica: como plano, tomada, partícula, onda, ritmos e frequências que, evidentemente, implicam tecnologia desde que o pensamento seja uma de suas vertentes. É como tecnologia do pensamento que a montagem desenvolve um método de composição da imagem em processos perceptuais e cognitivos (EISENSTEIN, 1969). Além de ampliar a dimensão sensorial do plano, estendeu o âmbito do movimento excedendo os limites da visualidade. Adentra, por conseguinte, na esfera da reverberação onde som e tato são acolhidos no movimento constituinte da imagem. Integrado à noção de sequência, o signo cinemático se mostra, sobretudo, como operação de simultaneidades. Estamos, assim, diante de uma linguagem audiovisual cuja dinâmica de signos cinemáticos tão diversificados propõe um novo olhar para a semiose da imagem sensorial, aquele que se manifesta pelo viés da estesia para constituir o estatuto cognitivo de pensamento por imagens ou de pensamento signo. Considerando que a estesia é condicionada pela conjugação sensorial do discurso interior, a linguagem audiovisual resulta, igualmente, das configurações diagramáticas em que o discurso interior cumpre um percurso de sentido que se desenvolve entre duas telas: a de projeção e a da mente do espectador. Este é o legado de um processo criativo que tem muito a dizer para o campo da comunicação cinemática que encontrou na montagem bases para os exercícios de práticas culturais amparadas na diversidade dos processos sígnicos como experiências mentais. Ainda que o problema semiótico advindo das formulações e da prática cinematográfica de S. Eisenstein tenha uma repercussão significativa nos estudos de semiótica da cultura, desde as explorações pioneiras de V. Ivánov (IVANOV, 1970, 1979, 1985) não é pretensão deste ensaio traçar um panorama de tais elaborações. Sem perder de vista o dimensionamento do problema formulado, delimitamos para o presente ensaio a análise do campo conceitual em que o signo cinemático pode ser examinado no movimento sensorial da imagem, tanto no nível da composição quanto da percepção cognitiva e no gradiente de suas semioses. Segundo nossa hipótese fundamental, é como movimento que se pode apreender não apenas a plasticidade da imagem como também pensamentos e
100 discursos que dela emergem. Seguindo a concepção de Viktor Shklóvski (SHKLOVSKY, 1994), acolhemos a noção de «movimento semântico» para examinar os trânsitos e traduções em que a imagem reverbera dimensões sígnicas em semioses visuais, sonoras, fônicas, táteis e de pensamento. No limite de tal entendimento, evidencia-se o trabalho da linguagem icônica e dos diagramas sensórios traduzidos sob forma de ideias, pensamentos, conhecimentos. Em se tratando da cinematografia de Eisenstein, observa-se o excêntrico movimento de semiose do próprio signo cinemático quando da passagem do signo icônico para o signo indexical, particularmente quando a montagem é focalizada no jogo fônico-sonoro-acústico da imagem visual. Semioticamente, o movimento semântico ora focaliza a montagem no contexto icônico das sucessões e similaridades, ora desloca o foco para a indexicalidade da contiguidade e simultaneidades. O percurso de nossas inferências será examinado particularmente com base nas realizações que, no filme Aleksandr Niévski (1938), problematizam a montagem semântica que explora o pensamento sensorial ao confrontar sucessão e simultaneidade, signo icônico e signo indexical de modo a evidenciar a plasticidade do espaço cinemático em que a topologia estético-cognitiva constrói a trama sensível das ideias. Topologias do espaço cinemático
A demanda de nosso estudo se coloca em função dos limites conceituais da própria noção de montagem: ao designar uma variedade de procedimentos composicionais no cinema, nas artes e em linguagens, o conceito de montagem distanciouse de sua função topológica como diagrama do pensamento. A insistência de Eisenstein no processo cognitivo, intelectual, analógico e até dedutivo da imagem cinematográfica, certamente, investia contra a restrição de seu método, sobretudo porque é a noção de movimento discursivo que perde o lastro de sua constituição. Se no conceito de montagem se privilegia o processo combinatório de planos e tomadas de modo a compor sequências visuais, a noção de movimento pauta pela justaposição e pela soma no contexto de uma topografia. Se, contudo, no processo de montagem estiverem pressupostas associações transformadoras dos elementos envolvidos, certamente a noção de movimento surge como dispositivo de conexões transversais. Nesse caso, as relações desenvolvem topologias, que V. Shklóvski nos ajuda compreender com sua concepção sobre o movimento semântico: movimento cuja performance se realiza por associações, continuidades e descontinuidades. No que diz respeito ao espaço cinemático, o movimento semântico implica transformação de elementos envolvidos na composição e na interação, em todos os níveis de sua constituição visível e invisível. Cenários, cenas, atuação, gestos; planos, ângulos, texturas, volumes; luz, sombra, som, silêncio; tela, sala, ambiente de projeção física, sensorial e mental cada um a seu modo constitui um traço ativo da composição do espaço em reverberação cinemática. Nesse sentido, é como movimento semântico que podemos examinar muitas das transformações temporais e também de sentido, caso dos diagramas mentais evocados pelas representações icônicas no espaço cinemático. A representação do tempo é um caso à parte. Como dimensão de espaço, o tempo se coloca no centro da compreensão do espaço cinemático. Além de desenvolver possibilidades de realização do movimento semântico, o cinema potencializa simultaneidades de relações temporais, sobretudo porque o plano, antes de ser um constructo da visualidade, evoca uma topologia temporal. Com isso, problematiza uma das indagações recorrentes em diferentes áreas de interesses ao longo do século 20: o jogo do tempo cinemático com diferentes temporalidades, fora, portanto, da grandeza de valor
101 absoluto. Pelo viés desse jogo, as próprias experiências de espaço são dimensionadas topologicamente. Nesse caso, os experimentos de Eisenstein continuam imbatíveis, sobretudo no que tange à força de seu argumento. Ao construir filmes sobre episódios históricos, em períodos de acirrada convulsão geopolítica, que deixaram marcas indeléveis na civilização ocidental, Eisenstein desenvolveu experimentos em que o espaço cinemático transcende os lugares e episódios para redimensionar as relações sensórias da história humana, da visão de mundo, do sistema de pensamento, em que a consciência do espaço joga com as temporalidades das vidas de homens do passado, do presente, do futuro. Tanto em Aleksandr Niévski (1938) quanto em Ivan, o terrível (1945), encontramos uma farta experiência de espaço atravessado por movimentos temporais em jogo com a plasticidade da linguagem que os constrói. Trataremos aqui do experimento fílmico realizado em 1938. Aleksandr Niévski é o exemplo da experiência de construção do espaço cinemático a partir do movimento semântico e do jogo de temporalidades. Por meio da consciência de espaço, Eisenstein constrói um repertório de procedimentos que definiram o caráter icônico da linguagem cinematográfica, bem como da montagem audiovisual como espaço de criação, reflexão e de crítica. Reconhecemos que o filme Aleksandr Niévski despertou o interesse crítico pelo viés de sua plasticidade visual, particularmente os costumes, e as oposições cromáticas das cenas (BAUDRY, 1971, p. 39). Contudo, a plasticidade que alcançamos pelo viés da constituição do espaço de ressonância temporal compõe uma trama de relações sensoriais que não se limitam ao lugar como continente de coisas. Trata-se de uma plasticidade cujos signos não são evidência da visualidade, mas simplesmente meios (media) expressivos e, enquanto tais, são tão mais potentes quanto menos são notados. Como sustentara o próprio Eisenstein, boa num filme é a música que não se percebe, a fotografia que não prende a atenção e a mise en scène que não se nota (EISENSTEIN, 1969, p. 138). Afinal, o meio em sua expressão atua numa esfera que inclui percepção e cognição a partir de seus efeitos e estes, do ponto de vista semiótico, manifestam-se por índices e contiguidades e não por referências de similaridades. Logo, é pelos efeitos que alcançaremos a plasticidade dos meios expressivos no filme Aleksandr Niévski. Adentrar no espaço cinemático deste filme exige que coloquemos os ouvidos no lugar dos olhos, como conclamava Marshal McLuhan em seu modo de ver a cultura acústica que a era elétrica revertia para o domínio da cultura visual. Eisenstein viveu momentos efusivos dessas culturas. Trama acústica do pensamento presente em tela
Produzido entre os anos de 1937-8, às vésperas da segunda guerra mundial, Aleksandr Niévski é um filme histórico que relata as conquistas de um príncipe glorioso, num tempo de disputas pela terra de um longínquo passado medieval, a partir do ano de 1223. A composição cinematográfica desse passado constrói um delicado movimento de entrelaçamento do presente e de presenças alinhadas com um devir. Não porque reconstrói as cenas do passado, mas porque as torna presente na tela branca da projeção sonora que olha para o futuro. A história da cultura já acumulou muitos exemplos que mostram que não existe nada mais envolvente na vinculação da vida coletiva do que o som pleno de presente. E é pelo arranjo fônico-sonoro-acústico do filme Aleksandr Niévski que vamos acompanhar a constituição plástica do movimento semântico no jogo de suas temporalidades. Seguiremos uma das pistas mais valiosas que o cineasta formula teoricamente a respeito da modelização dos gestos fônicos da voz na composição dos diagramas
102 entoativos de planos e sequências. A partir da modelização, se desenvolvem as tramas acústicas provenientes de gestos sonoros advindos das conversas e dos objetos aliados às canções e à música, todos engajados na composição das estruturas e dos padrões audiovisuais do signo cinemático. Nas palavras do próprio Eisenstein, ...o Homem e as relações entre seus gestos e entonações da voz, que surgem das mesmas emoções, são nossos modelos para determinar estruturas audiovisuais, que se desenvolvem de um modo exatamente idêntico ao da imagem dominante (EISENSTEIN, 2002, p. 52).
Entendida como princípio construtivo do movimento discursivo das sequências, a modelização permite alcançar a base das interações de uma cultura com fortes dominantes de oralidade. Nesse caso, observa-se que o filme é basicamente construção de um cenário em espaço público: ações privadas, discursos e atos políticos se desenrolam pelas ruas e praças de cidade medievais, tendo Novgórod como centro dos episódios. Cenas de trabalho no mar e no campo ajudam a compor o cenário narrativo da vida pública marcada pela variedade de vozes e ruídos que preenchem os espaços das ruas, fazendo coro com as juras de amor, promessas, injúrias, lamentos, disputas, proclamações, planos e projetos são anunciados em alto e bom som para todos aqueles que desejam ouvir, dentro e fora da tela. Este é um alinhamento sonoro que no nível acústico constrói o movimento acústico como trama de entoações. Se, por um lado, a narrativa histórica não deixa dúvidas sobre os extremos de coragem do povo disposto a combater para atacar todos aqueles que porventura cobicem fracionar suas terras e saquear os frutos de seu solo, por outro, o que flui pela tela é um passado traduzido em presente cujas vozes não abafam o alinhamento de um outro nível de entoação: aquele que emana como discurso interior ativo e responsivo. Para isso muito contribui a trama sonora do espaço acústico das cenas, que não se limita ao acompanhamento musical, mas explora os contrastes e matizes das entonações acústicas de vozes, ambientes, instrumentos musicais, objetos cênicos. Além de pessoas falando e emitindo ruídos no deslocamento pelas ruas, destacam-se os sons de objetos da cena: as vestes forjadas em ferro de proteção, as lanças em luta, o sino. Acrescente-se, ainda, o canto dos trabalhadores e guerreiros pontuado pela música que segue os compassos dos movimentos. Do ponto de vista da trama sonoro-acústica, não são os grandes feitos do passado, mas o pensamento presente sobre forças de luta que ganham o espaço de projeção na tela e na mente. Como olhar para este espaço e não ouvir a confusão sonora de conversas, gritos, música e toda uma galeria de ruídos que fazem dessa inaudita liberdade de vozes a paisagem sonora de uma cultura cujo traço fundamental é o riso popular? (BAKHTIN, 1987). A narrativa histórica entrelaçada com as imagens da vida social e cultural projeta o sentimento de presença do espaço do qual nenhum espectador pode escapar. Afinal de contas, vivemos na história, ainda que não naquela temporalidade. É neste espaço de presença que se destaca a performance sonora construída pelas entoações de um sino que disputa com as pessoas seu lugar no espaço público. Instalado no nível do solo e amparado por duas estacas e um telhado de madeira, o sino de que falamos parece estar fora de lugar, sobretudo se focalizado no conjunto da cena e da sequência (Figura 1). Em vez de ocupar seu lugar no alto da torre da igreja, próximo do céu, o sino desceu ao solo, passando a conviver com os homens no espaço terrestre, adquirindo uma perspectiva mundana e assumindo tarefas que vão muito mais longe do que simplesmente chamar os fiéis para os atos religiosos. Ao alcance das mãos de quem passa, suas badaladas acenam e convidam para a participação daquilo que ocorre na vida pública. A cena retratada na figura 1 articula as ações em que se anunciam os episódios de luta pelo espaço geopolítico no continente euro-asiático. Ante as ameaças de invasão das
103 terras russas pelos alemães, a população recebe a notícia do ataque eminente dos alemães. Mesmo sabendo que Pskov já havia sido tomada, Novgórod resiste a convocar o príncipe Aleksandr Niévski e de se submeter a seu comando. O sino é o principal porta-voz desse chamamento; ele fala ao ouvido de cada um em tempo presente ao mesmo tempo em que mantém vivo o sentimento de comunidade no espaço público.
ao lado
Aleksandr Niévski. (EISENSTEIN, 1938, 00:40:40)
Contrapõe badaladas pungentes ao movimento ruidoso de homens armados que, com suas lanças, mostram-se prontos para sair para a guerra e defender a terra pátria. Nesse caso, as badaladas lançam suas bênçãos aos guerreiros que partem para as cruzadas. O sino não apenas ocupa o espaço terreno como também induz as ações que correm na exterioridade do templo. Na verdade, o sino conversa com os homens e contracena com seus discursos, como veremos mais adiante. Também ressoa como contraponto aos cantos entoados na marcha que leva os cruzados para a guerra e os recebe de volta. Ao pontuar as cenas com diferentes tons, de um simples chamado a um grito de guerra, as badaladas ressoam tal como os tambores falantes (talking drums) em culturas acústicas do berço das civilizações africanas e das nações indígenas. Assim como o tambor que com suas batidas entoam gritos para serem ouvidos a grandes distâncias, o sino igualmente chama os camponeses e os pescadores para a composição do exército de guerra, tornando-se um dos aliados fundamentais para a articulação dos contrastes de entonações. Se no início segue o compasso da entoação que suplica, no final glorioso, entoa badaladas frenéticas de celebração eufórica. O tecido sonoro-acústico que vai sendo tramado ao longo do filme confecciona uma topologia acústica em que, mais importante do que as coisas visíveis, são as associações que extrapolam o plano da visualidade para compor a dimensão relacional.
104 Ainda que a luz componha o cenário icônico da representação, é o som que indexicaliza a noção de presente fluido, contínuo, em expansão. Diferentemente do signo icônico, o signo indexical não guarda semelhança com seu objeto, o que denuncia sua possível falta de conteúdo referencial (DOANE, 2002, p. 16). No entanto, aquilo que parece denunciar uma ausência a falta do referente e de visibilidade acaba revelando uma virtude: a possibilidade de arregimentar o campo sensorial pelo qual o pensamento toma forma. O sino cumpre um papel especial nesse sentido. Com suas badaladas, lança sua voz que clama para ser ouvida e respondida pela escuta de ouvidos atentos. Nada aqui é automático: as realizações estão imersas num espaço de relações encadeadas. Tão logo sejam ouvidas, as badaladas impulsionam o movimento e as pessoas se deslocam para o espaço público. Ainda que a performance sonora não seja visível, o movimento é pautado por ela. O sino é visível, o som não; o movimento é visível, o efeito que o impulsiona, não. Efeito que o pensamento traduz em discurso interior por meio das formas fílmicas com as quais interage. Esses são os gestos da indexicalidade que constrói a trama presente do sino que chama, ainda que não fale linguisticamente; que entoa, ainda que não cante seguindo uma notação gráfica, o que não o impede de modular o ritmo da cantata em cuja partitura nascem os movimentos projetados na tela visível, do que trataremos em outro momento. É este som que nos convida a integrar o cenário com a escuta de nossos ouvidos e a composição de relações em nossas mentes. É pelo viés da indexicalidade que ganha destaque o colorido da cena marcada pela força dos contrastes que compõem a plasticidade dessa trama ressonante. Tanto a luz que compõe as tonalidades que jogam com o preto, o branco e o cinza, quanto a movimentação de corpos, de vozes, música e ruídos preenchem o espaço com movimentos de corpos e mentes em contato. Assim mergulhamos na imagem que o signo cinemático constrói nas tramas da linguagem audiovisual. Trabalho dos signos no jogo do movimento icônico e indexical
Da mesma forma como o sino organiza as relações de presença no espaço público da cena, o canto, a música, os diálogos, as discussões na praça pública, a movimentação dos homens e a preparação para a guerra escolha de armas e de vestes imprimem no filme a composição de um modelo de ação dramática que na tela produz um efeito muito mais próximo da performance operística do que dos encadeamentos de um filme narrativo. Ainda que não seja um filme cantado, desde as primeiras cenas, as ações são pontuadas pelo canto. Na sequência inicial (EISENSTEIN, 1938, 00:03:34), encontramos Aleksandr imóvel cercado pelas águas do lago Pleshtshéievo e pelos pescadores que puxam a rede. Na areia, os artesãos constroem barcos. O conjunto da sequência é orquestrado por um canto coral entoado por vozes masculinas. Trata-se da canção Canções de louvor a Niévski , que narra a vitória dos russos sobre os invasores suecos. Canto suave, propício para a atração dos peixes. Na cena escura, embalada pelo vento e pelo canto, surge um contraponto com a entrada dos tártaros que, montados em seus cavalos e realizando trotes ruidosos, tomam de assalto os trabalhadores da construção das embarcações, ameaçando e espancando com açoites e gritos. O confronto cessa com o comando incisivo da voz barítona de Aleksandr que o vento sopra do lago: Para que a gritaria? Assim vocês atrapalham o peixe! (EISENSTEIN, 1938, 00:06:07). Mais do que uma rede de pesca, a rede remete a um espaço de ação e de pensamentos. Enquanto Pskov é subjugada pelos alemães, Novgórod se mantém altiva, mesmo ameaçada, Aleksandr se recolhe na única cena do filme que acontece num aposento interno. O príncipe está em Pereslavl mergulhado em seu pensamento, acompanhando o trabalho dos artesãos na construção de redes. Quando os homens se
105 retiram, Aleksandr levanta de seu leito e afirma: É mais fácil vencer os suecos : uma fala em voz alta que continua seu pensamento e o leva ao gesto impulsivo que rasga a rede e revela a fragilidade de sua trama, não só da rede como muito provavelmente de seu plano bélico. Na sequência, recebe os mensageiros com o pedido de Novgórod para que ele assuma o comando e os salve dos alemães. O porte do corpo e o tom da voz se transformam e Aleksandr se prepara para o ataque. Uma outra rede começa a se enredar: os camponeses e marujos que, vindos de toda a parte, se engajam no exército (figura 2). Legiões de homens se erguem da terra, como árvores que brotam, se levantam e caminham em direção à luz. Novamente o canto coral, intercalando vozes femininas e masculinas, entoa Avante, gente russa / Lutai até a morte . Durante sua marcha, alguns camponeses entoam versos da canção. Observa-se que o canto coral imprime o ritmo da narrativa no processo de transformação do cenário de trabalho para o cenário da guerra. No intervalo, temos a preparação: é aqui que se articula um gesto de pensamento delineado pela passagem do signo icônico para o indexical, sobretudo do ponto de vista da intensificação do ritmo. Não se trata de uma marcha que prepara a luta, mas de um movimento a um outro espaço cinemático de presença, aquele marcado pela conjugação de corpos, de soldados armados com suas lanças. Pergunta-se, então, a qual voz de comando atenderam prontamente a legião de camponeses? Evidentemente que é a voz do príncipe: o clamor de Aleksandr ganhou o espaço e reverberou pela região e o discurso impulsionou a ação. E este é o índice do movimento de reverberação acústica que não se manifesta senão quando se sobrepõe ao espaço cinemático da reverberação sonora do ambiente medieval, a mesma que faz ressoar o tambor entre comunidades que não dispõem de nenhum outro veículo de transmissão senão aquele que nasce no corpo. E este é mais um movimento que não se manifesta no plano icônico, mas sim na esfera indexical: ninguém vê nem escuta o chamado, mas apenas o seu efeito nos corpos em marcha.
Aleksandr Niévski. (EISENSTEIN, 1938, 00:36:53)
106 Já em Novgórod, Aleksandr se vê diante de opositores, mas se dirige a ela com firmeza. Sua fala enérgica é enredada aos toques firmes do sino e ambos constroem uma entoação contrapontística de clamor.
Os mongóis dominam do Volga a Novgórod. Os alemães vêm do ocidente. A Rússia está entre dois fogos. Ficaste só tu, grande cidade de Novgórod! Levanta-te pela pátria Levanta-se pelas outras cidades russas: Kiev, Vladímir, Riazam Pelos campos, florestas e rios natais Pelo nosso grande povo! Novgórod Conduz os exércitos de Novgórod Sino Conduze-os Príncipe! Sino Conduze-os, conduze-os Sino
Nessa fala, o sino reverencia o discurso no ritmo das badaladas. Terminada a resistência, Aleksandr é aclamado. Todos com lanças e tochas acesas celebram a decisão e a partida. Segue-se a cena de preparação propriamente dita: escolha das vestes e das armas. Sabemos que o ambiente acústico não envolve somente a emissão sonora, mas, sobretudo, o tato e o contato de corpos. Na medida em que o som é fato cinematográfico, a noção de montagem se estende com a mesma propriedade ao objeto acústico; não se limita, pois, apenas à tomada ou ao plano visual; conjuga, igualmente, diferentes planos sonoros. A noção de uma montagem audiovisual que traduz em ritmo de movimento e de som resulta com uma prática da criação estética que remonta às formulações do construtivismo que teve em Roman Jakobson uma grande força de sistematização teórica. Por esta época, Jakobson já observara com toda propriedade que, o cinema sonoro a realidade óptica e a realidade acústica podem estar presentes juntas, ou, ao contrário, separadas: mostra-se o objeto óptico sem o som que normalmente o acompanha, ou o som vem separado do objeto óptico (ouvimos um homem falar enquanto vemos, em vez de sua boca, os outros detalhes da cena, ou mesmo uma cena inteiramente diversa). Oferecem-se, pois, novas possibilidades de sinédoque cinematográfica. Paralelamente, aumentam os métodos de ligação das tomadas (passagem puramente sonora ou verbal, contrastes de som e imagem, etc.) (JAKOBSON, 1970, p. 158).
É como imagem acústica traduzida pela imagem óptica do movimento que identificamos o signo novo do cinema sonoro como uma grande conquista de uma linguagem audiovisual, em que o indexical disputa espaço com o signo icônico e abre para as simultaneidades das relações topológicas do movimento visual e acústico. Coube aos
107 estudos sobre fotogenia expandir os conhecimentos das práticas cinematográficas em que o movimento é potencializado pela simultaneidade das relações visuais, sonoro-acústicas e táteis. Em Aleksandr Niévski, porém, há algo a mais no jogo contrapontístico: há a fonia da entoação de vozes, instrumentos e objetos que imprimem o tom glorioso, sobretudo nas interlocuções de Aleksandr. Evidentemente o processo entoativo aqui está longe de ser aquele observado por M. Bakhtin em seus estudos: a entoação como realização plástica do discurso no contexto das relações dialógicas verbais. Para Eisenstein, contudo, a montagem dialógica no cinema, desde o cinema sem som, realizava, sim, entoações discursivas, como ele examina detalhadamente em seu roteiro não filmado de O Capote, de Gógol (EISENSTEIN, 1989, p. 71-84; MACHADO, 1999, p. 193-210). Pelo viés da entoação dialógica discursiva, a trama fônica-sonoro-acústica acaba se aproximando do que, no nível da música, atendia às prerrogativas do realismo socialista. O empreendimento metodológico de tal monta foi conduzido pelo teórico Boris Vladímirovitch Asáfiev e formulado em termos de dois procedimentos: intonazia e imagística musical. Com eles esperava-se prover a composição musical de instrumentos capazes de promover a aproximação entre a experiência musical e a realidade. Segundo Malcolm H. Brown (1974), intonazia é uma forma de criar no plano musical uma sonoridade fônica, muito próxima de um som do mundo empírico, seja ele de pessoa ou objetos, de modo a serem incorporados na melodia, timbre, harmonia, contraponto. A imagística musical tem um caráter evocativo de ideias, sensações, associações de modo a recriar, com a lógica musical, a realidade objetiva. A partir desses dois procedimentos, chegou-se às categorias: mimética (reprodução musical dos contornos fônicos do fenômeno); princípio programático (correlação entre música e outras artes: dança, canto, literatura, cinema, de modo a prover a estrutura musical de sonoridades correlatas); elaborações puramente musical vinculadas às categorias anteriores (BROWN, 1974, p. 559-60). Enquanto M. H. Brown dedicou-se ao exame de tais procedimentos na obra de Shostakóvitch, coube a Philip D. Roberts (1977) o exame de tal metodologia na cantata de Prokófiev para o filme Aleksandr Niévski. O que nos interessa desse estudo é o método entoativo pelo qual Prokófiev construiu a cantata acompanhando o processo da filmagem de modo a criar aquilo que poderíamos denominar entoação audiovisual, bem ao gosto das concepções de Eisenstein. Assim, o uso de instrumentos como tambores, trompetes, tubas, em contraponto com o canto seria uma forma de compor no plano musical as entoações da fala. Nesse sentido, a entoação (intonazia) imprime no discurso cinemático a realização visual de estruturas musicais, em que o signo icônico opera fundamentalmente no eixo da similaridade a favor do reconhecimento automatizado das relações. Estaríamos diante de uma mera aplicação do método do realismo socialista se a trama de entoações do filme seguisse rigorosamente os pressupostos de Asáfiev. Contudo, como tratamos de analisar nesse segmento, há no filme outras elaborações que não se restringem às correspondências visíveis da similaridade. Tanto a intonazia quanto a imagística musical jogam com a invisibilidade das construções indexicais que permitem ao pensamento elaborar diagramas cujo colorido não evoca o nível meramente representativo. Pensamento em diagramas de efeitos audiovisuais
Aleksandr Niévski pode ser considerado um filme plasticamente diagramático. Um filme cujas articulações manifestam-se intuitivamente e não necessariamente pela lógica, realizando plenamente a montagem como articulação de diferentes esferas sensoriais de modo a criar condições de encaminhar seu leitor ao processo cognitivo de
108 pensamento, distanciando-se, portanto, da imediata evidência pregada pelo realismo socialista. Prova disso é que estamos aqui a apreender no filme elementos que estão longe da determinação ideológica do partido. Em sua análise do processo de composição de Aleksandr Niévski, Eisenstein explica as soluções encontradas para que evolução das imagens visuais e sonoras seguisse rigorosamente as linhas de movimentos estipulados na composição gráfica e musical com vistas à produção de efeitos perceptuais, emocionais, cognitivos. Como composição, as sequências fílmicas não se apresentavam como representação, mas como arranjo de aproximações, analogias e dissensões. Nesse sentido, a composição leva o espectador a seguir as linhas do movimento intuitivo do arranjo audiovisual, cada uma no seu alinhamento, mas todas em consonância, o que Eisenstein esmiúça com o rigor de seu método nos estudos sobre montagem vertical, tão plenamente experimentada na parceria com Prokófiev. Se no processo de composição audiovisual Eisenstein distingue a natureza das imagens para além da mera representação, coube às linhas do movimento realizar as condições da escrita das cenas no espaço cinemático. O emblemático estudo da batalha em 12 planos e dos 17 compassos (EISENSTEIN, 2002, p. 116-143), travada no lago Tchudskóe a 5 de abril de 1242, compõe graficamente as articulações do combate que no espaço cinemático é, sobretudo, performance de homens armados ao ritmo de deslocamentos na areia e na água ao som da música orquestral.
Assim se constitui o diagrama em que os signos de natureza audiovisual é sobreposto à partitura da composição musical concebida por Prokófiev. Os 12 planos e os 17 compassos do diagrama foram examinados como um conjunto de articulações topológicas em que fotografia, música, traços, movimento estão longe de representar unidades isoladas. Quando compreendidas no conjunto de suas articulações internas, observa-se o quanto a composição resulta num padrão. A montagem é deslocada, assim, da esfera da sucessão para a esfera da simultaneidade, ampliando as possibilidades que marcam a passagem do signo icônico para o signo indexical. A trama ressonante do diagrama nos desloca agora para uma outra esfera da percepção mental: o traçado das ideias e as formas do pensamento que o cineasta traduziu em montagem audiovisual. O que ganha destaque no diagrama e na argumentação que se lhe seguiu é a necessidade de se compor um padrão de composição audiovisual de modo a
109 acompanhar o movimento do raciocínio produzido pelo traçado das linhas de movimento de som e fotografia. É este padrão que reverbera e leva o diagrama a indexicalizar, como presente, o raciocínio construtivo da trama de pensamento. Eisenstein concebe o filme-pensamento que associa som e cenário visual numa trama cinética a partir de seu método criativo denominado montagem vertical. Segundo Eisenstein, a montagem vertical liga diferentes esferas dos sentidos particularmente a imagem visual à imagem sonora no processo de criação de uma imagem única, unificadora, sonoro-visual (EISENSTEIN, 2002, p. 54). No filme Aleksandr Niévski, esse processo permite construir uma conexão entre a composição pictórica do filme e a partitura musical. Com base numa técnica multimodal de articulação entre espaço, tempo, movimento e informação todos os elementos se cruzam para criar topologias verticais e contiguidades. Cada uma das trajetórias espaciais consiste em pausas e movimentos. Diferentemente do roteiro fundado no signo verbal, o diagrama dos 12 planos em 17 compassos explora o núcleo relacional do padrão da composição audiovisual que se constrói a exemplo de um grafo sensorial cuja chave é o movimento rítmico de suas linhas de gestos, de luz, de movimento, de som. Não estamos, portanto, diante de uma partitura musical fechada no arranjo estrutural combinatório de seus elementos essenciais melodia, harmonia, arranjo mas de uma partitura cinética que traduz em espaços físicos o ambiente criado pelos sons musicais. É o ambiente de um pensamento apreendido na sua emergência plástica. Este procedimento não fora previsto no método de Asáfiev. O diagrama depura o signo icônico que, no primeiro segmento gráfico, distribui os fotogramas do príncipe em comando das ações da batalha. No segundo segmento, é a partitura musical de Prokófiev que traduz as sonoridades que corriam no plano acústico. No terceiro segmento, desenha-se o grafismo dos volumes, contornos e contrastes de luz e som que são rarefeitos no último segmento gráfico dedicado à montagem rítmica, o movimento propriamente dito em seu grafo existencial, como diria Peirce. O movimento de decomposição gráfica, cujo diagrama evidencia um pensamento que parte do ícone, fixa-se em símbolo e se torna linhas de ressonância luminosa e de efeito sonoro. O diagrama traduz um processo cognitivo num padrão de composição de luz, ritmo e frequência. Do ponto de vista do padrão, o diagrama audiovisual da sequência da batalha sintetiza um funcionamento cognitivo. Transcodifica o enredeamento do plano de ação de Aleksandr, quer dizer, se ao refletir sobre seu plano, ele estava imerso não apenas em seu pensamento como também na sala de redes, na cena projetada, a trama do pensamento ganha corpo visual, intensidade sonora, força dramática. O pensamento sensorial é oferecido em termos de uma plasticidade sonora, cinética, visual. Tudo isso em transcodificação diagramática de linhas, volumes, frequência, luz e sombras. Contudo, a composição diagramática não se limita apenas à articulação entre música, tomadas e movimentação. A construção da batalha do ponto de vista diagramático se traduz igualmente quando Aleksandr, ao ouvir a piada do coelho e da raposa, transcodifica a situação da raposa, prestes a ser desvirginada pelo coelho, na estratégia de ataque de seu exército: distribui as equipes pelo espaço de modo a compor a forma de cunha. Quando o inimigo atingisse esse espaço, a vitória estaria garantida. O deslocamento do exército se deu, assim, pelo diagrama da cunha que todos registraram na mente e desenharam no espaço de combate. Se compreendermos o padrão estrutural que rege o diagrama da composição audiovisual, vamos verificar o quanto a noção de padrão orienta a montagem de estruturas internas do filme. Destaque para o padrão de distinção dos exércitos em termos de seus uniformes, armaduras e brasões. Padrões geométricos que moldam os ferros e tecidos num arranjo de linhas em movimentos, ao qual o espectador reconstitui em seu olhar (figura 3).
110
Aleksandr Niévski. (EISENSTEIN, 1938)
Diríamos, então, que é pelo arranjo de diferentes padrões visuais, sonoros, gestuais que o filme explora o universo ideológico e o oferece para a exploração cognitiva do espectador. Nesse sentido, até mesmo as articulações sonoras produzidas em torno do sino constroem, igualmente, padrões de composição. É como padrão cromático que as escalas de som, de luz e de gestos compõem a trama dos movimentos geradora da plasticidade do espaço cinemático.
111 Ampliação dos sentidos na continuidade do espaço-tempo
Segundo Yuri Tsivian (1994), muito antes de ser elemento da produção de um filme, a música constituiu-se como peça chave do programa ambiental da exibição nas salas de cinema, sendo o agente fundamental do processo de ampliação dos sentidos do filme (TSIVIAN, 1994, p. 78). Essa música incidental, via de regra, proveniente da execução pianística, não era pensada como uma trilha sonora, mas tão somente um acompanhamento livre, sem a menor consciência de uma interação dramática com o filme: seu papel era simplesmente seguir os movimentos cênicos projetados em tela. Se, por um lado, firmava-se uma descontinuidade entre a dimensão acústica e a dimensão visual da exibição, por outro, criava-se uma continuidade entre o espaço/tempo no acompanhamento. Do ponto de vista acústico, a continuidade espaço/tempo sustentado pela música incidental atua, sobretudo, na ampliação sensorial o que, nas mãos de Eisenstein, torna-se esteio fundamental do procedimento estético entendido como atração. No caso de Aleksandr Niévski, embora não restrito a ele, a atração transforma o momento de projeção numa rede sensorial e emotiva com vistas ao pathos. Com isso, a dimensão sonora transforma a entoação rítmica da composição em modelo perceptivo do ambiente que se estende da tela para o espaço acústico e para a mente. A música como fio condutor desse processo torna-se o principal agente da plasticidade do espaço de ressonância que se forma entre a tela do filme e a da mente, ou, como formulado teoricamente por Tsivian, a música cria um espaço de contato que é uma espécie de presença.
(1) Music helped to bridge the gap, to fill the void, between «me» and the film. Performed here, in the auditorim, it was in constant interaction with what was taking place on the
A música contribui para preencher a lacuna e o vazio entre o "eu" e o filme. Executada no auditório, tornava-se uma constante interação com o que se desenrolava na tela (interação no sentido amplo que inclui a ausência de correspondência direta). A música fílmica formava o "espaço entre": um espaço semântico não localizável geometricamente; que se percebe pertencendo tanto ao mundo do filme quanto do auditório (TSIVIAN, 1994, p. 83). (1)
screen (interaction in the broad sense, including the absence
of
direct
correspondence). Film music formed «the space between»: a geometrically unlocalisable semantic space felt to belong both to the world of the film and the world of the auditorium (TSIVIAN, 1994, p. 83).
O «espaço entre» se encarrega de articular a continuidade do tempo-e-espaço que no filme Aleksandr Niévski cria o tempo presente, como num convite à participação de quem assiste. Não é de se estranhar, portanto, que tal participação tenha se prestado a traduzir os anseios ideológicos do período soviético sob a batuta de Stálin. Apesar de todas as implicações acusatórias que o filme tenha provocado nos anseios dos espectadores do cinema eisensteiniano, no passado e no presente, impossível negar o
112 de participação estética, ideológica, política. Afinal, além de considerar o papel da atração, estamos falando de plasticidade da presença no espaço de ressonância acústica. E, como alerta Tsivian, seguindo o viés desenvolvido por Iuri Tiniánov, retirese a música e o filme se esvaziará de sua trama de sentidos.
(2) If you deprive cinema of
Se você privar o cinema da música ele se torna vazio; ele se torna uma arte incompleta, inadequada. Sem música, torna-se um tormento sentar-se e ver bocas escancaradas e cavernosas falando. Olhe atentamente o movimento na tela: veja como os cavalos parecem galopar pesadamente naquele vazio bocejante (TYNYANOV apud TSIVIAN, 1994, p. 82). (2)
music, it becomes empty; it becomes incomplete, inadequate art. Without music it becomes a positive torment to have to sit and look at those gaping, cavernous, talking mouths. Look carefully at the movements on the screen: see how heavily the horses seem to gallop in that yawning void (TYNYANOV apud TSIVIAN, 1994, p. 82).
Contudo, o que nos interessa dessas considerações é o fato de que a ausência de música no ambiente da sala de projeção criou uma demanda ao mesmo tempo em que despertou um ambiente sensorial que se propunha como uma zona de contato entre o filme e sua percepção. Essa configuração sensorial é o que nos permite falar em plasticidade acústica no processo de interação participativa e de presença. Em última análise: trata-se da descoberta de um espaço o espaço ressonante que atualiza a relação cultural com os meios. Ressonância que realiza no espaço cinemático a trama de pensamentos que não estão presos à composição, mas transitam no intervalo sensorial de percepção e mente de modo a construir o caminho cognitivo do que vai pela tela e incide sobre o espectador seja na forma de discurso interior, seja de um agudo processo intelectual que atua diretamente na ação e na consciência. A ampliação dos sentidos sem dúvida alguma leva ao pensamento diagramático e à radicalidade das formas que pensam na dramaturgia do espaço cinemático. Evidentemente, esta é sua grande mirada como artista construtivista para além de seu tempo (ALBÈRA, 2002, p. 277). Considerações finais
Nos estudos de cinema que se servem da semiótica para a análise de filmes, iconicidade e indexicalidade são categorias de análise da imagem enquanto a simbolicidade diz respeito à codificação técnica do aparelhamento óptico-sonoro. Considerando que os signos operam a semiose segundo a dominante de sua constituição, no ícone, a dominante é a similaridade da imagem figurativa, ao passo que no índice a dominante é a existência. Em ambos os casos, busca-se a imagem construída no campo da visualidade. Não obstante, deslocado o conceito de imagem para o seu domínio sensorial, no contexto de suas representações e estesias sinestesia e cinestesia a imagem projeta sua condição cinética (ou cinemática). Se é de movimento que estamos falando, a imagem visual é uma representação da cinética, não pictórica como nos
113 legou a tradição da cultura visual. É no ambiente do movimento visual e acústico que o signo cinematográfico se constitui. Nesse caso, tanto o ícone, quanto o índice e, em certa medida, o símbolo passam a serem observados no movimento das dominâncias de similaridade, contiguidade e convencionalidade entre signo, objeto e interpretante. A vertente que considera imagem no eixo da visualidade, considera apenas a relação signo / objeto (AUMONT; MARIE 2006). O eixo do interpretante fica de fora e com ele todas as implicações diagramáticas focadas em nosso ensaio. Se o cinema eisensteiniano fosse um cinema de filmes documentais, de registro, ficaríamos por aqui. Contudo, em seu cinema, a imagem não é fruto de uma montagem que soma, mas sim de uma montagem inferencial em que os resultados emergem inesperadamente como uma terceira coisa com efeitos na percepção, no sensório e na cognição. Imagem emerge no ato de produção de sentido (meaning) pelos sentidos (senses) na mente. Como produto de mente, não estamos diante de deduções, mas de induções caminhando para abduções. Afinal, é de cinema intelectual que estamos falando. Imersos no ambiente das imagens em movimento e dos sons cujo efeito acústico não se limita ao que vai pela tela, mas chega aos ouvidos dos espectadores, os signos cinematográficos configuram o seu próprio movimento: em vez da trajetória que vai do índice ao símbolo, o signo perfaz um caminho inverso e se desloca do símbolo ao índice. A iconicidade não resulta da relação de semelhança do signo com o mundo, mas das relações dos símbolos com os índices. A iconicidade ocupa o centro da teoria do signo não pelo convencionalismo das relações entre significante / significado; matéria / forma; expressão / conteúdo, mas sim porque no centro de sua formulação está o signo icônico e sua construção diagramática como processo de pensamento analógico e com relações associativas orientadas por princípio combinatório. Todavia, se a analogia situa a iconicidade para além do pressuposto do mimetismo, o pressuposto das linhas de movimento a partir das quais o raciocínio toma corpo se distancia do ícone e acaba chegando ao índice. Segundo essa compreensão, o fato de o diagrama se constituir como hipoícone não impede de configurar relações de outra natureza que não as processadas no eixo das similaridades. Se este é o pressuposto teórico, o cinema intelectual de Eisenstein cumpriu o desafio de ampliá-lo uma vez que, ao explorar a montagem através de padrões de composição e movimentos de linhas, leva a linguagem cinemática do símbolo ao índice, convidando o espectador a reconstituir a trama ressonante da plasticidade que a tela de projeção expande em pensamento sensorial. Somente enquanto índice, o filme se atualiza e problematiza a história de sua própria compreensão. No contexto diagramático da indexicalidade, o papel cognitivo da montagem desperta o espectador para o jogo de temporalidades que se movem para além dos embalos da representação.
114 Referência bibliográfica ALBÈRA, François. Dramaturgia da forma. Eisenstein e o construtivismo russo. Trad. Heloisa A. Ribeiro. São Pauo: Cosac & Naify, 2002. AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas: Papirus, 2006. BAKHTIN, Mikhail. M. A cultura popular na Idade Media e no Renascimento. São Paulo: HUCITEC, 1987. BAUDRY, Pierre. Notes sur Alexandre Nevski. Cahiers du Cinema n° 226-227, janvier-février, 1971, p. 3941. BROWN, Malcolm H. The Soviet Russian Concepts of Intonazia and Musical Imagery . Musical Quarterly 40, 1974. DOANE, Mary Ann. The Afterimage, the Índex, and the Acessibility of the Present. The Emergence of Cinematic Time. Modernity, Contingency, the Archive. Cambridge: Harvard University Press, 2002. EIKHENBAUM, Boris. Literature and Cinema. 20th Century Studies: Russian Formalism, Dec. 1972. __________________. Problèmes de la cine-stylistique. Cahiers du Cinéma: Russie années vingt, nº 220221, mai-juin, 1970. __________________. Problems of film Stylistics. Screen, Autumm, 1974, vol. 15, nº 3. __________________. Littérature et cinéma. In Les formalistes russes et le cinéma. Poétique du film. Ed. François Albèra. Paris: Nathan, 1996. EISENSTEIN, Serguei. Alexandre Nevski. In Reflexões de um cineasta. Trad. Gustavo A. Doria. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. ___________________. La non-indifférence nature: post-scriptum et postface. Cahiers du Cinéma, nº 219, avril, 1970. ___________________. Novos problemas da forma cinematográfica. Trad. Vinícius Dantas e Hugo S. Franco. In A experiência do cinema (org. Ismail Xavier). Rio de Janeiro: Graal; Embrafilme, 1983. __________________. O sentido do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. __________________. Sobre O capote de Gogol. Trad. Paulo Peres. Revista USP, n° 176, 1989. __________________. Toward a Theory of Montage (vol. 2). Ed. By Michael Glenny and Richard Taylor. London: British Film Institute, 1991. EISENSTEIN, Sergei; PUDOVKIN, Vsevolod; ALEXANDROV, Grigori. Statement on Sound. In The Film Factory: Russian and Soviet Cinema in Documents 1986-1939 (Ed. By Richard Taylor and Ian Christie). New York and London: Routledge, 1994. IVANOV, Vjaceslav Vsevolodovic. Eisenstein's Montage of Hieroglyphic Signs. In On Signs (Ed. By Marshall Blonsky). Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1985. _______________________________. Eisenstein et la linguistique structurale moderne. Cahiers du Cinéma: Russie années vingt, nº 220-221, mai-juin, 1970. _______________________________. Sobre a estrutura dos signos no cinema. Trad. Boris Schnaiderman. In Semiótica russa (org. Boris Schnaiderman). São Paulo: Perspectiva, 1979. JAKOBSON, Roman. Decadência do cinema? Trad. Francisco Aschar. In Lingüística. Poética. Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1970. LOTMAN, Iuri. M. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Estampa, 1978. MACHADO, Irene A. Cinema como literatura: procedimentos e teorias à maneira dos russos. Estudos de Cinema, São Paulo, n° 2, 1999. _______________. Literariedade e cinematicidade. Dialogia e discurso interior. In Analogia do dissimilar. Bakhtin e o formalismo russo. São Paulo: Perspectiva, 1989. ROBERTS, PHILIP D. Prokofiev's Score and Cantata for Eisenstein's Alexander Nevsky. Semiotica 21: 1-2, 1977. SHKLOVSKY, Viktor. Sound as a Semantic Sign. In The Film Factory: Russian and Soviet Cinema in Documents 1986-1939 (Ed. By Richard Taylor and Ian Christie). New York and London: Routledge, 1994. TSIVIAN, Yuri. The acoustic of cinema performance. Early Cinema in Russia and its Cultural Reception. Trad. Alan Bodger. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1994. TYNIANOV, YOURI. Des fondements du cinéma. Cahiers du Cinéma: Russie années vingt, nº 220-221, maijuin, 1970.
This article introduces Sergei Eisenstein's notion about
Este artigo pretende apresentar algumas considerações de
artistic image as an enigma. In 1941, Eisenstein realizes
Serguei Eisenstein sobre a construção da imagem artística
that the fundamental contradiction in riddles would rule any
como um enigma. Em texto de 1941, Eisenstein percebe
work of art: the contradiction between the "language of
nos enigmas a contradição fundamental que regeria
logic" and the "language of feelings". The great success of
qualquer obra de arte: a contradição entre a “linguagem da
detective stories, according to Eisenstein, lies in the process
lógica” e a “linguagem dos sentimentos”. O grande êxito das
of the puzzle's solution. It would reflect the transition from
histórias de detetive, segundo Eisenstein, reside no
pre-logical thinking (imagistic, sensual, magical) to logical
processo de transição de um enigma à solução, que
thinking (conceptual, rational). This study examines the
refletiria a passagem do pensamento pré-lógico
reverberations of these ideas in Ivan the Terrible (1944-
(imagístico, sensual, mágico) ao pensamento lógico
1945), Eisenstein's last film.
(conceitual, racional). O presente estudo examina a reverberação dessas ideias em Ivan, o Terrível (19441945), último filme de Eisenstein.
Ivan, o terrível: e a imagem enigma
(1)
Vanessa Teixeira de Oliveira (1) O texto deste artigo tem como maiores referências alguns tópicos desenvolvidos na tese de doutorado EISENSTEIN-IVANMEYERHOLD: teatro e enigma no cinema de Serguei M. Eisenstein (um estudo de Ivan o Terrível), defendida no âmbito do Programa de PósGraduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) sob orientação de Angela Materno de Carvalho. (2) A primeira parte do filme é de 1944 e a segunda, de 1945. A terceira parte prevista não foi concluída. (3) EISENSTEIN, The Psychology of Composition, p. 91. Todos os textos em língua estrangeira – de Eisenstein bem como de outros autores – são tradução nossa. (4) BULGAKOWA, “Comment éditer Eisenstein? Problème de Méthode (extraits inédits)”, em Cinémas: revue d
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é
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u
d
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cinematographiques /
Em outubro de 1941, com o avanço do exército nazista, toda a indústria cinematográfica de Moscou evacuou para a cidade de Alma-Ata (atualmente Almaty), no Cazaquistão. Serguei Eisenstein também participou da mudança e ajudou nos esforços de construção de um novo estúdio na cidade. À época, Eisenstein estava envolvido na produção de Ivan, o Terrível (Ivan Grozni1944-1945), seu último filme, em duas partes (2), cujas filmagens só tiveram início em abril de 1943, e seguia escrevendo notas sobre temas variados, relativos à criação artística, que rivalizavam em número apenas com as incontáveis observações ao roteiro do filme e com os esboços de cenas de Ivan. Eisenstein sempre foi fanático por histórias de detetive é o gênero literário mais efetivo que existe (3) e desenvolveu nos escritos do período uma comparação entre a imagem artística e o enigma. Se os filmes de Eisenstein podem ser vistos como a promoção de sua teoria, conforme Oksana Bulgakowa os qualifica (4), Ivan reverbera as ideias de Eisenstein sobre o caráter enigmático de toda obra artística, tanto na temática como na estrutura do filme. Eisenstein busca fundamentos para sua teoria em tradições antigas. Em Sobre a História de Detetive, descreve rituais de iniciação nos quais o futuro sacerdote tinha que responder a adivinhas. Para ele, esse método de teste dos sacerdotes segue o mesmo esquema que permeia as histórias de detetive e justifica a eficácia surpreendente delas: o processo de transição de um enigma à solução refletiria a passagem do pensamento pré-lógico (imagístico, sensual, mágico) ao pensamento lógico (conceitual, racional, consciente). (5)
116
117 Cinémas: jornal of film studies, vol.11, p. 60. (5) EISENSTEIN, op. cit., p. 67. (6) Id., p. 64.
(7) CHESTERTON, “A Forma Errada”, em A Inocência do Padre Brown, p. 165-187.
O que há na natureza da 'adivinha' que a distingue de uma 'solução'? A diferença é que a solução dá o nome de um objeto como uma formulação, enquanto a adivinha apresenta o mesmo objeto na forma de uma imagem tecida de um certo número de seus atributos. (6)
O enigma representa o modelo de discurso imagísticosensual e a solução, o discurso da lógica. Um exemplo desse processo de progressão entre essas polaridades, citado por Eisenstein, é o conto A Forma Errada, do escritor inglês Gilbert Keith Chesterton (1874-1936), no qual figura o seu famoso personagem, o detetive-sacerdote Padre Brown (7). Nesse conto, o pároco Brown se depara com a morte de Leonard Quinton, um escritor que trabalhava em um romance oriental sobre magia e hipnotismo. Na mesa do seu escritório, restava uma única folha de papel com a seguinte frase: Morro pelas minhas próprias mãos; ainda assim morro assassinado! Todos se contentam com a versão de que Quinton suicidou-se, menos Brown. Ele acha estranha a forma do papel com a suposta frase de despedida o canto do papel está cortado. Para Brown, esta é uma forma errada . O médico de Quinton não compreende a observação de Brown e mostra que seu paciente costumava cortar todos os cantos dos papéis nos quais escrevia. Como acontece nos casos do Padre Brown, Chesterton cria uma atmosfera misteriosa associada a práticas religiosas opostas ao catolicismo. Em A Forma Errada, antes mesmo de ocorrer o crime e até o momento de sua solução, o leitor é levado a se perguntar se Quinton foi vítima de algum ritual de magia, se forças malignas rondavam a casa, se algo sobrenatural, enfim, determinou a ordem dos acontecimentos. A solução do crime termina sendo, no entanto, a mais lógica possível. A frase de Quinton não era uma despedida, mas simplesmente a frase de um dos personagens do romance no qual trabalhava. O assassino (o médico do escritor) havia, na verdade, cortado o canto do papel para poder tirar as aspas da frase. Para simular um suposto costume de Quinton de cortar os cantos de papéis, ele cortou por conta própria os cantos de uma pilha de papel em branco. O assassino e a esposa de Quinton estavam tendo um caso amoroso. Ele queria se livrar do escritor. Neste exemplo, conforme Eisenstein, a ambiência mística do conto é fundamental para a eficácia do enigma. De uma espécie de indefinição místico-mágica no começo do relato (o que proporciona o seu caráter regressivo), o leitor, ao final, é apresentado a uma solução lógica e racional. Eisenstein conclui:
(8) EISENSTEIN, op. cit., p. 71.
O ponto não é apenas simplesmente criar uma 'atmosfera de mistério', mas submergir totalmente o leitor na categoria do pensamento imagístico e sensual, sem o qual ele não pode vivenciar o prazer da passagem para o edifício iluminado das altas formas intelectuais, para as quais o brilhante detetive, possuindo a sabedoria de camadas mais altas da consciência, o leva pela mão.(8)
118 1919, em Moscou.
(9) LÖVGREN, “Sergei Eisenstein's Gnostic Circle”, em ROSENTHAL (Ed.), The Occult in Russia and Soviet Culture, p. 277. (10) EISENSTEIN, “Extratos inéditos”, em BULGAKOWA, “Comment éditer Eisenstein? Problème de Méthode (extraits inédits)”, em Cinémas: revue d'études cinématographiques / Cinémas: journal of film studies, vol.11, p. 44. ( 1 1 )
E I S E N S T E I N ;
CHERKASOV, “Stálin, Molotov and Zhdanov on Ivan the Terrible Part Two”, em TAYLOR (Ed.), The Eisenstein Reader, p. 160. A Ku-KluxKlan foi uma organização que surgiu nos Estados Unidos da América, após a guerra civil americana, com o intuito de dificultar a integração social dos negros. Esta organização defendia a supremacia branca e o protestantismo. (12) Idem. (13) PERRIE, The Cult of Ivan the Terrible in Stalin's Russia, p. 166. ( 1 4 )
E I S E N S T E I N ;
CHERKASOV, op. cit., p. 166.
Ivan e as ciências imprecisas
À maneira de Chesterton, Eisenstein investe no clima de ocultismo e magia em Ivan, o Terrível. O diretor russo sempre se interessou pelo estudo do misticismo religioso em conexão com a criação artística. Na sua juventude, em meio ao período da Guerra Civil, Eisenstein chegou a fazer parte da Ordem RosaCruz. A partir da década de 1930, o movimento simbolista e as ciências imprecisas como Eisenstein denominava os temas esotéricos e ocultistas retornaram ao seu foco de interesse de maneira mais intensa. Na sua biblioteca, havia textos dos simbolistas russos, Andriêi Biéli, Valeri Briusov, e Serguei Durilin, que tiveram papel importante na disseminação de ideias espirituais e ocultas na Rússia na virada do século. Segundo Hakan Lövgren, assim como os simbolistas russos e os admiradores de Richard Wagner, Eisenstein também se interessava por criação mítica , êxtase , unidade dos sentidos , e por diversas práticas religiosas antigas (9). Em anotações de 22 de janeiro de 1940, antes mesmo de iniciar as pesquisas para a realização de Ivan, Eisenstein escreve que as sociedades secretas constituem um indicador de regressão (10). Esse caráter regressivo em Ivan também motivou a interdição da segunda parte do filme pelo governo stalinista em 1946. Uma das críticas de Stálin à segunda parte de Ivan, o Terrível recaía sobre a representação da guarda do tsar, a oprítchnina, pois lembrava a Ku-Klux-Klan (11). Eisenstein respondeu com certa ironia a esta comparação: Eles vestem capuz branco; os nossos vestiam preto (12). Stálin sugeriu que a oprítchnina foi representada por Eisenstein como uma organização de caráter político e religioso. Uma outra crítica, nesse mesmo sentido, foi feita em relação a uma cena retirada do corte final da primeira parte do filme. Nela, os membros da oprítchnina juravam fidelidade ao tsar. Todos reunidos em semicírculo, vestidos com túnicas negras, segurando velas em suas mãos, repetiam as palavras do juramento, que implicavam a renúncia à família, às amizades, a tudo, enfim, em nome da lealdade canina ao tsar. Essa cena, segundo a historiadora Maureen Perrie, foi retirada do filme sob a alegação de que o juramento lembrava uma iniciação franco-maçônica (13). No encontro que Eisenstein e o ator Nikolái Tcherkássov tiveram com Stálin para conversar sobre a segunda parte de Ivan, estiveram também presentes dois conselheiros mais próximos a Stálin: Andriêi Zhdânov, Secretário do Comitê do Partido Central, e Viacheslav Mólotov, Comissário de Assuntos Internacionais. Os dois também apontaram o clima místico do filme como um aspecto negativo. Para Zhdânov, o filme abusava de cerimônias religiosas. Isso, segundo Mólotov, conferia ao filme uma abordagem mística que não deveria ser tão proeminente. (14)
119 Na Rússia stalinista, quando as duas partes do filme foram realizadas, a evocação de uma simbologia esotérica tinha um forte significado político. Vale a pena lembrar alguns elementos da própria história russa. Nos últimos anos de tsarismo, Grigori Rasputin (18691916), um dos tantos místicos que surgiram em solo russo, tornou-se o guia espiritual da família do tsar. Era um camponês que tinha chegado a São Petersburgo em 1903 e, segundo reza a lenda, salvou da hemofilia o herdeiro do trono, Alieksiêi Románov. Ele era conhecido popularmente como o Diabo Santo , em razão do seu caráter controvertido, pois, apesar de ser supostamente capaz de operar milagres, pertencia à Seita dos Flagelantes, um grupo que tinha como principal doutrina a salvação por meio do pecado. O poder crescente que foi adquirindo Rasputin na Corte Imperial, onde era considerado um messias, e as acusações de comportamento depravado (promoção de ritos orgásticos e flagelações) não agradaram a setores da aristocracia russa, que cuidaram de providenciar sua execução. Rasputin é assassinado praticamente às vésperas da Revolução de 1917, e sua morte foi associada à queda do tsarismo. Para o espírito racional do Estado soviético, o misticismo ficou, de certa forma, relacionado à ideia de uma Rússia tsarista decadente. O ocultismo, onipresente no filme de Eisenstein, gerou polêmica no contexto político da época. Basicamente, Ivan era uma obra de encomenda, um filme de propaganda política com a finalidade de enaltecer a imagem de Stálin e a de um Estado soviético progressista, a partir da recuperação da figura de Ivan, unificador de "todas as Rússias". No entanto, Eisenstein aproxima da realidade soviética de então resquícios anacrônicos do período tsarista. Essa tensão problemática entre política e misticismo atravessa todo o filme, conferindo-lhe uma aura misteriosa, uma dimensão mágica, presente não apenas no
120 figurino das personagens, mas também na encenação de cerimônias religiosas, na própria encenação ritualizada e até mesmo no uso de símbolos esotéricos relacionados à alquimia. Essa tensão entre política e misticismo, aliás, é tratada de maneira mais explícita na primeira parte do filme, quando Ivan é confrontado com populares na sala do banquete de comemoração do seu casamento. Nesse momento, o tsar é acusado de estar enfeitiçado pela família da tsarina. Arrancam o coração das pessoas! Banham as casas com sangue humano! Esse sangue incendeia e queima as casas... As casas ardem! . Maliuta Skurátov, que mais tarde será um dos braços direitos de Ivan à frente da oprítchnina, corrobora a acusação: Um feitiço funesto se abateu sobre Moscou. Os sinos caem sozinhos dos campanários. Ivan consegue ganhar a confiança da multidão ao ressaltar a ridiculez das superstições: E uma cabeça... pode cair sozinha? Para que caia é preciso cortá-la... A força do tsar é apresentada aqui em razão do seu pensamento crítico, racional, lógico. Um dos homens diz: O tsar é muito astuto . E outro: Vê a realidade das coisas . Ivan ganha o apoio do povo ao demonstrar que não havia bruxaria alguma, mas sim o desejo de se criar uma situação caótica, obscura, para minar o poder do tsar. Por trás da fachada mística, haveria uma determinação, no caso, política. A confiança conquistada pelo tsar é tal que, ao final dessa cena, toda a multidão adere entusiasta e imediatamente à guerra contra Kazan. O caráter progressista-lógico de Ivan predomina aqui sobre as forças regressivas místicas dos seus opositores. Em outras palavras, Ivan ganha poder junto ao povo ao decifrar um enigma. No entanto, no decorrer do filme, parece haver uma inversão, uma contaminação mística da postura progressista inicial de Ivan, que acaba criando uma espécie de seita própria: a oprítchnina, comparada por Stálin à Ku-Klux-Klan.
121 Ivan, o Iniciado
(15) JOLLES, “A adivinha”, em Formas simples: legenda, saga, mito, adivinha, ditado, caso memorável, conto, chiste, p. 111. (16) Id., p. 116. (17) Ibidem.
(18) É Giorgio Agamben quem nos lembra essa definição. AGAMBEN, “Édipo e a Esfinge”, em Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental, p. 224.
ao lado
Ivan, o terrível (parte 1). (EISENSTEIN, 1944, 00:02:07, 00:14:30, 00:25:06 e 00:27:08)
As relações que Eisenstein traça entre rituais iniciáticos e histórias de detetive se aproximam das observações que André Jolles, em seu livro Formas Simples, faz sobre a adivinha . Ele considera a decifração de um enigma como a demonstração de um saber. Como bem observa Jolles sobre a dinâmica entre interrogador e adivinhador: Um dos dois possui o saber, é a pessoa que sabe, o sábio; um interlocutor o enfrenta e é levado, pela pergunta, a pôr em jogo suas forças, seus recursos e sua vida, para chegar a possuir também o saber e a apresentar-se ao outro como sábio (15). A partir desta dinâmica, Jolles argumenta que a verdadeira e única finalidade da adivinha não é a solução, mas a resolução (16). O adivinhador deve demonstrar que compartilha da mesma dignidade do interrogador. Este já sabe a resposta do enigma, o que lhe importa é ver o interrogado em situação de dar-lhe resposta e pressioná-lo para que dê . (17) Em Sobre a História de Detetive, Eisenstein enfatiza que o importante num ritual iniciático não é exatamente a solução em si de adivinhas, mas a capacidade do iniciado em lidar com o que o diretor russo chamou, nesse momento, de pensamento dialético uma dinâmica de choque entre camadas de pensamento regressivo e progressivo . Eisenstein afirma ter grande interesse por enigmas por perceber neles esta contradição fundamental que rege também qualquer obra de arte. Sob esse ponto de vista, há de se entender o processo duplo presente no enigma e na obra de arte para Eisenstein: pergunta e resposta, regressão e progressão, magia e racionalidade, obscuridade e clareza um conectar coisas impossíveis , aproveitando a definição de Aristóteles para enigma. (18) Tanto Jolles como Eisenstein apontam o caráter iniciático da adivinha. Segundo Jolles, a solução de uma adivinha em seu sentido profundo funciona como uma palavra de passe para um domínio fechado. Para ele, o modelo da sociedade secreta é o exemplo mais claro para se pensar a adivinha como acesso a um saber. O sacerdote representa o conhecimento de determinado grupo fechado e, por meio de uma linguagem cifrada, põe em teste o conhecimento do candidato à iniciação. No filme, Ivan demonstra saber lidar com a atmosfera obscura, à primeira vista incompreensível, criada por seus inimigos. Ele pode ser considerado como uma espécie de iniciado, que funda seu próprio grupo político com ares místicos: a oprítchnina. A atitude de Ivan é contaminada de misticismo, o que faz o tsar repetir paradoxalmente a política de seus opositores. No entanto, é assim que ele afirma seu poder de maneira mais eficaz. É a teoria artística eisensteiniana em ação na própria temática do filme a expressividade política de
ao lado
Ivan, o terrĂvel (parte 1). (EISENSTEIN, 1944, 00:47:16, 00:47:47, 00:48:16, 00:48:28, 00:48:44 e 00:48:46)
123 Ivan, isto é, sua eficácia, não poderia estar desprovida de elementos regressivos. A construção paródica: o exemplo do olho único
Há um símbolo esotérico, o olho único , que aparece com frequência nas duas partes do filme, mas de maneiras distintas. Essas aparições repetidas são um exemplo da construção paródica proposta por Eisenstein, e do efeito perturbador, enigmático, desse procedimento que permeia todo o filme.
(19) ROOB, Alquimia & Misticismo, p. 213.
No Egito Antigo, uma das principais fontes do gnosticismo, Deus era representado por um olho. Para o filósofo e místico alemão Jacob Böhme (1575-1624), que teve grande influência sobre o romantismo e sobre a filosofia do idealismo alemão, a alma seria uma vida que despertou do olho de Deus (19). O conhecimento, para ele, nunca poderia ser alcançado com os olhos corpóreos , mas com uma visão que fosse além da natureza. Eisenstein já havia se deparado com o tema do olho único quando encenou a Valquíria, ópera de Wagner. Um dos personagens da ópera, o deus Wotan, era representado pela mitologia antiga alemã como possuindo um único olho. Ele personificava o elemento Ar, e correspondia ao deus Zeus dos gregos. Como esse elemento só pode ser percebido em movimento, Wotan personifica a ideia de movimento em geral, tanto das forças da natureza quanto dos movimentos espirituais. É Eisenstein quem escreve: Ao mesmo tempo, Wotan é também a imagem da busca incansável e inquisitiva, sedenta por sabedoria e conhecimento. Curiosamente, graças a essa característica a lenda o representava como tendo apenas... um olho. Custou a ele um olho para adquirir o conhecimento do outro mundo, para penetrar os segredos que ficam além das nuvens e sob as águas. [...]
(20) EISENSTEIN, “The
Assim era o antigo deus, que personificava a força e o poder da alma humana, que são indissoluvelmente ligadas com o poder das forças da natureza. (20)
Incarnation of Myth”, em TAYLOR (Org.), S. M. Eisenstein: selected works. Writings, 1934-1947, p. 146.
Depois da vitória em Kazan, Ivan supostamente cai doente. No momento da extrema-unção, os sacerdotes se reúnem em torno do leito do tsar. Uma grande bíblia aberta ao meio é colocada sobre a cabeça de Ivan até cobri-la inteiramente. Em meio às orações, Ivan tenta observar o que acontece ao seu redor, levantando um pouco sua cabeça sob a bíblia e descortinando um único olho seu, que observa rapidamente tudo com grande atenção. Nesse momento,
124 Eisenstein parece sugerir que Ivan não está doente e que se trata apenas de uma encenação dele para avaliar o comportamento dos que o cercam. A bíblia entreaberta sobre o rosto de Ivan apresenta quase que explicitamente a tradicional representação do olho único dentro de uma pirâmide. Não deixa de ser curioso que em torno desse símbolo ligado a tradições pagãs estejam sacerdotes cristãos. Ou seja, numa única imagem, a evocação de rituais pré-cristãos e do próprio cristianismo. Na segunda parte do filme, o tema do olho único só voltará a aparecer de maneira mais expressiva na cena do assassinato de Vladímir. Na catedral, onde ocorrerá o assassinato, a primeira imagem que vemos é a da coroa. Em seguida surge, logo abaixo dela, o olhar assustado de Vladímir um olho único . Ao final dessa mesma cena Piótr, o assassino de Vladímir, cobre um de seus olhos com sua mão ao perceber que não será punido por Ivan. O olho único , mais uma vez, não tem seu sentido relacionado a uma única personagem, sendo evocado, numa mesma cena, pela vítima e pelo assassino. Por fim, a única cena filmada que restou do que seria a terceira parte do filme traz uma personagem cuja configuração visual dá a impressão de ter apenas um olho, o esquerdo. Seu cabelo cai sobre o olho direito, ocultando-o. Trata-se de Staden, um cavalheiro alemão, contratado por Kurbski para se infiltrar na oprítchnina. O espião encarnaria assim o olho único em suas aparições no filme.
(21) EISENSTEIN, La NonIndifférente Nature / 1, p. 311.
(22) Id., p. 313.
Não se trata de fazer aqui uma lista exaustiva de todas as aparições do olho único , mas sim de apresentar a maneira insistente como Eisenstein se utiliza desse símbolo, que aparece de distintas maneiras e com vários significados. De fato, Eisenstein chamava esse recurso de construção paródica situações da trama, configurações espaciais e da própria encenação, ou elementos de cena, que se repetem ao longo do filme sempre de diferentes modos. Essas repetições vão constituindo o tecido narrativo e intensificando os diversos sentidos da obra por meio de choques inesperados a cada nova repetição. Um exemplo desse tipo de estrutura, apontado pelo próprio Eisenstein em seu filme Outubro (Oktiabr, 1927), é a subida das escadarias do Palácio de Inverno pelo chefe do Governo Provisório, Kerenski. O 'truque' da cena (e seu efeito irônico) consistia nisso: um único e mesmo fragmento da escalada da escada de mármore do Palácio de Inverno pelo chefe supremo era montado um após o outro, 'sem fim' (21). Esse mesmo fragmento é repetido quatro ou cinco vezes, como num loop. As legendas entre os fragmentos, entretanto, sublinhavam a ascensão de Kerenski em postos políticos: 'Ministro disso', 'ministro daquilo', 'presidente do conselho de ministros', 'chefe supremo'. Ora, a repetição na imagem de um caminho sempre idêntico quebrava por sua vez o crescendo das cartelas e legendas, nivelava-o ao grau de absurdo dessa ascensão em direção a lugar nenhum [...] (22). Essas contradições sucessivas entre semelhanças ao mesmo tempo dessemelhantes
125
(23) Id., p. 322.
intensificam a carga emocional do filme. Isto provoca um efeito extático (o sair de si ), transbordando os limites de um simples reflexo real da aparência dos fenômenos , conclui Eisenstein (23). Essas observações constam no primeiro tomo de A Natureza Não-Indiferente, livro no qual o diretor russo tenta analisar a fórmula do êxtase , ou seja, os procedimentos para a criação de uma obra patética em qualquer âmbito artístico. Eisenstein conclui que toda obra patética apresenta discordâncias estruturais, as mesmas de qualquer obra paródica ou cômica. Kristin Thompson, em seu estudo minucioso sobre Ivan, o Terrível, escreve que o olho único é um motivo flutuante , assim como o motivo de pássaros (cisnes, águias etc.); ele não tem um significado em si mesmo, pois ganha diferentes sentidos narrativos a partir do contexto em que aparece. Como bem observa Thompson, o uso das cores no filme segue a mesma lógica: não há rigidez de sentido ou fixação de uma cor numa determinada personagem. De fato, os motivos flutuantes permitem um outro tipo de leitura do filme, uma maneira de estabelecer relações visuais e narrativas.
(24) EISENSTEIN, La NonIndifférente Nature / 2, p. 133-134.
Eisenstein considera o caráter enigmático de uma obra como algo fundamental para a atração do espectador. O fascínio exercido por estruturas fundadas na repetição de motivos, no entrelaçamento e na separação de diversas vozes tem origem na evocação de dois princípios fundadores de toda atividade humana: a prática da caça e a arte de entrançar cestos (24). Daí vem, segundo ele, o grande sucesso dos romances policiais: caçar o criminoso, deparar-se com um enigma e desfazer o nó . Na concepção de Eisenstein, toda obra é uma anamnese, uma reminiscência. Se não existe adivinha insolúvel, a certeza de haver uma resposta a ser desvendada transforma a busca de uma resolução em uma atividade absorvente , para usar a expressão de André Jolles. A magia da arte
Em nota escrita em 14 de outubro de 1944, intitulada A magia da arte , Eisenstein observa: A magia não é aqui uma simples fórmula vazia. Pois a arte (real) volta artificialmente ao estágio do pensamento sensível às suas normas e às suas visualizações que é o estágio da intercomunicação mágica com a natureza. Quando você alcançou, por exemplo, a fusão sinestésica do som e da imagem, você colocou a percepção do espectador/ouvinte nas condições do pensamento sensível, onde a percepção sinestésica é a única possível não houve ainda diferenciações perceptivas. E seu espectador é 'reestruturado' segundo as normas não de hoje, mas de antes, ele é 'retornado' ao estado mágico da visão do mundo. [...] Pois, nesse caso, os sentimentos e a consciência são submetidos e podem ser
126
(25) EISENSTEIN, Walt Disney,
manipulados como quando ocorre o transe. Do estado de magia-passiva daquele que percebe a arte passamos àquele de magia-ativa na arte de manipular o espectador por um magotaumaturgo . (25)
p. 118 (nota).
(26) EISENSTEIN, The Psychology of Composition, p. 66.
(27) YAMPOLSKY, “The essencial bone structure: mimesis in Eisenstein”, em CHRISTIE; TAYLOR (Orgs.), Eisenstein Rediscovered, p.
Para Eisenstein, o desafio do artista é semelhante ao de um sacerdote: A um artista é 'dada' uma solução uma tese formulada conceitualmente e seu trabalho é fazer disso... um 'enigma'; ou seja, representar essa solução numa forma imagística (26). Nisso consiste a criação de imagens artísticas... mas, em Eisenstein, as linhas nunca apontam para uma única direção. De fato, para o artista esse não é um processo estável e previsível. Como bem aponta Mikhail Yanpolsky, o próprio Eisenstein reconhece que o esquema pelo qual o artista deve partir de uma solução para a criação de um enigma tem seus furos, pois o enigma acaba sempre vindo em primeiro lugar (27). Ao final do texto Montagem Vertical , Eisenstein escreve sobre a urgência do ato criativo uma pista para se compreender a dinâmica entre enigma e solução:
181-182.
É um erro imaginar que o processo criativo consiste em estabelecer um conjunto de normas compositivas invioláveis que definem a priori todos os pormenores da construção e que se finaliza simplesmente reunindo todas as peças segundo um roteiro supostamente férreo . [...] Estreitamente conectado a isso, há outro fato, e é que, quando alguém realmente começa a trabalhar a obra, não formula a si mesmo esses comos e por quês que ditam tal ou qual sequência, ou a eleição de tal ou qual correspondência . Nessas ocasiões, as escolhas feitas e as razões para fazê-las não se traduzem em uma avaliação lógica, como ocorre em uma análise post hoc como o que vimos fazendo, mas em uma ação imediata.
(28) EISENSTEIN, “Montaje vertical”, em GLENNY;
Naturalmente, inclusive nesse imediatismo passam na cabeça as normas básicas necessárias, justificativa e motivação de precisamente esta disposição e não aquela outra [...], mas a própria mente não deve se entreter em querer expressar estes motivos por completo; ela se apressa a fazer com que as ideias se tornem realidade. (28)
TAYLOR (Edits.), Hacia una Teoría del Montaje, vol.2, p. 197.
(29) LÖVGREN, Eisenstein's Labyrinth: aspects of a
Segundo Hakan Lövgren, a inclinação de Eisenstein pela 'forma difícil', o seu estilo ornamental e barroco como um elemento de 'atração', parece tê-lo levado próximo à obscuridade da exegese bíblica como uma fonte de prazer para o leitor-espectador . E continua (29):
cinematic synthesis of the arts, p. 123.
As imensas dificuldades de Eisenstein com os oficiais da indústria do cinema soviético depois do seu retorno do exterior em 1932 não foram [...] devidas à falta de correção política dos seus projetos cinematográficos. O problema era a sua concepção, suas imagens não eram suficientemente convencionais e inequívocas. Elas eram muito ricas em
127 subtextos, muito barrocas, muito íntimas com a tradição alegórica, segundo a qual alguém ou algo poderia lhe dizer uma coisa e (possivelmente) significar outra. (30) (30) Idem.
(31) PERRIE, op. cit., p. 32-33.
( 3 2 )
E I S E N S T E I N ;
Pensar a obra de arte como um enigma, considerá-la como um refúgio das crenças irracionais marca certamente uma forte oposição de Eisenstein ao racionalismo do Estado soviético. Sob o stalinismo, as referências a rituais religiosos pagãos e/ou relacionados a seitas esotéricas parecem um tanto impertinentes. Segundo Maureen Perrie, a historiografia soviética entendia a introdução do cristianismo na Rússia tsarista como um fator de progresso, sobretudo porque marcava um direcionamento para o Ocidente, em detrimento do Oriente (31). Na reunião que Eisenstein teve com Stálin, o próprio governante declarou: Não somos particularmente bons cristãos. Mas é errado negar o papel progressivo do cristianismo naquele estágio [à época de Ivan, o Terrível]. Ele teve um grande significado, pois marcou o ponto onde o Estado russo deu as costas para o Leste e se voltou para o Oeste. (32)
CHERKASOV, op. cit., p. 161.
(33) GUTKIN, I. “The magic of words”, em ROSENTHAL (Ed.), op. cit., p. 235.
Para a vanguarda russa do início do século, no entanto, o voltar-se à Ásia geralmente associada ao barbarismo, ao exotismo, a práticas religiosas primitivas não deixava de ser uma postura crítica contra a racionalidade da civilização europeia (33). A tensão entre Oriente e Ocidente, aliás, faz parte do enredo da própria história da Rússia. No filme, Ivan entra
128 em conflito com os tártaros-mongóis, em Kazan, por um lado, e com a Polônia e as províncias germânicas, por outro. A Rússia de Ivan expressa essas polaridades. O que Eisenstein parece tratar em Ivan, o Terrível é as contradições inerentes ao poder, das suas ambivalências e paradoxos. Não haveria força revolucionária sem uma percepção da história como montagem invertida, regressiva, como montagem de elementos anacrônicos. Esse mesmo sentido contraditório e violento se encontra também na concepção marxista sobre a história. Para Marx (embora isso não valha para o progressismo vulgar de Stálin), o registro da história não era outra coisa que o registro da luta de classes, uma montagem repleta de avanços, retrocessos e contradições. No roteiro da terceira parte inacabada do filme, a ambivalência Diabo Santo de Ivan fica ainda mais evidente quando o tsar tenta justificar as milhares de mortes cometidas em nome da unificação da Rússia a salvação por meio do pecado que pregava Rasputin.
(34)
TARKOVSKI, Esculpir o
Tempo, p. 77.
A primeira parte de Ivan, o Terrível ganhou o Prêmio Stálin em janeiro de 1946. A segunda parte, finalizada em dezembro de 1945, não teve o mesmo destino sofreu várias críticas e teve sua exibição proibida. A projeção da segunda parte só foi autorizada na URSS e no exterior a partir de 1958, dez anos depois da morte de Eisenstein e cinco anos depois da morte de Stálin. A complexidade do filme, seus detalhes, esses hieróglifos e significados ocultos aos quais se refere o cineasta Andriêi Tarkóvski (34), o converteram em uma das obras mais ambiciosas da história do cinema.
129 Referência bibliográfica AGAMBEN, G. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: UFMG, 2007. BULGAKOWA, O. Comment éditer Eisenstein? Problème de Méthode (extraits inédits) . In: Cinémas : revue d'études cinématographiques / Cinémas : journal of film studies, vol.11, nº2-3, 2001. CHESTERTON, G. K. A Inocência do Padre Brown. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2006. EISENSTEIN, S. M. Walt Disney. Strasbourg: Circé, 1991. _________. Mémoires. Paris: Julliard, 1989. _________. The Psychology of Composition. New York : Methuen Inc., 1988. _________.La Non-Indifférente Nature / 1. Paris: Union Générale d'Editions, 1976. _________. La Non-Indifférente Nature / 2. Paris: Union Générale d'Editions, 1978. _________; CHERKASOV, N. Stálin, Molotov and Zhdanov on Ivan the Terrible Part Two . In: TAYLOR, Richard (Edit.). The Eisenstein Reader. London: Palgrave Macmillan, 1998. GLENNY, M.; TAYLOR, R. (Edits.). Hacia una Teoría del Montaje. Buenos Aires : Paidós, 2001 (vols.1 e 2). GUTKIN, I. The magic of words . In: ROSENTHAL, B. G. The Occult in Russian and Soviet Culture. New York: Cornell University Press, 1997. YAMPOLSKY, M. The essential bone structure: mimesis in Eisenstein . In: CHRISTIE, I., TAYLOR, R. (Edits.). Eisenstein Rediscovered. London, New York: Routledge, 1988. JOLLES, A. A adivinha . In: Formas Simples: legenda, saga, mito, adivinha, ditado, caso memorável, conto, chiste. São Paulo: Cultrix, s/d. LÖVGREN, H. Sergei Eisenstein's Gnostic Circle . In: ROSENTHAL, B. G. The Occult in Russian and Soviet Culture. New York: Cornell University Press, 1997. _________. Eisenstein's Labyrinth: aspects of a cinematic syntheses of the arts. Stockholm: Almqvist & Wiksell International, 1996. PERRIE, M. The Cult of Ivan the Terrible in Stálin's Russia. New York: Palgrave, 2001. ROOB, A. Alquimia & Misticismo. Hong Kong, Köln, London, Los Angeles, Madrid, Paris, Tokyo: Taschen, 2006. TARKOVSKI, A. Esculpir o Tempo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. TAYLOR, R. (Org.). S. M. Eisenstein: selected works. Vol. III. Writings, 1934-47. London: British Film Institute, 1996. _________. The Eisenstein Reader. London: Palgrave Macmillan, 1998. THOMPSON, K. Eisenstein's Ivan the Terrible: a neoformalist analysis. Princeton: Princeton University Press, 1981.
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Ivan, o terrível (parte 1). (EISENSTEIN, 1944, 01:13:00, 01:14:34, 01:15:54 e 01:17:13)
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Ivan, o terrível (parte 1). (EISENSTEIN, 1944, 01:13:09)
From the years 1950, the French critic and theoretician André
A partir dos anos 1950, o crítico e teórico francês André Bazin
Bazin started a relentless attack to montage concept developed
iniciou um ataque implacável ao conceito de montagem
both theoretically and practically by Soviet filmmakers of the
desenvolvido tanto na teoria quanto na prática pelos cineastas
1920s, with special emphasis on the filmmaker and also
soviéticos da década 1920, com ênfase especial ao cineasta e
theoretician Sergei Eisenstein . If we could summarize in a few
também teórico Serguei Eisenstein. Se pudéssemos resumir, em
lines these various conceptual attitudes regarding montage, we
poucas linhas, essas várias atitudes conceituais com relação à
would say that, throughout the history of cinema, two
montagem, diríamos que, ao longo da história do cinema,
antagonistic approaches predominated and have clashed since
predominaram duas orientações antagônicas que se digladiaram
the dawn of this art: one for whom montage redeems the cinema
desde os primórdios dessa arte: uma para quem a montagem
of subservience to the visible world and imposes the eloquence
redime o cinema da subserviência ao mundo visível e lhe impõe a
of a language (Eisenstein), and another for whom the montage
eloquência de uma linguagem (Eisenstein), e outra para quem a
opposes the "ontological essence" of cinema, which would be to
montagem se contrapõe à “essência ontológica” do cinema, que
witness and respect the revelation that the world expose to the
seria a de testemunhar e respeitar a revelação que o mundo
camera (Bazin).
exibe à câmera (Bazin).
Bazin
versus
Eisenstein: como entender a polêmica
Arlindo Machado Ao longo da história do cinema, muitos embates acirrados foram afrontados, mas talvez nenhum tenha sidomais feroz que a polêmica em torno do papel da montagem no cinema, envolvendo o teórico francês André Bazin (1918-1958) e o cineasta e pensador russo-letão Serguei Eisenstein (1898-1948) . Foi um embate desproporcional e unilateral, é claro, pois Eisenstein já havia falecido quando Bazin começou a atacá-lo; portanto, um dos lados da polêmica não podia defender-se. O mote da contenda foi o conceito de realismo no cinema, que, para Bazin, baseava-se numa continuidade natural das coisas e seres que transitavam pela tela; e, para Eisenstein, era uma construção intelectual, motivada, tal como em Sócrates, pela busca da verdade das coisas. Existe uma relação estreita entre a continuidade ansiosamente buscada no cinema e o efeito de transparência introduzido nos sistemas pictóricos pela perspectiva renascentista: tanto um como outro visam censurar a refração produzida pelos meios geradores de sentido e simular um espaço-tempo íntegro que funciona como réplica do mundo visível. Seria o caso de se começar a refletir sobre as razões que levaram a grande maioria dos investigadores e teóricos do cinema como Balazs, Barbaro, Bazin, Aristarco, Kracauer, Mitry e tantos outros a capitular diante da ideologia que está embutida nos
ao lado
Ivan, o terrível (parte 2). (EISENSTEIN, 1945, 00:12:21)
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133 meios técnicos geradores do efeito cinema e a acreditar que as leis da continuidade nos permitiriam restituir a integridade do mundo diegético, dotando-o de um desenvolvimento contínuo, lógico e consistente, tal como na vida real , a ponto dos eventos parecerem estar lá por si sós. Talvez fosse o caso de supor que esse engodo seja ele próprio o resultado de uma sedimentação inconsciente da própria ideologia da qual o cinema é expressão no seio até mesmo das camadas intelectuais empenhadas em compreendê-lo: isso poderia explicar a abundância de um certo discurso apologético em relação ao cinema, um discurso, todavia, incapaz de colocá-lo realmente em questão.
(1)
“élimination inévitable
dans une réalité trop abondante”.
Esses teóricos nunca esconderam o seu desconforto diante da montagem explícita e desarticuladora da integridade do espaço representado, como é o caso extremo da montagem de Eisenstein, em que a manipulação do discurso das imagens, por ser evidente, compromete em definitivo a ilusão de realidade que se quer a qualquer custo preservar. A montagem que eles supõem ter maiores afinidades com a natureza do cinema é aquela que respeita a totalidade do real , não a violenta, não a fragmenta de forma irreversível, não a desmonta impiedosamente; vale dizer, uma montagem puramente negativa, cujo papel é apagar-se enquanto recurso expressivo. Essa concepção é particularmente cara a André Bazin, seu porta-voz mais eloquente e talvez o mais importante advogado da transparência que o cinema já produziu. A teoria de Bazin será a proclamação do reinado da continuidade, tomada em seu sentido mais absoluto: não apenas no nível lógico (consistência no desenvolvimento das ações), mas também no nível da percepção visual (desenvolvimento contínuo sem cortes) (XAVIER, 1977, p. 65). No limite, o auge do ideal baziniano seria alcançado num filme absolutamente destituído de montagem, ou seja, num filme composto de um único plano contínuo. Como essa condição é muito difícil de ser obtida, sobretudo num cinema preso a convenções narrativas herdadas do drama burguês, a montagem passa a cumprir para ele uma função de mera assepsia: eliminação inevitável de uma realidade demasiado abundante (1) (BAZIN, 1958, p. 134. Trad. nossa). É preciso conhecer um pouco mais de perto os meandros dessa aversão à montagem, sobretudo se considerarmos o papel central que as ideias de Bazin jogaram e ainda jogam nos terrenos da teoria e da prática cinematográficas. Segundo Bazin, o cinema conheceu três tipos principais de montagem. O primeiro deles é a montagem paralela, conhecida desde os primórdios do cinema, sobretudo nas narrativas de aventura, baseadas numa corrida contra o tempo, em que o herói luta contra obstáculos para salvar a heroína, colocada diante de um perigo fatal. Nesse tipo de montagem, trabalha-se com a simultaneidade de duas ou mais ações, afastadas no espaço ou no tempo, porém colocadas em continuidade, alternadamente, na evolução da película. Griffith
134 é o seu maior artífice. Em Intolerância (Intolerance, 1916), por exemplo, ele faz alinhavar nada menos que quatro ações diferentes, situadas em espaços e tempos absolutamente distintos, tais como a Babilônia antiga, a Galileia, dos tempos de Cristo, a França, de Catherine de Médicis e os Estados Unidos, do começo do século XX. Se bem que Bazin se refere a esse tipo de montagem como desintegradora da continuidade natural dos eventos, porque cada corte faz sucederem planos tomados em tempos e espaços diferentes, gerando, portanto, uma sucessão descontínua de imagens; a questão, na verdade, não se coloca nesses termos, pois se sabe que no final da película (ou do episódio) os dois ou mais espaços diferentes (e os seus tempos correspondentes) irão confluir num mesmo ponto, restabelecendo a continuidade que parecia esfacelada. Assim, a quebra aparente da continuidade se justifica pela obtenção de uma coerência narrativa maior: a abertura para um espaço homogêneo total, que se estende para além dos limites do quadro e que o espectador pode perceber como um universo contínuo em movimento. Esse é bem o sentido dos famosos finais à Griffith , em que as súbitas mudanças de local e as alternâncias de época apenas servem para criar um efeito de suspense emocional, embora tudo acabe por convergir ao final numa mesma conclusão redentora. A montagem paralela, nesse caso, longe de violentar as leis da continuidade, recupera-as num nível superior, duplicando a sua eficácia ideológica. Mais de acordo com a aversão de Bazin, estão os outros dois tipos de montagem que ele arrola: a montagem acelerada e a montagem de atrações. Por montagem acelerada, Bazin entende toda alteração da velocidade natural dos seres e objetos do mundo através do corte rápido: para exemplificar, ele cita A Roda (La roue, 1923), em que Abel Gance (1889-1981) cria um efeito de aceleração de uma locomotiva sem recorrer a imagens verdadeiras de um trem em velocidade, mas apenas fazendo multiplicar planos cada vez mais curtos. Embora Bazin não se refira a isso, poderiam caber ainda, nessa segunda categoria de montagem, os efeitos de dilatação de tempo e de espaço montagem retardada, talvez? obtidos através de sucessivos cortes e reenquadramentos de uma mesma ação: essa é bem uma característica do estilo de Eisenstein, conforme se pode verificar, entre outros exemplos, na interminável descida das escadarias de Odessa em O encouraçado Potiómkin (Bronenocets Potiômkin, 1925), na abertura infinita da ponte em Outubro (Oktiabr, 1928), ou na miraculosa multiplicação das moedas que caem sobre o monarca na primeira parte de Ivan, o terrível (Ivan Grozni,1945). Finalmente, o terceiro tipo de montagem a montagem de atrações constitui uma referência explícita a Eisenstein, muito embora fosse mais correto dizer montagem conceitual, já que o termo apontado por Bazin refere-se mais diretamente ao método teatral do cineasta soviético. Nessa terceira
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Intolerância. (GRIFFITH, 1918)
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(2) “le reforcement de sens d'une image par le rapprochement avec une autre image qui n'apparttient pas nécessairement au même événement.” (3) Conceito introduzido por Karl Marx em sua obra Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte (O Dezoito do Brumário de Louis Bonaparte, 1852), que procura explicar o surgimento de lideranças populistas, em momentos de graves conflitos de classe, que tentam se sobrepor às classes em conflito e se constituírem como forças a g l u t i n a n t e s
e
“pacificadoras”, como foi o caso de Bonaparte III na França de 1948/51. (4) “la création d'un sens que que les images ne c o n t i e n n e n t
p a s
objectivement et qui procede de leur seul rapport.”
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Efeito Kuleshóv. (KULESHÓV, década de 20)
categoria, Bazin coloca toda produção de sentido através das figuras de linguagem, como é o caso das elipses, das comparações, das metáforas e das metonímias. Ou para usar suas próprias palavras: o reforço de sentido de uma imagem obtido através da relação com outra imagem não necessariamente pertencente ao mesmo acontecimento (2) (BAZIN, 1958, p. 133. Trad. nossa). Por exemplo: a imagem de uma engrenagem industrial imobilizada, superposta a outra imagem de braços operários cruzando-se, como forma de designar a greve no filme A Greve (Statchka, 1925); ou a imagem do primeiro ministro Kerenski associada a uma estátua de Napoleão, como forma de significar o bonapartismo (3) do ditador (no filme Outubro). O arrolamento dessas várias modalidades de montagem serve a Bazin para identificar um traço comum, que para ele corresponde à própria definição de montagem: a criação de um sentido que as imagens não contêm objetivamente e que deriva do seu exclusivo interrelacionamento (4) (BAZIN, 1958, p. 133. Trad. nossa). Nesse sentido, a montagem aparece para Bazin como um intervalo artificial, um transformador estético que se interpõe entre a realidade bruta e o produto cinematográfico final, como forma de projetar um sentido explícito vale dizer, uma manipulação sobre a verdade imaculada das imagens. Essa ideia de que a montagem no cinema está ligada a uma manipulação maquiavélica do material registrado pela câmera provém de um célebre experimento realizado na Rússia dos anos 1920 pelo cineasta Liev Kuleshóv (1899-1970). Esse experimento conhecido como efeito Kuleshóv consistiu na justaposição de um primeiro plano do ator Ivan Mozjúkhin (com uma expressão indiferente) a três outros planos diferentes separadamente: 1º) um prato de sopa sobre uma mesa, 2º) uma mulher morta num caixão e 3º) uma criança brincando com seu ursinho de pelúcia. Na primeira associação, os espectadores liam fome no rosto de Mozjúkhin, na segunda, tristeza e, na terceira, felicidade. Ou seja, a simples justaposição de dois planos acrescentava um sentido que não estava necessariamente nas imagens isoladas e a montagem, mesmo na sua expressão mais rudimentar, tornava-se instrumento gerador de sentido. Se a montagem raciocinavam Bazin e seus seguidores é esse artifício que me permite tomar uma coisa por outra, fazendo-a valer não por aquilo que ela é, mas pela ausência que ela representa, se a montagem é essa redução do referente a um mero suporte do sentido, ela se torna necessariamente o terreno mais fértil da ideologia (no sentido vulgar de falsa consciência ou engodo ). A montagem era, com efeito, um meio de apanhar o espectador na cilada da ideologia que se pretendia impor-lhe, de torná-lo intelectualmente prisioneiro, impondo-lhe a evidência de uma demonstração. Diante das articulações da montagem, o espectador se colocaria como uma
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137 espécie de cachorro de Pavlov, respondendo automaticamente a uma demonstração dirigida e a uma ordem de leitura das imagens imposta pelo montador: veja isto, agora aquilo, agora relacione isto com aquilo e chegue a tal conclusão. Por essa razão, ao desalojar a montagem da posição hegemônica que ela gozava no cinema mudo, Bazin e os realistas em geral acreditavam estar dando um passo vital para fora da ideologia : livre das articulações e manipulações da montagem, o cinema se tornaria necessariamente mais democrático , dando liberdade ao espectador para formular, por sua própria conta, o sentido das imagens e reduziria o papel do cineasta à humilde tarefa de se submeter à objetividade do mundo, ser apenas a sua testemunha respeitosa, que se contenta em praticar o exercício de um olhar. As ideias de Bazin são contemporâneas do neo-realismo italiano, escola que justamente as materializava numa modalidade construtiva. Bem diversa, entretanto, eram as ideias que fervilhavam no começo do século. Durante a vigência do cinema mudo, as diversas vanguardas que experimentavam a nova mídia mas, sobretudo, a sua alavanca mais radical: a escola soviética elegeram a montagem como o coração do organismo fílmico e se atiraram a uma fértil experimentação no sentido de explorar criativamente os efeitos de ruptura gerados pelo corte. A montagem dizia Pudóvkin (1961, p. 31) nos anos 1920 é a grande força criativa da realidade cinematográfica e o que a natureza fornece é tão somente a matéria-prima que aquela elabora. Essa é precisamente a relação que existe entre o mundo objetivo e o mundo fílmico . Pudóvkin desenvolveu a noção de geografia criativa , que correspondia ao processo através do qual a montagem poderia conferir um efeito de contiguidade a imagens tomadas em espaços e tempos completamente distintos, ou então um efeito de totalidade através da combinação de partes pertencentes a realidades inteiramente diferentes. Numa experiência realizada em 1920, Pudóvkin juntou, através da montagem, os seguintes planos: 1º) uma jovem caminhando para a esquerda do quadro; 2º) um rapaz caminhando para a direita do quadro; 3º) os dois encontrando-se no centro do quadro, enquanto o rapaz apontava para uma direção; 4º) um edifício branco com uma grande escadaria; 5º) os dois jovens subindo as escadas. Qualquer espectador era capaz de compreender facilmente o que estava acontecendo, pois imaginaria que a sucessão dos planos deveria corresponder a um desenvolvimento linear da ação. No entanto esclareceu Pudóvkin, posteriormente (1961, p. 105) a jovem estava junto ao monumento a Gogol, em Moscou, enquanto o rapaz foi tomado nas proximidades de um edifício estatal em outro local; o encontro se deu em frente ao Teatro Bolshoi e a subida das escadas na Catedral de São Salvador; o prédio branco, por sua vez, era uma imagem da própria Casa Branca (Washington, D.C.), contratipada de um filme americano. Através desse exemplo, o cineasta soviético pretendia mostrar que o tempo e o espaço cinematográficos não eram meros reflexos dos tempos e espaços reais que a câmera teria captado objetivamente, mas eram entidades que a montagem criava nas suas articulações significantes. Por meio da montagem, o cinema poderia construir uma realidade própria, por mais absurda que ela se revelasse num confronto com a experiência pragmática, como, por exemplo, fazer os pedaços de um boi esquartejado se juntarem e recomporem um boi vivo através da montagem inversa, como fez Dziga Viértov, no episódio Matka (A mãe), de seu Cine Olho (Kino Glaz, 1924) , ou então construir a imagem de uma explosão usando uma chama de fogo intercalada com clarões de combustão de magnésio como fez o próprio Pudóvkin em O fim de São Petersburgo (Konietz SanktPeterburga, 1927). Pudóvkin não representa, entretanto, a tendência mais radical nessa estratégia de ataque do material fílmico. Essa posição quem a vai ocupar no cinema soviético será Eisenstein, sem nenhuma dúvida. Com muita frequência, Eisenstein interrompe o fluxo normal dos acontecimentos e introduz, na narrativa, elementos não pertencentes ao espaço da ação, rompendo abertamente com as leis da continuidade. A Greve tem, a esse respeito, alguns exemplos significativos: a inserção de cenas de matança de bois em plena
138 duração da sequência do esmagamento final da revolta operária, ou ainda a sequência do coquetel dos burgueses, em que o espremedor de limões permite saltar para os grevistas sendo pisoteados pela cavalaria do tsar. O fio narrativo dos filmes mudos de Eisenstein é apenas um eixo de referências, do qual o autor sempre salta em digressões. Em Outubro, por exemplo, a fragmentação da narrativa histórica para nela inserir comentários visuais assume tais proporções que não se admite concessões às normas clássicas de continuidade: a bandeira cristã de Kornílov é desmistificada pela inclusão de uma sequência de estátuas de deuses; a ascensão de Kerenski rumo ao poder é parodiada com a repetição ad infinitum do mesmo plano do ditador subindo as escadarias do palácio; o putsch direitista para derrubar o governo provisório e reconduzir o tsar ao poder é comentado pela reconstituição (graças à montagem inversa) da estátua do tsar Alexandre III, que se refaz a partir de seus pedaços (MACHADO, 1982, p. 64-69). No Encouraçado Potiómkin, quando os manifestantes de Odessa saem para as ruas em solidariedade aos marinheiros amotinados, Eisenstein quebra continuamente o eixo da câmera para inverter o fluxo da multidão ora para um lado, ora para o lado oposto; como resultado, a massa de manifestantes caminha para várias direções diferentes ao mesmo tempo, muito embora, do ponto de vista da narrativa, ela estaria se dirigindo para o mesmo ponto: ao encouraçado. Na sequência dos barcos que levam mantimentos aos insurretos do Potiómkin, a montagem efetua um estonteante conflito de direções. Numa primeira tomada, vemos os barcos em diagonal ao quadro, navegando no sentido da esquerda para a direita; na tomada seguinte, os barcos dirigem-se no sentido da direita para a esquerda e, na terceira tomada, vemos barcos navegando em direções opostas, cruzando-se no centro do quadro. Esse conflito de direções opostas é tanto mais desconcertante quando se sabe que todos os barcos estavam se dirigindo para o Potiómkin. Ocorre que Eisenstein não estava interessado na lógica de verossimilhança dos eventos, mas sim em privilegiar, a todo momento, uma multiplicidade de pontos de vista, que constitui o eixo central de sua interpretação da revolução de 1905 (MACHADO, 1982, p. 45-47). Não satisfeito com isso, Eisenstein rompe ainda com a contiguidade do tempo narrativo, de forma que determinadas sequências de seus filmes (como aquelas já anteriormente citadas, em que ocorre uma dilatação do tempo natural ), longe de imitar um desenvolvimento natural e contínuo das ações, são estendidas para além da sua duração normal , graças à repetição do mesmo movimento sob os mais diversos ângulos. No cinema de Eisenstein, a sucessão dos acontecimentos não obedece a uma causalidade linear, muito menos se dobra ao código da continuidade clássica; nele se trabalha mais com a justaposição de planos, de preferência conflitantes entre si, do que com o encadeamento natural e imperceptível das várias tomadas; busca-se mais a desestabilização de uma montagem irregular e descontínua que a linearidade e o equilíbrio dos dogmas renascentistas que norteiam a montagem realista; enfim, dá-se ênfase mais à enunciação (produção de sentidos) do que ao ilusionismo ingênuo do cinema subordinado ao princípio da continuidade. Se pudéssemos resumir essas várias atitudes com relação à montagem num esquema simplificador, diríamos que existem duas orientações antagônicas que se digladiam desde a invenção do cinema: uma para quem a montagem redime o cinema da subserviência ao mundo visível e lhe impõe a eloquência de uma linguagem (Eisenstein), e outra para quem a montagem se contrapõe à essência ontológica do cinema, que seria a de testemunhar e respeitar a revelação que o mundo exibe à câmera (Bazin). Grosso modo, a primeira vertente conheceu o seu apogeu na época do mudo e entrou em crise com o cinema falado, enquanto a segunda sofreu um desenvolvimento inverso. Mas não se pode tirar daí a conclusão de que a montagem explícita e a montagem dissimulada sejam expressões, respectivamente, dos cinemas mudo e sonoro: grande parte do cinema americano demonstrou desde o início, e em pleno coração do mudo, uma opção pela transparência ; por outro lado, malgrado o advento do som tenha desbancado o cinema soviético do seu lugar pioneiro, várias frentes renovadoras (Welles, Resnais, Godard, o
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(5) “les metteurs en scène qui croient à l'image et ceux qui croient à la réalité. ”
(6) “une extraordinaire illustration de la fameuse expérience de Koulechov sur le gros plan de Mosjoukine”.
(7) “Le montage, dont on
underground e o experimentalismo internacional) lograram perfurar o modelo de narração dominante, sobretudo através de uma articulação radical da montagem. Bazin (1958, p. 132) interpretou, a seu modo, esse antagonismo, explicando-o como um conflito entre os realizadores que creem na imagem e os que creem na realidade (5) (Trad. nossa). Por imagem , o ensaísta francês designa todo suplemento simbólico com que se valoriza ou se modifica (vale dizer: com que se manipula ) a pura imanência das coisas captada pela câmera. Esse suplemento, apesar de complexo, Bazin o reduz basicamente a dois grupos de elementos: a plástica e a montagem. Quando ele fala em plástica, ele se refere ao trabalho de estilização dos cenários e de modelação das expressões através da iluminação e da maquilagem: sua vítima aqui é menos a vanguarda soviética do que o expressionismo alemão, que, na sua opinião, maculava a textura natural do mundo com a artificialidade da representação. Plástica e montagem seriam, portanto, as duas pragas principais que ameaçam comprometer a integridade do espaço-tempo cinematográficos, com violências e deslocamentos semióticos. A melhor colocação das ideias de Bazin está na comparação que ele faz entre dois filmes fantasiosos para crianças: Une fée comme lês autres (1957), de Jean Tourane, espécie de Walt Disney rodado com animais de verdade, e Le ballon rouge (1956), de Albert Lamorisse, cuja ação gira em torno de um balão que segue um menino pelas ruas da cidade. O primeiro caso é uma extraordinária ilustração da famosa experiência de Kuleshóv sobre o primeiro plano de Mozjúkhin (6) (BAZIN, 1958, p. 119. Trad. nossa): os animais, na verdade, não realizam nada daquilo que os vemos fazer na tela. Todo o sentido humano revelado pelos seus movimentos é dado pela montagem, de forma que a passividade das bestas se converte em simulação de gestos humanos através da articulação de cortes.
nous répète si souvent qu'il est l'essence du cinéma, est dans cette conjecture le procédé littéraire et anticinématographique par excellence. La spécificité cinématographique, saisie
A montagem, que nós repetimos com tanta frequência que é a essência do cinema, torna-se nesse exemplo o procedimento literário e anticinematográfico por excelência. A especificidade do cinema, no seu estado mais puro, reside, pelo contrário, no simples respeito cinematográfico pela unidade do espaço (7)(BAZIN, 1958, p. 124. Trad. nossa).
pour une fois à l'état pur, réside ao contraire dans le s i m p l e
r e s p e c t
photographique de l'unité de l'espace”.
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Encouraçado Potemkin. (EISENSTIEN, 1925, 00:36:30, 00:36:44, 00:36:49 e 00:37:06)
No extremo inverso, toda a euforia de Bazin para com Le ballon rouge reside no fato de Lamorisse não ter usado a montagem para sugerir a relação do balão com o menino, ou seja, os dois personagens são mostrados simultaneamente no mesmo quadro, de forma que o imaginário adquire na tela a densidade do real . Mesmo sabendo que tudo não passa de um truque cinematográfico explica Bazin o que importa é a verossimilhança produzida pela câmera e seus acessórios, a unidade espaço-temporal que torna possível acreditar na
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(8) “Quand l'essentiel d'un événement est dependent d'une présence simultanée de deux ou plusieurs facteurs de l'acton, le montage est interdit.”
realidade dos acontecimentos mostrados (BAZIN, 1958, p. 124). Dando sequência a essa linha de argumentação, ele extrai finalmente o seu princípio de base, que representa também uma declaração de guerra à montagem: Quando o essencial de um acontecimento depende da presença simultânea de dois ou mais fatores da ação, a montagem está interditada (8) (BAZIN, 1958, p. 127. Trad. nossa). Se em mais de um século de história do cinema, críticos e teóricos da nova arte acumularam reflexões na maior parte das vezes cegas às consequências ideológicas do efeito especular, não é de se estranhar que a radicalidade do método de Eisenstein, com toda sua carga desmistificadora, tenha provocado um mal estar geral. Nenhum autor de cinema foi mais criticado durante esse tempo todo do que Eisenstein (malgrado todos sejam unânimes em apontar sua genialidade ): seu cinema foi condenado a personificar a manipulação , a intervenção mutiladora da máquina e do seu operador, o desrespeito para com a realidade registrada na película. Mas todo ataque a Eisenstein, que o reduz a um mero articulador de truques, pressupõe, da parte de quem o ataca, uma fé no poder da câmera de revelar por si só o existente, sem necessidade de artifícios e simbolismos exteriores ao evento registrado. De fato, o pressuposto básico dos antieisensteinianos é a crença numa neutralidade ontológica do mecanismo cinematográfico: o aparelho de base do cinema estaria apto a nos dar sempre o reflexo virgem do real , isento de preconceitos e afetações, numa palavra, a coisa como ela é. Esse é bem o ponto de vista de André Bazin, para quem o cinema teria por função fixar e testemunhar a existência de seres e coisas, deixar que a realidade se revele a si mesma no que ela tem de essencial, ao invés de violentar sua integridade com metáforas e jogos de montagem. Ao contrário do que pode parecer, o ensaísta francês não advoga, com esses pressupostos, a defesa de um cinema documental, de puro registro do mundo visível; antes, o cinema que ele considera legítimo pode ser a mais delirante ficção, desde que o mundo reconstruído pela imaginação dos técnicos e artistas apareça como se fosse o próprio real , ou seja, como a reconstrução de um espaço-tempo integral, contínuo, sem rupturas e sem limites. Mesmo admitindo que o cinema é um mecanismo produtor de ilusões, Bazin considera que ele goza de um poder de compor um mundo imaginário que funciona como réplica perfeita do real , já que é construído à sua imagem e semelhança (frase bíblica que Bazin gostava de usar). Coerentemente com o estilo que solicita, Bazin quer um cinema que só conheça a imanência um cinema que só veja o que vem do real; uma passividade no olhar, cuja isenção o torna capaz de 'receber' o que emana dos seres e do mundo. O mergulho radical na aparência fica sendo a condição para a acumulação de dados sensíveis capazes de provocar a ascensão (desencavação) das idéias [sic] justas não ideológicas (XAVIER, 1977, p. 75).
143 Não é difícil medir os limites desse delírio idealista, a facilidade com que ele joga com conceitos tão problemáticos como realidade , ideologia , liberdade e manipulação , fora de qualquer referencial que não o do senso comum. Trata-se agora, porém, menos de rebater argumentos com argumentos, evitando cair na cilada do realismo ou discutir na esterilidade de seu terreno e mais desvelar os compromissos que estão ocultos sob a máscara desse liberalismo de superfície. Não nos parece que a produção dominante nos anos posteriores ao advento do som celebrada como modelo e encarnação dos postulados realistas tenha abolido a hegemonia da montagem; antes, é a partir daí que a montagem ganha a primazia entre os procedimentos técnicos, já que é a premissa das próprias regras de continuidade que todos os artifícios reclamados para a elaboração do filme concorram para possibilitar o corte, ou mais precisamente, para escondê-lo. Ora, se a posição da câmera, os recursos de iluminação, a sequência musical do fundo sonoro e demais recursos expressivos operam no sentido de atenuar a violência do corte, de forma que o filme apareça como um fluir contínuo e natural de eventos, seguramente é a montagem que comanda o sistema simbólico. Bazin afirma, por exemplo, que o advento do som exigiu, por razões técnicas inclusive, uma diminuição da quantidade de planos e, portanto, uma queda na ocorrência dos cortes. Mas isso não significa que a montagem perdeu a sua função no cinema sonoro: ela foi apenas interiorizada no plano. O realista pressupõe, em sua ingenuidade, que a impressão de naturalidade e homogeneidade do espaço-tempo cinematográfico, que faz com que o mundo representado na tela apareça como se fosse a própria realidade, seja o resultado de um despojamento do aparato técnico de toda impostação, manipulação ou trucagem, de modo que reste apenas o seu poder ontológico de registrar uma emanação do real. Mas o que ocorre, na realidade, é exatamente o inverso: o mundo diegético só pode aparecer no cinema como um reflexo direto do mundo dos homens à custa de um trabalho de manipulação sem fim, em que a descontinuidade de base do mecanismo técnico seja violentada a todo instante. O que o olho desprevenido enxerga como uma continuidade na tela não é senão uma descontinuidade altamente codificada, se bem que também habilmente ocultada; isso, em termos epistemológicos, quer dizer que o cinema nos dá como conhecimento aquilo que é fundamentalmente um desconhecimento absoluto. Talvez possamos entender agora porque a montagem ostensiva de Eisenstein, ao contrário do que o idealismo propaga, seja muito mais democrática e muito menos impositiva do que as leis da continuidade que fundam a montagem invisível. Longe de pretender um dirigismo da consciência, Eisenstein visava liberar o espectador do signo pronto e empacotado, fazendo o sentido brotar, formar-se, surgir diante dele, a partir do material particular com que o cineasta trabalha. Trata-se, sem dúvida, de uma demonstração, mas de uma demonstração que está à mostra, que não se esconde enquanto tal, de modo que deixa o espectador livre para aceitá-la ou rejeitá-la. Em outras palavras, o que se busca com a articulação explícita da montagem, fazendo-a operar abertamente à vista de todos, é revelar o trabalho de produção de sentidos, para que o consumo do produto provoque um efeito de conhecimento. A virtude da montagem consiste em que a emotividade e o raciocínio do espectador interferem no processo de criação. O espectador segue o caminho que foi seguido pelo autor quando ele construía a imagem. Ele não vê apenas os elementos representados; revive o processo dinâmico da aparição e da formação da imagem tal como a viveu o autor. É provavelmente o mais alto grau possível de aproximação para comunicar ao espectador a ideia e o sentimento do autor em toda sua plenitude, para os transmitir com esse poderio de verdade física com a qual eles se impunham ao autor nos momentos de seu trabalho criador e de sua visão criadora (...) A virtude desse método consiste ainda em que o espectador fica envolvido num ato de criação, no decorrer do qual a sua personalidade, longe de se escravizar à do autor, desabrocha, fundindo-se do mesmo modo que a personalidade do grande ator se funde com a personalidade do grande autor, na criação de um personagem clássico (9) (EISENSTEIN, 1964, p. 170-171. Trad. nossa).
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(9) “Ϲилa монтажа в том, что в творческий процесс сключаются эмоции и разум зрителя. Зрителя заставляют п р о д е л а т
т о т
ж е
созидательный путъ, которым прошел автор, создавая образ. Зрителъ не толъко видит изобразимые элементы произведения, но о н
и
п е р е ж и в а е т
динамический процесс в о з н и к н о в е н и я
и
становления образа так, как переживал его автор. Это и естъ, видимо, наиболъшая возможная степенъ приближения к тому, чтобы зрителъно передатъ во всей полноте ощущения и замысел автора, передатъ с той силой физической ощутимости, с какой они стояли перед автором в минуты творческой работы и творческого видения. (...) Сила этого метода ещо в том, что зрителъ втягивается в такой творческий акт, в к о т о р о м
е г о
индивидуалъностъ не толъко не порабощается индивидуалъностъю автора, раскрывается до конца в слияний с авторским смыслом так, как сливается индивидуалъностъ великого актера с индивидуалъностъю великого драматурга в созданий классического сценического образа.”
Jean-Louis Baudry (1975, p.56-72) compara o cinema a uma espécie de aparelho psíquico que responde ao modelo definido pela ideologia dominante: há um sistema repressivo (antes de mais nada, econômico) que visa impedir os desvios desse modelo; há um inconsciente reprimido, que é o modo de produção dos filmes em suas múltiplas determinações, entre as quais as dependentes da base instrumental. Em circunstâncias históricas propícias, semelhantes àquelas rupturas revolucionárias em que, segundo Voloshinov (1930, p. 28), se revela a dialética interna dos signos, há um retorno do reprimido, cujos efeitos perturbadores causados pelo desvelamento da inscrição do trabalho fazem desmoronar a normalidade da visão realista . Tal é justamente a situação que se verificou na Rússia soviética, nos anos imediatamente posteriores à Revolução: o revolvimento dos modelos políticos e econômicos foi acompanhado pari passu, no terreno das práticas culturais engajadas na aventura revolucionária, por um processo de ruptura radical em relação aos arquétipos ideológicos herdados da tradição burguesa ocidental. Baudry (1970, p. 8) invoca como exemplo a chegada do instrumento gerador de sentidos em carne e osso no O Homem com uma câmera (Tcheloviek s kinoaparatom, 1929) de Dziga Viértov, mas nesse inconsciente que vaza para fora do sistema repressivo bem poderiam caber também a grande maioria dos realizadores soviéticos do período mudo, como Kuleshóv, Eisenstein, Kózintsev, Trauberg, Maiakóvski e tantos outros. Uma convulsão desconstrutiva de idênticas proporções só voltaria a ocorrer no cinema após os acontecimentos políticos de 1968 no Ocidente, que abriram terreno para que toda uma geração de homens de cinema como Godard, Straub ou Syberberg se dedicasse de forma implacável a uma demolição dos suportes ideológicos produzidos pela câmera e seus acessórios. Psicanálise e marxismo, em todo caso, se combinaram para trazer à tona um cinema revolucionário, cujo produto é o conhecimento dele próprio como código gerador de ideologias. Tal cinema, ao destruir os suportes da representação especular, ao desmistificar os artifícios da transparência , produz ao mesmo tempo uma espécie de autoconhecimento, que é pré-condição essencial para a compreensão da realidade que engloba e ultrapassa o filme.
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146 Referência bibliográfica XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico. Opacidade e Transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. BAZIN, André. Qu'est-ce que le cinema? Paris: Cerf, 1958. PUDÓVKIN, Vsevolod. Argumento e Realização. Lisboa: Arcádia, 1961. MACHADO, Arlindo. Eisenstein: Geometria do Êxtase. São Paulo: Brasiliense, 1982. EISENSTEIN, Serguei. Montaj 1938 . Izbrannie Proizvedeniia v Chesti Tomakh. Moskva: Iskusstivo, 1964. Tom 2. VOLOCHINOV, V. N. Markcism i Filossofiia Iaziká. Leningrad, 1930. [reimp. fac simile The Hague: Mouton, 1972]. BAUDRY, Jean-Louis. Cinéma: effets idéologiqu es produits par l'appareil de base. Cinéthique, 7/8, 1970. _______________ . Le dispositif: Approches métapsychologiques de l'impression de realité . Communications, 23, 1975.
ao lado
Cartaz do filme Ivan, o terrível (parte 2). (EISENSTEIN, 1945)
The purpose of this work is to present the poet,
Este artigo apresenta a trajetória do poeta, tradutor
translator and essayist David Vygodski, an
e ensaísta David Vigódski, um personagem pouco
intellectual not well-known by Russian studies. This
conhecido pela russística internacional. O texto
article discusses Vygodski´s biography as well as
comenta a biografia de Vigódski, a importância de
the importance of his personal archive and his
seu acervo pessoal e sua participação nas relações
participation on the cultural relations between the
culturais entre a URSS e a América Latina.
URSS and Latin America.
David Vygódski e um conto cinematográfico Bruno Barretto Gomide (1) GOMIDE, Bruno. David Vigódski: a voz solitária de uma biblioteca. Kinoruss, n. 3, 2012.
A riqueza do acervo de David Vigódski, depositado na Biblioteca Nacional Russa em São Petersburgo, foi motivo de artigo publicado em número anterior desta revista (1). Junto com as cartas, diários e documentos pessoais, que ajudam a reconstituir a complexa tessitura da vida intelectual russa e soviética nas décadas de vinte e trinta, há centenas de artigos sobre temas variados: o teatro, na Bielorússia, os poetas futuristas, a presença da poesia de Balmont e Sologub, as tensões entre centro e periferia na nova correlação de forças políticas e culturais da União Soviética, resenhas sobre temas japoneses, portugueses, venezuelanos e ucranianos, edições recentes de Púshkin, novos métodos críticos. Alguns textos têm um caráter de simples divulgação. Outros são ensaios mais alentados, trazendo uma considerável dose de pesquisa e erudição. Vistos em conjunto, confirmam Vigódski como um crítico arguto e diversificado (e como um intelectual atravessado pelas múltiplas contradições do período). Um desses artigos descortina os interesses de Vigódski no período imediatamente posterior à Guerra Civil, quando ele já voltara a residir em Petrogrado. Permite também um olhar sobre as variantes do internacionalismo dos intelectuais russos, assunto que não cessará de gerar configurações políticas e culturais ao longo dos anos subsequentes. A breve resenha traz o título Um conto cinematográfico. Jules Romains Donogoo-Tonka ou os milagres da ciência. Ela se refere à edição russa recém-lançada em Petrogrado pela Vsemírnaia literatura (Literatura mundial), editora com a qual Vigódski colaborava. Foi publicada no segundo número da revista Rossíia (Rússia), em setembro de 1922. Este periódico é um dos sinalizadores do novo ambiente da Nova Política
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149 Econômica. Duas características da NEP, no plano cultural, caracterizam as suas páginas: a intensa tradução e publicação de romances estrangeiros (que, ao contrário do que habitualmente se pensa, não cessará durante o período do Alto Stalinismo ), e a atuação de agrupamentos literários que mesclavam temas políticos revolucionários com a valorização da pluralidade artística. Os Irmãos de Serapião tinham destaque entre esses grupos Elizavieta Polónskaia, Liev Luntz, Ievguêni Zamiátin, Konstantin Fiédin, Mikhail Slonímski e Nikolai Tíkhonov, entre outros todos ligados a Vigódski e sobre os quais ele escreveria muitos artigos críticos. Em Rossíia, também aparecem amigos e conhecidos de Vigódski não ligados aos Serapiões , como Óssip Mandelstam, além de outros autores importantes do período (Biéli, Pilniak, Bulgákov) com os quais ele parece não ter tido conexões. Jules Romains (pseudônimo de Louis Henri Jean Farigoule, 1885-1972) foi um escritor prolífico. Vinha poligrafando desde o começo do século e já era, na altura em que Vigódski escreve o artigo, autor de quase duas dezenas de obras, sendo que o Donogoo-Tonka datava de 1920. A mais caudalosa, o ciclo de nada menos do que vinte e sete romances intitulado Os homens de boa vontade, ainda estava por vir, aos quais se somariam outras dezenas de títulos. Romains também ganhou certa fama pelo movimento literário que fundou no começo do século, o unanimismo, valorizador da existência urbana coletiva e suas relações com a literatura e a tecnologia. A proposta cinematográfica do romance Donogoo-Tonka dá margem a associações com o ismo criado pelo escritor francês. Vigódski talvez as reverbere na menção à multidão que abre a resenha.
(2) Dada a ausência de bibliografia sobre Vigódski, todas as considerações sobre s u a
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necessariamente provisórias e dependem de acesso ao seu arquivo, em São Petersburgo. Contudo, vale observar que, naquele começo de década, a discussão sobre as possibilidades estratégicas do cinema estava na ordem do dia na Rússia soviética.
O resumo do enredo farsesco de Donogoo-Tonka está disponível a seguir, na tradução da resenha de Vigódski. O livro parece ter tido alguma repercussão ao longo dos tempos em seu país natal. Foi encenado em teatros parisienses a partir da década de 1920, inclusive recentemente, mas sua transformação em filme, decorrência natural das propostas do texto, aconteceu em 1936, em plena Alemanha nazista. O livro ficou popular na União Soviética e serviu de mote para o título de um importante artigo de Viktor Shklóvski (Um monumento ao erro científico, de janeiro de 1930), escrito em um momento delicado para o formalismo russo. Há pouco tempo, DonogooTonka foi publicado em inglês pela editora especializada em (sintomaticamente) arquitetura da universidade Princeton, onde ganhou uma introdução que enfatiza o seu aspecto inovador no tratamento das relações entre cinema e literatura. Salvo engano, é o único texto de Vigódski sobre o cinema (2). Os parágrafos em que ele resume o entrecho, feitos de cortes rápidos, parecem, aliás, inspirados pela proposta cinematográfica do assunto resenhado. A despeito do assunto sui generis em sua obra, a resenha fornece um microcosmo das preocupações do crítico e tradutor.
150 Em primeiro lugar, permite pensar no internacionalismo soviético dos anos trinta, do qual David Vigódski participou intensamente, como algo já parcialmente prefigurado por intelectuais russos durante o primeiro período revolucionário (e possivelmente antes), e não como um discurso exclusivamente imposto pelo partido, conforme sugere a grande narrativa sobre coerção que norteia a compreensão habitual que temos do período. Outro tema caro a Vigódski é o do papel da tradução no novo contexto soviético. Em praticamente todas as resenhas e artigos que escreveu, ele deixou observações sobre o tema, quando esse não foi o assunto principal. Em Donogoo-Tonka entrevemos uma concepção recorrente (ainda que não a única) de Vigódski sobre a tradução. Esta não deve ser apenas uma forma de adensar o contato com grandes obras e nomes da cultura universal, mas uma estratégia para fazer circular nomes menores e aparentemente secundários, priorizando o aspecto divulgativo e fortalecendo uma rede de contatos e aproximações entre periferias: lugares exóticos , províncias que guardam tesouros insuspeitados, poetas pouco valorizados pela tradição literária. Um tópico ligado a esse é o das viagens literárias, que aparecem constantemente nos primeiros artigos de Vigódski, escritos em jornais de Gómel no começo da década de 1910. Certamente a sua identificação com o poeta simbolista Konstantin Balmont (18671942), que ele analisou repetidamente nos textos de juventude, tem relação com esse aspecto. Balmont empreendeu várias viagens ao redor do mundo, que incluíram a África do Sul, Austrália, Nova Zelândia e Polinésia uma toponímia bastante vigodskiana. Além disso, ele foi tradutor de poesia georgiana, japonesa e hindu. Por volta de 1914, quando Vigódski começa a escrever sobre ele, Balmont migrava para a periferia da vida literária russa. As várias tentativas vigodskianas de incrementar a província bielorussa em que vivia, feitas até a sua definitiva instalação em Petrogrado, também pertencem a esse universo. De modo mais tortuoso, essas questões tentavam dar conta também da posição relativamente periférica do próprio Vigódski dentro da vida intelectual russa. Como hipótese para o estudo da obra vigodskiana, podemos sugerir que a sua tônica recaía muito mais no espaço do que no tempo, embora certamente marcado pela preocupação com a história e seus fardos, o rumor do tempo característico da cultura russo-judaica a que pertencia.. Em seus artigos, os nomes de peso da grande tradição literária russa de prosa, como Dostoiévski ou Tolstói, praticamente não aparecem. No campo da poesia, há uma presença maior de medalhões, mas o foco é reservado a autores novos: nomes fortes, como os de Maiakóvski e Akhmátova, mas ainda não consagrados, e nomes de segundo plano que necessitavam de validação, de um lugar. O mapa-múndi vigodskiano é, portanto, um espaço composto por pontos aparentemente díspares como Gómel, Uzbequistão, Geórgia, a América Latina e os tópoi da poesia judaica, mediados e unidos por experimentações com linguagens universais como o esperanto, o marxismo ou a tradução. Donogoo-Tonka, com sua peripécia geográfica, fornece uma versão cômica dessa cartografia. Vigódski poucas vezes utilizou diretamente os novos métodos críticos russos, embora visivelmente estivesse a par deles e volta e meia os comentasse. Na resenha do livro de Jules Romains, podemos ouvir ecos das preocupações teóricas do formalismo e de outras vertentes críticas. Por fim, a resenha traz provavelmente a primeira menção de David Vigódski sobre aqueles espaços quintessencialmente periféricos na imaginação russa, a América Latina e o Brasil, searas nas quais ele se tornou conhecido entre os contemporâneos e que ocupariam um bom tanto de sua obra.
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ao lado
Capas de livros e cartazes de teatro e cinema do livro Donogoo Tonka.
152 Jules Romains, quase ignorado na Rússia, é conhecido de longa data na França como um poeta de voz potente e voltada para a multidão. Suas páginas talentosas e sempre novas não ressoam com as suaves melodias da lírica de câmara, e sim com o trombetear das ruas. Não é de surpreender que precisamente ele tivesse a ideia de aplicar todas as conquistas da técnica cinematográfica a uma obra literária. Há muito se fala da influência do cinema na literatura, mas todas essas discussões tinham principalmente caráter de teorização abstrata e eram duvidosamente embasadas com fatos. O Conto cinematográfico, de Jules Romains, é a primeira tentativa, em grande medida bem-sucedida, de utilizar procedimentos da influência cinematográfica e dos efeitos cinematográficos sobre o leitor-espectador. O enredo do conto é dos mais fantásticos. Lamandin decide se matar. Seu amigo lhe dá o endereço de um professor que curava desejos semelhantes. Isso o leva ao encontro com um geógrafo que sonhava ser escolhido para a Academia e publicara informes sobre uma cidade na América do Sul (Donogoo-Tonka), inexistente, mas supostamente descoberta por ele. Ninguém acredita. Lamanden tem que demonstrar a existência da cidade antes da eleição para a Academia: se ela não existe, é preciso fundá-la. Anuncia-se, em todo canto, a ourífera Donogoo e suas riquezas inexauríveis. Daí resulta uma empresa para sua exploração. As ações são arrebatadas. Vem a propaganda subsequente: Ouro! Ouro! Aventureiros desempregados em Marselha, Amsterdã, Nápoles e Singapura ouvem falar de Donogoo. Um grupo se arregimenta e viaja. Procuram e não encontram. Acabam em um lugar deserto. De brincadeira, erguem uma coluna com a inscrição: “Donogoo-Tonka”. Chega outro grupo. Encontra a cidade desejada. Já há restaurantes e hotéis. Topam com ouro. Enquanto isso, Lamandin organiza um grupo de pioneiros. Vão para o Brasil. Os pioneiros, ao descobrirem o segredo, entram em desespero. No Rio de Janeiro, Lamanden inesperadamente encontra uma declaração: “No sábado, 29 de outubro, partida para Donogoo-Tonka... Agência Meyer-Cohn”. Acontece que os primeiros habitantes agora já glorificavam um rincão realmente ourífero. Lamanden chega trazendo milhões. Afinal, a cidade é toda dele. Ele é o governante mundano e espiritual. O famoso geógrafo acadêmico é o “Pai da Pátria”. Sua apoteose é o “Templo do Erro Científico”. Há um monumento ao “Pai da Pátria”. O enredo por si só já possui todos os atributos cinematográficos, e revela-os com extremo brilho durante o seu desenrolar. A mudança extraordinariamente rápida de quadros e posições, o desdobramento veloz de cada um deles, por vezes a sua simultaneidade – tudo isso demanda o máximo de parceria criativa por parte do leitor. Este é obrigado a completar os quadros, a visualizar os episódios, preencher os vazios e os hiatos, relacionar e combinar os fragmentos. Ele não dispõe de nenhum diálogo, e é, portanto, obrigado a inventá-los. Nenhuma descrição é apresentada: elas ficarão integralmente nos
153 domínios da sua fantasia. O leitor recebe apenas algumas referências para que não se perca na fantasia desvairada, mas entre uma e outra referência ele seguirá livre o seu caminho. Não apenas estará livre, como também deve escolhê-lo. Nisso reside, por um lado, o interesse profundo que a obra suscita: o leitor, bem ou mal, adquire um caráter de criador ativo; por outro, seu alcance popular, a capacidade de influenciar a máxima quantidade de leitores. Por fim, essa obra permite a realização de uma terceira tarefa, que supomos talvez a mais importante: a tarefa de internacionalização da literatura. A literatura, em sua especificidade, sempre foi uma arte de tipo mais nacional. Isso é resultado das palavras que residem em seu âmago. Um poema francês em seu aspecto original não apenas era incompreensível a um russo, mas também intraduzível, pois a palavra poética é em si mesma profundamente intraduzível, e não há palavras idênticas nas poesias de duas línguas. Por mais precisos e talentosos que sejamos na tradução, o Homero grego e o Homero russo não serão idênticos, não recobrirão um ao outro sem deixar resíduos. A palavra poética é um círculo, e todas as suas traduções são polígonos inscritos no seu interior. Eles se aproximam infindavelmente, sem nunca coincidir com ela. A obra concreta de Romains é outra coisa. Ali, a palavra como tal é destruída, simplesmente não existe. Dela só restaram sinais algébricos, combinações e composições variadas que conduzem a posições, episódios e quadros múltiplos, internacionais em essência. Uma palavra da qual se retire o conteúdo eufônico e emocional deixa de ser poética e também nacional, e adquire um caráter geral e obrigatório. E aquilo que não podemos dizer de Homero, podemos de Romains: seu conto é idêntico em francês e em russo. Ele não mudaria na tradução para o chinês ou o romeno. Aqui surge outra questão. A literatura poética sempre existiu (e de outro modo seria inconcebível) como palavra artística. A recusa da palavra não seria ao mesmo tempo uma recusa de se criar uma obra literária? Parece-nos que não. A questão sobre a supremacia da palavra ou do enredo é atual em nossa literatura. Até o momento, na prática, nós vimos a sua resolução em uma direção, a da completa recusa ao enredo. Agora estamos assistindo ao contrário: o enredo em forma pura. É certo que se trata de um foco ou um truque gerado pelo tedioso impasse da prosa europeia, mas tudo indica que é um daqueles truques efetivamente capazes de abrir novos caminhos. Nós, intencionalmente, silenciamos a propósito do significado satírico de Donogoo-Tonka (ali se pode encontrar a academia francesa, o capitalismo contemporâneo, a religião), já que os méritos e especificidades da obra não residem nessas searas. Eles estão inteiramente na construção da obra.
154 Bibliografia CLARK, Katerina. Petersburg, crucible of cultural revolution. Cambridge e Londres: Harvard University Press, 1995. GOMIDE, Bruno. David Vigódski: a voz solitária de uma biblioteca . In. Kinoruss, n. 3, 2012. pp. 149160. NATSIOS, Deborah. The geographer in Jules Romains´ Donogoo Tonka or The miracles of science: a cinematographic tale. http://www.cryptome.org/cartome/Natsios-Donogoo-Tonka.pdf (acesso verificado em 10 de março de 2013). VYGÓDSKI, David. KinematografÍtcheskii rasskaz. Jiul Romen Rossíia, n. 2, set. 1922.
Donogoa Tonka ili tchudessa naúki .
WILLIAMS, Rosalind. Jules Romains, Unanimisme, and the poetics of urban systems . In: GREENBERG, Mark L.; SCHACHTERLE, Lance (Orgs). Literature and technology. Bethlehem: Lehigh University Press, 1992.
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O filme frente a seu abismo: Eisenstein e o ensino de cinema José Manuel Mouriño traduzido por Erivoneide Barros A função pedagógica da obra de arte, em relação ao auxílio que oferece ao artista em amadurecimento, merece ser considerada como puro compêndio do processo que a origina. Assim a obra interpretada, seu autor figura como doador de algo que para quem sabe decifrá-lo pode funcionar como um plano de formação. A diferença, frente ao ensino institucionalizado, poderia estar no grau de consciência que demonstra o mestre sobre sua contribuição como docente . Enquanto que, para o professor orientador, essa consciência justifica a essência de seu trabalho quando uma lição deve ser extraída diretamente da obra de arte; parece quase imprescindível que seu autor não aspire a esta possibilidade. Influencia aqui, certamente, a dificuldade em discernir, na obra de arte, as características que corresponderiam a uma habilidade técnica do criador (qualidade imitável) dentre os gestos de lucidez brilhante que nascem de capacidades criativas inatas ou, pelo menos, de maior complexidade no que compete a sua descoberta e sua descrição (e, portanto, de difícil transferência direta). Por outro lado, a premeditação em exercer maestria, quando esta será produzida por meio da obra de arte, é uma atitude que pode resultar de uma prepotência intolerável. Do mesmo modo, quem cego por sua obstinação em aprender com a obra adota de um modo literal essa (mera) possibilidade e a confunde [a obra de arte] com um guia doutrinário ou dogmático , corre o risco, por sua vez, de se converter em responsável por paródias involuntárias que tão somente imitam a obra eleita como modelo. Afirma-se, em todo caso, que o impulso criativo não poderia, de modo algum, ser extraído simplesmente de outras obras; apenas consente com sua intuição (na forma de um certo reconhecimento íntimo) e sua espreita por vias paralelas, a partir dos bastidores da aprendizagem. Aquilo que assim se aprende seria, na realidade, arrancado instintivamente dentre os sedimentos que as obras dos outros têm depositado em nossa vocação; somente assim pode ser considerada outra obra anterior, em última instância, como o combustível germinal de uma inclinação criativa. A complexidade dessa curva didática é um dos motivos pelos quais consideram o ensino da arte como uma atividade nebulosa ou, necessariamente, imprecisa, além de ser a origem de muitas das críticas que recebem os planos institucionais de ensino de arte. Chega-se, inclusive, a acusar de insolência o propósito de ensinar uma arte, uma reprovação que cresce de maneira exponencial à medida que a contribuição autoral restringe-se ao conceitual , em detrimento de outras habilidades criativas ou técnicas. Com base nisso, essa espécie de
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(1) Ainda que talvez não seja preciso mencioná-lo, o cânone a que nos referimos, no que diz respeito a este tipo de autodidata, é o da inevitável Nouvelle Vague francesa: “Com frequência me perguntam em que momento de minha cinefilia senti desejo de me converter em diretor de cinema ou em crítico e, para dizer a verdade, não o sei. A única coisa que sei é que queria me aproximar mais e mais do cinema. Um primeiro passo, pois, consistiu em ver muitos filmes; o segundo, em anotar o nome do diretor ao sair da sala; o terceiro, voltar a ver muitas vezes os mesmos filmes e selecioná-las em função do diretor...”. François Truffat, citado por Javier Memba em La Nouvelle Vague, TyB Editores, Madrid, 2003. p. 17.
ocultamento consensual do, digamos, pequeno mestre , na aprendizagem artística, objetiva forjar uma justificativa concreta em função das necessidades de intermediação técnica que define cada meio de expressão. A pertinência do reconhecimento do mestre que, em um sentido estrito, transmite seus ensinamentos nos limites da sala de aula , se deduziria então do grau da complexidade técnica que determina a elaboração de uma obra em cada disciplina ou momento histórico. Daí que o prestígio do mestre de oficina que caracteriza uma escola de pintura florentina no século XVI varia consideravelmente em relação às atuais escolas de artes plásticas. Daí também, em parte, a estranheza ao reconhecer o modo como os historiadores e críticos cinematográficos (cronistas de uma das artes que mais se subordina aos meios técnicos que a possibilita) têm contribuído com sua falta de interesse, com a depreciação de quem exerce o ofício específico de professor no âmbito do ensino da arte. É evidente que não deve ser exigida demasiada atenção a este respeito, pois temos consciência de que a formação de seus autores fundamentais tem oferecido ao longo da relativamente breve história universal do cinema uma abundância de variantes entre as quais um ensino regularizado não será, de modo algum, a norma predominante. Mas, ainda assim, é significativo que, nos casos em que esse tipo de instrução é constatável, a formação parcial de um cineasta sob um plano de estudos e uma série de ferramentas pedagógicas concretas não causem maior interesse que o de sua mera menção em uma análise biográfica. Nesse desdém, talvez, o êxito e a canonização do cineastacinéfilo (e militante confesso de sua irrenunciável cinefilia) tenha influência determinante. Maior exemplo de quem não tem necessitado de uma formação regular para assumir o ofício, esta linhagem de cineastas demonstra, repetidamente, um esplendoroso patchwork fílmico mediante o qual encaminhou sua aprendizagem em sala (de projeção) (1). A admiração por este tipo de autodidata pode ter sido a gota d'água que culminou com a depreciação de seu aparente antagonista, a aprendizagem em sala de aula. Esse tipo de autor, que surgiu inicialmente como crítico ou mero aficcionado , além disso, se construiu, - e isto já é indiscutívelcom uma provada solvência quando se viu obrigado a sair ao encontro da prática (instrumental, narrativa, industrial...); o que já se demonstrava extremamente conflitiva, devido ao seu suposto déficit técnico. A única contrariedade real que poderia ser atribuída a esse cineasta aqui seria, pois, a de haver privado a posteridade de um rastro sobre sua formação. Essa é uma das poucas diferenças que cabe ponderar frente a uma educação exclusivamente autodidata (e aqui é tratada essa questão): a viabilidade de aspirar a conhecer alguns dos parâmetros sob os quais se edifica o processo formativo de um autor. A partir dos dados que a existência de um plano de estudos pode oferecer, é possível acompanhar um procedimento imposto (por mais genérico que seja), um indício
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(2) V.G.I.K (ou вгик, em alfabeto cirílico): Instituto Cinematográfico Estatal Pan Russo. Foi renomeado como Instituto Gerasimov a partir de 1986, em homenagem ao
sobre a maneira como o aprendiz tem sido instruído para poder apreender de forma competente o ofício do cineasta. Em algumas ocasiões, esses registros serão a única prova exógena desse período, pois a aprendizagem que se obtém de fazer cinema de um modo imediato , sem prorrogações formativas (sem subterfúgios pedagógicos, por pura experimentação) consome, geralmente, qualquer documentação relativa a esse progresso atrás da vertigem e da urgência ante a iminência da obra futura. Se nossa intenção é a de meditar sobre um procedimento de tamanha intimidade (aquele em que se gesta uma necessidade criativa no indivíduo), não podemos menosprezar o escasso material que possamos manejar a este respeito, sobretudo se os dados que perduram são da equanimidade de um plano pedagógico. Pois o mestre, pelo feito de oferecer o acesso à técnica (já que seu trabalho inclui a depuração desta, ou sua síntese, para fazê-la acessível ao aluno), modela o balbucio do não iniciado em uma linguagem. Por que não cotejar essa experiência para lançar luz sobre algo que se intui, para o espectador de uma obra, como inóspito (pois se trata de um período abissal, aquele em que se gesta um anelo criativo)? O mestre deve fixar os canais de um processo essencial e, por isso, sua contribuição já é um sintoma que merece ser salvo; e dado que uma de suas funções é a de instruir o aluno no reconhecimento de uma origem, sua contribuição é também original por sua vez. Essa figura é, pois, um umbral para o artista, daí que não pode ser ignorada de maneira frívola. Seu relato descreve a adoção de palavras e gestos embrionários, detalha as condições em que fermenta uma vocação, seu momento se assenta na aurora da criatividade; seu testemunho, somente por isso, é vislumbrado como nutritivo.
cineasta, ator e professor desse mesmo centro, Serguei
A exceção da VGIK (2)
Gerasimov. Fundado sob o nome de GIK (Instituto Cinematográfico do Estado), em setembro de 1919, foi tutelado, a princípio pelo Narkompros (Comissariado Popular para a Instrução Pública) e seu primeiro diretor foi Vladímir Gardin. Cf. Peter Rollberg. Historical Dictionary of Russian and Soviet Cinema. Reino Unido: Scarecrow Press, 2008. p. 6; assim como em Tatiana Smorodinskaia, Karen EvansRomaine e Helena Goscilo (Orgs.). Encyclopedia of contemporany Russian culture. Londres: Routledge, 2007. pp. 15-16.
A menção a qualquer plano de ensino continua sendo, sem dúvida, um caso consideravelmente marginal, escasso ou meramente anedótico, longe do específico raio de ação da docência cinematográfica regulamentada. Existe, por sorte, alguma exceção profusamente celebrada - ainda que não descrita nem analisada na mesma medida em que é reverenciada -, como é o caso da VGIK moscovita. Parte de sua aristocrática vigência contemporânea se deve a sua longevidade (é considerada a primeira escola de cinema do mundo). Em sua reputação, influi também o nutrido elenco de grandes figuras da história do cinema russo que tem formado parte desse centro, seja como alunos, ou engrossando seu esplendoroso corpo docente. Mas existe, acima de tudo isso, uma razão congênita a seu nascimento que justifica boa parte de sua excepcionalidade: as circunstâncias sob as quais se concebe sua criação o contexto revolucionário obrigaram a estender a responsabilidade de professores e alunos em
159 direção a situações que, em outras escolas, não teriam esta obrigatoriedade. Já que, sob os auspícios do Proletkult, um lugar de privilégio foi reservado para o ensino dentro do ideário comunista no caso soviético o que traduziu, no desenvolvimento, a custódia e a promoção oficial dos organismos que teriam de assumir a docência em todos os níveis da nova ordem social -, a transcendência do conceito de educação, na mesma medida que a evolução de seus procedimentos, foi objeto de uma esmerada atenção, desconhecida até então:
(3) Jay Leyda. Kino. Historia del film ruso y soviético. Trad.
Em todas as discussões acerca da orientação de como o cinema deveria abordar a nova sociedade (que tinha escassos seis meses), a palavra educação foi escutada com mais frequência que o termo arte . Pode-se pensar que a qualidade de arte teve sua oportunidade nos filmes russos, enquanto que a função da educação, não somente nos filmes russos, senão em todos, havia sido descuidada.(3)
Jorge Eneas Cromberg. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1965. p. 146.
A esse respeito, bastaria mencionar, para ilustrar a amplitude das responsabilidades pedagógicas enfocadas pela arte cinematográfica, no caso soviético, alguns dos fascinantes recursos com os quais aquele propósito foi alimentado. Muitos deles originaram emblemas concretos, como o caso do Cinetrem, de Aleksandr Medvedkin, ou os Kinoks, de Dziga Viértov. Mas, inclusive com respeito a esses notáveis paradigmas, a VGIK pressupõe, compreensivelmente, uma aposta de maior envergadura. Se a funcionalidade da arte cinematográfica haveria de ser estabelecida a partir de sua capacidade educativa, não é de estranhar que a própria instrução de seus cineastas fosse concebida como uma função de primeira ordem, além de seus resultados finais. De acordo com esse interesse, a evolução do centro se plantou de maneira sincrônica ao ritmo de arranque que toda a indústria cinematográfica russa adotava nesse momento. Para a VGIK, o inevitável enclausuramento (de forma literal: a reclusão em um claustro de docentes e alunos) com o qual a sociedade se desentende temporalmente do futuro autor durante sua formação como se restasse somente a espera dos resultados que pode oferecer quando sua formação torná-lo um criador -, foi menor; assim como a despressurização com a qual se pretende proteger o trabalho do docente. A propaganda dessa instituição que realizou sua enérgica e emergente produção cinematográfica, frente à forma como a indústria de outras filmografias atua de costas para as instituições pedagógicas (pois não precisavam, nem precisam, ser nutridas por esses centros de maneira exclusiva) contagiou a VGIK da torrente criativa que estimulou o cinema soviético durante a maior parte de sua história. Além do mais, a necessidade de sua criação foi uma urgência real e imediata, derivada da apressada fuga dos profissionais que haviam fundado e consolidado o setor
160 (4) Para esboçar uma ideia superficial das dimensões daquela perda, poderíamos recordar o modo como a criatividade de muitos desses autores fugidos alentou enriquecedoras correntes expressivas na indústria cinematográfica de seus países de acolhida (pese as numerosas contrariedades que tiveram de sofrer durante s e u e x í l i o ) . D e ma ne i r a particular, cabe destacar o exemplo dessa influência nos casos da Alemanha e – muito especialmente – na França, durante a década dos anos 20 do século passado. Cf. Jay Leyda, op. cit., pp. 135-136. (5) Ainda que seja necessário esclarecer que alguns daqueles primeiros cineastas da era tsarista permaneceram no país e colaboraram intensamente com a edificação da nova cinematografia soviética, como foi o caso de um pilar fundamental para aquele ressurgir pós-revolucionário, Liev Kuleshóv – cuja contribuição no campo da pedagogia, diga-se de passagem, é das poucas que se pode equiparar à de Eisenstein, Kuleshóv já havia iniciado sua carreira na indústria colaborando com um autor tão genial como esquecido em nossos dias, Evgueni Bauer
cinematográfico russo na era precedente, sob o reinado de Nikolai II (4). Parte dessa debandada se desencadeou de maneira imediata logo após do triunfo da revolução; o restante optou pelo exílio seguido de um período de transição que demonstrou àqueles, e ao próprio Partido, a incompatibilidade das pretensões do novo governo com um setor, já semi-privado, mas que administrava a maior parte dos recursos: técnicos especializados, salas de exibição e equipamentos necessários para filmar. Depois desse êxodo, a paisagem do setor cinematográfico russo, órfão na prática de mestres e artesãos, era o de uma terra queimada que teria de se reformular a partir do vazio (5)- como em tantas outras facetas da reconstrução nacional a que obrigou sua guerra civil. O setor despertou, após o levantamento revolucionário, obrigado a assumir com entusiasmo a tábula rasa que concernia a toda entidade cinematográfica desse momento germinal na União Soviética. A situação propiciou então (paradoxalmente, para sua sorte) a necessidade de que qualquer esforço desafiador se orientasse até o essencial, em todos seus departamentos, dada essa precariedade. A fascinação que seus protagonistas experimentaram frente à prova de assumir novas formas de enunciação, enquanto se viam obrigados a edificar não somente uma nova linguagem e uma nova escrita, mas também todo um universo nominal, será uma característica de sala de aula para aqueles precursores. Equiparada à rentabilidade produtiva que a nobreza conceitual é a eficácia com que souberam eleger o núcleo de suas meditações e suas práticas, seu esmero em esmiuçar, a partir de distintas metodologias (de análises crítica, experimental, funcional...), o saber da nova arte: a montagem cinematográfica não havia tempo a perder com elementos acessórios, afrontaram sem demora a medula dessa linguagem, concedendo-lhe a preeminência discursiva que a corresponde -. Essa certeira leitura do essencial se intui, também, na severidade com que legitimaram o que era imprescindível a um período de formação substancial para os futuros cineastas do povo. Aí jaz outro dos principais motivos pelos quais seu caldo fílmico adensou de tal maneira: deriva-se da nobreza com que enfocou a problemática pedagógica. O exemplo soviético demonstra que uma nova história universal do cinema poderia ser plantada a partir dessa perspectiva, desde o momento em que cada uma das encruzilhadas que cercaram a arte cinematográfica durante o século XX se viu refletida no modo como o cinema, e o pensamento que dele surge -, administrou sua relação com a aprendizagem. A supervivência da VGIK e da fórmula que representa, pese o fato dos anos e dos conflitos de transição que a ameaçaram, nutre a crença nessa possibilidade de interpretação. Eisenstein como pauta
Não obstante, somente em virtude da diferença que a
161
(6) “Formulamos também esse esclarecimento dada à proporção estimável de seu trabalho na VGIK que se apresentava sob o formato de conferências magistrais. Sua intenção sempre foi a de compilar esses ensaios sobre a docência em apenas um volume que não chegaria a ver a luz. 'Milhares de páginas, que informavam sobre suas aulas no Instituto de Cinematografia, esperavam ainda ser usadas nos muitos livros que havia planejado para incorporar tudo o que ele sabia sobre a natureza do processo criativo...'”. Marie Seton. Sergei Eisenstein, una biografia. Trad. Homero Alsina Thevenet. México D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1978. p. 441. (7) Assim o refletem muitos dos estenogramas em que se registrava o desenvolvimento cotidiano de suas aulas na VGIK (e que constituem a coluna vertebral de uma obra imprescindível para compreender o trabalho cotidiano de Eisenstein
legitima, poderíamos reavaliar o que verdadeiramente compete à docência nas salas de aula: a confluência do mestre e do aluno em um lugar onde se realiza a aprendizagem. Sob essa cota, a força de manifestos ou textos inaugurais se esvanece, já que as dimensões de sua inércia retórica provocam a extinção do (microscópico, em relação àqueles) relato vivencial. O espaço da sala de aula, ao contrário, se define pela forma com que exprime sua diáfana contiguidade com o exercício do ensino. Sugerimos levar em conta a aprendizagem institucional enquanto se pode dizer daquela que é devedora de uma experiência localizada. Na mesma medida, cabe um esclarecimento oportuno à adoção de Serguei Eisenstein como eixo de uma análise sobre a atividade docente na VGIK. A densidade e o volume de sua produção ensaística são de um peso tal, que sempre resultará difícil desligá-la de seu comparecimento específico na sala de aula. Mas a necessidade de concentrar nossa atenção no modo como este cineasta auxiliou a evolução pautada e cotidiana do alunado, precisa de uma inicial emancipação de outros corpos de enunciação (como seus filmes ou seus escritos (6)); ainda que com a posteridade, o estudo de sua mais provável combinação, seja uma etapa ineludível para a proposta. Nossa intenção, em um primeiro momento e na medida do possível, será a de esquadrinhar aquilo que somente diz respeito à sala de aula, e não aquilo que se oferece a partir de uma cátedra, que se poderia obter de Eisenstein na VGIK (mesmo que, em seu caso, como dissemos, sempre será difícil restringir parcelas de atuação). De fato, dessa premissa, se deduz, por sua vez, outra objeção oportuna: a da perpétua suspeita que se projeta sobre o autor consagrado quando este decide dar um passo para a sala de aula. As questões são ali as mesmas que em nosso exemplo específico: Quando se converte em útil, ou em forçado, esse comparecimento do autor mestre? Que margens de sua doutrina reclamariam sua presença na sala de aula para sua correta difusão? Ou se trata talvez de uma experiência em que não é indispensável a menção a sua própria identidade autoral? A esse respeito, temos de adiantar que o caso de Eisenstein é um daqueles em que sua trajetória como cineasta se manejava como argumento ilustrativo; em nenhum momento quis desviar a posição inicial de onde formulava seus conselhos ao aluno (7). Mas em função dessa eventualidade, cabe então perguntar se é factível um possível vínculo bidirecional entre essas variantes de sua profusão criativa, e quais seriam as ferramentas que, dentre suas próprias capacidades, Eisenstein considerava mais úteis para seus discípulos (essa pergunta faz referência à sublimação de seu próprio trabalho como autor e é, por isso, um sintoma transcendental). De qualquer maneira, devemos começar por esclarecer que sua influência é inerente a maturação e a consolidação da VGIK. E é isso que o estudo de sua metodologia como docente em suas aulas é aqui de uma utilidade inestimável por várias razões. Pensemos que, por um lado, Eisenstein supõe para o
ao lado
Prรกticas com Serguei Eisenstein.
163 naquele instituto, o livro Lecciones de cine de Eisenstein, de Vladimir Nizhny): “Em 13 de julho de 1917, eu estava em Sadovaia, em Petrogrado, quando da histórica manifestação. Uma multidão estava transitando, a rua estava cheia: de repente se ouviram uns disparos e imediatamente as ruas ficaram vazias. Deste modo, evidentemente, deveria ter ocorrido na escadaria de Odessa. Mas, quanto tempo ocupa esta cena no filme? Quase seis minutos. No cinema, este é um período desmesurado. Sem dúvida, o espectador nunca percebe a sensação de que essa corrente humana não flui durante todo esse tempo, senão com interrupções, ou de que a ação cessa. [...] Isso se alcança mantendo um constante aumento de tempo e ritmo, e pelo feito de que todas as incidências estão entrelaçadas com o plano e a ação gerais. Em ambas, o mais simples movimento através da cena, e em uma cena de massas tão complexa como a da escadaria em O Encouraçado Potiômkin, o princípio de construção é somente um e o mesmo”. Vladimir Nizhny. Lecciones de cine de Eisenstein. Trad. Leoncio Sureda Guytó e Román Gubern. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1964. p. 88. [Original em Inglês]. (8) Prefácio de Ivor Montagu a Vladimir Nizhny, op. cit., p. 8.
cinema soviético em termos globais um autêntico cânone sobre cujas bases características parece estar articulado o grosso de seus traços identitários. Sua menção matiza, em todo momento e de forma categórica, qualquer valorização sobre o alcance real da filmografia soviética; assim em seus triunfos como em suas misérias, assim na prática como em suas (amplas) formulações teóricas e assim também, pressupõe-se, em suas implicações pedagógicas. Por isso, atrevemo-nos a sugerir que a avaliação daquilo que a escola soviética tem dedicado à história geral do cinema é impensável sem uma atenção pormenorizada a este ícone fundamental. Para ela, serve de relevante ilustração no que diz respeito à sua cólera criativa, à promoção do cineasta erudito, à constatação de um compromisso contrastado com a Revolução... mas, cumpre também, pela forma em que sofreu a censura e a perseguição, a modificação ou o condicionamento de muitas de suas obras pelas variações na argumentação das políticas culturais do Estado. Por isso, não haveria de ser impróprio (digo isto sempre com prudência) declará-lo não somente como um emblema para a arte cinematográfica russa, mas como sua própria encarnação, ou, talvez, como sua metáfora mais efetiva. Outro tanto ocorre, pois, com aquilo que propiciou o passo de Eisenstein pela VGIK, mas aqui de uma forma que se presta em menor medida à controvérsia, dada a condição notarial de muitos dos documentos que descrevem suas competências naquele lugar (uma vez mais, comprova-se a utilidade do rastro que a docência institucional oferece). Já que Eisenstein é o responsável pelo primeiro plano de estudos coerente e complexo de que dispôs a VGIK para a especialidade de direção cinematográfica (8), sempre será difícil delimitar o valor em termos de rentabilidade pedagógica de seu compromisso (seus benefícios se estendem indefinidamente, ao aderir-se a uma estrutura organizativa imprescindível). Mas a redação desse marco não supõe somente uma pauta, ou uma articulação funcional do trabalho, mas concede ao Instituto uma certeza de viabilidade primária com a qual afronta a imersão no lamaçal da pedagogia artística. Mediante esse mapa, que para muitos pode resultar de um tédio burocrático (que somente existiria a um nível epidérmico daquele escrito), Eisenstein dispõe de um quadro de atuação adequado, o suposto mínimo que ajuda a discernir o alcance da sala de aula, seu horizonte. Mas no que diz respeito ao intento de reavaliar a transcendência da docência cinematográfica em um autor como ele, este exemplo afortunado oferece um ponto de apoio inusual e específico que dificilmente se pode falar em outros casos. Sua maior vantagem, para o tema que nos ocupa, é a de poder empregar esse programa como o que terminou sendo na prática: uma síntese de suas meditações sobre a pedagogia no campo da direção cinematográfica. Essa consideração, uma vez que tem sido estabelecida a independência do documento (e, por tanto, sua autoridade como uma obra autônoma a considerar), hospeda a possibilidade de empreender uma
164 acareação equitativa de suas características com o resto de sua produção. O plano pedagógico frente a um ciclo dialético
(9) Tal como afirma Eisenstein em relação A Greve (Stachka, 1924): “O material das massas é proposto como o mais apropriado por seu relevo para confirmar o princípio ideológico já mencionado de aproximação da forma, com vistas a um resultado determinado e, portanto, em elemento complementar da oposição dialética...”. Sergei Eisenstein. “Para uma aproximação materialista da forma”. In. Miguel Bilbatua (Org.). Cine soviético de vanguardia. Teoria y lenguaje. Madrid: Editorial Corazón, 1971. p. 150.
Com toda certeza, ninguém como Eisenstein teria estado tão capacitado para elaborar um estatuto dessa natureza. E não se tratava somente da irradiação infinita de sua própria complexão intelectual que deve tanto ao rigor cientifico como à mística da arte -, ainda que aquela característica permitisse conjecturar uma proveitosa sensualidade referencial para o texto. Pesa, em maior medida, sua propensão a relatar itinerários de culminação criativa (e o seu próprio, mais que nenhum outro). Eisenstein se sentia obrigado a perceber sempre com clareza e a partir daí, a narrar as conjugações, os choques e os deslumbramentos que dão corpo a todo processo criativo. E é que precisamente essa é uma de suas principais obsessões, a de gerar corpos que fixam pensamentos, que traduzem esses pensamentos a uma massa de progressiva espessura conceitual. Aplicação curiosa deste materialismo de raiz marxista que sujeita a especulação intelectual sob substâncias de maior densidade plástica , de diverso temperamento. Hoje poderíamos situar o cânone dessa transferência em seus filmes; como exemplo, o modo como os corpos de alguns de seus protagonistas estendem-se, sob suas carnes fibrosas, temas e seções do ideário revolucionário (9). Mas essa metodologia não cumpre com seu ciclo até que se produz um terceiro movimento que reivindica sua essência dialética. Encontramo-nos frente a uma tese (um pensamento) que litiga quando se produz sua materialização: o corpo que se obtém dessa travessia se desdobra como réplica , e em função disso, como antítese (sua formalização o converte em beligerante frente à raiz inspiradora porque a tradução de um pensamento no filme ou sobre o papel -, se aquele é verdadeiramente fértil, deve inquietar). O que aguarda, a continuação, é uma resolução para esse choque. Pois é preciso voltar uma vez mais sobre esse contêiner material para sintetizá-lo, para forçar seu salto patético. De maneira que o colocar em funcionamento dessa materialização exige também um subsequente trabalho de montagem . Assim, à mercê de uma última reorganização , encontramo-nos com corpos que não deixaram de ser oferendas de atuação ao próprio pensamento, pois teriam recebido matéria somente para serem desgarrados (tal é o corte da montagem cinematográfica) da linha seguida; assim propicia o sangramento plástico dos conceitos que os sustentam, o desmembramento e a conjugação de articulações aparentemente ingovernáveis ou vaporosas. Amparando-nos na coerência com que levantamos cada nova inquietude dentro de sua integridade autoral, e, se nos convier, a relevância específica da vertente pedagógica em sua obra, poderíamos
165 chegar a interpretar seu Programa para o ensino da teoria e prática de direção cinematográfica como o tecido que aqui encarna um ideal de ensino para a arte cinematográfica. Esse estatuto administrativo seria também o candidato a reclamar uma ulterior síntese que avive, como se aviva uma chama, o corpo (recém) forjado. Parece necessário inclusive, seguindo uma mesma inércia associativa, identificar o terceiro movimento que resta com o imprescindível pôr em prática que todo plano deste tipo precisa (sua montagem, então, estaria circunscrita, por isso, ao interior da sala de aula?). Mas ocorre que a assimilação de seu plano pedagógico como uma obra a mais de Serguei Eisenstein, e, por tanto, inclinado a ser interpretado sob hipóteses como a que acabamos de anunciar opção que não se adota com demasiada assiduidade -, desvela uma contradição que resulta excessivamente evidente para passar despercebida. Encontra-se na contundência com que a identidade do texto que acaba de receber forma bloqueia essencialmente qualquer circulação dialética. Referimo-nos à circunstância de que, ao se tratar de um texto legislativo, fica despojado de qualquer tipo de confronto que aspire a despedaçá-lo e a reformular suas combinações. Seu status é refratário a dialética revolucionária porque este tipo de texto constitutivo está obrigado a garantir a extinção de qualquer disputa direta com seu corpo. A lei somente permite emendas nunca um desangramento de suas articulações (a emenda vem a ser um mero subterfúgio que jamais faria tremer seu pedestal). Por isso a lei divina buscou um incômodo plástico na solidez das tábuas e, por isso mesmo, o gesto de Moisés, ao arremessá-las , não constituiu ato sacrílego algum: nada foi alterado porque a Lei, ontologicamente, somente pode ser fragmento intocável e inquestionável.
(10) Cf. original.
É verdade que a pretensão de adaptar sua contribuição pedagógica ao ciclo dialético que Eisenstein cultiva em sua obra (a intenção de sob a forma de rizoma - harmonizar a pedagogia deste autor com o resto de sua produção) emaranha consideravelmente o acesso a um texto que em princípio deveria resultar de um esquematismo quase burocrático. Por que questionar a forma de um documento que na teoria somente poderia ser elaborado desse modo? Em primeiro lugar, porque a controvérsia frente às formas talvez seja a maior característica deste cineasta. Sua eterna vigília inquisitiva com a qual fustigava todo processo criativo, que espreitava de forma inquebrantável o modo como todo desenvolvimento se precipita até sua resolução deveria ser tomada em consideração aqui, devido ao fato que um plano de estudos é, de certa forma, um ideal especulativo a esse respeito (ao adotarse como uma superestrutura administrativa do próprio processo formativo). Por essa razão, é difícil pretender, já que Eisenstein está de por médio (10), que sua elaboração resulte inócua para o resto de sua obra. Mas é que, além disso, existe talvez algo, neste autor, que não se enreda sobre si mesmo para reavaliar sua vigência, de maneira que a complexidade de
166 qualquer explicação parece estar sempre no caminho de multiplicar-se?
(11) Existem motivos tremendamente pragmáticos para localizar o fundamento integral desse plano em sua própria experiência. Em primeiro lugar, basta conseguir a pauta do tipo de autor que prefigura sua programação para obter um indivíduo criativo muito p r ó x i m o
a
s u a s
características. Além disso, é constatável a obrigada escassez de modelos disponíveis nesse momento p a r a
a
d o c ê n c i a
cinematográfica, uma dificuldade que se dobra ao intentar obter referências reais para o caso inovador que começava a ser edificado na União Soviética – um aspirante a defender a reformulação radical do meio em todo o mundo. Essa r e f e r e n c i a l i d a d e autobiográfica o converte em um valioso compêndio para o estudo de sua maturidade como cineasta e para abordar os parâmetros sob os quais se explica a evolução de sua poética. Mas também é verdade que a maior parte desses parâmetros, como já apontamos, haviam estado sempre à disposição daquele
Cronista incansável de sua própria metodologia, empenhado em diagnosticar o tormentoso perímetro em que estavam suspensas todas as suas decisões, a elaboração dessa estratégia de ensino era uma oportunidade excepcional de autoanálise. E se toda essa hiperconsciência metodológica referida ao modo de criar que o caracteriza, ameaça em algum momento arrastá-lo à esquizofrenia de uma autodefinição permanente (perigo que é, consideravelmente, real), o próprio plano, de fato, se converteria em um plano de choque com vocação de catarse terapêutica. Ou talvez não seja mais que um momento dessa tendência (compulsiva) de meditar seu caminho como autor, nada mais que o maior dos indícios de uma autoavaliação que, por sua insistência, chega a resultar patológica. De qualquer maneira, é determinante, nos dois casos, o fator autobiográfico que subjaz no plano o que ali parece estar arrancado de suas próprias entranhas autorais (isto equivale a assinalar a prática total do texto) (11). Evidentemente, se é objetável que sua funcionalidade (a mesma que proíbe a manipulação de seus fragmentos ) é uma imposição ineludível e que, por isso, o plano ficaria excluído, por antecipação, da rotina que sincronizava sua mecânica global como cineasta e ensaísta. Mas acontece também que o senão de incompatibilidade que augura a redação desse texto conta com um eco específico dentro do resto de sua produção naquele período. Coincidindo com a etapa em que sua vinculação com a VGIK foi mais estreita (período que contempla a redação desses estatutos (12)), aquela outra obra (a que poderia ser abordada em função de sua gestão dialética) também apresentou sintomas de uma disfunção similar. Tudo isso nos incita a considerar o Instituto de ensino cinematográfico como o possível epicentro de uma estranha disfunção em sua obra: no que diz respeito à trama de sua filmografia com a exigência da sala de aula foi mais clara, se faz notar um deslocamento determinante do centro de gravidade em suas buscas. Ao que parece, esse pequeno desequilíbrio provocou o deslocamento de uma potente estrutura que havia amparado até este momento a sua obra primeira. Talvez um simples questionamento metodológico esteja no fundo do desgaste que ameaçou o templo dialético em seu trabalho. Assim definia, ele mesmo, aquele período que o aproximou das formas de maior incerteza .
que quisesse valorizá-los em sua ingente produção ensaística. Constatar a forma em que o plano de estudos marca um itinerário inspirado em sua própria evolução é de utilidade, talvez em maior medida, por aquilo que revelam suas “anomalias”.
Os filmes seguintes, junto com suas precisas exigências, transportam a obra prática experimental de desenvolver um meio de expressão cinematográfica criativa até obter um máximo na ativação positiva da arte revolucionária e armar pedagogicamente a geração de jovens bolcheviques, que teriam de assumir o lugar dos mestres do cinema nos primeiros planos quinquenais da Revolução. O centro de gravidade da obra posterior (Os dez dias. O velho e o novo)
167 (12) É conveniente indicar que o programa foi elaborado durante a primeira metade da década dos anos trinta, um
está nos campos da experimentação e da busca. A obra pessoal fica intimamente vinculada com a prática científica e pedagógica planificada (o Instituto Estatal de Cinematografia)... (13)
período em que é possível rastrear um ponto culminante na intensidade desse diálogo com a docência por parte de Eisenstein na VGIK. Seu primeiro contato com o Instituto ocorreu em 1928, quando foi nomeado diretor de cursos da instituição (todavia era conhecido como GIK e ocupava os salões do antigo “Yar”, um famoso restaurante da época tsarista que se encontrava na Chausée Leningrado). Mas será, sobretudo, durante a primeira metade da década de 1930, como dizíamos, quando sua presença no centro será mais assídua e ativa, adotando inclusive o cargo de Diretor dessa instituição em 1935 (sendo já denominado como VGIK). Em meados da década seguinte, de 1945 a 1946, retomou, esporadicamente, esta colaboração até que seus graves problemas de saúde o impediram. Cf. David Bordwell. El cine de Eisenstein. Teoria y práctica. Trad. José García Vázques. Barcelona: Paidós, 1999. p. 167. (13) Nota autobiográfica de Serguei Eisenstein recolhida por Marie Seton em sua biografia sobre o cineasta. Op. cit. p. 455. (14) Essa época conta ainda com outro tipo de signo relevante que remete, n o v a m e n t e ,
a
u m
deslocamento periférico: a partir do final dos anos 20 (de fato, desde 1929) começa uma série de viagens por todo o mundo junto com Aleksandrov e Tissé.
Esse deslocamento até uma localização periférica (uma margem que se salva para o ensino) afastou também o embrião de seus futuros projetos do olho do furacão a partir do qual, com anterioridade, essas mesmas obras eram gestadas. E se distanciou dele para mostrá-lo, para poder medi-lo: a partir do interior das estruturas é impossível ensinar ao aluno porque sua descrição sofreria de uma distância saudável; sem essas margens de mediação, é impossível compreender de uma maneira global as dimensões e os jogos de articulação dos corpos dissecados pelo docente. A dilatação desse novo sentido a sua orientação criativa produziria, a partir daí, uma descompensação que iria perfurando paulatinamente algumas das margens de sua consciência metodológica. Seu roçar insistente deixará, por isso, feridas de difícil coagulação. Nesse sentido, alguns autores, como Jesús González Requena, apontam a existência de um signo de desgaste que caracteriza as obras que aqui assinalamos como estigmatizadas pela docência de maneira mais clara (os filmes realizados a partir dos anos 30 até 1937, momento em que se suspende definitivamente a filmagem de O prado de Bejin (14)). Fala-se de uma impossibilidade de reunificação, de uma desarticulação que parece anelar ser perpétua. Como se o essencial questionamento de qualquer ordem que ampara a dúvida metódica se houvesse filtrado em sua obra, a articulação definitiva daquela se descobre como protelada; com isso se posterga também o cumprimento de sua resolução sob os parâmetros previamente estabelecidos (15). Eisenstein havia se comprometido com a administração do Estado a oferecer algo mais desse bloco com o qual levantou seu Potiómkin e, em troca, a matéria agora se diluía ao ser atacada. Mas longe de supor um problema de quixotesca ilusão intelectual (como se viu obrigado a descrever em sua Autocrítica ao filme inconcluso O Prado de Bejin), as obras que não consegue concluir nesse momento parece se abrir, com essa falta de pontualidade", e com as peculiares conotações que o passar dos anos tem vertido sobre esses projetos, o bálsamo de um abismo. Frente à angústia que supõe a exigência de concluir um processo sempre de maneira categórica, a possibilidade se distancia de uma trégua na censura abrupta de sua evolução a irrupção do mortal no fluido dialético, acaso? Prosseguir nossa leitura do texto eisensteniano no período que vai desse filme heterogeneamente fragmentado que é A linha geral a esse outro, rigidamente homogêneo que é Aleksandr Niévski, exige atravessar os fragmentos inconclusos de Que viva México! e O prado de Bejin, mas,
168 (15) Uma “malformação” similar pareceu acometer a Nicholas Ray quando teve de refugiar-se na docência no início dos anos 70 (na Universidade Estatal de Nova
também, aqueles outros textos, não menos fragmentários, mescla heterogênea entre a teoria, a autobiografia e a literatura, com os quais o cineasta tratou uma e outra vez de elaborar o que, em sua experiência cinematográfica, se manifestaria como uma flagrante impossibilidade de que a escritura conduzisse à clausura do discurso. (16)
York). A fosforescência visual e argumental do projeto que elaborou junto com seus
Fragmentos de um discurso amoroso
alunos, recentemente restaurado (We Can't Go Home Again, 1976-2011), seria de grande utilidade aqui – pese as suas diferenças manifestas – por certos paralelismos com os casos de Eisenstein abordados em nossa argumentação. (16) Jesús González Requena. S. M. Eisenstein. 2. Ed. Madrid: Editorial Cátedra, 2006. p. 215. (17) “É demasiadamente ingênuo atribuir o fracasso de Que viva México! a atitude de seu produtor, Upton Sinclair, antes de tudo um bem-intencionado, mais do que acomodado, escritor de esquerda que aceitou o compromisso de Eisenstein de realizar um filme economicamente acessível. Pois não somente foi o cineasta quem rompeu todos seus prazos e se estendeu consideravelmente em relação ao pacto proposto – quem, em suma, rompeu o contrato – senão quem chegou inclusive a ofender a seus financiadores enviandolhes alguns desenhos cujo erotismo não poderia passar despercebido como pornográfico por qualquer um – repitamos bemintencionado – moralista como Sinclair, tanto mais que estes o comprometera publicamente com a sua passagem pela alfândega. É muito fácil, também, acusar a burocracia stalinista do
O risco na opção que propõe Requena é o de reconhecer, além das vicissitudes particulares que impediram a realização daqueles dois filmes inconclusos, a existência de um motivo de força maior que teria condicionado (já de antemão) produções e filmagens realmente complexas (17). Requena não contempla a possibilidade de associá-lo a seu trabalho pedagógico, mas essa coincidência é significativa (e os signos adjacentes que daquela se derivam são também reveladores). Uma evolução experimental intimamente vinculada com a prática científica e pedagógica planificada , dessa época deslocou a sua obra em direção a uma fratura inevitável de sua continuidade, mas o modo como Eisentein estava absorvido pela sedução daquela experimentação o impediu reconhecer o perigo que isto supunha se nos ativermos ao que o Estado esperava de seu trabalho -. Poderíamos falar, então, de uma espécie de rachadura paulatina que começou muito antes de cada início de filmagem e que hoje jaz soterrada sob os relatos que analisam contingências pontuais de seu infortúnio das quais nada pode negar uma parte de culpabilidade nesses intentos frustrados (seus filmes inconclusos)-. De fato, é tremendamente útil considerar a forma como finalmente sua conclusão é imposta a posteriori. Deveríamos outorgar uma maior entidade às ulteriores reconstruções do material que deixaram esses projetos, em que se pretende dar forma a um filme que aparentemente nunca chegou a sê-lo (18). Essa última montagem (essencialmente anacrônica, como toda filmagem, mas tendo aqui acentuado esse anacronismo pela distância da época em que originalmente se gestou o projeto) não faz mais que cumprir uma encomenda que terá de incorporar-se irremediavelmente à significação póstuma desses não-filmes. Ao atuar desse modo retomando o trabalho inconcluso, mas descrevendo convenientemente e com autoridade os pormenores desse processo (19) seu renascimento se constrói a partir de um relato vivencial que é alheio à atmosfera que sustém narrativamente o filme, o que equivaleria a dizer que é alheio, de certa maneira, a seu tempo original. A nova montagem, ao trazer para um primeiro plano o fato de que este trabalho posterior coloca o filme de novo no caminho de seu tempo truncado , insere uma nova membrana temporal que se superpõe à primeira. Com isso, por um lado, o tempo ideal da diegese cinematográfica que governa o filme se associa a um tempo imperfeito, aquele que faz parte desse ritual de
169 fracasso de O prado de Bejin, em que se repetiu a mesma falta de cumprimento dos prazos e ainda maiores excessos orçamentários, e e m
q u e
a
e s c r i t a
eisensteniana, em sua progressiva inclinação mística, não somente entrava em conflito aberto com o projeto ideológico a que o cineasta pretendia se submeter, como também encontrava em sua própria dinâmica os obstáculos que impediam alcançar o fim das filmagens. Digamos claramente: não se tratava de que o cineasta fosse interrompido em sua filmagem, mas que a filmagem se emaranhava até o ponto de clamar pela interrupção...”. Ibid. p. 214. (18) Sobre a recuperação de O prado de Bejin: uma reconstrução de 15 minutos foi efetuada por Serguei Yutkévitch e Naum Kleiman, em 1965, a partir de fragmentos extraídos por Eisenstein durante a montagem original do filme e c o n s e r v a d o s , posteriormente, por Pera Atasheva. À montagem daqueles fragmentos, baseada nos roteiros originais do projeto e em anotações de Eisenstein, foram acrescidos intertítulos e uma banda sonora composta por Serguei Prokófiev. Cf. Peter Kenez. “A history of Bezhin meadow” presente em Eisenstein at 100. A Reconsideracion. Londres: Rutgers University Press, 2001. p. 193. No que diz respeito à reconstrução de Que viva México!, d e i x a r e m o s , provisoriamente, de lado a m o n t a g e m
e
a
c o m e r c i a l i z a ç ã o
recuperação (esse tipo de administração temporal é o sustento da perturbadora capacidade de contato com o real do documento cinematográfico). Mas, por outro lado, esse processo que não deixa de sublinhar a autoria original do material, duplica a presença do autor primogênito em suas imagens, coisa de que o filme rematado convenientemente não precisa. Quando um cineasta finaliza o filme oportunamente, sua pessoa somente emerge a partir do rastro que sua identidade autoral perfura o discurso fílmico, enquanto que este tipo de reconstrução atua sob a reclamação, ou quase a exigência, de sua presença. Essa menção transborda sobre sua autoria e o que produz é o assentamento da obra não somente frente a sua finalização abrupta, mas frente a sua própria vinculação umbilical com seu criador, e ambos (o cineasta e um final prematuro) se convertem em um abismo absorvente que se localiza às portas do filme. Inclusive o próprio trabalho de montagem sofre uma materialização similar a do autor original, na medida em que para esse trabalho é necessário colocá-lo em evidência. Essa nova montagem não é relevante por suas características funcionais específicas, ou porque os gestos que nele se produzem são de uma notoriedade que provoca estranheza e que com ela rompa uma administração de grau zero do relato cinematográfico. A montagem que se retoma posteriormente, nesses projetos de recuperação, passa a um primeiro plano da imagem porque a dimensão de suas funções se planta como uma premissa ou quase como uma advertência. Os prefácios que desenham as circunstâncias que obrigam a remontar o filme ou a montar o material que produziu sua filmagem anunciam a eminência de uma submissão da obra à montagem o fato de que se desfrute inconscientemente nunca assimilará esse estigma, ao contrário do que ocorre comumente-. Uma vez mais, recebe importância o relato vivencial ou, porque não dizê-lo, a anedota. A montagem deixa de ser um passo a mais do processo de produção e abandona a possível naturalidade de seu passo para se transformar no êxtase da investigação. Esse trabalho de montagem, que retoma os rushes de um projeto necessariamente inconcluso, se efetua então sobre o abismo já mencionado. Efetivamente, temos necessidade de lançar mão do relato circunstancial para retomar sua organização, mas nada poderá negar que todas essas menções localizadas têm sempre um ar de panegírico. Essa montagem do material não finalizado faz as vezes de um cerimonial funerário, como se sua recuperação se efetuasse com o corpo presente (e assim é em parte, no que diz respeito ao seu abismo). Voltando à proposta de González Requena, ele define esses filmes como um espaço do qual fora furtado o tempo (20), ao vê-se privado de continuidade. Mas talvez o que se produz é todo o contrário: com sua fratura e inconclusão, o que se outorga à obra é o tempo mesmo que a dialética negava ao recusar o vazio e inundá-lo todo com sua agitação. Por isso, quase poderíamos associar sua reconstrução posterior com um duelo por aquela
170 fragmentária de vários de seus episódios realizados de forma independente e por diferentes autores (sob os títulos Thunder over Mexico de 1933, Day of the Dead de 1934, Time in the Sun, de 1939 ou Mexican Symphony de 1941), pois a recuperação que mais nos interessa é a efetuada por Gregori Aleksandrov, na qualidade de sobrevivente da filmagem. Em 1979, assumiu o trabalho de remontagem a partir dos roteiros originais e de outros tipos de documentação conservadas nos arquivos do cineasta. Posteriormente (1998), o cineasta Oleg Koválov realizou uma nova versão do filme, com fragmentos que não figuravam na montagem de Aleksandrov intitulado Mexican Fantasy. Cf. Masha Salazkina. Introdução. In. Excess: Sergei Eisenstein's Mexico. Londres: University of Chicago Press, 2009. (19) O professor Rostislav Yurenev é o encarregado de realizar a introdução descritiva do processo de recuperação e “hipóteses de montagem” de O Prado de Bejin. No caso de Que viva México!, a narração da contextualização inicial foi realizada pelo próprio Aleksandrov. (20) Op. cit., p. 239.
obra, porque serve para consagrar a maneira como o tempo (um tempo, o de sua ruptura) tem introduzido no filme tal e como a morte introduz o tempo mesmo na vida do homem. Por isso, também o montador posterior crê que é possível atuar sobre essas obras inconclusas sem manchá-las, porque essas peças estão já marcadas pela morte e pelo tempo. Poucos são os que acometeram sem pudor uma obra corretamente concluída e firmada por outro (para além das controvérsias autorais): não poderiam fazê-lo com honestidade porque seu tempo já tem sido consumido, enquanto que, no infinito da obra inconclusa, o tempo vibra sedutoramente. A ilusão cinematográfica se refugia em um desvio temporal, que é quase uma negação do tempo e, por isto mesmo, a reconstrução posterior que se conta com uma temporalidade grave se nega um verdadeiro estatuto do filme (basta comprová-lo com a forma como figura refletida se acaso figura em sua filmografia). Quando o despenhadeiro da inconclusão se apodera da obra de arte, é o tempo mesmo que marca seu custo, é o tempo mesmo que advém ao produzir-se a impossibilidade de finalizar corretamente sua finalização. Disso fala também a obra não finalizada (por mais que essa impotência fora um tormento real para seu autor). Talvez essa hipótese sobre a premeditação no inacabamento de sua produção semelhante a uma simples boutade vanguardista, mas não por isso há de desprezar-se a circunstância de que tanto Que viva México! como O prado de Bejin são duas obras inconclusas ou fatalmente mutiladas, impedidas, derivadas de um processo de produção com gangrena... mas isso é o que são, a fim e a cabo, dois exercícios sem conclusão que eventualmente foram reorganizados para dar uma ideia do que poderia ter sido . De fato, é na última instância essa reelaboração condicional (do poderia ) uma forma de reconhecer que seu tempo se tem dilatado indefinidamente; que a obra, agora, tem recebido mais tempo do que corpo. Aqui interpretaríamos então a incapacidade de afrontar a experiência do tempo nesse período da obra de Eisenstein como sugeria Requena -, mas não como a impossibilidade de culminar com solvência o fluxo temporal (e cíclico) da ferramenta dialética e a finalização correta de um filme. Essa incapacidade de assimilação se encontraria mais próxima, contrariamente, a investida brutal da temporalidade (através da tomada de consciência sobre a qual a fratura supõe). O que aqui pretendemos argumentar é a hipótese de que a inconclusão que consente e justifica o ensino inseriu na obra de Eisenstein o influxo do abismo, o modo como este, qual a vertigem que tortura, colapsou de alguma forma seu músculo criativo ante a intensidade e acúmulo de possibilidades e ante a estranha brusquidão que adota aquela outra realidade que agora espreita a obra: Não será o abismo um aniquilamento oportuno? Não me seria difícil ler nele não um repouso, mas uma emoção. Disfarço meu luto sob uma fuga; me diluo, desmaio para escapar a essa
171 compacidade, a essa obstrução, que me torna um sujeito responsável: saio: é o êxtase. (21) (21) Roland Barthes. Fragmentos de un discurso amoroso. Trad. Eduardo Molina. Círculo de Lectores: Barcelona, 1997. p. 28.
(22) Cf. Pier Palo Pasolini. “Osservazioni sul pianosequenza”. In. Empirismo eretico. 3 ed. Garzanti Editore. Milan, 2000.
O inacabado como vivência imperdurável, relatos trágicos e inconclusão como destino da criação artística. A irrupção do temporal da obra que obriga a suspendê-la sem conclusão em meio ao êxtase. O criador e a obra inacabada como um abismo que parece ser consubstancial ao trabalho da montagem... O exemplo de Eisenstein, que aqui aflora a partir de um estudo sobre sua vertente pedagógica é uma vez mais um cânone que se repetirá em outros muitos casos da filmografia soviética, e que volta a servir como padrão. O peso da docência institucionalizada na União Soviética serve também para isso, para traçar de um modo mais claro os laços e a circulação das influências específicas entre seus mestres. A repetição desse caso na vida de outro docente como foi Mikhail Romm (e através dele a muitos de seus discípulos) - já que sua obra se viu precipitada a um mesmo oco temporal com sua fratura prematura -, nos descreve como o espaço em que haveria de atuar a montagem seria aqui já o do próprio tempo abismado, o da morte que Pasolini também leu na montagem a partir de um mesmo terror pânico. (22))
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ao lado
Serguei Eisenstein em prรกtica.
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El film frente a su abismo: Eisenstein y la docencia en cinematografía José Manuel Mouriño La función pedagógica de la obra de arte, en relación al auxilio que brinda al artista en ciernes, es deudora de su consideración como puro compendio del proceso que las origina. Así interpretada la obra, su autor figura como donante de algo que -para quien sabe descifrarlo- puede funcionar como un plan de formación. La diferencia, frente a la enseñanza institucionalizada, podría hallarse en el grado de consciencia que demuestra el maestro sobre su aportación como docente . Mientras que para el tutor escolar esa consciencia justifica la esencia de su labor, cuando una lección ha de extraerse directamente de la obra de arte, parece casi imprescindible que su autor no aspire dicha posibilidad. Influye aquí, a ciencia cierta, la dificultad en discernir en ella los rasgos que responderían a una habilidad técnica del creador (cualidad imitable) de entre los gestos de lucidez fulgurante que nacen de capacidades creativas innatas o, cuando menos, de mayor complejidad en lo que compete a su hallazgo y descripción (y por lo tanto, de difícil transferencia directa). Por otro lado, la premeditación en ejercer maestría, cuando esta ha de producirse en medio de la obra de arte, es una actitud que puede resultar de una prepotencia intolerable. Del mismo modo, quien -cegado por su empecinamiento en aprender de la obra- adopta de un modo literal esa (mera) posibilidad y la confunde (a la obra de arte) con una guía doctrinal o dogmática , corre el peligro, a su vez, de convertirse en el responsable de parodias involuntarias que tan sólo remedan a la obra elegida como modelo. Se afirma en todo caso que el impulso creativo no podría, en modo alguno, ser extraído sencillamente- de otras obras; sólo se consiente su presentimiento (en la forma de un cierto regocijo íntimo) y su acecho por vías paralelas, desde una trastienda del aprendizaje. Aquello que así se aprende sería, en realidad, arrancado instintivamente de entre los sedimentos que las obras de los otros han depositado en nuestra vocación; sólo así puede ser considerada otra obra anterior, en última instancia, como el combustible germinal de una inclinación creativa. La complejidad de ese arqueado didáctico es uno de los motivos por los que se considera al magisterio artístico como una actividad brumosa o necesariamente imprecisa; además de ser el origen de muchas de las críticas que reciben los planes de enseñanza artística institucionalizados. Se llega incluso a acusar de insolencia al intento de enseñar un arte, un reproche que crece de manera exponencial a medida que la aportación autoral es arrinconada hacia lo conceptual , en detrimento de otras habilidades creativas o técnicas. En base a ello, esa especie de
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(1) Aunque quizás no sea preciso mencionarlo, el canon al que nos referimos, en lo que respecta a este tipo de autodidactas, es el de la inevitable Nouvelle Vague francesa: Con frecuencia me preguntan en qué momento de mi cinefilia sentí deseos de convertirme en director de cine o en crítico y, a decir verdad, no lo sé. Lo único que sé es que quería acercarme más y más al cine. Un primer paso, pues, consistió en ver muchas películas; el segundo, en anotar el nombre del director al salir de la sala; el tercero, volver a ver a menudo las mismas películas y elegirlas en función del director... . François Truffaut, citado por Javier Memba en La Nouvelle Vague, T y B Editores, Madrid, 2003, p. 17.
solapamiento consensuado del, llamémosle, pequeño maestro , en el aprendizaje artístico, intenta esgrimir una justificación concreta en función de las necesidades de intermediación técnica que define a cada medio de expresión. La pertinencia del reconocimiento al maestro que, en un sentido estricto, imparte su magisterio dentro de los confines del aula , se deduciría entonces del grado de complejidad técnica que precisa la elaboración de una obra en cada disciplina o momento histórico. De ahí que el prestigio del maestro de taller que caracteriza a una escuela de pintura florentina en el siglo XVI varíe considerablemente con respecto a las actuales escuelas de artes plásticas. De ahí también, en parte, la extrañeza al reconocer el modo en que historiadores y críticos cinematográficos (cronistas de una de las artes que mayor subordinación debe a los medios técnicos que la hacen posible) han colaborado, con su falta de interés, a la depreciación de quien ostenta el oficio específico de maestro en el ámbito de la docencia cinematográfica. Es evidente que jamás podría exigírseles una atención desproporcionada a ese respecto, pues somos conscientes de que la formación de sus autores fundamentales ha ofrecido a lo largo de la relativamente breve historia universal del cine- una multitud de variantes entre las que una enseñanza reglada no será, en modo alguno, la norma predominante. Pero aún así, es significativo que en los casos en que ese tipo de instrucción es constatable, la formación parcial de un cineasta bajo un plan de estudios y una serie de herramientas pedagógicas concretas no cause mayor interés que el de su mera mención en un desglose biográfico. Quizás en ese desdén ha influido determinante el éxito y la canonización del cineasta-cinéfilo (y militante confeso de su irrenunciable cinefilia). Ejemplo mayor de quien no ha precisado una formación regulada para asumir el oficio, esta estirpe de cineastas hace gala, repetidamente, de un esplendoroso patchwork fílmico mediante el que encauzó su aprendizaje en sala (de proyección) (1). La admiración por este tipo de autodidactas pudo haber sido la puntilla que culminó la depreciación de su aparente antagonista, el aprendizaje en aula. Nacido en principio como crítico o mero aficionado , obró además este tipo de autor y esto es ya indiscutible- con una probada solvencia cuando se vio obligado a salir al encuentro de la práctica (instrumental, narrativa, industrial ); pese a que se le vaticinó como extremadamente conflictiva aquella, dado su supuesto déficit técnico. La única contrariedad real de la que cabría acusársele aquí sería, pues, la de haber privado a la posteridad de un rastro sobre su formación. Esa es una de las pocas diferencias que cabe ponderar frente a una educación exclusivamente autodidacta (y en función a esa cuestión es aquí tratada): la viabilidad de aspirar a conocer alguno de los parámetros bajo los que se edifica el proceso formativo de un autor. De los datos que la existencia de un plan de estudios puede ofrecer, se sigue un procedimiento impuesto (por genérico que éste sea), un indicio sobre la forma en que el
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(2) V.G.I.K (o ВГИК, en alfabeto cirílico): Instituto C i n e m a t o g r á f i c o Confederado del Estado. Fue renombrado como Instituto Gerasimov a partir de 1986,
aprendiz ha sido aleccionado para poder asir competentemente el oficio de cineasta. En ocasiones, esas actas serán la única prueba exógena de dicho período, pues el aprendizaje que se obtiene de hacer cine de un modo inmediato , sin aplazamientos formativos (sin subterfugios pedagógicos, por pura experimentación) consume, generalmente, cualquier documentación relativa a ese progreso tras el vértigo y la urgencia, ante la inminencia de la obra venidera. Si nuestra intención es la de meditar sobre un procedimiento de tamaña intimidad (aquel en que se gesta una necesidad creativa en el individuo), no podemos menospreciar el escaso material que podamos manejar a ese respecto, sobre todo si los datos que perduran son de la ecuanimidad de un plan pedagógico. Pues el maestro, por el hecho de brindar el acceso a la técnica (ya que su labor incluye la depuración de aquella, o su síntesis, para hacerla accesible al alumno), da forma al balbuceo del no iniciado hacia un lenguaje. ¿Por qué no cotejar esa experiencia para arrojar luz sobre algo que se intuye, para el espectador de una obra, como inhóspito (pues se trata de un período abisal, aquel en el que se gesta una anhelo creativo)? El maestro debe fijar los cauces de un proceso esencial y por ello su contribución es ya un síntoma que merece ser salvado; y dado que una de sus funciones es la de instruir al alumno en el reconocimiento de un origen, su aportación es también original a su vez. Esa figura es pues un umbral para el artista, de ahí que no pueda ser obviada frívolamente. Su relato describe la adopción de palabras y gestos embrionarios, detalla las condiciones en que fermenta una vocación, su momento se asienta en los albores de la creatividad; su testimonio, sólo por eso, se vislumbra como nutritivo.
en honor al cineasta, actor y profesor de ese mismo centro
A excepción del VGIK (2)
Sergei Gerasimov. Fundado bajo el nombre de GIK (Instituto Cinematográfico del Estado) en septiembre de 1919, fue tutelado en un principio por el Narkompros (Comisariado Popular para la Instrucción Pública) y su primer director fue Vladimir Gardin. Cfr. Peter Rollberg, Historical Dictionary of Russian and Soviet Cinema, Scarecrow Press, Reino Unido, 2008, p. 6; así como en Tatiana Smorodinskaya, Karen Evans-Romaine y Helena Goscilo (Eds.), E n c y c l o p e d i a o f contemporary Russian culture, Routledge, Londres, 2007, pp. 15-16.
La mención a cualquier plan didáctico continúa siendo, sin embargo, un caso considerablemente marginal, escaso o meramente anecdótico lejos del específico radio de acción de la docencia cinematográfica reglada. Existe, por fortuna, alguna excepción profusamente celebrada aunque no descrita ni analizada en la misma medida en que es reverenciada-, como es el caso del VGIK moscovita. Parte de su aristocrática vigencia contemporánea se debe a su longevidad (es considerada como la primera escuela de cine del mundo). Influye también en su reputación el nutrido elenco de grandes figuras de la historia del cine ruso que han formado parte de ese centro, como alumnos o engrosando su esplendoroso cuerpo docente. Pero existe, por encima de todo ello, una razón congénita a su nacimiento que justifica buena parte de su excepcionalidad: las circunstancias bajo las que se concibe su creación -el contexto revolucionario- obligaron a extender la responsabilidad de profesores y alumnos hacia parcelas de las que aquellos son eximidos en otras escuelas. Ya que, bajo los auspicios de la
176 Proletkult, un lugar de privilegio fue reservado para la enseñanza dentro del ideario comunista en el caso soviético -lo que se tradujo en el fomento, la custodia y la promoción oficial de los organismos que habrían de asumir la docencia en todos los estamentos del nuevo orden social-, la trascendencia del concepto de educación, en la misma medida que la evolución de sus procedimientos, fue objeto de una esmerada atención, desconocida hasta entonces:
(3) Jay Leyda, Kino. Historia
En todas las discusiones acerca de la orientación que en el cine debía tomar la nueva sociedad (que tenía escasamente seis meses), la palabra educación se escuchó más a menudo que el término arte . Se puede haber pensado que la calidad de arte había tenido su oportunidad en las películas rusas, mientras que la función de educación no sólo en las películas rusas, sino en todas, había sido descuidada. (3)
del film ruso y soviético, Editorial Universitaria de Buenos Aires, Buenos Aires, 1965, trad. de Jorge Eneas Cromberg, p. 146.
(4) Para esbozar una idea somera de las dimensiones de aquella pérdida, podríamos recordar el modo en que la creatividad de muchos de esos autores f u g a d o s
a l e n t ó
enriquecedoras corrientes expresivas en la industria cinematográfica de sus países de acogida (pese a las numerosas contrariedades que hubieron de sufrir durante su exilio). De manera particular, cabe destacar el ejemplo de esa influencia en los casos de Alemania y –muy especialmente- en Francia, durante la década de los años 20 del siglo pasado. Cfr. Jay Leyda, op. cit., pp. 135-136.
A ese respecto bastaría mencionar, para ilustrar el ensanche de las responsabilidades pedagógicas encauzadas por el arte cinematográfico en el caso soviético, algunos de los fascinantes recursos con los que aquel propósito fue abastecido. Muchos de ellos originaron emblemas concretos, como el caso del cine-tren de Alexander Medvedkin o los Kinoks de Dziga Vertov. Pero incluso con respecto a esos notables paradigmas, el VGIK supone, comprensiblemente, una apuesta de mayor envergadura. Si la funcionalidad del arte cinematográfico habría de ser establecida a partir de su capacidad educativa, no es de extrañar que la propia instrucción de sus cineastas fuera concebida como una función de primer orden, más allá de sus resultados finales. De acuerdo a ese interés, la evolución del centro se planteó de manera sincrónica al ritmo de arranque que toda la industria cinematográfica rusa adoptaba en ese momento. Para el VGIK, el inevitable enclaustramiento (de forma literal: la reclusión en un claustro de docentes y alumnos) con el que la sociedad se desentiende temporalmente del futuro autor durante su formación como si restase sólo a la espera de los resultados que pueda ofrecer cuando su instrucción haya hecho de él un creador-, fue menor; así como la despresurización con la que se pretende proteger el trabajo del docente. El reclamo que de esa institución realizó su enérgica e incipiente producción cinematográfica, frente a la forma en que la industria de otras filmografia actúa de espaldas a las instituciones pedagógicas (pues no precisaban, ni precisan, ser nutridas por esos centros de manera exclusiva), contagió al VGIK del torrente creativo que espoleó al cine soviético durante la mayor parte de su historia. Además, la necesidad de su creación fue una urgencia real e inmediata, derivada de la fuga apresurada de los profesionales que habían fundado y consolidado el sector cinematográfico ruso en la era precedente, bajo el reinado de Nicolás II (4). Parte de esa desbandada se desencadenó de manera inmediata tras
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(5)Aunque es necesario aclarar que algunos de aquellos primeros cineastas de la era zarista sí permanecieron en el país y colaboraron intensamente con la edificación de la nueva cinematografía soviética, como fue el caso de un pilar fundamental para aquel resurgir post-revolucionario, Lev Kuleshov –cuya aportación en el campo de la pedagogía, dicho sea de paso, es de las pocas que se puede equiparar a la de Eisenstein. Kulechov ya había comenzado su carrera en la industria colaborando con un autor tan genial como olvidado en nuestros días, Yevgeni Bauer.
el triunfo de la revolución; el resto optó por el exilio tras un período de transición que demostró a aquellos, y al propio Partido, la incompatibilidad de las pretensiones del nuevo gobierno con un sector, ya semi-privado, pero que gestionaba la mayor parte de los recursos: especialistas técnicos, salas de exhibición y material instrumental necesario para rodar. Tras ese éxodo, el paisaje del sector cinematográfico ruso, huérfano en la práctica de maestros y artesanos, era el de una tierra quemada que había que reformular desde el vacío (5)-como en tantas otras facetas de la reconstrucción nacional a la que obligó su guerra civil. El sector se despertó, tras el levantamiento revolucionario, obligado a asumir con entusiasmo la tabula rasa que concernía a toda entidad cinematográfica de ese momento germinal en la Unión Soviética. La situación propició entonces (paradójicamente, para su fortuna) la necesidad de que cualquier empeño a afrontar se orientase, dada esa precariedad, hacia lo esencial en todos sus departamentos. La fascinación que sus protagonistas experimentaron frente a la prueba de asir nuevas formas de enunciación, mientras se veían obligados a edificar no sólo un nuevo lenguaje y una nueva escritura, sino todo un universo nominal, será un rasgo de clase para aquellos precursores. De igual rentabilidad productiva que nobleza conceptual es la eficacia con que supieron elegir el núcleo de sus meditaciones y su puesta en práctica, su esmero en desgranar, desde distintas metodologías (de análisis crítico, experimental, funcional ) la sabia del nuevo arte: el montaje cinematográfico -no había tiempo que perder en elementos accesorios, afrontaron sin dilación la médula de ese lenguaje, concediéndole la preeminencia discursiva que le corresponde-. Esa certera lectura de lo esencial se intuye, también, en la severidad con que legitimaron lo imprescindible de un período de formación sustancial para los futuros cineastas del pueblo. Ahí yace otro de los principales motivos por los que sus cimientos fílmicos cuajaron de tal manera, se deriva de la nobleza con que enfocaron la problemática pedagógica. El ejemplo soviético demuestra que una nueva historia universal del cine podría ser planteada desde esta perspectiva, desde el modo en que cada una de las encrucijadas que cercaron al arte cinematográfico durante el siglo XX se vio reflejada en el modo en que el cine, y el pensamiento que de él surge, gestionó su relación con el aprendizaje. La supervivencia del VGIK y de la fórmula que representa, pese al paso de los años y de los conflictos de transición que lo amenazaron, nutre la creencia en esa posibilidad de interpretación. Eisenstein como pauta
No obstante, sólo en virtud de la diferencia que la legitima podremos reevaluar lo que verdaderamente compete a la docencia en las aulas: la confluencia del maestro y del alumno
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(6) Formulamos también esta aclaración dada la proporción estimable de su trabajo en el VGIK que consumía bajo el formato de conferencias magistrales. Su intención fue siempre la de compilar esos ensayos sobre la docencia en un solo volumen que no llegaría a ver la luz: Miles de páginas, que informaban sobre sus clases en el Instituto de Cinematografía, esperaban aún ser usadas en los muchos libros que había planeado para incorporar todo lo que él sabía sobre la naturaleza del proceso creativo . Marie Seton, Sergei Eisenstein, una biografía, Fondo de Cultura Económica, México D.F., 1978, trad. de Homero Alsina Thevenet, p. 441. (7) Así lo reflejan muchos de los estenogramas en los que se registraba el desarrollo cotidiano de sus clases en el VGIK (y que constituyen la columna vertebral de una obra imprescindible para comprender la labor cotidiana de Eisenstein en aquel instituto, el libro Lecciones de cine de Eisenstein, de Vladimir Nizhny): El 13 de julio de 1917, yo estaba en Sadovaya, en Petrogrado, cuando la histórica manifestación. Una multitud estaba transitando,
en un lugar en el que se cumple con el aprendizaje. Bajo esa cota, la potestad de manifiestos o textos fundacionales se difumina, ya que las dimensiones de su inercia retórica provocan la extinción del (microscópico, en relación con aquellos) relato vivencial. El espacio del aula, por contra, se define por la forma en que exprime su diáfana contigüidad con la ejercitación de la enseñanza. Sugerimos la toma en consideración del aprendizaje institucional mientras se pueda decir de aquel que es deudor de una experiencia localizada. En la misma medida, cabe una aclaración oportuna a la adopción de Serguei Eisenstein como eje de un análisis sobre la actividad docente en el VGIK. La densidad y volumen de su producción ensayística es de un peso tal, que siempre resultará difícil desligarla de su comparecencia específica en el aula. Pero la necesidad de concentrar nuestra atención en el modo en que aquel cineasta auxilió la evolución pautada y cotidiana del alumnado, precisa de una inicial emancipación de otros cuerpos de enunciación (como su películas o sus escritos (6)); aunque con posterioridad, el estudio de su más que probable combinación, sea una etapa ineludible para la propuesta. Nuestra intención, en un primer momento y en la medida de lo posible, será la de escudriñar aquello que sólo en lo que respecta al aula, y no en aquello que ofrece desde una cátedra, se podía obtener de Eisenstein en el VGIK (aunque en su caso, como decíamos, siempre será difícil restringir parcelas de actuación). De hecho, de esa premisa se deduce a su vez otra objeción oportuna, la de la perpetua sospecha que se arroja sobre el autor consagrado cuando éste decide dar un paso hacia el aula. Las cuestiones son allí las mismas que en nuestro ejemplo específico ¿Cuándo se convierte en útil, o en forzosa, esa comparecencia del autor magistral? ¿Qué márgenes de su doctrina reclamarían su presencia en el aula para su correcta difusión? ¿O se trata tal vez de una experiencia en la que no es indispensable la mención a su propia identidad autoral? A ese respecto, sí hemos de avanzar que el caso de Eisenstein es uno de aquellos en los que su trayectoria como cineasta se manejaba como argumento ilustrativo; en ningún momento quiso obviar la posición desde donde formulaba sus consejos al alumno (7). Pero en función de esa eventualidad, cabe entonces preguntar si es factible un posible vínculo bidireccional entre esas variantes de su volcado creativo, y cuáles serían las herramientas que, de entre sus propias capacidades, consideraba Eisenstein como de mayor utilidad para sus discípulos (esta pregunta hace referencia a la sublimación de su propio trabajo como autor y es por ello un síntoma trascendental). De cualquier manera, debemos comenzar por aclarar que su influencia es inherente a la maduración y consolidación del VGIK. Y es por ello que el estudio de su metodología como docente en sus aulas es aquí de una utilidad inestimable por varias razones. Pensemos que, por un lado, Eisenstein supone para el cine soviético en términos globales- un auténtico canon sobre cuyas características parece estar articulado el grueso de
179 la calle estaba llena: de re p e nt e s e o y e ro n uno s disparos e inmediatamente las calles quedaron vacías. D e e s t e m o d o , evidentemente, debió haber ocurrido en la escalinata de Odessa. Pero, ¿cuánto tiempo ocupa esta escena en el film? Casi seis minutos. En el cine este es un período desmesurado. Sin embargo, el espectador nunca percibe la sensación de que esta corriente humana no fluye durante todo ese tiempo, sino con interrupciones, o de que la acción cesa. ( ) Esto se alcanza manteniendo un constante aumento de tiempo y ritmo, y por el hecho de que todas las incidencias están entrelazadas con el plan y la acción generales. En ambas el más simple movimiento a través de la escena, y en una escena de masas tan compleja como la de la escalera en El acorazado Potemkin, el principio de construcción es uno solo y el mismo. Vladimir Nizhny, Lecciones de cine de Eisenstein, Editorial Seix Barral, Barcelona, 1964, trad. de la edición inglesa del libro por Leoncio Sureda Guytó y Román Gubern, p.88. (8) Prefacio de Ivor Montagu a Vladimir Nizhny, op. cit., p. 8.
sus rasgos identitarios. Su mención matiza, en todo momento y de forma categórica, cualquier valoración sobre el alcance real de la filmografía soviética; así en sus triunfos como en sus miserias, así en la práctica como en sus (amplias) formulaciones teóricas y así también, por supuesto, en sus implicaciones pedagógicas. Por eso nos atrevemos a sugerir que la evaluación de aquello que la escuela soviética ha aportado a la historia general del cine es impensable sin una atención pormenorizada a este icono fundamental. Para ella sirve de magna ilustración en lo que respecta a su cólera creativa, a la promoción del cineasta erudito, a la constatación de un compromiso contrastado con la Revolución pero cumple también por la forma en que sufrió la censura y la persecución, la modificación o el condicionamiento de muchas de sus obras por las variaciones en la argumentación de las políticas culturales del Estado. Por ello, no habría de resultar impropio (dicho siempre esto con prudencia) postularlo no sólo como un emblema para el arte cinematográfico ruso sino como su propia encarnación, o quizás como su metáfora más efectiva. Otro tanto ocurre pues, con aquello que propició el paso de Eisenstein por el VGIK, pero aquí de una forma que se presta en menor medida a la controversia, dada la condición notarial de muchos de los documentos que describen sus competencias en aquel lugar (compruébese una vez más la utilidad del rastro que la docencia institucional ofrece). Ya que Eisenstein es el responsable del primer plan de estudios coherente y complejo del que dispuso el VGIK para la especialidad de dirección cinematográfica (8), siempre será difícil delimitar el valor en términos de rentabilidad pedagógica - de su compromiso (sus beneficios se extienden indefinidamente, al adherirse a una estructura organizativa imprescindible). Pero la redacción de ese marco no supone sólo una pauta, o una articulación funcional del trabajo, sino que concede al Instituto una certidumbre de viabilidad primaria con la que afrontar la inmersión en lo cenagoso de la pedagogía artística. Mediante ese mapa, que para muchos puede resultar de un tedio burocrático (que sólo existiría a un nivel epidérmico de aquel escrito), Eisenstein dispone un cuadro de actuación concertado, el supuesto mínimo que ayuda a discernir el alcance del aula, su horizonte. Pero en lo que respecta al intento de reevaluar la trascendencia de la docencia cinematográfica en un autor como él, este ejemplo afortunado ofrece un punto de apoyo inusual y específico que difícilmente se puede hallar en otros casos. Su mayor ventaja, para el tema que nos ocupa, es la de poder emplear ese programa como lo que terminó siendo en la práctica: una suma de sus meditaciones sobre la pedagogía en el campo de la dirección cinematográfica. Dicha consideración, una vez que ha sido establecida la independencia del documento (y por lo tanto, su autoridad como una obra autónoma a considerar) alberga la posibilidad de emprender un careo equitativo de sus características con el resto de su producción.
180 (9) Tal y como afirma
El plan pedagógico frente a un ciclo dialéctico
Eisenstein en relación a La huelga (Stachka, 1924): El material de las masas es propuesto como el más apropiado por su relieve para confirmar el principio ideológico ya mencionado de aproximación de la forma, con vistas a un resultado determinado y en tanto que elemento complementario de la oposición dialéctica . Sergei Eisenstein, “Para una aproximación materialista de la forma”, presente en Miguel Bilbatua ed., Cine soviético de vanguardia. Teoría y lenguaje, Editorial Alberto Corazón, Madrid, 1971, p. 150.
Con toda seguridad, nadie como Eisenstein habría estado tan capacitado para elaborar un estatuto de esa naturaleza. Y no se trataba sólo de la irradiación infinita de su propia complexión intelectual -que debe tanto al rigor científico como a la mística del arte-, aunque aquella característica permitiese augurar una provechosa sensualidad referencial para el texto. Pesa en mayor medida su propensión a relatar itinerarios de culminación creativa (y el suyo propio más que ningún otro). Eisenstein se sentía obligado a percibir siempre con claridad y a partir de ahí, a narrar - las conjugaciones, los choques y los deslumbramientos que dan cuerpo a todo proceso creativo. Y es que precisamente ésa es una de sus principales obsesiones, la de generar cuerpos que fijan pensamientos, que traducen esos pensamientos a una masa de progresivo espesor conceptual. Aplicación curiosa la de este materialismo de raíz marxista que sujeta a la especulación intelectual bajo substancias de mayor densidad plástica , de diverso temperamento. Hoy podríamos situar el canon de esa transferencia en sus films; como ejemplo, el modo en que los cuerpos de algunos de sus protagonistas tensan, bajo sus carnes fibrosas, temas y secciones del ideario revolucionario (9). Pero esa metodología no cumple con su ciclo hasta que se produce un tercer movimiento que reivindica su esencia dialéctica. Nos encontramos frente a una tesis (un pensamiento) que litiga cuando se produce su materialización: el cuerpo que se obtiene de esa travesía se despliega como replica , y en función de ello, como antítesis (su formalización lo convierte en beligerante frente a la raíz inspiradora porque la plasmación de un pensamiento en el film o sobre el papel-, si aquel es verdaderamente fértil, debe inquietar). Lo que aguarda, a continuación, es una resolución para ese choque. Pues es preciso volver una vez más sobre ese contenedor material para sintetizarlo, para forzar su salto patético. De manera que la puesta en marcha de esa materialización exige también un subsiguiente trabajo de montaje . Así, a merced de una última reorganización , nos topamos con cuerpos que no dejarán de ser ofrendas de actuación al propio pensamiento, pues habrían cobrado materia sólo para ser desgarrados (tal es el corte del montaje cinematográfico) a renglón seguido; así propician el sangrado plástico de los conceptos que los sostienen, el desmembrado y conjugación de articulaciones aparentemente ingobernables o vaporosas. Amparándonos en la coherencia con que izaba cada nueva inquietud dentro de su integridad autoral, y si convenimos en la relevancia específica de la vertiente pedagógica en su obra, podríamos llegar a interpretar, pues, su «Programa para la enseñanza de la teoría y práctica de dirección cinematográfica» como el tejido que aquí encarna un ideal de enseñanza para el arte cinematográfico. Ese estatuto administrativo sería también el candidato a reclamar una
181 ulterior síntesis que avive, como se aviva una llama, al cuerpo (recién) fraguado. Parece necesario incluso, siguiendo una misma inercia asociativa, identificar el tercer movimiento que resta con la imprescindible puesta en práctica que todo plan de este tipo precisa (su montaje, entonces, ¿estaría circunscrito, por ello, al interior del aula?). Pero ocurre que la asimilación de su plan pedagógico como una obra más de Sergei Eisenstein, y por lo tanto, proclive a ser interpretado bajo hipótesis como la que acabamos de anunciar -opción que no se adopta con demasiada asiduidad-, desvela una contradicción que resulta demasiado evidente como para pasar desapercibida. Se encuentra en la contundencia con que la identidad del texto que acaba de cobrar forma bloquea esencialmente cualquier circulación dialéctica. Nos referimos a la circunstancia de que al tratarse de un texto legislativo, queda despojado de cualquier tipo de confrontación que aspire a despedazarlo y a reformular sus combinaciones. Su estatus es refractario a la dialéctica revolucionaria porque este tipo de textos constitutivos están obligados a garantizar la extinción de cualquier disputa directa con su cuerpo. La ley sólo permite enmiendas y nunca un desangrado de sus artículos (la enmienda viene a ser un mero subterfugio que jamás hará temblar su pedestal). Por eso a la ley divina se les buscó un acomodo plástico en la solidez de las tablas y por eso mismo el gesto de Moisés, al arrojarlas , no constituyó acto sacrílego alguno: nada fue alterado porque la Ley, ontológicamente, sólo puede ser fragmento intocable e incuestionable. Es verdad que la pretensión de adaptar su aportación pedagógica al ciclo dialéctico que Eisenstein cultiva en su obra (la intención de -bajo la forma de rizoma- armonizar la pedagogía de este autor con el resto de su producción) enmaraña considerablemente el acceso a un texto que en principio debería resultar de un esquematismo casi burocrático. ¿Por qué cuestionar la forma de un documento que en teoría sólo podía ser elaborado de ese modo? En primer lugar, porque la controversia frente a las formas quizás sea la mayor característica de aquel cineasta. Su eterna vigilia inquisitiva con la que hostigaba a todo proceso evolutivo, que acechaba inquebrantablemente los modos en que todo desarrollo se precipita hacia su resolución- debería ser tomada en consideración aquí, debido a que un plan de estudios es en cierta forma un ideal especulativo a ese respecto (al adoptarse como una superestructura administrativa del propio proceso formativo). Por esa razón es difícil pretender, ya que Eisenstein está de por medio, que su elaboración resultó inocua para el resto de su obra. Pero es que además ¿existe acaso algo en este autor que no se enrede sobre sí mismo para reevaluar su vigencia, de manera que la complejidad de cualquier planteamiento parezca estar siempre en camino de multiplicarse? Cronista incansable de su propia metodología, empeñado en diagnosticar el tormentoso perímetro en el que estaban suspendidas todas sus decisiones, la elaboración de esa estrategia de enseñanza era una oportunidad excepcional de autoanálisis para él. Y si toda esa hiperconsciencia metodológica referida a los modos de crear que lo caracteriza, amenazó -en algún momento- con arrastrarlo a la esquizofrenia de una autodefinición permanente (peligro que es considerablemente real), el propio plan, de hecho, se convertiría en un plan de choque con vocación de catarsis terapéutica. O tal vez no sea más que un monumento a esa tendencia (compulsiva) por meditar su camino como autor, nada más que el mayor de los indicios sobre una autoevaluación que por su insistencia llega a resultar patológica. De cualquier manera, es determinante, en los dos casos, el factor autobiográfico que subyace en el plan -lo que allí parece estar arrancado de sus propias entrañas autorales (esto equivale a señalar la práctica totalidad del texto)- (10). Evidentemente, sí es objetable que su funcionalidad (la misma que prohíbe la manipulación de sus fragmentos ) es una imposición ineludible y que por eso el plan quedaría excluido, por anticipado, de la rutina que sincronizaba su mecánica global como cineasta y ensayista. Pero acontece también que el sino de incompatibilidad que augura la redacción de ese texto cuenta con un eco específico dentro del resto de su producción en aquel período. Coincidiendo con la etapa en la que su vinculación con el VGIK fue más estrecha (período que contempla la redacción
182 (10) Existen motivos tremendamente pragmáticos para ubicar el fundamento integral de ese plan en su propia experiencia. En primer lugar, basta con seguir la pauta del tipo de autor que prefigura su programación para obtener a un individuo creativo muy próximo a sus características. Además, es constatable la obligada escasez de modelos disponibles en ese momento p a r a
l a
d o c e n c i a
de estos estatutos (11)), aquella otra obra (la que sí podría ser abordada en función de su gestión dialéctica) también presentó síntomas de una disfunción similar. Todo ello nos incita a considerar al Instituto de enseñanza cinematográfica como el posible epicentro de una extraña disfunción en su obra: en lo que respecta al tramo de su filmografía en la que la exigencia del aula fue más clara, se hace notar un desplazamiento determinante del centro de gravedad en sus búsquedas. Al parecer, ese pequeño desequilibrio provocó la dislocación de una potente estructura que había amparado hasta ese momento a su obra primera. Quizás un simple cuestionamiento metodológico esté en el fondo de la carcoma que amenazó al templo dialéctico en su trabajo. Así definía, él mismo, aquel período que lo aproximó a formas de mayor incertidumbre :
cinematográfica, una dificultad que se dobla al intentar obtener referencias reales para el novedoso caso que comenzaba a ser edificado en la Unión Soviética -un aspirante a abanderar la reformulación radical del medio en todo el mundo. Esa referencialidad autobiográfica lo convierte en un valioso compendio para el estudio de su
Los filmes siguientes, junto con sus precisas exigencias, transportan la obra práctica experimental de desarrollar un medio de expresión cinematográfica creativa hasta obtener un máximo en la activación positiva del arte revolucionario y armar pedagógicamente a la generación de jóvenes bolcheviques, que habrán de asumir el lugar de los maestros del cine en los primeros planes quinquenales de la Revolución. El centro de gravedad de la obra posterior (Los diez días, Lo viejo y lo nuevo) está en los campos de la experimentación y de la búsqueda. La obra personal queda íntimamente vinculada con la práctica científica y pedagógica planificada (el Instituto Estatal de la Cinematografía) (12)
maduración como cineasta y para abordar los parámetros bajo los que se explica la evolución de su poética. Pero también es verdad que la mayor parte de dichos parámetros, como ya hemos apuntado, habían estado siempre a disposición de aquel que quisiera valorarlos en su ingente producción ensayística. Constatar la forma en que el plan de estudios marca un itinerario inspirado en su propia evolución es de utilidad, quizás en mayor medida, por aquello que revelan sus “anomalías”. (11) Es conveniente indicar que el programa fue elaborado durante la primera mitad de la década de los años treinta, un período en el que es posible rastrear un punto álgido en la intensidad de ese diálogo con la
Ese desplazamiento hacia una ubicación periférica (un margen que se salva para la enseñanza) alejó también al embrión de sus futuros proyectos del ojo del huracán desde el que, con anterioridad, esas mismas obras eran gestadas. Y se alejó de él para mostrarlo, para poder medirlo: desde el interior de las estructuras es imposible aleccionar al alumno porque su descripción adolecería de una distancia saludable; sin esos márgenes de mediación, es imposible comprender de una manera global las dimensiones y los juegos de articulación de los cuerpos diseccionados por el docente. La dilatación de ese nuevo sentido a su orientación creativa produciría, a partir de ahí, una descompensación que iría horadando paulatinamente alguno de los márgenes de su consistencia metodológica. Su roce insistente dejará por ello heridas de difícil coagulación. En ese sentido, algunos autores, como Jesús González Requena, apuntan a la existencia de un signo de desgaste que caracteriza a las obras que aquí señalamos como estigmatizadas por la docencia de manera más clara (los films realizados desde principios de los años 30 hasta 1937, momento en el que se suspende definitivamente el rodaje de El prado de Bezhin (13)). Se habla de una imposibilidad de reunificación, de una desarticulación que parece anhelar ser perpetua. Como si el esencial cuestionamiento de cualquier orden que ampara la duda metódica se hubiera filtrado en su obra, la articulación
183 docencia por parte de Eisenstein en el VGIK. Su primer contacto con el Instituto tuvo lugar en 1928, cuando fue nombrado director de cursos del mismo (todavía era conocido como GIK y ocupaba los salones del antiguo “Yar”, un famoso restaurante de la época zarista que se encontraba en la Chaussée Leningrado). Pero será sobre todo durante la primera mitad de la década de 1930, como decíamos, cuando su presencia en el centro sea más asidua y
definitiva de aquella se descubre como aplazada; con ello se pospone también el cumplimiento de su resolución bajo los parámetros previamente establecidos (14). Eisenstein se había comprometido con la administración del Estado a ofrecer algo más de aquel bloque con el que levantó su Potemkin y en cambio, la materia ahora se derramaba al acometerla. Pero lejos de suponer un problema de quijotesca ilusión intelectual (como se vio obligado a describir en su Autocrítica al film inconcluso La pradera de Bezhin ), a las obras que no consigue concluir en ese momento parece abrírseles, con esa falla de puntualidad , y con las peculiares connotaciones que el paso de los años han vertido sobre esos proyectos, el bálsamo de un abismo. Frente a la angustia que supone la exigencia de concluir siempre de manera categórica un proceso, se arroja la posibilidad de una tregua en la cesura abrupta de su evolución ¿la irrupción de lo mortal en el fluido dialéctico, acaso?:
activa, adoptando incluso el cargo de Director de dicha institución en 1935 (siendo ya denominado como VGIK). A mediados de la década siguiente, de 1945 a 1946, retomó esporádicamente dicha aportación hasta que sus graves problemas de salud se lo impidieron. Cfr, David Brodwell, El cine de Eisenstein. Teoría y práctica,
Proseguir nuestra lectura del texto eisensteniano en el periodo que va de ese film heterogéneamente fragmentado que es La línea general a ese otro, rígidamente homogéneo que es Alexander Nevsky, exige atravesar los fragmentos inconclusos de ¡Que viva México! y El prado de Bezhin, pero también aquellos otros textos, no menos fragmentarios, mezcolanza heterogénea entre la teoría, la autobiografía y la literatura, con los que el cineasta trató una y otra vez de elaborar lo que, en su experiencia cinematográfica, se manifestaría como una flagrante imposibilidad de que la escritura condujera a la clausura del discurso. (15)
Paidós, Barcelona, 1999, trad. de José García Vázquez, p. 167.
Fragmentos de un discurso amoroso
(12) Nota autobiográfica de Sergei Eisenstein recogida por Marie Seton en su biografía sobre el cineasta. Op. cit., p. 455. (13) Esa época cuenta además con otro tipo de signos relevantes que remiten, nuevamente, a un desplazamiento periférico: desde finales de los años 20 (en concreto, desde 1929) comienza una serie de viajes por todo el mundo junto con Alexandrov y Tissé. (14) Una “malformación” similar pareció acometer a Nicholas Ray cuando hubo de refugiarse en la docencia a principios de los años 70 (en la Universidad Estatal de N u e v a
Y o r k ) .
L a
El riesgo en la opción que propone Requena es el de reconocer, más allá de los avatares particulares que lastraron el rodaje de aquellos dos films inconclusos, la existencia de un motivo de fuerza mayor que habría condicionado (ya de antemano) unas producciones y unos rodajes realmente complejos (16). Requena no contempla la posibilidad de asociarlo a su labor pedagógica pero esa coincidencia es significativa (y los signos adyacentes que de aquella se derivan son también reveladores). Una evolución experimental íntimamente vinculada con la práctica científica y pedagógica planificada de esa época, avocó a su obra hacia una fractura inevitable de su continuidad, pero el modo en que Eisenstein estaba absorbido por lo seductor de aquella experimentación le impidió reconocer el peligro que esto suponía -si nos atenemos a lo que el Estado esperaba de su trabajo-. Podríamos hablar entonces de una especie de resquebrajamiento paulatino que comenzó mucho antes de cada inicio de rodaje y que hoy yace soterrado bajo los relatos que analizan contingencias puntuales de su infortunio -de las que nadie puede negar una parte de culpabilidad en esos intentos fallidos (sus films inconclusos)-.
184 fosforescencia visual y argumental del proyecto que elabora junto con sus alumnos, recientemente restaurado (We Can't Go Home Again, 1976-2011), sería de gran utilidad aquí –pese a sus diferencias manifiestas- por ciertos paralelismos con los casos de Eisenstein abordados en nuestra argumentación. (15) Jesús González Requena, S. M. Eisenstein, Editorial Cátedra, Madrid, 2006 (2ª), p. 215. (16) “Resulta demasiado ingenuo achacar el fracaso de ¡Que viva México! a la actitud de su productor, Upton Sinclair, después de todo un bienintencionado, a la vez que acomodado, escritor de izquierdas que aceptó el compromiso de Eisenstein de r e a l i z a r
u n
f i l m
económicamente asequible. Pues no sólo fue el cineasta quien rompió todos sus plazos y se extendió considerablemente del presupuesto pactado –quien, en suma, rompió el contrato, sino quien llegó incluso a ofender a su mecenas enviándole unos dibujos cuyo erotismo no podía por menos que ser percibido como pornográfico por un – r e p i t a m o s
q u e
bienintencionado- moralista como Sinclair, máxime c u a n d o
é s t o s
l e
c o m p r o m e t i e r o n públicamente a su paso por la aduana. Y demasiado fácil, también, acusar a la burocracia stalinista del fracaso de El prado de Bezhin, donde se repitieron los mismos incumplimientos y aún mayores excesos presupuestarios, y en donde la escritura eisensteniana, en su progresivo escorar
De hecho, es tremendamente útil el considerar la forma en que finalmente su conclusión es impuesta a posteriori. Deberíamos otorgar una mayor entidad a las ulteriores reconstrucciones del material que dejaron esos proyectos, en donde se pretende dar forma a un film que al parecer nunca llegó a serlo (17). Ese último montaje (esencialmente anacrónico, como todo montaje, pero aquí acentuado ese anacronismo por la distancia de la época en que originalmente se gestó el proyecto) no hace más que cumplir una encomienda que habrá de incorporarse irremediablemente a la significación póstuma de esos no-films. Al actuar de ese modo -retomando el trabajo inconcluso, pero describiendo convenientemente y con anterioridad los pormenores de ese proceso (18)- su renacimiento se construye desde un relato vivencial que es ajeno a la atmósfera que sostiene narrativamente al film, lo que equivaldría a decir que es ajeno, en cierta manera, a su tiempo original. El nuevo montaje, al traer a un primer plano el hecho de que esta labor posterior pone de nuevo en marcha su tiempo truncado , inocula una nueva membrana temporal que se superpone a la primera. Con ello, por un lado, al tiempo ideal de la diégesis cinematográfica que gestiona la película se le asocia un tiempo imperfecto, aquel que forma parte de esa actuación de recuperación (este tipo de gestión temporal es el sostén de la perturbadora capacidad de contacto con lo real del documental cinematográfico). Pero por otro lado, ese proceso que no deja de subrayar la autoría original del material, dobla la presencia del autor primigenio en sus imágenes, cosa que el film rematado convenientemente no precisa. Cuando un cineasta finaliza el film oportunamente, su persona sólo emerge a partir del rastro que su identidad autoral horada en el discurso fílmico, mientras que este tipo de reconstrucciones actúan bajo el reclamo, o casi la exigencia, de su presencia. Esa mención desbordada sobre su autoría lo que produce es el asentamiento de la obra no sólo frente a su finalización abrupta sino frente a su propia vinculación umbilical con su creador, y ambas (el cineasta y un final prematuro) se convierten en un abismo absorbente que se ubica a las puertas del film. Incluso el propio trabajo de montaje sufre una materialización similar a la del autor original, en la medida en que para ese trabajo es necesario ponerlo en evidencia. Este nuevo montaje no es relevante por sus características funcionales específicas o porque los gestos que en él se producen sean de una notoriedad que provoque extrañeza y que con ella rompa una administración de grado cero del relato cinematográfico. El montaje que se retoma con posterioridad, en esos proyectos de recuperación, pasa a un primer plano de la imagen porque la dimensión de sus funciones se plantea como una premisa o casi como una advertencia. Los prefacios que dibujan las circunstancias que obligan a re-montar el film -o a montar el material que produjo su rodaje- anuncian la eminencia de un sometimiento de la obra al montaje el hecho de que su disfrute inconsciente nunca asimilará ese estigma, al contrario de lo que ocurre
185 místico, no sólo entraba en conflicto abierto con el proyecto ideológico al que el cineasta pretendía someterse, sino que incluso encontraba en su propia dinámica los obstáculos que impedían alcanzar el final del rodaje. Digámoslo claramente: no se trataba de que el cineasta fuera interrumpido en su rodaje, sino que el rodaje se empantanaba hasta tal punto d e
c l a m a r
p o r
l a
interrupción…”. Ibíd., p. 214. (17) Sobre la recuperación de El prado de Bezhin: una reconstrucción de 15 minutos fue efectuada por Sergei Yutkevich y Naum Kleiman en 1965 a partir de fragmentos extraídos por Eisenstein durante el montaje original del film y conservados posteriormente por Pera Attasheva. Al montaje de aquellos fragmentos, basado en los guiones originales del proyecto y en anotaciones de Eisenstein, se le añadieron intertítulos y una banda sonora compuesta por Sergei Prokofiev. Cfr. Peter Kenez “A history of Bezhin meadow” presente en Eisenstein at 100. A Reconsideraron, Rutgers University press, Londres, 2001, p. 193. En lo que
respecta
a
la
reconstrucción de ¡Que viva México!, dejaríamos provisionalmente de lado el montaje y comercialización fragmentaria de varios de sus episodios realizados de forma independiente y por diferentes autores (bajo los títulos de: Thunder over Mexico de 1933, Day of the Dead de 1934, Time in the Sun de 1939 o Mexican Symphony de 1941). Pues la recuperación que más nos
comúnmente-. Una vez más, cobra importancia el relato vivencial o por qué no decirlo, la anécdota. El montaje deja de ser un paso más del proceso de producción y abandona la posible naturalidad de su paso para devenir en el éxtasis de la investigación. Ese trabajo de montaje que retoma los rushes de un proyecto necesariamente inconcluso, se efectúa entonces sobre el abismo ya mencionado. Efectivamente, hemos necesitado echar mano del relato circunstancial para retomar su organización, pero nadie podrá negar que todas esas menciones localizadoras tienen siempre un aire de panegírico. Ese montaje del material no finalizado hace gala de una ceremoniosidad funeraria, como si su recuperación se efectuase con el cuerpo presente (y así es en parte, en lo que respecta a su abismo). Volviendo a la propuesta de González Requena, él define a esos films como un espacio al que se le habría hurtado el tiempo (19), al verse privado de continuidad. Pero quizás lo que se produce es todo lo contrario: con su fractura e inconclusión, lo que se otorga a la obra es lo temporal mismo que la dialéctica negaba al rechazar el vacío e inundarlo todo con su agitación. Por eso casi podríamos asociar su reconstrucción postrera con un duelo por aquella obra, porque sirve para consagrar la forma en que el tiempo (un tiempo, el de su ruptura) se ha introducido en el film tal y cómo la muerte introduce al tiempo mismo en la vida del hombre. Por eso también el montador postrero cree que es posible actuar sobre esas obras inconclusas sin mancillarlas, por que esas piezas están ya marcadas por la muerte y por el tiempo. Pocos son los que acometerían sin pudor una obra correctamente concluida y firmada por otro (más allá de controversias autorales): no podrían hacerlo con honestidad porque su tiempo ya ha sido consumido, mientras que en lo infinito de la obra inconclusa el tiempo vibra seductoramente. La ensoñación cinematográfica se refugia en una malversación temporal, que es casi una negación del tiempo y por esto mismo a la reconstrucción posterior que sí cuenta con una temporalidad grave- se le niega un verdadero estatuto de film (basta comprobarlo con la forma en que figuran reflejadas si acaso figuran- en su filmografía). Cuando el despeñadero de la inconclusión se apodera de la obra de arte, es el tiempo mismo el que marca su costado, es el tiempo mismo el que adviene al producirse la imposibilidad de finalizar correctamente su culminación. De eso habla también la obra no finalizada (por mucho que esa impotencia fuera un tormento real para su autor). Tal vez esta hipótesis sobre la premeditación en el inacabamiento de su producción semeje una simple boutade vanguardista, pero no por ello ha de despreciarse la circunstancia de que tanto ¡Que viva México! como El prado de Bezhin son dos obras inconclusas o fatalmente mutiladas, impedidas, derivadas de un proceso de producción engangrenado pero eso es lo que son, al fin y al cabo, dos ejercicios sin conclusión que eventualmente fueron reorganizadas para dar una idea de lo que podría haber sido . De hecho, es en última instancia esa reelaboración condicional
186 interesa es la efectuada por Gregori Aleksandrov, en calidad de superviviente de aquel rodaje. En 1979 asumió el trabajo de remontaje a partir de los guiones originales y otro tipo de documentación conservada en los archivos del cineasta. Con posterioridad (1998), el cineasta Oleg Kovalov realizó una nueva versión del film, con fragmentos que no figuraban en el montaje de Aleksandrov titulado Mexican Fantasy. Cfr. Masha Salazkina, Introducción, In Excess: Sergei Eisenstein's Mexico, University Of Chicago
(del podría ) una forma de reconocer que su tiempo se ha dilatado indefinidamente; que la obra, ahora, ha cobrado tiempo más que cuerpo. Aquí interpretaríamos entonces la incapacidad de afrontar la experiencia del tiempo en ese período de la obra de Eisenstein -como sugería Requena-, pero no como la imposibilidad de culminar con solvencia el flujo temporal (y cíclico) de la herramienta dialéctica y la finalización correcta de un film. Esa incapacidad de asimilación se encontraría más próxima, contrariamente, al vértigo de la acometida brutal de lo temporal (a través de la toma de conciencia sobre lo que la fractura supone). Lo que aquí pretendemos argumentar es la hipótesis de que la inconclusión que consiente y justifica la enseñanza inoculó en la obra de Eisenstein el influjo del abismo, el modo en que éste, cual vértigo atenazador, colapsó de alguna forma su músculo creativo ante la intensidad y acumulación de posibilidades y ante la extraña brusquedad que adopta aquella otra realidad que ahora acecha a la obra:
Press, Londres, 2009. (18) El profesor Rostislav Yurenev es el encargado de realizar la introducción descriptiva del proceso de recuperación e “hipótesis de montaje” de El prado de
¿El abismo no es más que un aniquilamiento oportuno? No me sería difícil leer en él no un reposo, sino una emoción. Enmascaro mi duelo en una huida; me diluyo, me desvanezco para escapar a esa compacidad, a ese atasco, que hace de mí un sujeto responsable: salgo: es el éxtais.(20)
Bezhin. En el caso de ¡Que viva México!, se trata del propio Aleksandrov el que realiza la narración de la contextualización inicial. (19) Op. cit., p. 239. (20) Roland Barthes, Fragmentos de un discurso amoroso, Círculo de lectores, Barcelona, 1997, trad. de Eduardo Molina, p. 28.
(21) Cfr. Pier Palo Pasolini, “Osservazioni sul pianosequenza”, presente en Empirismo eretico, Garzanti Editore, Milan, 2000 (3ª).
Lo inacabado como vivencia imperdurable, relatos trágicos e inconclusión como destino de la creación artística. La irrupción de lo temporal de la obra que obliga a suspenderla sin conclusión en medio del éxtasis. El creador y la obra inacabada como un abismo que parece ser consustancial al trabajo de montaje El ejemplo de Eisenstein, que aquí aflora a partir de un estudio sobre su vertiente pedagógica es una vez más un canon que se repetirá en otros muchos casos de la filmografía soviética, a la que vuelve a servir como patrón. El peso de la docencia institucionalizada en la unión soviética sirve también para eso, para trazar de un modo más claro los lazos y la circulación de las influencias específicas entre sus maestros. La repetición de ese caso en la vida de otro docente como fue Mikhail Romm (y a través de él a muchos de sus discípulos) -ya que su obra se ha visto precipitada a una misma oquedad temporal con su fractura prematura-, nos describe cómo el espacio en el que habría de actuar el montaje sería aquí ya el del tiempo abismado mismo, el de la muerte que Pasolini también leyó en el montaje a partir de un mismo terror pánico. (21)
ENTREVISÕES
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Olga e Niévski: desenhos de Serguei Eisenstein Naum Kleiman traduzido por Neide Jallageas Uma das duas heroínas do filme Aleksandr Niévski, Olga, é uma jovem da cidade de Viéliki Novgorod. Ela reúne uma adorável aparência discreta e encanto espiritual (o que é chamado de beleza sutil) com o controle das emoções e a modéstia de comportamento, que na Rússia foi considerado a personificação perfeita do feminino. Tal idealização é absolutamente natural no gênero "Vida dos Santos , que determinou a composição dramática e o estilo visual do filme sobre Aleksandr Niévski, canonizado na Rússia, e considerado o defensor das terras russas. Para os espectadores russos, o nome da heroína está associado ao nome da sábia princesa Olga, governante do Século IX tendo sido o primeiro santo russo -, ela adotou o cristianismo antes da cristianização da Rússia, que foi realizada pelo seu neto Vladímir. É pouco provável que Eisenstein tenha utilizado, ao acaso, alguns detalhes das peças do vestuário da Princesa Olga para caracterizar a silhueta geral de sua heroína - tal como ela é representada nos ícones. No entanto, no filme, Olga é filha de um comerciante, absolutamente desprovida da austeridade e discrição das imagens icônicas da princesa. Ao contrário, ela é amável, sorridente e, na primeira cena, é, inclusive, um pouco sedutora, enquanto tenta manter sua distância da rival de seus dois heróis. Mas, antes da batalha com os Cavaleiros Teutônicos, e depois dela, no «campo da morte», onde encontra entre os feridos os amigos rivais, ela demonstra força de espírito, lealdade e dedicação: a principal virtude da Mulher, o apoio e o consolo do Guerreiro. Durante os anos da Segunda Guerra Mundial, a imagem de Olga era percebida como um padrão de comportamento das mulheres russas nos momentos da trágica experiência histórica.
191
acima
Ă?cone Santa Olga.
193
Ольга, характер Александра Невского Наум Клейман Одна из двух героинь фильма «Александр Невский» Ольга – девушка из города Великий Новгород. Она сочетает неброскую миловидность облика и душевное обаяние (то, что принято называть тихой красотой) с эмоциональной сдержанностью и скромностью поведения, что на Руси считалось идеальным воплощением Женского Начала. Такая идеализация совершенно естественна в жанре «Жития святых», который определял драматургию и визуальный стиль фильма об Александре Невском, которого причислили в России к лику святых и считают защитником русских земель. Имя героини ассоциируется для русского зрителя с именем правившей в IX веке мудрой княгини Ольги – первой русской святой, принявшей христианство еще до крещения Руси, которое совершил ее внук князь Владимир. И вряд ли случайно Эйзенштейн использовал во внешнем облике своей героини обобщенный силуэт и некоторые детали одеяния княгини Ольги, какой она изображается на иконах. Однако купеческая дочь Ольга в фильме совершенно лишена суровости и державности иконописного образа княгини. Наоборот, она приветлива, улыбчива и в первой сцене даже немного кокетлива, хотя и старается соблюдать дистанцию по отношению к двум соперничающим из-за нее героям. Но перед битвой с тевтонскими рыцарями и после нее, на «мертвом поле», где она находит раненными обоих друзей-соперников, - она проявляет незаурядную силу духа, верность и самоотверженность: главные свойства Жены, опоры и утешения Воина. В годы Второй мировой войны образ Ольги воспринимался как образец поведения русской женщины в моменты трагических исторических испытаний.
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195
Neide Jallageas
Qual a relevância de
Aleksandr Niévski no contexto do realismo socialista soviético, e também para a filmografia de Eisenstein?
Naum Kleiman
SME entendeu muito cedo
que o "cânone do realismo socialista" é uma espécie de "paródia pagã" na hagiografia medieval. E ele usou para o filme o cânone da vida dos santos cristãos (ver o artigo sobre Aleksandr como um santo ortodoxo no primeiro volume de sua edição de seis volumes, e também um pequeno desenho-fórmula "O Príncipe como Santo e o Bispo como um Pecador". Eu envio a você agora), MAS: SME usou também a tradição de afresco russo, como ele fez em México com os murais mexicanos. O assim chamado "realismo socialista" orientou-se pelo estilo da pintura realista russa do século XIX. Esse é o motivo pelo qual alguns críticos acusaram Eisenstein de “formalista”. Mas a reação positiva de Stálin (que provavelmente viu a si mesmo na imagem de Aleksandr) e o sucesso da distribuição de Niévski o salvou.
196
Neide Jallageas
What is the relevance of
Alexander Nevsky in the context of socialist realism soviet, and also within the filmography of Eisenstein?
Naum Kleiman
SME understood very
early, that the "canon of socialist realism" is a kind of "pagan parody" on medieval hagiography. And he used for the film the canon of life of christian saints (see his article about Alexander as a Ortodox Saint in the volume 1 his 6 volume edition, and also a small drawing-formula "Prince as Saint and Bishop as a Sinner", I send you now). BUT: SME used also a tradition of Russian fresco, as he made in Mexico with mexican murals. So called "socialist realism" was oriented to the style of Russian realist painting of XIX century. This is because some critics accused E. as a "formalist". But Stalin's positive reaction (who probably saw himself in Alexander's image) and the success of Nevsky in distribution saved him.
197
Neide Jallageas
Esse filme pontua um
corte ou uma ruptura na produção de Eisenstein?
Naum Kleiman
Niévski parece ser uma
ruptura com os princípios do primeiro Eisenstein (atores, enredo, maquiagem, cenário, etc.), MAS este é um significado muito superficial. Lembre-se dos motivos medievais em Que viva México! e O Prado de Bejin, e inclusive em seus filmes mudos (cheios de casacões revolucionários). Niévski faz as mesmas reminiscências muito mais claras e significativas. Sua evolução para Niévski foi um movimento espiral a partir de A Greve, assim como seu caminho de Potiômkin a Ivan.
198
Neide Jallageas
Does this film scores a
cut or a break in the production of Eisenstein?
Naum Kleiman
Nevsky looks as a break
with the principles of early Eisenstein (actors, plot, make up, decoration etc). BUT this is a very superficial meaning. Remember the medieval motives in Que viva Mexico! and Bezhin Meadow and even in his silent films (covered by revolutionary overcoats). Nevsky makes the same reminiscences much more clear and meaningful. His evolution to Nevsky was a spiral movement from Strike, as well as his way to Ivan from Potemkin.
209
Ivan, o terrível. Cartas de Mikhail Nazvánov
(1)
Anastassia Bytsenko nota preliminar, tradução e comentários (1) A tradução das cartas foi feita a partir da publicação na Revista Iskusstvo Kino, nos números 1 e 2 de janeiro de 1998, com prefácio e notas de Igor Gavrílov. Disponível em: <http://kinoart.ru/archive/1 998/02/n2-article20>. Acesso em 22 abril 2013. (2) Até o século XVIII, a palavra
“boiardo”
denominava um nobre, um membro da classe superior russa, geralmente, um grande latifundiário.
O ator Mikhaíl Nazvánov (1914-1964) começou sua carreira em 1931, no teatro Máli, e logo em seguida passou a trabalhar no Teatro de Arte de Moscou. Além de atuar durante toda sua vida nos teatros, Nazvánov era um dos mais conhecidos atores de cinema, tendo participado de quase trinta películas. Chegou a dirigir o filme A Dona da Hospedaria (1956), baseado na comedia La Locandiera (1752) de Carlo Goldoni. Nesse filme, contracena com sua esposa, a atriz Olga Víklandt (1911-1995). Entre os personagens cinematográficos de Nazvánov, estão o coronel, do filme A Batalha de Stalingrado (1949), os imperadores Nicolau I e Aleksandr I, o rei Claudio, no famoso Hamlet (1964), dirigido por Grigóri Kózintsev. No entanto, foi o papel do boiardo (2) Andriêi Kúrbski em Ivan, o Terrível (1944-1945), de Serguei Eisenstein, que marcou mais do que qualquer outro sua vida e carreira. Os anos de 1930, na União Soviética, foram marcados pela última irrupção de criatividade artística antes da II Grande Guerra e também pelo auge de repressões stalinistas. Mais de um milhão de pessoas foram vítimas do grande terror dos anos de 1937-1938. Cerca de setecentas mil pessoas foram executadas. Entre elas, havia escritores, artistas e diretores de cinema e teatro. Entre as perdas mais trágicas, estavam escritor Isáak Bábel, o poeta e dramaturgo Daniíl Kharms, o diretor e ator teatral, mestre de Eisenstein, Vsévolod Meyerhold, cujo arquivo Eisenstein guardou, correndo grande risco, e trouxe para Alma-Ata em 1941. Mikhaíl Nazvánov também foi a vítima do terror dos anos 1930. Em maio de 1935, aos 21 anos de idade, denunciado por um colega de teatro por ter contado uma anedota, o jovem ator foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados em
210 GULAG. Depois de ser solto da prisão, em 1940, Nazvánov seguiu do extremo norte para o extremo sul do país. No Cazaquistão, conheceu sua esposa, a atriz Olga Víklandt. Em agosto de 1943, o casal teve de se separar por mais de um ano e meio. Víklandt voltou para Moscou, junto ao teatro de Mossovét, e Nazvánov teve de ficar em Alma-Ata por causa da participação no filme Ivan, o Terrível. Havia outro motivo: como ex-prisioneiro do GULAG, a entrada em Moscou estava proibida, por isso o ator esperava a emissão de uma autorização oficial para voltar à capital. Durante o período da Guerra, Alma-Ata, a capital do Cazaquistão, abrigou refugiados e feridos, assim como dezenas de empresas, indústrias, universidades (inclusive o VGIK Instituto de Cinema, onde Eisenstein deu aulas) evacuadas das regiões tomadas ou ameaçadas pelo exército de Hitler. A cidade também se transformou na capital nacional do cinema. A partir da união de três estúdios: o de Alma-Ata, do Mosfilm e do Lenfilm, formou-se o Estúdio Central Unido (TSOKS). Nesse período, nas ruas de Alma-Ata, onde, segundo Mikhail Romm, durante 365 dias brilha o sol, era possível encontrar cineastas e pessoas relacionadas ao cinema, tais como Píriev, Pudóvkin, Trauberg, Ermler, Kózintsev, Viértov, Raizman, Shklóvski e Eisenstein. Ao longo de quatro anos, 1941-1945, o Estúdio Central Unido estreou com 80% da produção cinematográfica nacional, isto é, vinte e três longas e dez curtas-metragens. A maioria dos filmes tratava da guerra, às vezes, baseados nos acontecimentos reais e visando fortalecer o espírito dos militares e civis. Em Alma-Ata, Serguei Eisenstein filmou seu Ivan, o Terrível, cuja primeira parte demorou mais de dois anos para ficar pronta e seria laureada com o Prêmio de Stálin para o diretor. A segunda parte não agradou ao todo poderoso chefe do estado e sua estreia no cinema aconteceu apenas em 1958, dez anos após a morte de seu autor. Quanto à terceira parte, sobraram apenas alguns fragmentos. Eisenstein conheceu Nazvánov em Alma-Ata. O teatro de Mossovét havia sido transferido de Moscou para a capital Cazaque, onde o ator estreava no papel principal da peça Oléko Dúnditch de diretor Iúri Zavádski (1894-1977). Nazvánov começou a participar das filmagens de Ivan, o Terrível em 1943. O contrato com o estúdio previa o término de suas gravações na primeira quinzena de novembro, mas os trabalhos prolongaram-se muito além do tempo previsto. A solidão e a saudade da esposa deixavam Nazvánov, às vezes, desesperado. Cada dia ou noite, depois das filmagens, escrevia cartas que chegavam a conter mais de dez páginas. Nessas cartas diários, o ator narrava em detalhes o seu dia a dia, os encontros, as compras nas feiras, os concertos para feridos de guerra, confrontos com as autoridades do estúdio, intermináveis petições para conseguir o salvo-conduto para a entrada em Moscou e seus pensamentos sobre o próprio destino. A ansiedade e a vontade de se unir com sua amada em Moscou marcaram uma relação dúbia de Nazvánov para com filme: por um lado, compreendia a dimensão dessa obra; mas, por outro, os intermináveis atrasos e a incerteza de sua situação, deixavam-no deprimido e em constante estado de atenção. Há mais de duzentas cartas que possuem um valor histórico único, pois nelas constam descrições da vida cotidiana do ator e das filmagens de quase todo o Ivan, o Terrível, até com detalhes de cada hora. Ao mesmo tempo, é um relato expansivo, emocionante e parcial da vida e dos sentimentos de uma pessoa que viveu experiências únicas: dramáticas e maravilhosas, ao mesmo tempo.
210 (3) A esposa de Nazvánov,
22 de outubro de 1943
Olga Víklandt viajou de trem (trajeto que, na época, era percorrido em uma semana)
Minha querida, minha menina de ouro! Se você soubesse com que peso no
de Alma-Ata para Moscou,
coração estou, como preciso de suas palavras de encorajamento, de seu
provavelmente, no dia 29 de setembro de 1943. (4) Andriêi Abrikóssov (1906 - 1973) ator, que interpreta o boiardo Fiódor Kolychióv e mais tarde, o metropolita de
apoio, de um simples abraço de suas mãos suaves e delicadas! Minha angústia e preocupação com você passaram de todos os limites. Basta imaginar que eu ainda não sei se você chegou de viagem! (3) [...] Estive no estúdio. Abrikóssov (4), Butchma (5), Tcherkássov (6) chegaram [de
Moscou, Filipp.
viagem] ao mesmo tempo. Assim que nos reunimos, vestimos o brocado (7) -
(5) Amvróssi Buchma (1891 -
belo e majestoso. Conversei com Eisenstein. Ele disse que esperará até o
1957), ator do Teatro de Franko, da cidade de Kíev. No
final do ano para transferir o grupo para Moscou. [...]
filme Ivan, o Terrível, desempenhou o papel de Aleksei Bassmánov. (6)
Nikolai Tcherkássov
(1903 - 1966) iniciou sua
25 de outubro de 1943, 17h
carreira como ator do Teatro de Drama de Púshkin, de Leningrado. Interpreta o tsar Ivan em Ivan, o Terrível.
[...] Dei uma passada no estúdio e mais uma vez não conseguia acreditar que eu estou envolvido nessa filmagem. A majestosa catedral, as vestimentas, o
(7) Brocado é “tecido de seda com relevos bordados a ouro
arcebispo Mguébrov (8) , o caixão, as velas acesas, o perfume de olíbano (9) ,
ou prata”, de acordo com o
as silhuetas compenetradas de Eisenstein e Moskvín (10) que conversam em
Dicionário Aurélio. No
meia voz, o tsar vestido como monge prostrado diante do túmulo, isso foi
contexto, significa as roupas d e
b r o c a d o ,
C f .
<http://aulete.uol.com.br/b
majestoso e assustador... Sentado na cadeira, está o consultor vindo de Moscou, o arquimandrita de Moscou! [...]
rocado#ixzz2s4oKbP3d>. (8) Aleksandr Mguébrov (1884 - 1970) foi ator do Teatro de Drama de Púshkin de Leningrado. No filme Ivan, o Terrível, desempenhou o
29 de outubro de 1943
papel do arcebispo Pímen. (9) Olíbano é uma resina
[...] Ontem, pela primeira vez, posicionaram-se, na “Catedral da Assunção”
extraída de árvore do mesmo nome com a qual se produz
(11), quarenta sacerdotes, os boiardos, os estrangeiros, o tsar em trajes de
um incenso utilizado na
gala e nós, com Abrikóssov, trajados e maquiados. Uma magnífica visão,
igreja ortodoxa. (10) Andrei Moskvín (1901 1961) foi o cinegrafista de Ivan, o Terrível. Trabalhou, também, com os cineastas russos Grígori Kózintsev
embora para mim o figurino já não pareça tão impressionante. Ficamos pensando se com barba ou sem barba, mas considerando meu queixo pequeno e lábios de criança, insisti em uma barba e um pequeno bigode. [...]
(1905-1973) e Leoníd Trauberg (1902-1990). (11) Em 1547, em Uspénski Sobór (Catedral da Assunção)
próximas páginas
construído entre 1475-1479,
Ivan, o terrível (parte 2).
no território de Kremlin, em
(EISENSTEIN, 1945, 00:50:03, 00:50:32, 00:50:09, 01:02:00, 01:02:07, 01:02:08)
211 Moscou, houve a coroação do
5 de novembro de 1943, 16h
primeiro tsar da Rússia, Ivan IV, chamado o Terrível.
[...] Filmamos exclusivamente o plano plástico: a catedral, a procissão que segue em toda sua profundidade com Pímen, acólitos, padres (150 pessoas) e os boiardos. De traz do quadro, de costas, eu e Abrikóssov conduzimos o tsar até o pedestal, no meio da catedral. Viramos, curvamos em reverência, ao modo dos boiardos e, então, começa a chuva de ouro. Em um dos dias anteriores, as filmagens foram desagradáveis. Tudo se transformou em uma espécie de atração para o público. Por falta de circo em Alma-Ata, todos consideram seu dever assistir ao Terrível e tudo é feito para pessoas importantes da administração, há risadas, conversas, pressa e, em geral, uma atmosfera leviana e pouco séria. Ontem foi melhor, pois filmaram uma parte importante, o discurso do tsar. Todos ficaram encantados com ele. Por enquanto, eu interpreto “o pano de fundo” e aguardo com ansiedade aquela cena com Anastassia, a mais interessante do ponto de vista de atuação. Às vezes, de repente, fico entusiasmado com o papel, com o filme, mas a tristeza que suga o coração, a distância e um forte desejo de vê-la em breve, em geral, me faz olhar para as filmagens como um obstáculo desagradável e contar os planos gravados e os dias que já passaram. [...]
12 de novembro de 1943
[...] Ao longo de dois dias, provei pela primeira vez o deleite de filmagens noturnas. Ambas as vezes cheguei em casa depois das nove horas da manhã. No dia 10, a gravação estava mortalmente difícil e improdutiva. Estava um frio dos infernos no pavilhão, o vapor saía da boca, as pernas geladas e não havia um lugar para se aquecer e descansar. Às vezes, nem se podia encontrar uma cadeira. Pela primeira vez vi Tcherkássov em um estado histérico. Ele está há dezoito dias sem dormir.
212 Filmamos (pela segunda vez) “a chuva de ouro”. Todos os planos são médios, não dão espaço para atuação. Ontem teve filmagem na “Catedral”, decisiva para mim. Fizemos todos meus grandes planos de atuação, felizmente, à noite, de modo que ainda tive forças e a maquiagem e os olhos estavam frescos. Por 02h35 min, fiquei parado em pé, em um lugar, ensaiava e filmava, quase sem me sentar. Tiramos quatorze grandes planos. Ontem disseram que ficou muito bom, embora a expressão do rosto tenha ficado um pouco irônica em vez de impressionada. Penso que isso não é nada, pois (12) Serafíma Bírman (1890 1976) que interpreta Iefrosínia Stáritskaia foi
no meio da adoração desanuviada do tsar, deveria ter uma pitada de inveja e ironia, a partir da qual, em seguida, se desenvolverá a traição.
agraciada com o Prêmio
Por enquanto, em geral, continuo insatisfeito com as filmagens. Tudo se
Stalin em 1946.
resume ao elemento plástico e não ao processo de atuação. No decorrer da leitura do roteiro, a imaginação estimula mais ideias, do que aquilo o que manda ou exige Eisenstein. Em geral, a atmosfera é fria, sem alma e, infelizmente, confusa. Contudo, o caráter detalhado do desenho fílmico, obviamente, irá substituir alguns elementos. A última notícia do momento: Bírman vai interpretar papel de Iefrosínia .(12) [...]
19 novembro de 1943, 8h às 10h da noite
[...] De acordo com o novo plano, estarei livre no final de fevereiro! Eu quase chorei de impotente raiva e tristeza, embora fizesse tempo que notei como tudo estava atrasando de modo irremediável e inepto. Até agora, não há Anastassia e nem Iefrosínia. Sem elas, tudo pode ser filmado aos pedaços e eu, pessoalmente, sem elas não sou necessário. Se tivesse o salvo-conduto, hoje viajaria até você [...]. De fato, tenho todo papel pela frente. Há todos os motivos para ficar em completo desespero. [...] Ontem à noite, foi concluído inteiramente o “Catedral da Assunção”, a primeira cena do filme e o primeiro contato com as personagens.
213 Aparentemente, o material é muito bom (não há fala nenhuma), exceto um plano controverso com um sorriso inesperado e desnecessário. Ontem conversei por quinze minutos com Serguei Mikhailóvitch [Eisenstein]. Ele está muito feliz com o material da catedral, admira o trabalho de Moskvín. Elogiou-me por grandes planos, disse que aguarda com interesse as cenas com atuação. [...]
30 de novembro de 1943, à noite
Hoje assisti ao material: o prólogo, a “Kazan” e a “Coroação” já montados. Tenho uma impressão bastante ambígua: por um lado, sem duvida, tudo foi filmado e construído brilhantemente, por outro, o famigerado princípio de “montagem” leva a uma experiência fragmentária e irregular que causa irritação. Meus planos, nessas cenas, estão tão dispersos que o papel está invisível. Temo que os outros pedaços com atuação também parecerão com um repolho picado de interrupções e outros truques semelhantes. [...]
6 de dezembro de 1943, 11h45min da noite
[...] A cena ao lado do túmulo de Anastassia ficou excepcionalmente forte. (13) Eisen foi um apelido de
Nela Eisen (13) expôs toda a força do seu talento para criar a composição.
Eisenstein.
Contudo, na hora, pensei uma coisa e perguntei para Tcherkássov, sentado ao meu lado: “E se o filme for assistido por um público que não sabe o que é o “estilo”, a composição, a forma, não conhece a pintura e a escultura, apenas está acostumado a ver, sobretudo no cinema, pedaços de algo parecido com a vida. O que ele vai dizer sobre essa arte estética?” Nessa cena, não existe tanta fragmentação como em “Kazan”, sem falar que Moskvín filma maravilhosamente, tudo na catedral brilha e cintila: os mantos, as pedras, o brocado, para não mencionar a maravilhosa iluminação de rostos em grandes planos . [...]
14 dezembro 1943 (14) Pável Kádochnikov (1915 - 1993), ator que interpreta Vladímir Stáritski.
[...] Ontem à noite chegou Bírman. A propósito, todo mundo está extremamente contra ela, exceto Eisen. [...] Butchma e Kádotchnikov (14)
214 (15) Liudmíla Tselikóvskaia
chegam em breve. Está quase resolvido o problema com Tselikóvskaia (15).
(1919 - 1992) atriz que
Em suma, finalmente, há uma chance de filmar todos os trechos restantes e
interpreta a primeira esposa do tsar Ivan, Anastassia. Nas
toda a parte central da atuação do primeiro filme. [...]
cartas é chamada de Liússia.
23 de dezembro de 1943
[...] Bírman repreendia muito os atores, em particular Abrikóssov (de mim não falava nada na cara), porque ninguém, exceto Tcherkássov, buscava nada no filme e nem sempre entendia o que interpretava. Ela mesma estava muito interessada no papel. Você sabe que também estou preocupado com o caráter “decorativo” de meu Kúrbski, por isso ouvi com preocupação as palavras dela. O que me conforta é que todos os trechos de atuação ainda estão pela frente. [...]
30 de dezembro de 1943
O método de Eisen irrita bastante. O tempo todo são os curtos planos funcionais de “montagem”: olhou para a esquerda, para baixo, para cima, juntou as sobrancelhas etc. Com a incessante mecânica, não é possível sentir coisa alguma nem atuar também. Tselikóvskaia vai embora no dia 4. De novo estamos sem Anastassia! [...]
11 de janeiro de 1944, 22h
Não posso lhe dizer nada sobre mim na tela, além de que a atuação se expressa em monótonas viradas e olhares de baixo para cima. Por enquanto, não está claro se isso vai amadurecer como uma imagem. Entre minhas falhas técnicas, nos planos médios e gerais, fico piscando com muita frequência. Os cílios batem como asas. Eisen me disse que em meu rosto há algum segredo óptico que ele não consegue captar. Por isso o sucesso de alguns ângulos, para ele, ainda é uma casualidade. Às vezes, penso que subestimo o fato de atuar nesse papel, de participar em um filme como esse, às vezes, pelo contrário, tudo isso me parece um ano
215 perdido da minha vida. [...]
21 de janeiro de 1944, à noite
(16) Moisséi Aléinikov (1885
[...] Hoje Aléinikov disse que ele e S.M. [Eisenstein] conversaram sobre meu
- 1964) engenheiro,
Kúrbski (16) (na cena com Bírman) e chegaram à conclusão que o
cineasta/realizador, um dos
personagem está se formando de modo muito bom, que há todos os
fundadores de do estúdio de cinema "Mosfilm", em 1920, do qual foi editor entre os anos 1936-1944.
elementos contraditórios que compõem essa figura histórica, tão controversa para todos os historiadores, e consideram muito convincente a sua aparência externa. Eu estou tão bravo com todos eles que nem mesmo fico feliz. Se tivesse salvo-conduto, pegaria o trem e iria embora sem permissão, enquanto eles ficam remendando. Feliz Járov que vai fazer exatamente assim. [...]
ao lado
Ivan, o terrível (parte 1). (EISENSTEIN, 1944, 00:08:28)
216 31 de janeiro de 1944
[...] Chegou Tcherkássov. Que pessoa agradável ele é. Cada vez, após um intervalo, encontro-o com grande prazer. [...] Aléinikov não foi à toa para Novóssibirsk. Descobriu que Mguébrov está simplesmente passando fome. Em breve, ele será trazido para cá e colocado no hospital de Sovnarkom ou em um Centro de Recuperação com condições especiais de alimentação, de modo que com Pímen nada aconteceu. [...]
5 de fevereiro de 1944
[...] Agora, estão filmando as externas de inverno, capturam a neve, sobraram dois ou três dias. Em seguida, vão filmar Butchma (que está com pressa e veio pela última vez) e Kádotchnikov. E eu, pobre pecador, espero por todos eles! Pois, como dizem: você de todo modo participa da cena no “Palácio do Sigismundo” que vai por último. Ainda há um boato secreto que Eisen está tramando para que todas as cenas com Anastassia sejam filmadas em Moscou. Então, o grupo vai poder viajar no final de março. O velho teimoso tem toda razão por não querer filmar qualquer um, inclusive Tselikóvskaia, e negou-se categoricamente a assinar o telegrama com ordem de comparecimento dirigido a ela. Entristece-me bastante a proibição categórica de filmar a cena na “Capela”. Eisenstein diz que mesmo assim vai gravar, mas isso não é a solução. Ela será cortada depois. Isso tira do meu papel a cena principal, o único trecho independente, o eixo psicológico da transformação e, enfim, a “cereja”. Imediatamente, vou virar um personagem secundário e decorativo. Acho que Eisenstein saberá convencer da necessidade absoluta dessa cena, se não for para Kúrbski, mas para toda linha de enredo do filme. O tempo passa de modo terrivelmente chato e em vão. [...]
12 de fevereiro de 1944, 15h
[...] No dia 10, assisti ao material de Ivan, o Terrível: o julgamento aterrorizante, execuções e as externas de inverno. É um espetáculo magnífico. Estou apaixonado pelo Butchma como por uma mulher. Por seus olhos, por sua grande alma de ator que parece sem fim. Assisti e pensei: que responsabilidade enorme recai sobre mim nas filmagens que se aproximam, de alcançar esses dois maravilhosos atores (Tcherkássov está incrível no segundo filme, embora o elemento plástico esteja mais forte do que o interno, mas a
217 música, os cânticos sagrados e a montagem completam tudo). Eu me esforço muito para estar em forma no dia 14, quando recomeçarão minhas filmagens. [...]
16 de março de 1944. 10h
[...] você acha possível “gravar rapidamente meus trechos”. Como já havia escrito, cada “trecho” está associado a um pavilhão, um cenário especial. No primeiro filme, há três grandes cenários que necessitam de um grande pavilhão: a “Catedral da Assunção”, o “Salão Dourado” e o “Palácio de Sigismundo”. O segundo e o terceiro itens podem ser gravados depois da demolição da “Catedral da Assunção” onde, como você sabe, também estão sendo filmadas várias cenas do segundo filme. [...]
27 de março de 1944. 0h00 da noite
[...] Hoje terminam a “Catedral” (dez dias foram gastos para a refilmagem e todo tipo de caprichos artísticos de S.M.). Ele grava uma enorme quantidade de planos que não entrarão no filme, mas são necessários para a montagem (como lhe parece agora!). Ele faz dezenas de versões de um único quadro, como se estivesse saboreando e mastigando sua habilidade. Moskvín atrasa muito por causa da luz que, nas condições do cenário gigante e complexo como a do “Catedral da Assunção”, está especialmente difícil. Bírman retarda terrivelmente por causa de intermináveis conversas, sugestões e ensaios. [...]
2 de abril de 1944. 0h00 da noite
[...] O desejo de Eisenstein de fazer desse trabalho “a obra de toda vida” transforma seu estilo em formato de uma tese de pesquisa e o leva a negligenciar os princípios de produção. Além disso, há outra razão para tal lentidão e o enorme atraso das filmagens. O motivo fundamental e insuperável é que S.M. não quer lançar os dois filmes separadamente, pois acredita que o primeiro filme é explicativo, enquanto essência dramatúrgica e psicológica principal, assim como todas as cenas de atuação estão no segundo filme. Além disso, apenas no segundo filme vai surgir a familiar imagem do terrível ancião - tsar Ivan. O primeiro filme, lançado separadamente, pode soar de modo inexpressivo e arruinar a reputação do filme e, com isso, a reputação dele. Eu nem falo sobre as dificuldades adicionais que involuntariamente atrasavam as filmagens. Agora,
218 S.M. quer gravar a maior quantidade de locações do segundo filme e ficar o tempo máximo em Alma-Ata, de modo que, ao chegar a Moscou, sobrasse apenas três meses para as externas do segundo filme (a campanha militar de Livônia). [...]
4 de abril de 1944, 03h da noite
[...] Acabei de chegar das filmagens. Participei pela primeira vez depois do dia 16 de fevereiro. Foram quarenta e oito dias parado!!! Foi gravado um plano geral, mas fiquei sentado a noite inteira! Passei um mês e meio sem gravar, longe do processo de filmagem e perdi a sensação de seu ritmo meticuloso e lento. [...]
9 de abril de 1944. Noite
[...] A situação está difícil porque não há ninguém acima de Eisen. No entanto, a frustração dos planos de filmagem é algo tão grave que a situação está amadurecendo como um abscesso que, sem dúvida, em breve, irá resultar em algo. Todas as cartas ficaram ainda mais atrapalhadas por causa da doença de Tcherkássov. Começamos a filmar o “Quarto de dormir” de qualquer jeito, fazendo ainda menos metragem útil por dia. Agora são onze horas da noite. Estou sentado desde as cinco horas em estado de prontidão e, obviamente, não serei chamado. Estão gravando o monólogo de Anastassia com o bebê no colo! A criança gritou das 4h até 9h da noite. Em vez de filmar, o grupo inteiro ficou distraindo e conversando com ele. Às 9h da noite, foram buscar outra criança e agora a filmam. Dizem que amanhã a película vai acabar, pois em março houve gasto excessivo de 2500 metros de película americana. [...]
20 de abril de 1944. 01h30min
[...] Hoje assisti ao material que será levado para Moscou. O material é forte, trágico, mas as minhas dúvidas continuam as mesmas. Será que a montagem, a música, os coros e cânticos religiosos inspirarão a vida no comportamento desses atores-fantoches ambulantes? Será que os corações dos espectadores baterão mais forte ou apenas seus
219 olhos e as mentes perceberão inúmeros truques gráficos e estilísticos “da composição do quadro”, da “linguagem dos objetos” e assim por diante? Hoje vi pela primeira vez Tselikóvskaia. Ela é muito doce e gentil, mas pronuncia o monólogo de maneira insegura e, ainda, a criança que está no seu colo gritava freneticamente e abafava sua voz fraca. Das minhas cenas, entrou o melhor trecho de minha cena com Bírman na escada (do episódio de doença de Ivan). Obviamente, essas viradas de cabeça e de olhos, monótonas e puramente motoras, sob o comando de Eisenstein, causam a impressão de “pose”. Tcherkássov está sendo criticado por isso também, mas ele assegura que tudo isso vai desaparecer na famigerada montagem. Veremos! [...]
4 de maio de 1944, 0h00 da noite
[...] Ontem fizemos o reconhecimento do “Salão Dourado”. O pavilhão ficou um luxo. Uma porção de objetos de cena esplêndidos: louça, cisnes, iguarias e outros componentes do casamento russo antigo. Todos os personagens principais estão participando: o povo, os boiardos e o clero. Tem muito trabalho, mas dentro de quinze a vinte dias tudo deverá estar filmado, principalmente, porque tentarão gravar inicialmente as cenas de atuação. A profundidade do pavilhão é de cem metros. Imagine quanta luz é necessária! Hoje, haverá o reconhecimento técnico, sem atores. Moskvín vai tentar descobrir se é possível gravar alguma coisa antes da chegada de (17) Aqui se trata de um dos pavilhões do estúdio TSOKS criado no prédio do antigo cinema “Alatau”.
lâmpadas de Moscou. Se não der, vão filmar o restante em Alatau (17), onde já estão quebrando o aposento da tsarina e no lugar dele constroem a “Capela” e o “Palácio de Stáritski”. Eu tenho bastante trabalho no “Salão Dourado”, por isso aguardo as gravações com prazer. [...]
8 de maio de 1944, 05h da Manhã.
[...] Hoje chegaram quarenta lâmpadas para os planos gerais do “Salão Dourado”. Eu participei das gravações de dois episódios, amanhã haverá o terceiro, de modo que se as coisas correrem bem, em dez dias vou ficar livre. Serguei Mikhailóvitch está irreconhecível! Está tão contente porque permitiram a trilogia e a estreia dos dois primeiros filmes ao mesmo tempo, que agora ele mesmo corre para filmar tudo mais rápido.
220 Durante os dias 6 e 7 filmaram 18+34 = 52 metros úteis, enquanto antes faziam de 6 a 9 metros por dia. Hoje fiquei em prontidão a partir de meia noite, embora não tenham me chamado, gravaram muito. Filmaram Abrikóssov, Bírman e Mgébrovperto da mesa, ou seja, naquela mesma “marcação” (você agora é uma atriz de cinema e deve saber esse termo!) [...] Já faz um ano e quinze meses desde o nosso último encontro! Beijo para você e parabéns, minha querida! Que o nosso amor mútuo, nosso carinho, paixão e fé cresçam e fiquem mais forte! Minha alegria, minha felicidade, meu amor, minha preciosa Liálka! Agradeço o destino por ter me enviado você! Está amanhecendo. É tão lindo. A lua branca sobre o céu azul-escuro parece (18) Arkhip Kuínji (18411910) artista plástico russo, mestre de paisagens.
com uma pintura de Kuíndji (18). Deitado no escuro, observo como as sombras lunares da folhagem de meus guardas – álamos, cintilam nas paredes e penso em você, sobre o nosso encontro. [...]
15 de maio de 1944, 10h da noite
[...] Hoje eu não gravo, porque Járov ainda está “doente” e porque quase todos os episódios necessitam de extras. Serguei Mikhailovitch é forçado a filmar quando tem os extras (soldados). Além disso, há dois pontos: um para os extras “povão”, e o outro para os extras “boiardos”. Por isso ontem, por exemplo, nós não terminamos o episódio final, o “discurso e a nomeação de Ivan Kúrbski para [governar] Kazan”, porque só tinha extras de “povão”. Essas pessoas são todos feridos, inválidos de guerra. Depois da meia noite, eles se escondem nos cantos do estúdio, pegam no sono e após um intervalo não há força nenhuma que faça eles voltarem ao pavilhão. Dessa maneira, ontem, por exemplo, o intervalo se transformou em duas horas e meia de tempo de inatividade, depois disso foi gravado apenas um plano! Amaldiçoo esse filme com todos os palavrões obscenos mais elaborados, mas não posso deixar de admirar a resistência férrea de Eisenstein, que, literalmente passa por cima dos corações, se não for sobre os cadáveres, em direção ao seu objetivo, criando, nessas condições infernais, uma obra de arte monumental.
221
ao lado
ao Hamlet. (KOZINTSEV, 1964, 00:52:55)
222
COMPLEMENTAÇÕES
225
Anastassia Bytsenko
é tradutora e pesquisadora. Assina com Adriano C. A. e
Sousa a tradução de O sacrifício de Andriêi Tarkóvski (É Realizações, 2012). Verteu três textos de Liev Tolstói, dentre os quais “Shakespeare e o drama” e “O que é a arte?” para a coletânea Os últimos dias (Companhia das Letras, 2011). Traduziu ainda artigos e ensaios em periódicos especializados. Realizou pesquisa de mestrado sobre a imigração russa no Brasil e atualmente desenvolve pesquisa de doutorado sobre o teatro de Tolstói no Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Cultura Russa da Universidade de São Paulo.
Arlete Orlando Cavaliere
é brasileira. Livre-docente e professora titular do
Departamento de Línguas Orientais (FFLCH-USP) e professora convidada da Universidade Estatal Lomonóssov de Moscou. Pesquisa teatro, literatura e cultura russa além de publicar obras sobre a estética teatral. Traduziu e publicou, mais recentemente, os livros Teatro Completo de Nikolai Gógol (Editora 34) e Teatro Russo: Percurso para um estudo da paródia e do grotesco (Humanitas), resultantes de pesquisa realizada nos arquivos de Moscou. É supervisora do Projeto Serguei Eisenstein em confluência com o cinema e as artes na Rússia do Século XXI.
Arlindo Machado
é livre-docente pela Universidade de São Paulo. Leciona e
pesquisa na Escola de Comunicação e Artes da USP e no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, ambos de São Paulo, Brasil.
Breno Morita
é artista, pesquisador do GP E. XXI (Grupo de Pesquisa
Eisenstein no Século XXI), mestrando em Poéticas e Técnicas Audiovisuais na Escola de Comunicações e Artes da USP e bacharel em Artes Visuais. Como artista, apresentou seus trabalhos na Mostra Didática Sokúrov Oriental e em exposições nas galerias do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.
226 Bruno Barretto Gomide
é doutor pela UNICAMP, com estágio de doutorado CAPES
em Berkeley. Desde 2005, é professor de literatura russa na USP (atualmente coordena a pósgraduação da área). Foi pesquisador-visitante no Instituto Górki de Literatura Mundial, em Moscou, e na Universidade de Glasgow. Publicou os livros Da estepe à caatinga: o romance russo no Brasil (1887-1936), pela Edusp, e a Nova antologia do conto russo, pela editora 34.
Elena Vasilevich
é mestre em Letras pela Universidade de Leningrado
(Rússia) com dissertação sobre a novela Skutchnaia Istória do escritor russo Anton Tchekhov. Trabalhou como guia e arquivista na Casa-Museu A. P. Tchekhov – Ialta (Rússia). Atualmente é consultora de língua e cultura russa e doutoranda pelo Programa de Literatura e Cultura Russa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da USP.
Erivoneide Barros
é professora, pesquisadora do GP E.XXI (Grupo de
Pesquisa Eisenstein no Século XXI), mestranda em Arte e Cultura Russa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e licenciada em Letras.
Fabiola Notari
é artista e pesquisadora do GP E.XXI (Grupo de Pesquisa
Eisenstein no Século XXI). É mestre em Poéticas Visuais pela Faculdade Santa Marcelina (FASM), na linha de pesquisa em Artes e Práticas Experimentais. Desde 2010, é artista associada do Estúdio Valongo (Santos) e em 2012 associou-se à AJA (Associação Jatobá de Artes Visuais). Leciona História da Arte e Fotomontagem no curso superior de Fotografia no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.
227 Irene Machado
professora Livre Docente da Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo e do PPG em Meios e Processos Audiovisuais. Pesquisadora do CNPq (PQ-1D) no campo da Semiótica da Comunicação na Cultura.
José Manuel Mouriño
é cineasta, ensaísta e pesquisador especializado em
cinema russo. Na atualidade, está finalizando um amplo estudo sobre o cineasta e mestre Mikhail Room, próxima publicação. Entre seus trabalhos audiovisuais, encontra-se o documentário Los días blancos. Apuntes sobre el rodaje de Nostalguia, de Andriêi Tarkóvski, 2011. Colabora com o Instituto Internacional Andriêi Tarkósvki como representante e coordenador na Espanha. Integra o grupo de pesquisa de doutoramento MODO, da Universidade de Vigo (Espanha).
Naum Kleiman
é especialista, historiador e crítico de cinema. Autor de
inúmeros artigos sobre teoria e história da arte cinematográfica. Reconhecido internacionalmente como uma das maiores autoridades sobre Serguei Eisenstein. É diretor do Musei Kino (Museu do Cinema, em Moscou - http://www.museikino.ru) e um dos fundadores e atual curador do Centro de Pesquisa Eisenstein (http://www.kinozapiski.ru/ru/center/) onde é preservada grande parte dos objetos pessoais, biblioteca, manuscritos e documentos de Eisenstein.
Neide Jallageas
é pós-doutoranda, com bolsa FAPESP, junto ao Programa
de Pós-Graduação em Russo (DLO/FFLCH/USP) e estágio de Pesquisa no Centro Eisenstein de Pesquisa e Museu de Cinema Russo em Moscou. Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) com tese sobre Andriêi Tarkóvski. Mestre em Comunicação e Estética do Audiovisual (ECA-USP), traduziu um conto de Clarice Lispector para a linguagem do vídeo e da fotografia, trabalho que se encontra em acervos públicos (MAM-SP, Coleção Pirelli e SESC-SP). Coordena o GP E.XXI (Grupo de Pesquisa Eisenstein no Século XXI). Traduziu, com Anastassia Bytsenko, o livro A perspectiva Inversa, do filósofo russo Pável Floriênski (Editora 34).
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Néle Azevedo
artista e pesquisadora independente. Nasceu em Santos
Dumont, MG, vive e trabalha em São Paulo, Brasil. É mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UNESP. Suas intervenções em espaços públicos com o Monumento Mínimo ficaram mundialmente conhecidas despertando interesse para além dos circuitos da arte contemporânea.
Tieza Tissi
é atriz, pesquisadora do GP E.XXI (Grupo de Pesquisa
Eisenstein no Século XXI), mestre em Literatura e Cultura Russa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, na linha de teatro russo. Traduziu, diretamente do russo, as partituras de Stanislávski e pesquisa a relação entre as formas poéticas deste com as de Anton Tchekhov.
Vanessa Teixeira de Oliveira
é doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Brasil. Atualmente é pesquisadora e professora adjunta desta mesma Universidade. Em 2008, publicou Eisenstein Ultrateatral: movimento expressivo e montagem de atrações na teoria do espetáculo de Serguei M. Eisenstein (Editora Perspectiva).
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Conteúdo não creditado no texto
Ivan, o terrível (parte 2), 1945 (capa, 131) Desenhos de Serguei Eisenstein ( 2, 15) Néle Azevedo, Monumento mínimo em sangue, 2012 ( 3-14) Retrato de Serguei Eisenstein ( 17, 85, 155) Aleksandr Niévski, 1938 (25, 37, 97, 189 ) Neide Jallageas, frames do video feito no apartamento de Serguei Eisenstein em 2012 ( 61-82) Oleg Kovalov, Serguei Eisenstein: uma autobiografia , 1996 (65, 79, 81, 83, 84 ) Ivan, o terrível (parte 1) , 1944 ( 115, 207) Fotografia de São Petersburgo, década de 1920 (147 )
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ISSN 2237-2105