kinoruss estudo e pesquisa ano 4
n.5
2014
RUSSIA
A R T E CINEMA
KINO V I DA MONTAGE BRASIL
E
RUSS A EM
KINORUSS está disponível apenas na plataforma http://issuu.com/kinoruss. Até a data desta edição não há versão impressa e arquivos pdf não estão disponibilizados.
EDITORAS CIENTÍFICAS Neide Jallageas Irene Machado
COORDENAÇÃO EDITORIAL Neide Jallageas
CONSELHO EDITORIAL Neide Jallageas, Irene Machado, Erivoneide Barros, Fabiola Notari, Tieza Tissi
PROJETO GRÁFICO Fabiola Notari e Neide Jallageas
CONSELHO CIENTÍFICO Ada Ackerman (Paris), Anastassia Bytsenko (São Paulo), Amir Labaki (São Paulo), Andrej Andrejevich Tarkovskij (Florença), Bruno Barretto Gomide (São Paulo), Daniela Mountian (São Paulo), Dmitri Afanássievitch Salinsky (Moscou), Eduardo Morettin (São Paulo), Elena Petróvskaya (Moscou), Evgueni Tsymbal (Moscou), François Albera (Lousanne), Igor Ivánovtch Evlampiev (São Petersburgo), José Manoel Mouriño (Galícia), Lucia Ramos Monteiro (Paris-São Paulo), Naum Kleiman (Moscou), Nancy Condee (Pittsburgh), Oleg Vladímirovitch Aronson (Moscou), Tatiana Vétrova (Moscou), Vanessa Teixeira de Oliveira (Rio de Janeiro)
PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS E REVISÃO Erivoneide Barros
COLABORADORES Anastassia Bytsenko, Bruno Barretto Gomide, Camila Cavalcante, Dmitri Gutóv, Edelcio Américo, Edith Derdyk, Ekaterina Vólkova Américo, Elena Dulgheru, Katia Kuwabara, Luis Felipe Labaki, Natalia Quintero, Nathaly Felipe Ferreira Alves, Oleg Aronson, Paulo Angerami.
REVISÃO COMPLEMENTAR Tieza Tissi e Nathaly Felipe Ferreira Alves
DIAGRAMAÇÃO Paulo Angerami e Neide Jallageas
AGRADECIMENTOS A todos os já elencados e, ainda, a Cesar Fujimoto, Daniela Moutian e Flaminio Jallageas. Ao CNPq, cuja bolsa de Pós Doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais (ECA/USP) possibilitou mais um ano de estudos da pesquisadora Neide Jallageas, aos quais essa publicação integra.
As opiniões expressas nesta publicação são de responsabilidade de seus respectivos autores. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por quaisquer meio sem a prévia autorização. Doações de materiais relevantes sobre o cinema russo e eslavo, colaborações, sugestões e dúvidas podem ser encaminhadas para kinoruss.cadernos@gmail.com
ÍNDICE Editorial Cercas de Kuzminki e Nossa Senhora Orando Dimitri Gutov O Sacrifício e os mistérios de A Adoração dos Magos, de Leonardo da Vinci
Elena Dulgheru - traduzido para o português por Camila Cavalcante em russo em inglês
Andrei Tarkóvski: a economia do plano-sequência
Oleg Aronson - traduzido para o português por Natalia Quintero em russo
Andrei Tarkóvski e Pável Floriênski: o conceito de realidade vivente no cinema
9 14
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Neide Jallageas
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A semiótica de Iúri Lotman e a Linguagem do Cinema Ekaterina Vólkova Américo em russo
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A imagem feminina de Moscou no Cinema
Edelcio Américo
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A concepção artística de Serguei Eisenstein: o direito à irresponsabilidade Erivoneide Barros
193
Considerações sobre a cor no cinema de Serguei Eisenstein
Paulo Angerami
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O Pracinha de Odessa Luis Felipe Labaki
215
David Vygódski: um crítico literário e a cultura da revolução russa em dois momentos
Bruno Barreto Gomide
243
Grigóri Kôzintsiev e seu livro O Espaço da Tragédia Anastassia Bytsenko
259
ATILHO
Edith Derdyk e Katia Kuwabara
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Complementações
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EDITORIAL
Linhas resvalando culturas, aproximando, tocando, redesenhando, reconfiguradas em nuances, meios tons, altos contrastes, superfícies planas, volumes. As linhas aqui ensaiam textos visuais, audiovisuais e/ou escritos; aproximam, ainda, produções artísticas e teóricas de brasileiros, russos e europeus orientais. O texto compreendido em seu amplo sentido e as linhas como vertentes através das quais desaguam ideias inscritas em palavras ou em imagens, falam da arte que se abriga e se manifesta por e entre criadores e pensadores, daqui e de lá. A partir de agora, uma parte desse texto em expansão é apresentado nesta publicação eletrônica, que revela apenas algumas de suas possíveis faces. Neste quinto número do kinoruss as linhas introdutórias são as do metal torcido das cercas
Autoria desconhecida. Retrato de Tatiana Samoilova. s.d. Homenagem de KINORUSS à atriz russa falecida em 2014.
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internas de um jardim público, no Parque Kuzminki, em Moscou, enquadradas em imagens que circunscrevem um espaço dentro do outro. O fazer artístico de Dmitri Gutov logo desliza do campo da fotografia para as linhas (re)torcidas, desprendidas de sua função inicial, reconfiguradas, soldadas, em contornos estruturados, ganhando volumes esculturais: é o metal que se ergue, se movimenta e assume a dimensão de um corpo, ainda por meio do desenho. O artista russo não poupa tempo nem espaço, invertendo a ambos, atordoando o espectador, reinventando a História e a história da arte com sua obra exposta na Documenta de Kassel, na Bienal de Veneza, na Bienal de Moscou e tantos outros lugares, em sua longa trajetória. Gutov é trazido para este número do KINORUSS em uma versão sintética, traduzida pelo olhar de Neide Jallageas que, em 2013, visitou a retrospectiva de sua obra no Museu de Arte Moderna de Moscou e pode conferir e documentar trabalhos que tem acompanhado há mais de dez anos. Não foi surpresa saber muito recentemente que Gutov concluiu seus estudos na Academia de Arte, há mais de vinte anos, com tese sobre Pável Floriênski, pensador russo que foi recentemente publicado no Brasil pela Editora 34, tratando-se do mesmo autor que tanto impressionou Andrei Tarkóvski, cineasta presente neste número através de três estudos distintos. O primeiro desses estudos parte da alegação de que o entendimento crítico da obra tarkovskiana vem sendo encaminhada por uma leitura inadequada e limitada por parte dos pesquisadores do Ocidente, que por desconsiderar as especificidades textuais deste cinema, teriam chegado a um beco sem saída. Essa é a posição da romena Elena Dulgheru que defende um estudo que abranja as camadas mais profundas dessa cinematografia. A pesquisadora escreve sobre o trabalho derradeiro do cineasta, O Sacrifício, buscando demonstrar como “o edifício construído por Tarkóvski, em cada um de seus filmes (o que é mais notável em seus dois últimos), é estruturalmente, semanticamente e funcionalmente uma catedral”. Defendendo também a especificidade desse cinema, mas com outros argumentos, o filósofo moscovita, Oleg Aronson, que assina o segundo ensaio, faz seu percurso analisando o tema da temporalidade e da duração nos planossequência elaborados por Tarkóvski, distinguindo-os daqueles amplamente discutidos pelos teóricos do cinema do mundo todo, nos filmes de Welles, Hitchcock e Antonioni, principalmente. O filósofo ressalta da cinematografia de Tarkóvski, a memória imanente, não individual, comum, que é o tempo, para alcançar o conceito da montagem que neste cinema “não é nem tecnologia nem forma, e nem um meio de expressão, mas uma forma de existência da própria matéria cinematográfica, na lógica da unidade, na lógica do todo”. O terceiro e último estudo desse pequeno grupo de ensaios em torno da obra de Tarkóvski é assinado por Neide Jallageas que retoma as ideias de Floriênski sobre a percepção artística da realidade, para pensar o conceito de “símbolo do universo” ao qual se refere Tarkóvski quando concebe a imagem como consciência do infinito que abarca o espiritual no interior da matéria.
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Os estudos que compõem esse primeiro grupo de textos foram, em parte ou no todo apresentados pelos seus autores no Congresso Fenomen Andrêia Tarkóvskovo. V Intiellêktualnoi i Khudójestvielnoi Kulturie (O Fenômeno Andrei Tarkóvski na Cultura Intelectual e Artística), na cidade de Ivánovo, na Rússia, em junho de 2013 e foram publicados na língua russa, em livro do mesmo nome, organizado por Evgueni Tsimbal, pela Editora PresSto, de Ivánovo, em 2014. Outro conjunto, também composto de três textos, tem em comum sua origem. São afluentes de duas teses e uma dissertação de mestrado em Cultura e Literatura Russa (FFLCH/USP), escritas respectivamente por Katia Vólkova, Edélcio Américo e Erivoneide Barros. Vólkova reaviva as formulações sobre o cinema provenientes da Escola de Semiótica de Tártu-Moscou, aqui enunciadas por seu mais proeminente fundador, Iúri Lotman. A pesquisadora apresenta o semioticista não apenas como um grande cinéfilo, mas atenta para o olhar arguto que perscruta o cinema compreendido enquanto texto da cultura. Também, a ela interessa como Lotman observa em determinados enredos “a imprevisibilidade dos processos culturais, responsável pelo surgimento das novas obras de arte”. Para isso Vólkova toma dois dos filmes analisados por Lotman, dos anos 1950 e 1960, sob o crivo das camadas que constituem a linguagem cinematográfica e trabalha com a hipótese dos possíveis desdobramentos de tal metodologia de análise, aplicada a filmes posteriores, tais como os realizados no terceiro milênio pelo jovem cineasta russo Andrei Zviáguintsev. O segundo ensaio desse grupo proveniente de teses e dissertações é de autoria de Edelcio Américo. O pesquisador tematiza a distinção de gêneros das cidades, atribuindo a Moscou a imagem do feminino. Sua ampla e segura defesa perfaz um caminho histórico da urbanização das cidades, explora as origens linguísticas e culturais, ressalta características presentes na literatura, até alcançar a imagem da Moscou, «cidade-mulher» no cinema, detendo-se em filmes históricos de autoria de Abram Room, Aleksandr Medviédkin, Eduard Riazánov e Vladímir Menchóv, um trajeto de cinquenta e poucos anos da cinematografia soviética, portanto, representa Moscou próxima à mulher, senão ela mesma cidade - pertencente a esse gênero. Fechando este segundo grupo, Erivoneide Barros traz inquietante desafio conceitual para pensar a irresponsabilidade do artista ao compor sua obra. Contextualizando o tumultuado período da vida e do processo criativo de Serguei Eisenstein, quando das opções e pressões do partido para realizar Aleksandr Niévski, a pesquisadora desloca o sentido corriqueiro da palavra irresponsabilidade para sondar camadas de sentido que não se apresentam de imediato, mas requerem instrumentos de maior argúcia por parte daqueles que se propõem a pensar a criação artística, principalmente aquelas forjadas em tempos de opressão. Também é Serguei Eisenstein que é trazido por Paulo Angerami para pensar a cor no cinema. O pesquisador retoma os escritos do teórico e cineasta letãosoviético em diálogo com a concepção de cor de Johan Wolfgang von Goethe
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em seu célebre tratado Teoria das cores, muito bem estudado por Eisenstein. Em fina articulação entre os dois teóricos e artistas, Angerami retoma as obras referenciais que o cineasta analisou para discutir a sensibilidade das cores em filmes preto e branco, de Dovjenko e Korda nos quais a escala cromática e a escala de iluminação são trazidas à discussão tendo em vista, principalmente, a dramaticidade. O caminho teórico que Angerami percorre alcança, por fim, a epifânica seleção de sequências do final da segunda parte de Ivan, o Terrível, cuja explosão de cores encontra o sentido pleno quando da transição para o preto e branco, que perdura até o final do filme. No ensaio fotográfico e no texto que se segue, ambos de autoria de Luis Felipe Labaki, são ainda as pegadas de Eisenstein que marcam um fragmento do retrato do tradutor e ensaísta Boris Schnaiderman, desenhado no filme O pracinha de Odessa, curta metragem realizado por Labaki. Schnaiderman quando criança, morador de Odessa, pisou as famosas escadarias no momento em que cada degrau era imortalizado no filme de Eisenstein. O texto escrito por Labaki, reflete suas escolhas e caminhos percorridos para elaborar um retrato audiovisual de Boris Schnaiderman em que a proximidade entre biografia e obras literárias resultam em uma tradução sensível da trajetória de vida do retratado. O período revolucionário com o qual Boris Schnaiderman conviveu na então nascente União Soviética é também trazido em dois textos de autoria de David Vigódsky traduzidos por Bruno Gomide que também os comenta. Esta é a terceira contribuição de Gomide ao KINORUSS em que o leitor brasileiro toma contato com Vygódski, esse intelectual, crítico literário, poliglota soviético, cujas atividades ultrapassaram a trabalhosa arte da tradução para destacá-lo como pensador e divulgador de variadas culturas, inclusive a latino-americana. Neste número Gomide oferece a face crítica de Vygódski sobre a cultura russa e soviética, sublinhando o sentido amplo da revolução e seus desdobramentos no tempo. Remanescente do período revolucionário, já em seus últimos anos de vida o cineasta russo, Grigóri Kôzintsev, enquanto filmava Rei Lear, escrevia um diário muito rico em observações sobre a sua própria concepção de cinema e as dificuldades em traduzir para as telas um texto de uma cultura advindo de outra. A pesquisadora Anastassia Bytsenko comentou e traduziu do russo um trecho desses diários, no qual Kôzintsev se dedica a pensar a cultura japonesa e a cultura russa. Um dos pontos fortes das reflexões do cineasta é o elogio que tece ao filme O Idiota, realizado por Akira Kurosawa, esforco bem sucedido para traduzir a cultura russa para a japonesa em que, nas palavras de Kôzintsev, “ele [Kurosawa] soube expressar na tela aquele ‘realismo fantástico’ sobre o qual, com tanta persistência, escreveu Dostoiévski”. Sem qualquer pretensão de traduzir culturas, mas buscando apresentá-las em conexão, muitas vezes em justaposição e, mesmo em conflito, quando não emaranhadas, as linhas desse caderno em seus variados percursos se estendem e se desfazem no último dos ensaios, dessa vez visual, no qual as lentes sensíveis
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de Katia Kuwabara acompanharam com sutileza, passo a passo, a desmontagem da obra ARCADA, da artista brasileira Edith Derdyk, em 2013, na Galeria Mario Schenberg, em São Paulo. A tensão das linhas até então “atadas”, “ligadas”, no trabalho de Derdyk, é relaxada, senão desfeita, pelas mãos da artista que se movimenta suave e silenciosamente, espreitada pela câmera atenta de Kuwabara. O duo de ambas as artistas brasileiras resultou em imagens ou imagens-fios que oferecem a justa medida que pretendeu esse número de KINORUSS: colocar em contato duas culturas, recolhendo reflexões por meio da produção teórica e artística em um tempo quando até mesmo a dureza do metal se presta para realinhar-se em outros fios, desenhos, corpos, de contornos maleáveis e flexíveis. As possibilidades de entrever nós, de desfazêlos e reconfigurar os fios em desenhos renovados abre-se agora aos leitores.
Autoria desconhecida. Donatas Banionis e Nsatalia Bondartchuk no set de Solaris. s.d. Homenagem de KINORUSS ao ator soviético falecido em 2014.
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O Sacrifício e os mistérios de A Adoração dos Magos, de Leonardo da Vinci Elena Dulgheru Traduzido por Camila Cavalcante
Do ponto de vista da interpretação filosófica, O Sacrifício (1986) é o filme mais controverso de Tarkóvski. Nietzcheanismo, gnosticismo e cristianismo, elementos de culturas do Extremo-Oriente e da Escandinávia arcaica, realismo objetivo e onirismo – todos se ocultam sob a superfície da grandiosa e aterrorizante parábola apocalíptica. Esses diferentes substratos fundem-se em uma estrutura conceitual unitária e um discurso artístico coerente, ou permanecem núcleos semânticos disjuntos, que propiciam, aos espectadores, diferentes estratégias de leitura e diferentes interpretações filosóficas? Enquanto muitos críticos entendem o filme como uma parábola soteriológica com um fundo e discurso cristãos, uma parte mais tradicional (e menos instruída artisticamente) de cristãos condena o filme, considerando-o herético. Essas vozes são apoiadas por
Andrei Tarkóvski, O Sacrifício, 1986 (01:53:22).
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1. Como Layla AlexanderGarett defendeu publicamente durante sua visita a Bucareste (Romênia, dezembro de 2012).
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alguns críticos ocidentais que não veem a ligação entre os discursos cristão e gnóstico, presentes no filme. Há, inclusive, vozes de jovens acadêmicos americanos acusando o filme (e o produtor) de incongruências lógicas. Mas Tarkóvski afirmou que “nada era nocivo em seus filmes”; ele também declarou que seu filme, O Sacrifício, seria compreendido, por seu real valor, muitos anos após sua morte1. É chegado o tempo para uma compreensão apropriada do filme? Se os discursos de todos os substratos do filme harmonizam-se em uma estrutura coerente, unitária e sinfônica, se eles se unem em um organismo vivo, a resposta tem grandes chances de ser positiva. Enquanto a estrutura épica e óbvia de O Sacrifício conta com a temática do Apocalipse, primeiramente visto como temática do Fim do Mundo e, secundariamente, como A Revelação (metanoia global), a estrutura interior, simbólica do filme, depende do arquétipo Marial. Portanto, misticamente, a resposta para a provocação do Apocalipse conta com a Santa Mãe de Deus. Em O Sacrifício, o arquétipo Marial centra-se na obra de Leonardo da Vinci, A Adoração dos Magos, que aparece insistentemente no filme. Enquanto que, em seu período Soviético de criação, Tarkóvski concebeu seus filmes de modo sinfônico, como uma estrutura musical (o que é mais evidente em O Espelho - 1975), em seu período Ociental, ele concebeu seus filmes como pinturas. Isso ocorre em ambos, Nostalgia (1983) e O Sacrifício. A narrativa dispersa de Nostalgia gravita em torno da serena, simples e majestosa Nossa Senhora do Parto, a virgem gestante de Piero della Francesca; já em O Sacrifício, a tela enigmática de Leonardo da Vinci reina no centro semântico do filme, moldando sua sutil estrutura. A vibração Renascentista das telas claro-escuras harmoniza-se com a fria monumentalidade da mise-en-scène e o modo classicista de atuação, criando um misto de linguagem emocional e racional tão específico à poética de Tarkóvski. Interpretado a partir de uma visão escatológica, o mistério da pintura de Leonardo da Vinci traz luz ao significado profundo de O Sacrifício. Assim como em Nostalgia, ele refere-se à salvação do mundo e ao nascimento do “novo mundo”, de nascer de uma Virgem
ou de uma mulher extraordinária. Mas a decodificação do mistério é diferente. Para entendê-lo, devemos adentrar o substrato da pintura inacabada do grande mestre florentino.
Um tema imagístico fundamental do cristianismo, A Adoração dos Magos, há muito se introduziu no programa iconográfico de igrejas orientais e ocidentais. Os personagens, geralmente, representados no ícone clássico, são a Madona e o Menino, cercados pelos Magos. A cena canônica centra-se na Gruta da Natividade, logo, geralmente, inclui gado e anjos, algumas vezes, São José, pastores e pessoas – testemunhas do nascimento de Cristo. A cena é semelhante àquela do Natal, cuja composição, por vezes, inclui. Na Idade Média e Renascimento, a composição começa a incluir heróis e elementos arquitetônicos da época, adquirindo um caráter mais mundano. Mas a cena quase sempre possui um ar suave e pacífico, de harmonia “pacificadora” e universal. Basicamente, versão nenhuma do ícone ou
Andrei Tarkóvski, O Sacrifício, 1986 (01:56:15).
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2. Ver profeta Daniel.
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da pintura religiosa contém qualquer tinido de armas ou ameaças de guerra. Mas, em Leonardo, todos esses existem! Não vamos investigar os motivos para essa solução composicional adotada pelo mestre florentino. Para nós, apenas um fato importa: de todo o acervo de cenas clássicas da Natividade, Tarkóvski escolhe essa pintura um tanto codificada, desbotada e, de certa forma, “infotogênica”. Sabe-se que até mesmo o diretor de fotografia, Sven Nykvist, propôs que abandonasse a filmagem da pintura, pois ele não conseguia incluí-la no enquadramento, mas Tarkóvski permaneceu inflexível. O que explica a crucial importância da pintura do jovem mestre italiano para a dialética do último filme de Tarkóvski? Quais aspectos são enfatizados na estrutura interna do filme? E o que Tarkóvski deseja transmitir para o público por meio desta pintura? Primeiro, o alerta para o caminho perigoso e autodestrutivo pelo qual a humanidade está seguindo – a maior parte dos comentários do filme se refere exatamente a isso; mas também a vívida e obstinada esperança da salvação do mundo através da misericórdia de Deus, do sacrifício e do amor, a esperança da renovação redentora do mundo pelo “nascimento do menino Jesus em nossos corações” (o que os cristãos desejam uns aos outros no Natal). Esta é a renovação interior do homem. Quando o protagonista folheia o álbum de ícones russos que ganhou de presente, a primeira imagem que vemos é A Ressureição de Lázaro. O aniversário de Alexander torna-se o dia da ressurreição de sua alma e, também, o dia da dramática morte do “velho homem”! Ao fundo da tela de Leonardo, surgem, claramente, a Santíssima Virgem com o Menino, os Magos e as duas árvores do Éden, posicionadas exatamente na linha central – uma solução composicional rara para este tema iconográfico. Mas o Menino (ou bebê), a Árvore da Vida e a humilde mulher (não necessariamente uma virgem, mas uma mulher escolhida, extraordinária) são as personagens principais do filme de Tarkóvski, assim como, de certa forma, os magos e os estudiosos, que não são exatamente os antigos astrólogos à espera de Cristo, mas “homens desejosos”2, ansiosos pelo fim do velho mundo e início do novo mundo. É verdade, não se pode dizer isso sobre
todas as personagens masculinas do filme (há três), mas apenas sobre Alexander, o “justo e sábio”, educado e talentoso Alexander, que cresceu na expectativa da grande Revelação! Mas justiça e sabedoria sozinhas não são suficientes para salvar o mundo: são também necessários amor e sacrifício. “E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria3”. Os mesmos versos do apóstolo Paulo já foram ouvidos em Andrei Rublióv, mas ali tudo era mais claro e convincente: o nível de discurso era majoritariamente direto, “realista” e não parabólico. Enquanto O Sacríficio é uma parábola, primordialmente direcionada ao intelecto. O que mais é necessário para a salvação do mundo? A persuasão da divina misericórdia. Todos estes podem ser realizados – alega o carteiro Otto – pela humilde serva Maria! Portanto, antes de levar o seu sacrifício adiante (renúncia da família, queima de seu corpo, que é a “casa da alma”, adoção do voto de silêncio), Alexander deve adorar e oferecer seus presentes – presentes de amor – à Maria, para que ela, por sua vez, transmita a Deus o pedido de salvação do mundo. Isto não é uma colagem de temas evangélicos; as relações entre temas e personagens não são copiados do Evangelho, elas são alegóricas: o significado direto torna-se figurativo e a parábola torna-se realidade. Esta é a lei “geométricoalquímica” para a resolução simbólica dos últimos dois filmes de Tarkóvski. O diretor confessou que construiu seus filmes não com base em leis narrativas, mas em leis visuais: seus filmes devem ser interpretados como pinturas, com uma estrutura bem-definida, vibrante e em multicamadas geométricas, em que níveis temporais e ônticos comunicam-se uns com os outros de acordo, não com princípios narrativos, mas com princípios conceituais. Isto se evidencia mais em seus filmes ocidentais. Daí a diferença formal destes em relação aos produzidos em sua terra natal. Nestes últimos, vivenciar era suficiente (tal como ambos, diretor e público, declararam). A sinfonicidade semântica presente neles era tão perfeita que quaisquer de seus níveis linguísticos (ou níveis de vivência) satisfaziam as necessidades dos espectadores.
3. Cor. 13:3. (versão Almeida Revista e Corrigida).
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4. Ver: Nariman Skakov (Stanford University), The Cinema of Tarkovsky (I.B. Tauris, 2012); Sean Martin, Andrei Tarkovsky (Kamera Books, 2011); Vida T. Johnson & Graham Petrie, The Films of Andrei Tarkovsky: A Visual Fugue (Bloomington & Indianapolis: Indiana University Press, 1994)
5. Isto é discutido, com o cronômetro em uma mão e os tratados de espaço sagrado em outra, e com a infinita maravilha do pesquisador frente ao milagre da perfeição, pelo renomado teórico cinematográfico, Dmitri Salînski, em sua obra Киногерменевтика Тарковского (Kvadriga, Moskva, 2009).
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Já seus filmes Ocidentais, providos de uma mensagem mais discursiva (racional), não bastam apenas serem “experimentados” (vivenciados), eles devem ser compreendidos apropriadamente! Caso contrário, a multitude de ambiguidades na tela não se misturam com as polaridades cristalinas da perfeição antinômica (o agente que vincula suas junções é o espírito do espectador), mas se aglomera em cataratas de inconsistências, até que tudo se torna “confusão”, “caos”, “fiasco”, como ocorre em muitas monografias Ocidentais, desde as pioneiras até as mais recentes. Apesar da precisão da linguagem historiográfica e acadêmica, o que elas em geral provam, elas decodificam muitos itens de acordo com seu próprio contexto cultural e histórico, entendendo, de um modo exclusivamente pragmático, episódios que possuem uma natureza simbólica carregada e desprovida da sinfonicidade das camadas mais profundas do filme. Nem mesmo os filmes Ocidentais de Tarkóvski, em especial O Sacrifício, escapam deste tipo de interpretação inadequada, sujeita a regras que são estranhas ao texto4. Assim como Solaris, de Stanislaw Lem, a compreensão dos filmes ocidentais de Tarkóvski parece estar, por mais de vinte e cinco anos (ao menos no Ocidente), em um beco sem saída. Mas sua compreensão apropriada é de extrema importância. Pois sua sinfonicidade semântica (ao contrário da dos filmes produzidos em sua terra natal) cresce em torno de teses de máxima generalidade, assim como a experiência religiosa desenvolve-se em torno do dogma: o que é vivo deve ser vivenciado, mas o dogma também requer uma boa compreensão, já que os dois estão mutualmente inter-relacionados. Em outras palavras, o edifício construído por Tarkóvski, em cada um de seus filmes (o que é mais notável em seus dois últimos), é estruturalmente, semanticamente e funcionalmente uma catedral: um espaço teândrico para o encontro entre homem e Deus, um espaço eminentemente vivo, com capacidade de autorregeneração, um modelo de qualquer obra de arte completa5”. Mas vamos olhar novamente para a pintura de Da Vinci. A diagonal entre a Virgem assentada e o mago
que ajoelhado, mais próximo, à sua direita - o único que fita diretamente o divino par - domina a figura. E é exatamente com este fragmento simples e enigmático que o filme começa: o detalhe do perfil retangular do mago à direita, oferecendo seu presente para o Divino Menino, que permanece nos créditos de abertura por mais de quatro minutos!
É importante observar o acompanhamento musical dos créditos de abertura: é A Paixão segundo São Matheus, a oratória de Bach, em que o Apóstolo Pedro se arrepende perante Cristo por causa de sua traição: “Erbarme dich, mein Gott, um meiner Zähren willen! / Schaue hier, Herz und Auge / weint vor dir bitterlich. / Erbarme dich, mein Gott”6. A insistente associação entre trilha sonora e imagem ajuda a relacionar Alexander ao mago, à direita, na pintura de Leonardo. É mais difícil, no entanto, entender essa relação próxima com o Menino Jesus. Como intelectual secular, Alexander parece constrangido ou, até mesmo, amedrontado diante de um
Andrei Tarkóvski, O Sacrifício, 1986 (00:00:46).
6. “Tem misericórdia de mim, Deus meu, por amor de minhas lágrimas! Veja, diante de Ti, meu coração e meus olhos choram amargamente. Tem misericórdia de mim, Deus meu!”.
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Andrei Tarkóvski, O Sacrifício, 1986 (01:14:54).
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relacionamento tão próximo com Deus, ainda que ele anseie que a espiritualidade transforme sua vida. Uma vez que ele descobre sobre a irrupção do desastre mundial, Alexander, que, de acordo com suas próprias palavras, não havia tido, até então, nenhuma relação com Deus, ajoelha-se e, solitário e desajeitado, reza pela primeira vez em sua vida. O close-up em Alexander, com seu olhar desesperado, implorante, fixo no alto, em direção a Deus, parece uma rotação de 90 graus em direção à audiência, o mesmo ângulo do perfil do mago da pintura de Leonardo, insistente e implorante, fitando o Menino Jesus. Mas a prece sincera e desesperada do justo não é suficiente: a prece deve ser aprendida, e neste sentido, Alexander é profano. Por isso é necessária a mediação de uma pessoa escolhida, uma amiga próxima de Deus. O que significa que o relacionamento de Alexander com Deus deve ser mediado por um presente: o presente de prostração e amor, que é recebido pelo Menino, na pintura, por meio de um utensílio de ouro. No filme, o presente é recebido por Maria, para, privativamente, entregá-lo a Deus.
Maria é chamada de bruxa, mas ela se assemelha mais a uma humilde freira católica ou, simplesmente, a uma beata: seu comportamento, sua modéstia, roupas escuras e a cabeça coberta, bem como a sua casa decorada com ícones católicos baratos, fotos de família antigas e crucifixos, são testemunhas exatas disto7. Dizse que ela mora próximo a uma igreja abandonada – uma residência típica de bruxas, mas também de eremitas. Ela não é, entretanto, uma bruxa (assim como Alexander não é literalmente um mago, embora seja exatamente a um mago que Tarkóvski o associa), mas um homem com um poder espiritual especial. Que tipo de poder? Por agora, não sabemos: esta é a razão para as disputas teológicas e moralistas acerca do filme! Toda essa ambiguidade é intencional; no entanto, discretos sinais estéticos ajudamnos a decifrá-lo. As redondezas da casa da igreja explicam a presença do órgão8 – um objeto incomum à casa de uma humilde empregada. A casa de Maria, provavelmente, era parte de uma igreja (que não se vê), era uma casa paroquial
Andrei Tarkóvski, O Sacrifício, 1986 (01:41:02).
7. O roteiro original de Arkadi Strugatsk, escrito a pedido de Tarkóvski, em 1981, para o seu futuro filme, O Sacrifício, foi inclusive entitulado A Bruxa (Vedma). Deve-se mencionar que a palavra “vedma”, em russo, (uma das equivalências para “bruxa”) possui certa conotação nobre (“vidente”), originado do antigo radical sanscrítico “conhecer”, “ver”, o que amplia, em certo grau, o campo semântico da palavra.
8. É um órgão ou um harmônio? Não importa, para nós importa apenas o tipo de som produzido pelo instrumento e sua função ritualística e religiosa.
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Andrei Tarkóvski, O Sacrifício, 1986 (01:44:57).
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que possuía uma parede em comum com a igreja, sendo que a música advinda do órgão podia ser ouvida durante a divina missa. A igreja estava abandonada, mas o órgão ainda funcionava. Significa, então, que nem tudo está perdido! Pois o órgão é a “voz dos anjos” e a “voz da alma, clamando pelo Senhor”, o que significa que a voz interior, suplicante de Maria é viva. O funcionamento do órgão é uma forte metáfora para a eficácia do poder da prece de Maria. Neste órgão, antes da noite de amor, Alexander toca uma obra de música pré-clássica elevada. O amante toca o instrumento musical de sua amada: eis aqui um sinal erótico bastante claro, uma previsão transparente do enlace amoroso; mas o instrumento musical (portanto, o amor) é um instrumento ritual e religioso. Isso significa que o encontro de amor é espiritual, até mesmo religioso. A nobreza da música indica a nobreza do amor e dos amantes, inclusive sua eleição, pois a música (especialmente música religiosa, tocada em órgão) é “a música dos anjos”, “a voz e a bênção do Todo-poderoso”. Seu enlace é um tipo de hierogamia, porque ambos são
“secretamente ungidos pelos poderes dos céus”, e o eros que os move não é carnal, mas espiritual, “ritual”, tal qual a voz do órgão. Apenas a fórmula cinemática de sua expressão é corporal: a metonímia, um procedimento amplamente usado pelo produtor, inerente a qualquer expressão audiovisual de qualquer conceito espiritual. Mesmo a entrada dos amantes no quarto, surpreendidos em um espelho da perspectiva de um modesto crucifixo em criado-mudo, é vista como se os ombros de ambos os amantes se curvassem sob os braços da mesma Cruz. O primeiro gesto do enlace também ocorre no plano de fundo do crucifixo na parede, como se os dois amantes abraçassem juntos a Cruz, ou recebessem sua bênção. A interpretação musical também foi “ritualística”, pois Alexander, antes de sentar-se para tocar o órgão, estando sujo, após cair de sua bicicleta, lava as mãos um prelúdio ancestral para a aproximação da santidade. Quando Maria despeja água de um jarro de porcelana9, seu desenho pode ser visto claramente: é um galho verde – uma repetição do leitmotiv da Árvore da Vida -,
9. Repetindo o gesto da mãe de Kris, do sonho do protagonista (Solaris). Andrei Tarkóvski, O Sacrifício, 1986 (01:43:44).
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10. As personagens de Leonardo parecem brilhar devido à luz de fundo sob a pintura inacabada.
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indicando a qualidade da água despejada por Maria. O atributo de Portadora de Mirra, sob o qual a personagem da “bruxa” (ou a diaconisa) está diretamente posicionada, assim como seu atributo Marial indireto e metonímico (que, hierarquicamente, subordina o primeiro) tornam-se mais claros. Este tipo de associação é específico à representação do amor de Tarkóvski. A levitação erótica da principal heroína em O Espelho; a cena da experiência da ausência de peso, em que Hari e Krise suspendem-se em pleno ar, flutuando abraçados entre castiçais com velas acesas, acompanhados pela música de Bach; a rotação erótica de Alexander e Maria. Embora essas cenas tenham suas vozes expressas de formas diferentes, ou ainda, praticamente não expressas (em O Sacrifício, com os gritos arcaicos de pastores escandinavos, vindos como se de um céu, do passado que se foi para dentro do silêncio hermético da ilha sueca), a música interior que irradiam é a mesma: o sobrenatural, suavemente envolvendo a “música das esferas”, de Bach. É sugerido pelo ritmo rotatório dos amantes, levitando vagarosamente (em Solaris e O Sacrifício), ou, simplesmente, pela “pressão temporal dentro do frame”, na levitação estática, mas mais visualmente refinada, em O Espelho. A mesma silenciosa música das esferas, música da divina graça, do “Espírito manso e humilde”, que é eminentemente Marial, centra-se na mandorla de brilho opaco da Virgem com o Menino de Adoração dos Magos, de Leonardo10. Pois a música do “Espírito manso e calmo” é o adorno do “homem encoberto no coração”, “que é de grande valor diante de Deus” (1 Pedro 3:4) – diz o apóstolo Pedro, quando quer mostrar às mulheres um modelo de perfeição. Isto nos traz a música oculta de Glycophilusa, o ícone Panagia de “Sweet-kissing” (or “Loving Kindness”): uma música de santa maternidade e virgindade, de feminilidade graciosa e devota, de ternura que abençoa ternura, de altruísmo que multiplica a autodoação, uma música do Eros divino por excelência. E não é sacrilégio dizer que entre as correspondências estruturais e musicais presentes no filme, a mandorla central do abraço do Divino Par da pintura de Leonardo corresponde ao abraço secreto da casa de Maria. A musicalidade de ambos é a mesma.
O que Alexander recebe de Maria na noite do encontro secreto, além de compaixão e amor? Coragem! Já que sacrifício requer heroísmo, Alexander, um intelectual que anseia por uma vida espiritual, mas é apenas um principiante nos assuntos do espírito, não está pronto para o sacrifício. Seu ajoelhar desajeitado no momento da prece, logo após saber da notícia sobre a guerra mundial, não tem poder espiritual suficiente. A prece deve ser acompanhada de obras, mas obras requerem coragem, o que está muito além das limitações de um principiante. A fraqueza de Alexander requer força que vem do Espírito Santo, que ele recebe da suposta bruxa, a empregada Maria. “Você não deveria ter medo de nada” – sussurra Maria, de modo feminino, durante o enlace. Não apenas feminino, pois logo após unir-se com a suposta bruxa, Alexander recebe coragem para agir, como se sua prece pela salvação do mundo ganhasse força e fosse aceita por Deus apenas após sua união com Maria11. “Quanto o mundo mudaria se nós não temêssemos a morte!”, disse Alexander a seu filho Tommy, e seu ensinamento transforma-se em obra. Já que a masculinidade é, em um sentido espiritual, um sinal de cumprimento do Espírito Santo. O fato de que isto ocorre exatamente durante o encontro noturno com Maria, e que Alexander segue o roteiro do sacrifício de Cristo é sugerido por um detalhe que passa quase despercebido. O breve prelúdio pré-clássico, interpretado por Alexander, é interrompido por um suave gongo; Alexander retrai-se e pergunta-se ansiosamente: “Já são 3? Teremos tempo?...” Certamente, é aproximadamente a terceira hora da noite e Alexander teme que não terá tempo de concluir o ritual. Mas sua observação possui também outro significado: no ciclo habitual das sete horas canônicas da tradição Cristã Ortodoxa, a terça hora é a hora do Pentecostes, a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos, e após a terça hora, vem a sexta, que é, de acordo com a Santa Tradição, a hora da crucificação de Cristo! O homem não está apto para o martírio se ele não estiver cheio do Espírito Santo. Portanto as horas passadas por Alexander, na casa de Maria, reencenam dois momentos fundamentais do tempo litúrgico da Paixão e Ressureição do Senhor: o leito de amor torna-se o altar da “concepção e nascimento do novo mundo”, mas
11. De acordo com a lei dos ascetas, a prece de um principiante é fortalecida pela de um homem mais experiênte no ato da oração. o primeiro unindo-se ao último.
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Andrei Tarkóvski, O Sacrifício, 1986 (01:50:36).
também a origem do sofrimento e martírio de Alexander. A estilística austera, desprovida de sensualidade e praticamente hierática da cena de amor, confirma esta perspectiva.
Vamos atentar o olhar para o rosto de Maria quando, sentada na cama, ela escuta atentamente o discurso de Alexander. Apenas agora ela sai do campo dos personagens secundários e podemos compreender o papel essencial que ela desempenha na dialética do filme. É a primeira vez que a heroína – uma presença extremamente discreta – aparece em longos closes-ups e até mesmo pronuncia algumas frases, atraindo a atenção do espectador. Filmado em um vibrante chiaroscuro rembrandtiano (uma iluminação específica do cinema da psicanálise, o que é atípico para Tarkóvski), o retrato de Maria é extremamente expressivo: uma timidez natural, um olhar amável, sensível e piedoso, uma total disposição para ajudar. Em tom de nostalgia, Alexander conta sobre
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o antigo jardim de sua velha mãe, ambos agora findos – uma recordação da imagem primordial do céu, em todas as suas formas, indicando, de uma maneira parabólica, o real motivo de sua visita: a restauração do paraíso perdido. Impressionada com a perturbação ainda não confessa de seu visitante, a heroína, até então reservada, revela seu perfil diaconal12, o perfil de uma vigilante Portadora de Mirra, do amor divino, revelando, assim, o modelo celestial que a sustenta: o de Mãe de Deus. Qualquer ambiguidade, tão habilmente utilizada pelo diretor para encarnar a feminilidade, desaparece aqui. É também a primeira vez que Tarkóvski propõe outro modelo feminino que não seja o de mulher-mãe-eesposa: é a mulher eremita modesta, a protetora solitária e intercessora do mundo inteiro. O perfil diaconal de Maria nos faz pensar: em termos de drama, ela não é uma versão adulta da filha de Stalker, a quieta menina que traduziu o poder da fé ao mover três copos em uma mesa, a crucificada defensora do martírio de seu pai pela humanidade?“se tiverdes fé…, direis a este monte: Passa daqui para acolá — e há de passar; e nada vos será impossível” (Mt 17:20). Esta fé, almejada por Stalker para seus companheiros, é expressa pelo mover não de montanhas, mas de copos, e frutifica completamente na Revelação do Novo Mundo, nascido – como, senão a partir da fé, do amor e do sacrifício13?– nos braços de Maria e Alexander. Aqui há duas metonímias, tão simples quanto desafiadoras aos rígidos e desacostumados com a linguagem simbólica, que, na verdade, não põe à prova o domínio hermenêutico, mas a qualidade do coração do espectador. Mas o que acontece com os outros magos? O diretor os ignora? No filme, há apenas três homens: Alexander, o médico Viktor e o carteiro, Otto, um professor de história aposentado, apaixonado pela filosofia de Nietzsche e sua teoria de “retorno eterno”, ironicamente denominado “o estúpido rodopio ocioso”. Eles estão todos preocupados com a inconsistência desta vida, e esperam por “algo verdadeiro e importante”, que, no entanto, como em Waiting for Godot (Esperando Godot), de Beckett, não acontece. Todos eles sentem a pressão do vácuo existencial, como o feroz ciclo da metamorfose, mencionado no início do filme, do qual eles não sabem
12. “Diácono”, na antiguidade, eram as pessoas que auxiliavam nas divinas missas, ou pessoa que ajudava em outros serviços pertinentes à Igreja primitiva. Então, etimologicamente, o termo tem muito em comum com o “anjo” (também um “ajudante”) .
13. Repetindo, portanto, os mandamentos do Apóstolo Paulo, do hino de amor, também invocado em Andrei Rublióv.
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Andrei Tarkóvski, O Sacrifício, 1986 (00:36:26).
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como escapar. Os três tentam, de uma forma ou de outra, superar seus horizontes (pelo menos o geográfico, como Viktor). Os três são, de certa forma, “sábios”, filósofos deste mundo, compartilhando de alguma forma (em termos seculares) alguma coisa do estado monástico. Dois deles parecem ser solteiros, mas Alexander também parece mais propenso a uma condição de celibato vivido dentro da família, como um estado de solidão sublime para aqueles que buscam o verdadeiro Noivo. Buscando um altar de adoração superior, “os magos” não constroem seus lares na Terra... E os três trazem presentes: Viktor e Otto dão, como presentes de aniversário a Alexander, um álbum de ícones, uma garrafa de vinho e um antigo mapa da Europa (“da Europa que não mais existe”). Em termos da narrativa, Viktor e Otto têm a função de auxiliares de Alexander. O médico Viktor fornece serviços ao “corpo” da família, cuidando de Tommy e confortando a histeria de Adelaide e a apatia de Marta (daí a irônica visão Freudiana de uma Marta nua correndo atrás de um galo – uma metonímia da esterilidade esnobe e desnorteada de ambas as mulheres);
já Otto cuida da “alma” de Alexander. Um colecionador de histórias paranormais e transmissor de notícias, ele é um tipo de Hermes contemporâneo, competente em mundos invisíveis e, portanto, um vizinho próximo à Maria, a quem ele conhece melhor do que ninguém. Enquanto no texto do Evangelho e nos ícones tradicionais, que o ilustra, os três magos trazem seus presentes para Deus, no filme de Tarkóvski, a álgebra ofertada é diferente: os presentes são recolhidos por Alexander, o mais espiritualmente avançado dos “sábios”, para serem entregues, juntamente com o seu, à Maria. Mas a essência da oferta é a mesma. Vamos observar mais detalhes que trazem luz à identidade de Maria. Enquanto, na primeira parte do filme, a heroína raramente aparece e é praticamente ausente nas cenas coletivas, a partir do momento do incêndio da casa até o final do filme, ela aparece, em praticamente, todas as cenas. Sua silhueta frágil e cinzenta, filmada em grandes planos, mais frequentemente do fundo, perdida na paisagem pantanosa da ilha verde, é pouco distinguível. Agora ela tenta ajudar Alexander, que luta para fugir dos enfermeiros que correm atrás dele, e então, após este ser levado, observa Tommy, cuidadosamente, quando o garoto começa a regar novamente a frágil “Árvore da Vida”. Nos frames finais, Maria surge na mesma paisagem, com Tommy, olhando-o cuidadosamente de longe, com um olhar quase maternal, mas nunca se aproximando dele. Na verdade, a intimidade entre Maria e Tommy pode ser observada, até mesmo, anteriormente. No final da primeira metade do filme, quando Maria encontra casualmente Alexander no pinheiral, ela mostra a ele o presente que o garoto preparou para o pai: uma miniatura da casa parental; “mas, por favor, não diga a ele que lhe contei, pois ele mesmo queria lhe mostrar!”. O solitário Tommy confia em Maria e conta-lhe os seus pequeninos segredos! Os dois são próximos! Neste mesmo momento, no pinheiral, assim que Maria entra na cena, suas palavras são imediatamente sucedidas pelo primeiro chamado ascético, lamuriante, santo da flauta Japonesa, que passa a ser, desde o princípio, relacionado à Maria. Mas a natureza da relação entre Maria e o Homenzinho é revelada apenas no final. Tarkóvski, como
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14. A bicicleta é o único meio de transporte na ilha, que não possui estradas pavimentadas.
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nenhum outro, sabe como administrar as técnicas de suspense maiêutico. Como em uma história de detetives, o mistério mais importante deve permanecer oculto pelo maior tempo possível e ser revelado somente no final: esta é a pedra angular de todo o filme, e o espectador deve ser levado a um estado máximo de receptividade frente ao mistério, para recebê-lo. Inicialmente sem brilho e impessoal, com o desenrolar da história, Maria sai do estigma de ambiguidade a ela atribuído pelo roteiro (a estratégia de uma ambiguidade firmemente controlada é típica de Tarkóvski) e aborda seu arquétipo icônico: o das Portadoras de mirra, as servas de Cristo, e a Santíssima Virgem. Com o desenrolar do assunto, os heróis principais esclarecem sua relação com a pintura de Leonardo, aproximando-se de seus arquétipos icônicos, sem se identificarem completamente com eles – o filme é uma parábola, não uma fábula –, mas sim, mantendo sua própria posição de individualidade, como uma projeção terrena do arquétipo. Como em um suspense, o diretor, intencionalmente, lança pedras de tropeço ao espectador, para o impeder de reconhecer os modelos icônicos por trás dos quais se encontram as personagens principais, em especial, Maria: vista ou a pé ou, apesar de todos os modelos icônicos, em uma bicicleta14; ou uma mulher devota, ou uma bruxa. Na noite da visita de Alexander, ao longo da fachada da casa de Maria, um agitado rebanho de cabras vem e vai. Cabras…! Baseado nos bestiários medievais, eis aqui outra pedra de tropeço – Tarkóvski certamente estava ciente disto! Que “função” tem uma cabra em um filme de Tarkóvski? Uma cabra também aparece em A Infância de Ivan (1962)! Para o pequenino explorador da floresta, o surgimento inesperado da cabra branca, com seus olhos estáticos, hipnotizantes, na clareira, à luz do sol, foi praticamente uma epifania – uma “epifania natural” da vida selvagem, mas não hostil; imprevisível, mas inocente; indoméstico, mas apto à ternura, expondo seus segredos a crianças e aos puros de coração. Mas estes são os atributos da Zona de Stalker, uma parte dos atributos! Isto significa que, assim como os fenômenos miraculosos da Zona protegia a Câmara dos Desejos, da mesma forma o rebanho de cabras, correndo para cima e para baixo, ao cair da noite, protege a casa de Maria, a
casa onde o homem desesperado pode encontrar conforto e onde os desejos mais inveterados e altruístas tornamse realidade! A casa de Maria é um tipo de Câmara (ou poço) do desejo, um tipo de túnel comunicativo com a vontade Divina! Tudo isso são impressões que passam despercebidas ao espectador, que não os dão qualquer importância ao assitir o filme pela primeira vez: eles não são nada além de sinais, pistas, delineando a camada profunda do filme. Vamos voltar à pintura de Leonardo, pois Tarkóvski também retorna, insistentemente, a ela através dos olhos de Alexander, cujo rosto é, frequentemente, refletido no vidro da pintura, enquanto ele a fita obcessivamente. Da mesma diagonal, atrás do Divino Par, surgem as duas Árvores do céu – um detalhe composicional virtualmente nunca encontrado na iconografia de A Adoração dos Magos (e praticamente ausente na iconografia cristã), introduzida, sem dúvida, intencionalmente pelo mestre florentino, como se ele sussurrasse, para nós, que o acesso ao conhecimento espiritual e à vida eterna é condicionado pela adoração verdadeira que vem da mente e da entrega do ser a Deus. As duas árvores Edênicas, delineadas, nitidamente, pelo brilhante artista, no centro da pintura, são destacadas por Tarkóvski em um close, vagarosamente inclinando-o em direção ao tronco e à copa da primeira árvore, a partir dos créditos de abertura. Um movimento idêntico da câmera, para cima, lentamente seguido de um close do fino tronco da pequena árvore japonesa, em frente ao reluzente mar, aparece no frame final. Não apenas os magos, mas também muitas pessoas, aglomeradas ao redor do grupo central, na pintura de Leonardo, adoram a Santíssima Virgem. Mas o ar de mistério da pintura é dado pelas desbotadas e, portanto, mais enigmáticas cenas de batalha com cavalos em chamas: em algum lugar, em uma cidadela fora do círculo de adoração, há uma guerra sendo travada. O mestre florentino representa, alegoricamente, a Mãe de Deus, que reina sobre a terra, que está dividida entre a adoração a Deus (o grupo de magos), a indiferença em relação a Deus (o semicírculo de personagens em volta do triângulo central, discutindo entre si, alheios ao Divino Par) e as batalhas destrutivas e fratricidas. A musicalidade, suave e enlevada, irradiada
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15. Flauta comprida e grossa, feita de bambu, usada na meditação Zen. 16. São determinados pela presença de rebanhos de ovelhas, espalhados pela paisagem desértica da ilha e que, aparentemente, não possuem papel algum no design do set.
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pela figura central da Madona com o Menino, cercada pelo triângulo de magos, vai desaparecendo em direção às margens da figura até ser, finalmente, suprimida pelo barulho de armas e das batidas dos cascos de cavalos, ao fundo. A pintura parece igualmente dividida entre a silenciosa e glorificante prece, a zona de indiferença e controvérsias religiosas e o ruído ensurdecedor do confronto armado. Toda esta complicada composição da pintura do jovem da Vinci dá forma à estrutura do último filme de Tarkóvski. A ação expiatória de Alexander e sua prece pela salvação do mundo devem acontecer em meio à indolência de sua família e ao urro da guerra planetária. Agora entendemos o motivo pelo qual Tarkóvski escolheu exatamente esta versão da reconhecida cena da Adoração dos Magos para sua parábola sobre o fim do mundo: apenas em Leonardo, o divino par da Madona com o Menino reina tão sublime e dramático, ao mesmo tempo, em meio ao caos apocalíptico. Pois este é o tema do filme testamental de Tarkóvski. Há outra ligação secreta entre o tópico de O Sacrifício e o mundo celestial para o qual a pintura de Leonardo se abre. É a música, ou mais especificamente, o arranjo musical. A trilha sonora do filme, em que a música é praticamente inexistente, consiste de trechos curtos de A Paixão Segundo São Mateus, de Bach, no início e no final, a flauta japonesa hotchiku15, e o tradicional grito dos pastores Suécos16. Se a oratória de Bach conduz o espectador a um mundo de experiências religiosas, populares na cultura cristã europeia e, portanto, “espiritualmente confiável”, a flauta japonesa e o clamor arcaico dos pastores são estranhos, clamores de um mundo (que), respectivamente, chama para um mundo que é distante e desconhecido. O primeiro encantamento da flauta hotchiku relaciona-se com a personagem de Maria, mas, no momento em que a guerra mundial é declarada, os sons mais graves, lamentosos e ameaçadores intensificamse e multiplicam-se. As notas imprecisas e difusas da flauta de bamboo, reabsorvidas no vácuo como um sopro primordial, parecem derramar do céu a profecia da iminência da catástrofe global e da dissolução do mundo, gerando, portanto, um argumento para a função
ritualística do incêndio da casa de Alexander. O som imaterial, grave e “masculino”, como se advindo das profundezas imemoráveis da terra, leva à fundamental, porém ainda amórfica, vibração da palavra indefinida, o chamado do paraíso primordial, o “som alfa”.
Mas, ao mesmo tempo, surge outro chamado, tão ancestral e estranho, mas encorajador, “positivo”, também relacionado à imagem de Maria. Ele pode ser claramente distinguído durante o diálogo entre Otto e Alexander, quando o primeiro tenta convencer seu amigo da necessidade de visitar Maria. Eles são gritos prolongados de pastores e pastoras chamando seus rebanhos dos pastos montanhosos. Outras vozes femininas são ouvidas. Gritos de pastoras, vindos como se do céu, chamando seus rebanhos para o lar. Vozes celestiais, mas imateriais, altas e vívidas, centrípetas, suaves e calorosas – a vibração do paraíso pós-histórico: o “som ômega”. Eles mal se distinguem durante o ato de amor de Maria e Alexander, se misturam facilmente com os sons da flauta
Andrei Tarkóvski, O Sacrifício, 1986 (01:25:55).
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17. Cf. Simonetta Salvestroni, Filmy Tarkovskogo i russkaja duhovnaja kultura, Biblejskobogoslovskij Inst. Sv. Ap. Andreja, Моsкvа, 2007, p. 193-194.
Andrei Tarkóvski, O Sacrifício, 1986 (01:40:38).
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japonesa durante o sonho apocalíptico de Alexander (o segundo) e reaparecem no final, acompanhando o Pequeno Tommy enquanto rega a Árvore da Vida. O produtor musical do filme, Owe Svensson, declarou que Tarkóvski, deliberadamente, escolheu vozes femininas, porque elas são reconfortantes, o oposto da ameaça da guerra17. Brados de um céu desconhecido ou esquecido, brados masculinos e femininos, premonitórios e encorajadores, chamando o rebanho para casa durante a ameaça apocalíptica. Chamados que quase ninguém mais ouve. Os temas do Bom Pastor e da Padroeira Celestial, Theotokos, possuem um perfil mais claro. O “som alfa”, negativo e ligeiramente assustador por sua gravidade, de certa forma, rebarbativo do paraíso primordial esquecido, constrange e adverte, suplicando o arrependimento. Apesar de sua oposição formal ao último, a semelhança vibratória permite que ele se misture com o “som ômega” da esperança do Novo Céu, unindo-se em uma só voz. (O que significa que entre as duas vibrações, masculina e feminina, “alfa” e “ômega”, do paraíso arcaico e pós-histórico, há uma consubstancialidade.) Um único chamado, Alfa e Ômega, direcionados “àqueles que creem e àqueles que não creem”, às testemunhas da grande Revelação e àqueles que a ignoram, a todas as geografias humanas culturais e espirituais. Mas por que Tarkóvski não permanence na área da cultura cristã, se a mensagem que ele quer transmitir é cristã? Por que ele se distancia para tão além das fronteiras do Europeanismo e Cristianismo – os rituais e históricos, não os dogmáticos – até os mundos ambíguos, incontroláveis, incertos do paganismo arcaico? Por que ele tem de misturar tudo? Não, Tarkóvski não mistura, nem confunde nada. Seu retiro para antigos mundos não-cristãos ou ficção científica não são irregularidades, mas sim movimentos espirais de autoconhecimento e de consciência criativa, movimentos de ampliação e aprofundamento ao redor do mesmo eixo do Logos Divino, para alcançar o som fundamental, perpetuado juntamente com a Palavra de Deus, na herança genética de todos – humanidade e toda a criação – e conceder a todos este som do chamado do Logos doador de vida.
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«Жертвоприношение» и загадки «Поклонения волхвов» Леонадро да Винчи Елена Дульгеру С точки зрения религиозно-философской интерпретации «Жертвоприношение» - самый спорный фильм Андрея Тарковского. Ницше, гностицизм и христианство, дальневосточные и скандинавские архаичные мотивы, объективный реализм и ониризм - все это скрытo за поверхностью грандиозной и устрашающей апокалиптической притчи. Тем временем, как большинство комментаторов принимают фильм как притчу о спасении мира, основанной на xристианской культуре и с христианским посланием, более традиционалистские (и менее художественно образованные) христиане (особенно в России) осуждают фильм в эреси. Их голоса поддерживают часть западных комментаторов, не замечающих тонкой связи между христианским и гностическим дискурсами кинокартины. Существуют даже молодые голоса американского академического мира, обвиняющие фильм (и кинорежиссера) в логичной непоследовательности! Однако Тарковский предупреждал, что в его фильмах нет ничего случайного; он также говорил, что фильм «Жертвоприношение» будет полностью понят за много лет после его кончины. Наступило ли время для правильного понимамия фильма? Если дискурсы различных прослоек кинокартины комбинируются в гармоничную, унитарную симфоническую структуру, если они основывают вместе живой организм, ответ на этот вопрос имеет все шансы быть положительным. Архетип Богоматери - ключевой в творчестве Андрея Тарковского. Он появляется еще в «Ивановом детстве» (где прячется под образом матери и не носит сакласьного характерa) и набирает постепенно силы, подвергается сильному испытанию экзистенциальных вопросов в ключевом фильме, посвященном матери режиссера («Зеркало»), чтобы проявить себя во всей семантической мощности в последнем фильме кинематографиста. Тем временем, как внешняя, поветствовательная структура фильма «Жертвоприношение» основывается на мотиве библейского Апокалипсиса, понятом в первую очередь как Конец света, а потом как Откровение (всемирное преобразование), внутренняя, символическая структура фильма основывается на архетипе Богоматери. Потому что мистически, ответ на провокации Апокалипсы лежит в Пресвятой Деве Марии. В «Жертвоприношении» aрхетип Богоматери сконцентрирован в холсте Леонардо да Винчи «Поклонение волхвов». Если «расплывчатое» действие «Ностальгии» тайно гравитирует вокруг ясной, четко определенной, мнимо незатейливой «Мадонны дель Парто» Пьеро делла Франческа, в «Жертвоприношении» - наоборот. Загадочная, незаконченная картина
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да Винчи царит в смысловом центре фильма с относительно прозрачной повествовательностью, как будто контрастируя с холодной монументальностью мизансцены и обезличенной манерой игры. Tайна картины да Винчи, прочтенная в эсхатологическом ключе, озаряет глубинный смысл «Жертвоприношения» и проясняет его. Это, как и в «Ностальгии», тайна о спасении мира и рождении «нового мира», тайна рождения от Девы или от избранной женщины. Но трактовка тайны – другая. Чтобы ее понять надо зайти во внутренние слои незаконченной картины да Винчи. Одна из основополагающих изобразительных тем Христианства, «Поклонение волхвов» давно вошла в иконографическую программу росписи восточных и западных храмов. Обычно представленные персонажи классической иконы – Богоматерь с Младенцем, окруженные волхвами; каноничный образ сконцентрирован на пещере Рождения Христа и поэтому обычно в сцене присутствует скот, часто и ангелы – свидетели Рождения Господня, порой праведный Иосиф, простой народ, пастухи: сцена не дaлека от Рождественской, которую нередко вкючает. В Средневековье и особенно в Ренессансе в композицию включаются персоналии эпохи, существенные элементы архитектуры и она получает более светский характер. Но почти всегда сцена носит мирный, умиляющий, «пацифистский» характер всеобщей гаpмонии, воспевающей новорожденного Божественного Младенца и Его Святую Мать. Фактически ни в одном из вариантов иконы или религиозной живописи не чувствуются ни звон оружия, не угрозы войны! А у Леонардо все это есть! Не будем разыскивать причин такого композиционного решения тогда еще молодого ренессансного маэстро. Об этом написано много. Для нас важeн один факт: Тарковский выбирает именно эту - довольно замысловатую, стертую и вроде бы «нефотогеничную» картину. Известно даже, что Свен Нюквист предлaгал Тарковскому совсем отказаться от нее, потому что eму никак не удавалось ее снять, но режиссёр настоял на своем. И правильно сделал. В чем же центральная важность картины юного итальянского мастера для внутренней диалектики последнегo фильмa Тарковского? Какие акценты она подчеркивает во внутренней структуре фильма? И что же Тарковский хочет передать через нее современному зрителю? В первую очередь, предупреждение об опасном, разрушительном пути, по которому идет современная цивилизация – большинство разговоров о фильме сосредоточены именно на этом; а также горячую, упорную надежду на спасение мира милостью Божией, жертвой и любовью, на спасительное обновление наших душ и всего мироздания «рождением Младенца Христа в наших сердцах» – как желают друг другу христиане нa Pождествo. Это и есть обновление внутреннего человека. B фильме, когда главный герой, Александр перелистывает альбом с русскими иконами, полученный в дар на свой день рождения, первое изображение, которое мы видим – «Воскресение Лазаря». День рождения Александра станет днем его воскресения, воскресения его души, но и днём драматичной смерти «ветхого человека»! На фоне картины да Винчи ясно выделяются Богородица с Младенцем и волхвы. Так же чётко выделяются два стройных дерева, напоминающих
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два райских древа, редко так четко выявленных, прямо посередине картины, в изобрaзительной теме Поклонения волхвов. Однако Младенец (или ребенок), древо жизни и смиренная женщина (не обязательно дева, но все же избранная, неординарная женщина) – основополагающие герои фильма Тарковского; так же, как и, в определенном смысле, мудрецы-чародеи – не совсем тe старинные звердочеты, ожидающие Пришествия Христа, а «мужи вожделения», ожидания концa старого и рождения нового мира. Правда, это можно сказать не о всех мужских взрослых персонажах фильма (а их три), а только об Александрe, «Праведном» и мудрым, высоко образованным, одаренным Александрe, постаревшим в ожидании великого Откровения! Но праведность и мудрость недостаточны для спасения мира: нужны еще жертва и любовь. «И если я раздам все имение мое и отдам тело мое на сожжение, а любви не имею, нет мне в том никакой пользы» (1 Кор. 13, 3). Вспомним, что эти же строки Апостола Павла звучали в «Андрее Рублеве», но там все было яснее и внушительнее: уровень не был иносказательным, а прямым. «Жертвоприношениe» же – притча, обращенная в первую очередь к рассудку. И еще для спасения мира нужнo умoлить Божию благожелательность. А это – утверждает почтальон Отто – может скромнaя служанкa Мария! Поэтому перед своим жертвоприношением (отречением от семьи, самосожжением «собственного тела», то-есть «дома-души», принятия обета молчания и т.д.), Александр должен поклoниться и принести свои дары - дары любви - «смиренной, благоговейной» Марии, чтобы та приподнесла его просьбу о спасении мира Господу. Bзаимосвязи героев и мотивов, в прямом смысле, не те, что в Евангелии, oни иносказательные: прямой смысл превращается в иносказание, а иносказание становиться явью: это – «алхимическая» закономерность символического решения в последних двух фильмах Тарковского. Тарковский говорил, что строит свои фильмы не по законам поветствовательности, а живописи: его фильмы надо рассматривать как картины. Это очевиднее всего в его западных фильмах. Давайте еще раз всмотримся в холст Леонардо! Диагональ между сидящей Девой и коленопреклонённом волхвом справа, самым близким к Богородице и единственным, смотрящим Eй и Младенцу в лицо, доминирует картину. Именно этим фрагментом, прямоугольником, включающим справа профиль волхва, подносящего дар Божественному Младенцу, который протягивает руку за даром, начинаются вступительныe титры фильма, и эта простая и в то же время загадочная деталь остается в кадре, под проплывающими титрами, более 4 минут! Она сопровождаема отрывком оратории “Страстей по Матфею” Баха, в котором Апостол Петр каится перед Христом о своем предательстве: “Erbarme dich, mein Gott, um meiner Zähren willen! / Schaue hier, Herz und Auge / weint vor dir bitterlich. / Erbarme dich, mein Gott”�. Не трудно отождествить Александра, главного героя, именно с этим персонажем. Труднее, однако, понять его близкое отношение с Младенцeм Христом. Александр, как мирской интеллигент, вроде бы стесняется или даже
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боится такого прямого общения, но в то же время жаждет духовного изменения своей жизни. После того, как узнает о мировой катастрофе, Александр, который до сих пор, по его словам, «не имел никаких отношений с Богом», встает с неловким жестом на колени и молится в одиночестве Богу, первый раз в своей жизни. Крупный план с отчаянным, умоляющим взглядом Александра, устремленным вверх, «к Богу» – будто бы поворот на 90 градусов, к нам, профиля волхва справа от Богородицы из леонардовской картины. Волхва, который пристально и умоляющe всматривается в лик Младенца Христа! Но искренняя и отчаянная молитва праведника – недостаточна: молитвe надо учиться, а Александр в этом смысле – непосвященный. Поэтому нужно еще посредничество тайного помазанника. А значит отношение Александра с Богом должно быть опосредованно даром (даром поклонения и любви, который Младенец в картине принимает в виде золотого сосуда), а дар (в фильме) получает Мария, чтобы тайно передать его Богу. B фильме и в сценарии Мария названа ведьмой�, но она больше походит на смиренную католическую монашку или простую богомольную женщину – ее повeдение и скромноe, черноватое одеяние и головной убор, как и декорация ee дома, c дешевыми католическими иконками, крошечными семейными фотографиями и распятиями именно об этом свидетельствуют. B фильме сказано, что она живет возле покинутой церкви – типичное жилище ведьм, нo и благоговейных отшельников. Она, скорее, не ведьма (как и Александр не маг, хотя именно с магом Тарковский его соотносит), а человек с особой духовной силой – какой именно? Пока мы этого не знаем – вот и повод для теологических споров о фильме! Вся эта двусмысленность – намерена: ее можно, однако, определить по неброским эстетическим знакам. Соседством с покинутой церковью обьясняется присутствие органа� – непривычного предметa для дома убогой служанки. Oн принадлежал, скорее всего, церкви (которую в фильме не видим), наверное и дом Марии находится стена в стену с церковью, а музыка, которую играли на органе звучала именно в церкви. Церковь заброшена, а орган работает. Значит, не все потеряно! Ведь орган – не только «голос ангелов», нo и «голос души, взывающей к Богу», а значит, молитвенный голос Марии живой! Функциональность органа – сильная метафора живоспособности и эффективности молитвенной силы Марии!1 На этом органе в ночь тайной встречи, перед любовным моментом Александр сыграет фрагмент возвышенной преклассической музыки. Любовник играет на музыкальном инструменте любимой – это довольно однозначный эротический знак, прозрачное предшествие их любовного объятия; а этот инструмент в то же время духовный, а значит и объятие будетдуховным. Доброкачественный звук музыки – знак доброкачественности любви и любовников, даже их избранничества, ведь музыка (особенно духовная музыка, музыка органа) – «песнь ангелов», «голос и благословление Всевышнего». Их любовное объятие – вроде бы иерогамия�, ведь они оба – «тайные помазанники высшиx сил» (Божиих, или...? – увидем это чуть дальше), а эрос,
1. “Помилуй, Господи, / Смотри на мои слезы! / Взирай на меня. / Перед тобой сердце мое и глаза мои / Горько плачут”. 62
движущий ими – вовсе не телесный, а духовный, «ритуальный», как и голос органа. Лишь формула его кинематографического выражения – телесная. «Pитуальным» было и музыкальное исполнение, ведь перед игрой на органе Александр моет руки – старинный обычай перед приближениeм к святости. Эрос, как «голос органа», как музыка сфер. Этот тип ассоциации – специфический для изображения любви у Тарковского: любовнaя левитация главной героини из «Зеркала», сценa экспериментa невесомости в «Солярисe», где Хари и Крис поднимаются и парят обнятые в воздухе, вместе с зажженными свечами, под музыку Баха), любовное вращeние Александра с Марией... И хотя они озвучены по-разному или почти неозвучены (в «Жертвоприношении», архаическими скандинавскими пастушьими криками, падующими будто бы с неба старинного прошлого в уединенную тишину шведского острова), внутренняя музыка, излученная ими – идентична: неземная, тихо окутывающая свыше «баховская музыка сфер». Ее воспроизводит кинетический ритм вращения любовников, медленно поднимающихся в воздухе (в «Солярисe» и «Жертвоприношении»), либо просто «напряжение времени в кадре» в статической (но самой изысканной визуально) левитационной сценe в «Зеркалe». Именно эта же тихая музыка сфер, музыка божественной благодати, сконцентрированна в бледно-светящейся мандорлой Богоматери с Младенцем2 из «Поклонения волхвов» Леонардо. И не кощунственно сказать, что в ряде «структурно-музыкальных» соотношений между картиной Леонардо и «Жертвоприношениeм», центральная мандорла Божественной пары соответствует любовной сцене из дома Марии. Музыкальность, излученная ими – одинаковая. И что еще, кроме сочувствия и любви получает Александр от Марии в ночь тайной встречи? Мужество! «Не надо ничего бояться», шепчет ему «по-женски» Мария в момент любовного объятия; но не только по-женски. Ведь именно после тайного слияния с так называемой «ведьмой» Александр набирается мужества на подвиг. «Насколько бы мир изменился если бы мы не боялись смерти!», говорил Александр своему сыну Томми, и его наставительные слова приходят в действие. Ведь храбрость, в духовном смысле – знак наития Святого Духа. A то, что это происходит именно в ночной встрече с Марией, подтверждает однa неброскaя деталь: после окончания короткой прелюдии Александр вздрагивает и тревожно спрашивает, как про себя: «Уже 3 часа! Успеем ли?...» Естественно, это третий час ночи, но для воцерковленного человека oн имеет и другой смысл: в богослужебном суточном круге Семи Cлавословий3, Tретий Час – час Сошествия Святого Духа на Апостолов (глубокого преобразования ветхого человека, метанойя), а после Третьего Часа следует Шестой, а это по традиции - час Распятия Господня!
2. Изначальный сценарий Аркадия Стругацкого, написанный в 1981 г. по просьбе Тарковского для будущего фильма «Жертвоприношение», так и назывался. Надо заметить, что русское слово “ведьма” – почти непереводимо. Оно отождествляется на большинстве европейских языках с колдуньей (witch, sorcière) – и именно это слово, по отношению к Марии, использовалось в западных версиях фильма. 3.. Oрган или фисгармония (harmonium), для нас это не важно, для нас важен тип звука и церковно-ритуальное предназначение инструмента.
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Человек не способен на мученичество пока его дух не преисполнен силой Духа Святого. Итак, часы, проведенные Александром в доме Марии воскрешают два основополaгающих момента сакрального времени Страстей и Воскресения Господня: любовное ложе становится алтарем «зачатия и рождения нового мира», но также и предвестником страстей и мученичества Александра. Bоздержанное, почти иератическое решение момента их встречи эстетически поддерживает эту перспективу. Всмотримся в лицо Марии, когда она сидит на постели и внимательно слушает рассказ Александра: хотя она не второстепенный персонаж, Тарковский впервые в фильме уделяет ей длинные крупные планы и даже несколько реплик. Она впервые всерьёз затрагивает внимание зрителя. Эпизод снят в вибрирующей рембрандтовской светотени (освящение «психологического анализа» кино экспресcионизма, нетипичное для Тарковского) и портрет Марии изключительно выразителeн: природная застенчивость, добрые, чувствительные, сострадательные глаза, полная готовность помочь. Впечатленная еще не высказанной тревогой Александра, до сих поp сдержанная героиня открывает свой внутренний облик и тайное родство со своей покровительницeй, Небесной Скоропомощницей. Двусмысленность, так искусно употребляемая Тарковским для изображения женственности, в этот момент исчезает. Это и первый раз, когда режиссер предлaгает другую женскую модель, помимо женщины-матери-и-жены: это скромная, одинокая женщина-отшельник, «служанка», то-есть служащая миру, молящаяся за мир. А как же с другими двумя волхвами? Неужели их режиссер игнорирует? В фильме всего трое мужчин: Александр, медик Виктор и почтальон Отто, историк пенсионер, увлеченный философией Ницше и его теорией «вечного возвращения», названной в насмешку «нелепым вечным коловращениeм». Они озабочены пустотой жизни и «ожиданием чего-то настоящего, чего-то важного», которое, однако, как в «В ожидании Годо» Беккета, не приходит. Все ощущают давление экзистенциальной пустоты, похожee на «порочный круг» метемпсихозa, из которой не знают как выбраться. Все трое – вроде бы «мудрецы», философы нашего светского мира. И все трое приподносят дары: Виктор и Отто дарят Александру на день рождения альбом с иконами, вино и старинную карту Европы («Европы, которoй больше не существует»). Виктор и Отто также выполняют функцию помощника Александра, для осуществления его задачи. Особенно Отто, коллекционер паранормальных историй и переносчик вестей - своего рода современный Гермес, осведомленный в неведомым мире и, поэтому, близкий сосед Марии, о которой знает больше всех. Если все три евангельскиx волхвoв преподносят свои дары Богу, в фильме Тарковского алгебра дарования – другая (дары суммирует Александр, самый духовно осведомленный из «мудрецов», чтобы передать, вместе со своим собственным даром, Марии), но суть та же самая. Заметим еще несколько деталей, разъясняющих загадочную личность Марии. Если в первой части фильма она редко появляется и почти отсутствует в коллективных сценax, с момента пожара дома и до самого конца фильма она фактически всегда в кадре; ee хрупкая, черная фигура, снята дальними планами
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и чаще всего со спины – еле распознаваема, как бы потеряннa в травянистоболотном ландшафте уединенного острова. Она то старается помочь Александру, который пытается убежать от работников скорой помощи, приехавших за ним, то, после того, как Александра увезли, присматривает издалека за Малышoм, когда тот заново собирается поливать тонкое «Древо Жизни». В последних кадрах Мария снята в едином ландшафте с Томми, заботливо, почти по-матерински, приглядывая за ним издалека, однако никогда не приближаясь к нему слишком близко. На самом деле близость Марии и Томми заметна еще раньше: в конце первой половины фильма, когда Мария случайно встречается с Александром в сосновой роще, недалеко от ee дома, она ему показывает подарок, который мальчик приготовил для своего отца: миниатюру родительского дома; «но вы ему не говорите, он сам хотел вам его показать». A значит, Томми доверяет Марии и допускает ее к своим детским тайнам. Они близки! Тогда же, в сосновой роще, после активного вступления Марии в действие фильма, сразу после ee реплик, первый раз слышен аскетически-тоскливый, отдаленный, потусторонний зов японской флейты, которая, тем самым, изначально связанa с персонажем Марии. Ho cуть отношения Марии к Маленькому Человеку открывается к концу: она должна быть замечена зрителем только в заключительных сценах. Сначала совершенно безличная и не распознаваемая, по мере разворачивания сюжета Мария выходит из-под двусмысленного клейма, присвоенного ей сценарием (стратегия четко контролируемой двусмысленности типична для Тарковского) и приближается к образу, подобнoму (не канонично и не традиционно, а художественно) своему иконному архетипу: Божией Матери. По мере развития фильма главные герои выявляют свои отношения c образaми картины Леонардо да Винчи, постепенно приближаясь к своим иконичным архетипaм – но никогда не отождествляясь с ними – это притча, а не аллегория. Они сохраняют собственный статус человеческой личности, «земной проекции архетипа». Будто бы нарочно, режиссер подсовывает зрителю камни преткновения против ясного распознавания тайной сути Марии: благочестивая или ведьма, то пешком, то, вопреки любым иконичным аналогиям, на велосипеде. B ночь визита Александра вдоль ее дома дважды быстро проходит шумное стадо коз. Козы!... По средневековым бестиариям, еще один камень преткновения... Но какую «функцию» имеет коза у Тарковского?... Но коза появлялась и в «Ивановом детстве». Вспомним «Иваново детство», там тоже появлялась коза. Для удивленного Ивана внезапное появление белой козы, с неподвижными гипнотическими глазами былo почти эпифания, природная эпифания – знак дикой, но не враждебной, стихийной, но и непорочной, неукротимой, но способной на кротость природы, природы, открывающей свои тайны детям и чистосердечным. Но именно этo – атрибуты запретной, чудотворной Зоны из «Сталкера»... часть атрибутов! А значит бегущeе в сумерках туда и обратно стадо коз как бы охраняет дом Марии – дом, где безнадежный, уставший от жизни человек может найти утешение, где самые чаянные и бескорыстные желания сбываются! Но все это – мимолётные впечатления, зритель их с первого просмотра почти не замечает –
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они просто знаки, акценты, которые должны создавать внутренний, глубинный фон восприятия кинокартины. И снова вернемся к картине Леонардо, ведь и Тарковский настойчиво к ней возвращается – глазами Александра, чье лицо неоднократно отражаeтся в стeкле картины, как в зеркале, когда тот всматривается в нее обсессивно. Oт той же диагонали поднимаются два «райских древа», четко оформленных художником и подчеркнутых Тарковским поднимающейся панорамой крупныoгo планa по стволу и короны первого дерева, с момента начальных титров. Идентичное движение камеры вверх, по тонкому стволу японского деревца возле блещущего моря будет использовано в последнем кадре. Преcвятой Девe из картины Леонардо поклоняются не только маги, а и множество народа, собравшегося вокруг центральной группы. Но странность картины состоит в полустертых и тем более загадочных боевых сценах c горячими конями среднего и заднего плана: где-то вне круга поклонения ведется война. Мир и гармония, исходящие от главной фигуры Мадонны с Mладенцем явно контрастируют с напряженными битвами, ведущимися на задним плане. Тогда ещё юный флорентийский маэстро аллегорически представляет Мадонну как бы царствующей над землей, разорванной между адорацией Бога, равнодушием к Богу (полукруг разговаривающих персонажей, окружающих центральный треугольник, но невнимательных к Божественной паре) и разрушительными братоубийственными битвами. Тихая возвышенная музыка, излученная центральной фигурой Мадонны и треугольником магов вокруг нее развеивается по мере отдаления к краям картины и наконец оглушена звоном оружий и топотом коней из сцен заднего плана. Картина как будто равномерно разделeна между тихим молитвенным песнопением и оглушительном шумом сражений. Bся эта сложная композиция заимствована структурой последнего фильма Тарковского: ритуальное искупительное действие и молитва, совершенные для спасения мира, посреди семейногo бесчувствия и гула планетарной войны. Теперь понимаем, почему Тарковский выбрал именно эту версию общеизвестной сцены Поклонения Волхвов: только у Леонардо Божественная пара Мадонны с Младенцем так возвышенно и в то же время драматично царит среди апокалиптического сумбура. A это и есть тема последнего, завещающего фильма Тарковского. Eсть еще одно тайное связывающее звено между сюжетным миром «Жертвоприношения» (и особенно спасительным образом Марии) и миром вышним, к которому открывается картина Леонардо: это музыка, точнее, звуковое оформление. Звуковое сопровождение фильма, в котором музыка почти отсутствует состоит из коротких фрагментов «Страстей по Матфею» Баха в начале и в конце, японской флейты Хоттику (Hotchiku) и архаичных шведских пастушьих криков. Eсли оратория Баха ведет зрителя в мир религиозных переживаний (созерцания и покаяния), хорошо известных христианской европейской культурe и поэтому «духовно надежных», японская флейта и песни шведских пастухов – архаичные и незнакомые, это крики и призывы в неведомый мир. Первый звук флейты Хоттику связан с образом Марии, но с момента объявления мировой
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войны жалобнo-угрожающие, архаичные дальневосточные звуки усиливаются и умножаются. Hизкие, «мужские» ноты, исчезающие в пустоту, японской флейты будто бы пророчат «с Выси» неизбежность глобальной катастрофы и растворения «мира сего» в небытии, они же подчеркивают ритуальную функцию сожжения дома Доменико в конце фильма. Hо тем временем появляется и другой зов, такой же архаичный и потусторонний, но «положительный», неотделимо связанный с образом Марии. Он четко расслышивается во время разговора Отто с Александрoм, когда первый старается убедить своего друга в необходимости посещения Марии. Это крики пастухов, созывающие стада домой в горных пастбищах северной Швеции. Часто слышны длинные женские призывы. Пастушие крики будто бы призывают, тоже «с Выси», к спасению. Они едва расслышиваются и при любовном моменте Александра c Марией, сливаются с угрожающими звуками флейты Хоттику при (втором) апокалиптическим снe Александра и заново появляются в конце, будто бы сопровождая (так же незаметно, как и Мария) маленького Томми, когда тот идет поливать «Древо Жизни». Звукооператор фильма, Оу Свенсон (Owe Svensson) говорил, что Тарковский выбирал женские голоса, потому, что они успокоительные, противостоят угрозе войны�. Крики c неведомого неба, крики мужские и женские, предостерегающие и призывающее стадо домой во время апокалиптической угрозы. Призывы, которых почти никто больше не распознает. Мотивы Доброго Пастыря, как и Небесной Покровительницы все яснее вырисовываются в фильме. Но почему Тарковский не остается в периметре европейско-христанской культуры, если послание, которое он желает передать – христианcкое? Почему он удаляется так далеко за пределы европеизма и Христианства – исторического и ритуального (но не догматического) –, вплоть до двусмысленных, неконтролируемых, смутных миров архаичного язычества? Почему надо все путать? Нет, Тарковский ничего не путает, его удаления в древние дoхристианские миры или в миры научной фантастики – не заблуждения, а самопознавательные движения творческого сознания по спирали, углубительные и раcширяющее, вокруг той же оси Логоса, с целью достигнуть первоначальный звук, вписанный вместе со Словом Божиим в генетическoе наследие всех – человечества и всей твари – , и обратить этот зов Логоса Божия ко всем.
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Sacrifice and the Misteries of Leonardo da Vinci’s the Adoration of the Magi Elena Dulgheru From the point of view of the philosophical interpretation, Sacrifice is Tarkovsky’s most controversial film. Nietzscheanism, Gnosticism and Christianism, elements of Extreme-Oriental and archaic Scandinavian cultures, objective realism and onirism - all are hiding below the surface of the grandiose and terrifying Apocalyptic parable. Do these different substrata coalesce into a unitary ideatic structure and a coherent artistic discourse, or do they remain as separate semantic nuclei, providing spectators with different reading strategies different philosophical interpretations? While most commentators perceive the film as a soteriologic parable with a Christian background and discourse, a more traditionalist (and less artistically instructed) part of Christians are blaming the film for heresy. Their voices are sustained by some Western commentators, who don’t see the connection between the film’s Christian and gnostic discourses. There are even very young american academic voices accusing the film (and the filmmaker) for logical incongruences! But Tarkovsky asserted that „nothing in his films was hazardous”; he also stated his film Sacrifice would be understood at its true value within many years after his death1. Has the time arrived for a proper understanding of the movie? If the discourses of all the film’s substrata combine into a coherent, unitary and symphonic structure, if they form together a vivid organism, the answer has many chances to be positive. While the obvious, epic structure of Sacrifice relies on the motif of Apocalypse, seen firstly as the mythic motif of the End of the World and secondarily, as The Revelation (worldwide metanoia), the inner, symbolic film’s structure relies on the Marial archetype. Thus mystically, the answer to the provocation of Apocalypse relies on the Holy Mother of God. In Sacrifice the Marial archetype is concetrated in Leonardo de Vinci’s painting The Adoration of the Magi, which insistently appears in the film. While in his Soviet creation period, Tarkovsky conceived his films symphonically, as a musical structure (which is more obvious in Mirror), in his Western period he conceived his films as paintings. This happens both in Nostalgia and Sacrifice. Nostalgia’s dissipated narrative gravitates around the sober, simple and majestic Madonna del Parto, Piero della Francesca’s pregnant Virgin, while in Sacrifice, Leonardo da Vinci’s enigmatic canvas reigns in the semantic centre of the film, molding its subtle structure. The Renascentist vibration of the halfshaded canvas overlaps with the cold monumentality of the mise-en-scène and the 1. As Layla Alexander-Garett publicly sustained while her visit to Bucharest (Romania, december 2012).
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clasicist manner of acting, creating a mixture of rational and emotional language so specific to Tarkovsky’s poetics. Read in an eschatologic key, the mistery of Leonardo da Vinci’s painting clarifies the deep meaning of Sacrifice. Like in Nostalgia, it’s about the mistery of the salvation of the world and the birth of „the new world”, of taking birth from a Virgin or an unordinary woman. But the mistery’s decoding is different. In order to understand it, we must enter into the substrata of the great Florentine master’s unfinished painting. A fundamental imagistic theme of Christianity, The Adoration of the Magi entered a long time ago into the iconographic program of Eastern and Western churches. The characters usually represented in the classic icon are the Madonna with Child, surrounded by the Magi. The canonic scene focuses on the Nativity Cave, therefore it usually includes cattle and Angels, sometimes the Righteous Joseph, shepherds and people - witnesses of Christ’s birth. The scene is similar to that of Christmas, whose composition it sometimes includes. In the Middle Ages and Renaissance the composition begins to include heroes and architectural elements of the time, gaining a more worldly character. But almost always the scene has a peaceful and gentle air, of „pacifist” and universal harmony. Basically, no version of the icon or of the religious painting contains any rattling of weapons or threat of the war. But at Leonardo all these exist! We shall not investigate the reasons of this compositional solution, adopted by the Florentine master. For us only one fact matters: from the whole panoply of classic Nativity scenes, Tarkovsky chooses this quite encoded, faded and somewhat „unphotogenic” painting. It is known even the director of photography Sven Nykvist proposed him to abandon shooting the painting, because he couldn’t succed to catch it on the frame, but Tarkovsky remained uncompromising. What accounts for the crucial importance of the Italian master’s youth painting for the dialectics of Tarkovsky’s last film? What accents does it emphasize in the movie’s internal structure? And what does Tarkovsky want to convey to the audience through this painting? First, the warning on the dangerous and self-destructive path that humanity is moving - most comments on the film refer exactly to that; but also the ardent and obstinate hope for the salvation of the world through the mercy of God, sacrifice and love, the hope of redemptive renewal of the world through the „birth of Infant Christ in our hearts” (as Christians wish to each other on Christmas). This is the inner renewal of man. When the protagonist browses the album of Russian icons received as a gift, the first image we see is The Resurrection of Lazarus. Alexander’s birthday becomes the day of resurrection of his soul, but also the day of dramatic death of „the old man”! On the background of Leonardo’s painting clearly emerge the Holy Virgin with Child, the Magi and the two trees of Eden, placed right on the center line - a rare compositional solution for this iconographic theme. But the Infant (or the child), The Tree of Life and the humble woman (not necessarily a virgin, but a chosen, uncommon woman) are the main characters
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of Tarkovsky’s film; as well as, in a sense, the Magi and the scholars, who aren’t exactly the ancient astrologers waiting for the Christ, but „men of desire”2, looking forward to the end of the old world and the beginning of the new world. It is true, we can’t say that about all the male characters in the film (there are three), but only about Alexander, the „right and wise”, educated and talented Alexander, aged in the expectation of the great Revelation! But justice and wisdom aren’t enough for saving the world: it’s also needed sacrifice and love. “And though I bestow all my goods to feed the poor, and though I give my body to be burned, and have not charity, it profiteth me nothing”3. The same Apostle Paul’s verses have been heard in Andrei Rublev, but there everything was more clear and convincing: the level of the discourse was mostly straight, „realistic” and not parabolic. While Sacrifice is a parable, primarily addressed to the intellect. What else is needed for the salvation of the world? The persuasion of the divine mercy. All these can be made – claims the postman Otto - by the humble servant Maria! Therefore, prior to carrying out his sacrifice (renunciation to his family, burning his „body”, that is his „house-as-a-soul”, the adoption of the covenant of silence), Alexander ought to worship and bring his gifts - gifts of love - to Maria, so that at her turn she transmits the request of saving the world to God. This isn’t a collage of Evangelical themes; the relationships between motifs and characters aren’t copied from the Gospel, they are allegorical: direct meaning becomes figurative and parable becomes reality. This is the „geometricalchemical” law for the symbolic solving of the last two Tarkovsky’s movies. The director confessed that he buildt his films not by narrative laws, but by visual laws: his films should be read like paintings with a well-defined, multilayered geometric and vibrational structure, in which temporal and ontic levels communicate with each other according not to narrative principles, but to conceptual priciples. This is most obvious in his western films. Hence their formal difference from the movies made in his homeland. In those it was enough „to live” (as both the director and his audience stated). Their semantic symphonicity was so perfect, that any of their lingvistic levels (or levels of experience) satisfied the spectators’ needs. While his Western films, being filled with a more discoursive (rational) message, it’s not enough to be just „experienced” (lived), they must be properly understood! Otherwise the multitude of ambiguities on the screen no longer blends into the crystalline polarities of antinomic perfection (the binding agent of their conjoining is the spectator’s spirit), but agglomerates into cascades of inconsistency, until all becomes „confusion”, „chaos”, „fiasco”, as it happens in a lot of Western monographs, from the pioneering ones to the most recent. Despite the accuracy of the historiographic and academic language, which they generally prove, they decode many items according to their own historical and cultural context, perceiving exclusively in a pragmatic way episodes with a heavy symbolic nature 2. See prophet Daniel. 3. Cor. 13, 3.
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and missing the symphonicity of the film’s deepest layers. Nor do Tarkovsky’s Western movies, especially Sacrifice escape from this kind of inadequate reading, subjected to rules which are alien to the text4. Like Stanislaw Lem’s Solaristics, the understanding of the Tarkovsky’s western films seems to be, for more than a quarter of a century (at least in the West), at a dead end. But their proper comprehension is imperative. For their semantic simphonicity (rather than that of homeland films) grows around theses of maximum generality, just as religious experience develops around the dogma: the living should be experienced, but also the dogma requires to be well understood, as the two are mutually interrelated. In other words, the edifice built by Tarkovsky in each of his films (which is better noticeable in his last two) is structurally, semantically and functionally, a cathedral: a theandric space for the encounter between man and God, an eminently living space, capable of self-regeneration, a pattern of any complete work of art”5. But let’s look once more to da Vinci’s painting. The diagonal between the seated Virgin and the knelt magician closest to Her on the right side, the only one gazing the divine couple into the eyes, dominates the picture. Exactly with this simple and enigmatic fragment the movie starts: the rectangular profile detail of the magician from the right side, offering his gift to the Divine Infant, persist on the opening credits more than 4 minutes! It is important to observe the musical accompaniment of the opening credits: it is Bach’s oratory St. Matthew Passion, in which Apostle Peter repents before Christ for his betrayal: “Erbarme dich, mein Gott, um meiner Zähren willen! / Schaue hier, Herz und Auge / weint vor dir bitterlich. / Erbarme dich, mein Gott”6. The insistent association between soundtrack and image helps to relate Alexander to the magician on the right from Leonardo’s painting. It is harder, however, to understand his close relation with Child Jesus. As a secular intellectual, Alexander seems embarrassed or even frightened of such a direct relationship with God, even if he longs to spiritually transform his life. Once he finds out about the outbreak of the worldwide disaster, Alexander, who, according to his words, has not hitherto had any relation with God, kneels in solitude and clumsily prays for the first time in his life. Alexander’s closeup, with his desperate, imploring glance, staring upwards, „to God”, seems a 90 degrees rotation towards the audience of the magus’s profile from Leonardo’s painting, insistently and imploringly staring at the Child Christ! But the sincere and desperate prayer of the righteous is not enough: the prayer has to be learned, 4. See: Nariman Skakov (Stanford University), The Cinema of Tarkovsky (I.B. Tauris, 2012); Sean Martin, Andrei Tarkovsky (Kamera Books, 2011); Vida T. Johnson & Graham Petrie, The Films of Andrei Tarkovsky: A Visual Fugue (Bloomington & Indianapolis: Indiana University Press, 1994). 5. This is argued, with the timer in one hand and the treaties of sacred space in the other, and with the endless wonder of the researcher in front of the miracle of perfection, by the reputed film theorist Dmitri Salînski in his work “Киногерменевтика Тарковского (Kvadriga, Moskva, 2009). 6. “Have mercy, my God, for the sake of my tears! See here, before you heart and eyes weep bitterly. Have mercy on me, my God”.
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and Alexander is in this sense a profane. That’s why it is required the mediation of a chosen person, a close friend to God. Which means Alexander’s relationship to God has to be mediated by a gift: the gift of prostration and love, which is received by the Child in the painting as a golden bowl. In the film, the gift is received by Maria, in order to privately deliver it to God. Maria is called a witch, but she looks more like a humble Catholic nun or a simple church-goer: her behavior, her modest, blackened clothes and the covering of her head, as well as the decoration of her house with cheap Catholic icons, old family photos and crucifixes, testify exactly to this7. It is said she lives near an abandoned church - a typical dwelling of witches, but also of hermits. She is rather not a witch (just as Alexander isn’t literally a magi, although it is exactly to a magi that Tarkovsky relates him), but a man with a special spiritual power. What kind of power? For the nonce we don’t know: this is the reason for theological and moralist disputes around the film! All this ambiguity is intentional; however, discrete aesthetic signs help us decipher it. The vicinity of the house with the church explains the presence of the organ8 - an unusual object in a house of a humble servant. Maria’s house belonged, most likely, to the church (which we don’t see), it was probably a parish house sharing a wall with the church, so that the music produced by the organ was heard during divine service. The church is abandoned, but the organ still works. It means that not all is lost! For the organ is „the voice of the angels” and „the voice of the soul, calling to Lord”, which means Maria’s inner, supplicant voice is alive. The organ’s functionality is a strong metaphor for the effectiveness of Maria’s prayerful power. On this organ, before the night moment of love, Alexander will play a piece of elevated preclassical music. The lover plays the musical instrument of his beloved: here’s a quite clear erotic sign, a transparent foreshadowing of the amorous embrace, but the musical instrument (therefore the love) is a ritual and religious one. This means the love meeting is spiritual, even religious. The noblesse of the music indicates the nobility of love and the lovers, even their election, for music (especially organ, religious music) is „the song of the angels”, „the voice and the blessing of the Almighty”. Their embrace is a kind of hierogamy, because both are „secretly anointed by the powers of heaven”, and the eros moving them is not carnal, but spiritual, „ritual”, as well as the voice of the organ. Only the cinematic formula of its expression is corporeal: the metonymy, a procedure widely used by the filmmaker, inherent to the audio-visual expression of any spiritual concept. Even the lovers’ entering into the upper room, surprised in a mirror from the perspective of a modest crucifix on the nightstand, is seen as if the shoulders 7. Arkadi Strugatki’s original script, written at Tarkovsky’s request in 1981 for his future film Sacrifice, was even entitled The Witch (Vedma). It should be noted that the Russian word “vedma” (one of the equivalents for “witch”) has a certain noble connotation (“clairvoyant”), originated from the ancient, sanskrit root “to know”, “to see” (“vedat’”), which expands in a certain degree the semantic field of the word. 8. It is an organ or an harmonium? It doesn’t matter, to us matters the type of sound produced by the instrument and its ritual-religious function.
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of both lovers bent down under the arms of the same Cross. The first gesture of the embrace also occurs on the background of the wall crucifix, as though the two lovers embraced together the Cross, or received its blessing. Also the musical interpretation was „ritualistic”, for Alexander, before sitting down to play the organ, being soiled after falling off the bike, washes his hands - an ancestral prelude for approaching sainthood. When Maria pours water from a white porcelain pitcher9, its drawing can be clearly seen: it is a green branch - a repetition of the Tree of Life leitmotif -, indicating the quality of the water poured by Maria. The attribute of the myrrh-bearing women, under which the character of „the witch” (or the deaconess) is directly placed, as well as her indirect and metonymic, Marial attribute (which hierarchically subsumes the first), are becoming more clear. This type of associations is specific to Tarkovsky’s representation of love. The erotic levitation of the main heroine in Mirror; the weightlessness experiment scene in Solaris, when Hari and Kris rise into the air, floating embraced among candlesticks with burning candles, accompanied by Bach’s music; Alexander and Maria’s erotic rotation. Although all these scenes are voiced differently or are almost not voiced (in Sacrifice, with archaic shouts of Scandinavian shepherds, fallen as from the sky of the departed past into the hermitic silence of the Swedish island), the inner music they radiate is the same: the unearthly, smoothly enveloping Bach’s „music of the spheres”. It is suggested either by the rotation rhythm of the lovers, slowly rising into the air (in Solaris and Sacrifice), or just by the „time-pressure within the frame” in the static levitation, but the most visually refined, in Mirror. The same silent music of the spheres, music of divine grace, of „the meek and quiet Spirit”, which is eminently Marial, is concentrated in the weak-shiny mandorla of the Virgin with Child from Leonardo’s Adoration of the Magi10. For the music of „the meek and quiet Spirit” is the adornment of „the hidden man of the heart”, „which is in the sight of God of great price” - Apostle Peter says, when he wants to give women a model of perfection (1 Petr. 3, 4). This brings us to the hidden music of Glycophilusa, the Panagia icon of „Sweet-kissing” (or „Loving Kindness”): a music of the holy motherhood and virginity, of gracious and devoted womanhood, tenderness blessing tenderness, selflessness multiplying self-giving, a music of divine eros by excellence. And it is not a sacrilege to say that among the structural and musical correspondences within the movie, the central mandorla of the embraced Divine Couple from Leonardo’s painting corresponds to the hidden embrace from Maria’s house. Their musicality is the same. What else, than compassion and love receives Alexander from Maria in the night of the secret meeting? Courage! Since sacrifice requires heroism, but Alexander, an intellectual who thirsts for spiritual life, but a novice in matters of spirit, is not ready for sacrifice. His clumsy kneeling in prayer, immediately after hearing the news about the planetary war, doesn’t have enough spiritual power. 9. Repeating the gesture of Kris’s mother from the protagonist’s dream (Solaris). 10. Leonardo’s characters seem to shine because under the unfinished painting transpires the light background.
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Prayer must be followed by deeds, but deeds require courage, which is far beyond the limitations of a novice. Alexander’s weakness requires strengthening from the Holy Spirit, which he receives from the so-called witch, the servant Maria. „You shouldn’t be afraid of anything” - whispers Maria in a „female-like” way during their embrace. But not only „female-like”, because right after merging with the socalled witch, Alexander gains courage to act, as though his prayer for salvation of the world gains strength and is accepted by God only after the union with Maria11. „How much the world would change if we did not fear death!”, Alexander told his son Tommy, and his teaching transforms into deed. Since manhood is, in a spiritual sense, a sign of the fulfillment of the Holy Spirit. The fact that this happens exactly during the nocturnal meeting with Maria, and that Alexander follows the scenario of Christ’s sacrifice, is suggested by an almost unnoticed detail. The brief pre-classical prelude interpreted by Alexander is interrupted by a weak pendulum’s ding; Alexander winces and anxiously asks himself: „It is already 3! Will we have time? ... „ Of course, it is about the third hour of the night, and Alexander fears he will not have time to fulfill the ritual. But his observation also has another meaning: in the daily cycle of the seven lauds from the ChristianOrthodox tradition, the third hour is the hour of the Pentecost, the Holy Spirit’s Descend upon the Apostles, and after the third hour follows the sixth, that is, according to Holy Tradition, the hour of Christ’s Crucifixion! Man is not capable of martyrdom as long as he’s not filled with the Holy Spirit. Therefore the hours spent by Alexander in Maria’s house reenact two fundamental moments of the liturgic time of the Passion and Resurrection of the Lord: the love bed becomes the altar of the „conception and birth of the new world”, but also the germ of Alexander’s suffering and martyrdom. The austere stylistics, devoid of sensuality and almost hieratic of the love scene confirms this perspective. Let’s look more closely to Maria’s face when, sitting on her bedside, she attentively follows Alexander’s speech. Only now she gets out from the field background? of secondary characters and we understand her essential role in the dialectics of the film. It is the first time the heroine - an extremely discreet presence - appears in long close-ups and even utters a few phrases, drawing the spectators’ attention. Shot in a vibrant rembrandtian chiaroscuro (a specific lighting for the cinema of psychological analysis, which is atypical for Tarkovsky), Maria’s portrait is extremely expressive: a natural shyness, a gentle, sensitive and merciful glance, a total willingness to help. Nostalgically, Alexander recounts her about the former garden of his old mother, both now gone - a reminder of the primordial image of heaven, in all its forms, indicating in a parabolic key the real reason for his visit: the restoration of lost paradise! Impressed by the yet unconfessed disturbance of her visitor, the heroine, until then reserved, reveals her diaconal12 profile, the 11.According to the laws of ascetics, the prayer of a novice is strengthened by that of an improved man of prayer, the first merging with the latter. 12. “Diacon” ment in antiquity the auxiliary personnel for divine services, or a helping person for other services related to the primary Church, so etymologically the term has much in common with
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profile of a watchful myrrh keeper of the divine love, thus revealing the heavenly pattern sustaining her: that of Mother of God. Any ambiguity, so ably used by the director to embody femininity vanishes here. It is also the first time Tarkovsky proposes another female model, except that of the woman-mother-and-wife: it is the modest hermit-woman, the solitary protectress and prayer for the whole world. Maria’s diaconal profile makes us wonder: in terms of drama, isn’t she the grown up version of Stalker’s daughter, the silent girl who translated the power of faith by moving three glasses on a table, the crucified supporter of her father’s martyrdom for humankind? “If ye have faith..., ye shall say unto this mountain, Remove hence to yonder place; and it shall remove; and nothing shall be impossible unto you” (Mt. 17, 20). This faith, desired by Stalker for his fellows and expressed not by moving mountains, but glasses, fully brings forth its fruits in the Revelation of the New World, born - how else, than from faith, love and sacrifice13? - between Alexander and Maria’s arms. Here are two metonymies, as simple as they are challenging to the rigorists unaccustomed to symbolic language, which actually do not test the hermeneutical mastery, but the quality of the spectator’s heart. But what happens with the other magi? Does the director ignore them? In the film there are only three men: Alexander, doctor Viktor and postman Otto, a retired history teacher, passionate about Nietzsche’s philosophy with his theory of „eternal return”, ironically called „the stupid idle whirling”. They are all worried about the inconsistency of this life, and expect „something true and important”, which, however, as in Beckett’s Waiting for Godot, doesn’t happen. They all feel the pressure of the existential vacuum, like the vicious metempsychosis circle, mentioned at the beginning of the film, out of which they don’t know how to get out. All three are trying, in one way or another, to overcome their horizon (at least the geographic one, like Viktor). All three are, in a way, „wise men”, philosophers of this world, sharing somehow (in secular terms) something of the monastic state. Two of them appear to be single, but also Alexander seems more attracted to the condition of celibacy experienced in the family, as a higher loneliness state for the searchers of the true Bridegroom. Seeking a higher worshiping altar, „the magi” don’t build their homes on Earth... And all three are bringing gifts: Viktor and Otto offer to Alexander on his birthday an album of icons, a bottle of wine and an old map of Europe („of Europe, which no longer exists”). In terms of narrative, Viktor and Otto have the function of Alexander’s helpers. Doctor Viktor provides services to the „body” of the family, taking care of Tommy and comforting Adelaide’s hysterics and Martha’s boredoms (hence the ironic Freudian vision of nude Martha chasing a cock - a metonym of the disoriented and snobbish sterility of both women); while Otto takes care of Alexander’s „soul”. A collector of paranormal stories and a transmitter of news, he is a sort of a contemporary Hermes, competent in invisible worlds and therefore a close neighbour to Maria, whom he knows better than anyone. that of “angel” (also a “helper”). 13. Repeating, therefore, Apostle Paul’s commandments from the hymn of love, also invoked in Andrei Roublev.
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While in the text of the Gospel and in the traditional icons illustrating it, all three magi are bringing their gifts to God, in Tarkovsky’s film the offering algebra is different: the gifts are collected by Alexander, the most spiritually advanced of the „sages”, in order to be submitted, along with his own, to Maria. But the essence of offering is the same. Let’s look at more details which shed light on Maria’s identity. While in the first part of the film, the heroine rarely appears and is almost missing in collective scenes, from the moment of the burning of the house till the end she is practically always in the frame. Her gray and fragile silhouette, filmed in wide shots, most often from behind, lost in the sloughy landscape of the green island, is hardly distinguishable. She now is trying to help Alexander, who strives to run away from the ambulance workers that arrived after him, then, after he was taken away, thoughtfully pursues Tommy when the boy restarts watering the thinnish „Tree of Life”. In the final frames Maria appears in the same landscape with Tommy, watching him carefully from afar with an almost maternal glance, but never getting too close to him. In fact, the intimacy between Maria and Tommy can be observed even earlier. At the end of the first half of the film, when Maria accidentally meets Alexander in the pine grove, she shows him the gift the boy has prepared to his father: a miniature of the parental house; „but please don’t tell him I told you, because he wanted to show it to you himself!”. Lonely Tommy trusts Maria and reveals her his little secrets! The two are close! The same moment in the pine grove, after Maria’s entering into the action, her words are immediately succeeded by the first wailing-ascetic, otherworldly call of the Japanese flute, which thus is from the very beginning related to Maria. But the nature of the relationship between Maria and Little Man is revealed only at the end. Tarkovsky knows like no other how to handle the technique of maieutic suspense. Like in a detective story, the most important mystery must be hidden as long as possible and revealed only at the end: that is the keystone of the entire film, and the spectator must be brought in a state of maximum receptivity in front of the mystery, to receive it. At first faded and impersonal, with the development of the story, Maria goes out of the stigma of ambiguity assigned to her by the script (the strategy of tightly controlled ambiguity is typical for Tarkovsky) and approaches her iconic archetype: that of the myrrh bearers, the handmaids of Christ and the Holy Virgin. As the subject develops, the main heroes clarify their relationship with Leonardo’s painting, drawing closer to their iconic archetypes, without fully identifying with them - the film is a parable, not a fable -, but keeping their own status of individuality, as a terrestrial projection of the archetype. Like in a thriller, the director intentionally throws at the spectator stumbling stones, hindering him from recognizing the iconic models behind which the main characters are standing, especially Maria: seen either walking or, despite
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all iconographic models, on bike14, either a devout woman or a witch. The night of Alexander’s visit, along Maria’s house facade an agitated flock of goats come and go back and forth. Goats...! Judging by medieval bestiaries, here’s another stumbling block - Tarkovsky surely was aware of that! How „function” has a goat in a Tarkovsky’s movie? A goat also appeared in Ivan’s Childhood! To the tiny explorer of the forest, the unexpected appearance of the white goat with its hypnotic, motionless eyes, in the sunshiny glade, was almost an epiphany - a „natural epiphany” of wildlife, but not hostile, unpredictable but innocent, undomesticated but capable of tenderness, opening its secrets to children and pure hearts. But these are the attributes of Stalker’s Zone, a part of the attributes! This means that, like the miraculous phenomena from the Zone protected the Chamber of Wishes, in the same way the herd of goats running here and there at the descent of the evening protects Maria’s house, the house in which the despairing man can find comfort and the most entrenched and selfless desires come true! Maria’s house is a sort of Chamber (or well) of desire, a kind of communication tunnel with Divine will! All these are impressions which the spectator easily overlooks, without giving them any importance, when he first watches the movie: they are nothing but signs, clues, outlining the depth layer of the film. Let’s return to Leonardo’s painting, for Tarkovsky also insistently returns to it through Alexander’s eyes, whose face frequently mirrors into the painting’s glass when he obsessively gazes into it. From the same diagonal, behind the Divine Pair rise the two Trees of heaven - a compositional detail virtually unencountered in the iconography of The Adoration of the Magi (and almost absent from Christian iconography), introduced, doubtless, by no accident by the Florentine master, as though he would whisper to us that the access to spiritual knowledge and eternal life are conditioned by the right worshiping of mind and self-giving to God. The two Edenic trees, clearly outlined by the brilliant artist in the center of the painting, are highlighted by Tarkovsky by a close-up slowly tilting-up on the trunk and crown of the first tree, ever since the opening credits. An identical camera movement upwards, slowly following in close-up the thin trunk of the little Japanese tree in front of the shimmering sea, appears in the final frame. Not only the magi, but also lots of people, gathered around the core group from Leonardo’s canvas, worship the Holy Virgin. But the air of mystery of the painting is given by the almost faded and, therefore, more enigmatic background battle scenes with fiery horses: somewhere in a citadel outside the circle of worship is waging a war. Then Florentine master allegorically represented the Mother of God reigning over the earth, which is split between adoration of God (the magi group), indifference to God (the semicircle of characters around the central triangle discussing among each other, unaware of the Divine Pair) and destructive fratricide battles. The quiet and elevated musicality, irradiated by the central figure of Madonna with Child, surrounded by the triangle of the magi, vanishes towards the margins of the picture and is finally 14. The bike is the only means of transport on the island, which has no paved roads.
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suppressed by the noise of arms and the horses’ hoofbeat in the background. The painting seems equally divided between the silent, glorifying prayer, the zone of religious indifference and controversies, and the deafening noise of armed confrontation. All this complicated composition of young da Vinci’s painting shapes the structure of Tarkovsky’s last film. Alexander’s expiatory action and his prayer for the salvation of the world have to take place in the midst of the indolence of his family and the roar of the planetary war. Now we understand why Tarkovsky chose for his parable about the end of the world exactly this version of the acknowledged scene of the Worship of the Magi: only at Leonardo the divine couple of Madonna with Child reigns so sublime and dramatic at the same time in the midst of the apocalyptic chaos. For this is the theme of Tarkovsky’s testamentary film. There is another secret link between the topic of Sacrifice and the celestial world towards which Leonardo’s painting opens. This is music, specifically, the musical arrangement. The soundtrack of the film where music is almost absent consists of short excerpts from Bach’s Matthew Passion at the beginning and the end, hotchiku15 Japanese flute, and traditional shouts of Swedish shepherds16. If Bach’s oratorio leads the viewer into a world of religious experiences, popular in European Christian culture and therefore „spiritually trustworthy”, the Japanese flute and the archaic cry of the shepherds are odd, cries from a world, respectively, calls towards a world that is far and unknown. The first incantation of hotchiku flute is related to the character of Maria, but the time global war was declared, the lower, plaintive-threatening sounds intensify and multiply. The diffuse and imprecise notes of the bamboo flute, resorbed into vacuum like a primordial blow, seem to pour from heaven the prophecy of the imminence of the global catastrophe and dissolution of this world into nothingness, arguing therefore for the ritualistic function of burning Alexander’s house. The immaterial, grave, „masculine” sound, as if coming from immemorial depths of the earth, bears the fundamental, but still amorphous vibration of the yet undefined word, the call of primordial paradise, the „alpha-sound”. But at the same time there appears another call, as ancestral and unearthly, but encouraging, „positive”, also related to the image of Maria. It can be clearly distinguished during Otto and Alexander’s dialogue, when the first is trying to convince his friend about the need to visit Maria. They are prolonged shepherds’ and spherdesses’ shouts calling their flocks from the mountain pastures. Often female calling voices can be heard. Cries of shepherds, coming as if from heaven, calling their flocks home. Heavenly, but immaterial, high and bright voices, centripetal, soothing and warm - the vibration of post-historical paradise: the „omega-sound”. They barely distinguish during Alexander and Maria’s love moment, blend easily with the sounds of the Japanese flute during Alexander’s apocalyptic dream (the second one) and reappear at the end, accompanying Little 15. Long and thick bamboo flute used in Zen meditation. 16. They are motivated by the presence of flocks of sheep, scattered in the desert landscape of the island and apparently don’t play any role in the set design.
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Tommy when he waters the Tree of Life. The film’s sound designer, Owe Svensson stated Tarkovsky deliberately chose women’s voices, because they are comforting, opposing the threat of war17. Shouts out of an unknown or forgotten sky, male and female shouts, forewarning and encouraging, calling the flock home during apocalyptic threat. Calls that almost nobody hears anymore. The motifs of the Good Shepherd and the Heavenly Patroness, Theotokos, outline more clearly. The „alpha-sound”, negative and slightly frightening by his gravity, somehow rebarbative, of the forgotten primordial paradise, constrains and warns, urging repentance. Despite its formal opposition to the latter, the vibratory similarity allows it to easily blend with the „omega-sound” of hope, of the New Heaven, to unite into a single voice. (Which means between the two vibrations, masculine and feminine, „alpha” and „omega” of archaic and post-historical paradise there is an essential consubstantiality). A single call, Alpha and Omega, addressed to „those who believe and those who believe not”, to the witnesses of the great Revelation and to those who ignore it, to all cultural and spiritual mankind’s geographies. But why doesn’t Tarkovsky remain in the area of Christian culture, if the message he wants to transmit is Christian? Why does he depart so far away beyond the borders of Europeanism and Christianity - the historic and ritual ones, not the dogmatic ones - up to the ambiguous, uncontrollable, uncertain worlds of archaic heathenism? Why does he have to mix everything? No, Tarkovsky doesn’t mix nor confound anything. His withdrawal into ancient non-Christian worlds or into science-fiction aren’t errancies, but self-knowing spiral movements of creative consciousness, movements of enlargement and deepening around the same axis of the Divine Logos, in order to achieve the fundamental sound, inscripted together with God’s Word in the genetic heritage of all - humankind and entire creation and bestow this calling sound of life-giving Logos on everyone.
17. Cf. Simonetta Salvestroni, Filmy Tarkovskogo i russkaja duhovnaja kultura, Biblejsko-bogoslovskij Inst. Sv. Ap. Andreja, Moskva, 2007, p. 193-194.
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Andrei Tarkóvski: a economia do planosequência Oleg Aronson Traduzido por Natalia Quintero
Quando os cineastas ou os historiadores do cinema falam sobre o plano-sequência (em inglês, long take), trata-se, antes de mais nada, de um fragmento bastante longo do filme, sem procedimento de montagem, mas com um movimento de câmera perceptível, contudo não rápido demais. Essa última condição é extremamente importante, por ser justamente sobre esse tipo de plano-sequência que vamos tratar, e não apenas de um fragmento de filme não montado, no qual a câmera pode permanecer estática, mas daquele em que a câmera pode se movimentar em ritmo ininterrompido, ou com a velocidade aumentada, ou imitando a câmera na mão, e assim por diante. Claro que é possível dar uma quantidade de exemplos de plano-sequência sem movimento de câmera, tais exemplos, normalmente, consistem apenas em um plano-geral. Exemplos de filmes de Flaherty, Wyler e Wells1 foram analisados no
1. Robert Flaherty, William Wyler e Orson Welles. Andrei 1979.
Tarkóvski,
Stalker,
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Orson Wells, A marca da maldade, 1958.
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trabalho de André Bazin. Com base neles, Bazin constrói sua teoria da profundidade de campo. Além disso, a cinematografia contemporânea está repleta de episódios tecnicamente sofisticados, nos quais o movimento da câmera deixa de ser comparável com a sensibilidade humana ou, mais exatamente, aponta para as possibilidades de ampliação da percepção, limitada pela moldura da experiência perceptiva cotidiana. Os primeiros experimentos com tal tipo de movimento incomum foram feitos já no cinema dos anos 20 do século passado, e tiveram seu embasamento teórico nos textos de Jean Epstein e Dziga Viértov. Nós nos concentramos no plano-sequência que possui um grau determinado de conservadorismo tanto em relação ao experimento de montagem quanto aos experimentos com o movimento da câmera. Por um lado, esse plano-sequência nos remete ao próprio início da tecnologia cinematográfica que desconhecia a montagem e, por outro lado, inicia o mais importante movimento para a dimensão da sequência na cinematografia, o movimento dentro do plano, isto é, a possibilidade da montagem interna, a montagem sem marca de montagem. Nesse sentido, no plano-sequência, já está contida, no aspecto técnico, “toda” a cinematografia, isto é, o enquadramento somado à montagem. Gilles Deleuze (1925-1995) mostrou que o quadro e a montagem constituem essas duas características técnicas fundamentais que criam um novo tipo de imagem (a imagem cinematográfica) que captura o mundo do movimento e, como consequência, a própria inconstância do mundo nos atos perceptivos elementares. Além disso, o plano-sequência é interessante, justamente, por não estar ligado nem ao corte, nem à sequência-montagem interna. Não por acaso, os exemplos básicos de uso do plano-sequência são encontrados na
cinematografia posterior à Segunda Guerra que, de acordo com Gilles Deleuze, descobre a imagem-tempo que transformou a até então dominante imagem-movimento, formada justamente pelo quadro e a montagem. A imagem tempo aparece quando todas as possibilidades expressivas da imagem-movimento estão esgotadas, quando o som, a luz e o espaço fora do quadro foram, até tal ponto, apropriados pela percepção cinematográfica, que a diferença entre o mundo e o representado deixa de ser essencial. Eis que o plano-sequência é, por sinal, um daqueles elementos cinematográficos que, de forma simultânea, apontam para as novas possibilidades do cinema e nos remetem para o primeiro cinema. É muito significativo que um dos filmes mais reconhecidos, estruturado completamente sobre a base do plano-sequência, seja o filme de Hitchcock, Rope – Festim diabólico (1948), já que o diretor nunca tendeu para a experimentação formal, mas, antes de mais nada, para a experimentação com a percepção do espectador. Darei ainda dois exemplos clássicos de planosequência. O primeiro é a cena inicial do filme de Orson Wells, Touch of Evil – A marca da maldade (1958), em que a câmera, ao longo de uns quantos minutos, movimenta-se ao ritmo de diferentes personagens do filme que ora vão de carro, freiam periodicamente e se detêm nos cruzamentos; ora vão a pé ou passam correndo... Durante todo esse tempo, o espectador sabe da bomba colocada no carro e, por isso, a observação do herói está regulada nem tanto pelo movimento da câmera, mas pela expectativa do desenlace catastrófico. E é exatamente assim que o plano-sequência justifica-se em Rope – Festim diabólico, como um procedimento cinematográfico e não como uma viragem não cinematográfica do enredo: a execução do crime cuja prova (a corda) apresenta-se permanentemente
Alfred Hitchcock, diabólico, 1948.
Festim
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no campo de atenção do espectador, mas não das personagens do filme. Nesses casos, o plano-sequência dá ao espectador uma certa totalidade da percepção e até da redundância como consequência da qual o crime deixa de ser um acontecimento único (como acontece nos filmes policiais, por exemplo) para passar a se prolongar no tempo em que está sendo executado. A extensão temporal, dada a um acontecimento já ocorrido, e que normalmente é levada para além dos limites da imagem, é completamente característica do plano-sequência, que transforma objetos banais, capturados no quadro, em signos afetivos.
Contudo, o plano-sequência também realiza o procedimento contrário: banaliza os acontecimentos extraordinários que constituem o estímulo e a peripécia da narrativa. Por isso, é igualmente importante o segundo exemplo, que é contrário à lógica acima descrita como um todo. Trata-se do último plano do filme de Michelangelo Antonioni (1912-2007), The Passanger – Profissão: Repórter (1975), em que a câmera deixa de lado a personagem principal, ultrapassa os limites de seu quarto, observa o espaço e os acontecimentos ao redor e, ao retornar, encontra o herói já morto. Aqui o plano-sequência dá relevo justamente àquilo que fica além dos limites do visível, aquilo que escapa, criando uma espécie de “nódoa cega” da ação da “própria” vida que se introduz no quadro ou, falando em termos de Deleuze, constituindo seu conteúdo virtual. Com os limites do conceito de plano-sequência já determinados, passamos a nos ocupar dos filmes de Andrei Tarkóvski, para quem o uso do planosequência é característico não apenas como procedimento cinematográfico, pois ele também descobriu a especificidade singular desse procedimento que se relaciona diretamente com a cinematografia e com a memória. É possível até fazer uma
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afirmação mais categórica: para Tarkóvski, o plano-sequência deixa de ser um procedimento para se tornar um meio de repensar e redefinir a cinematografia. Em outras palavras, por meio do plano-sequência, aparece, na camada costumeira da narrativa, da representação cinematográfica, alguma coisa que permite notar a própria matéria do cinema que, para Tarkóvski, é o tempo. Em parte, o tema da temporalidade, da duração, já tinha sido tratado quando mencionamos os exemplos clássicos de plano-sequência. Contudo, em nenhum deles, o tempo apresenta-se como a imagem fundamental em relação ao
plano-sequência. Praticamente em todos os lugares, o planosequência permanece apenas como um procedimento que permite resolver os problemas de percepção do espectador (tanto em Hitchcock quanto em Wells) ou da interpretação intelectual de um episódio (caso Antonioni). Já para Tarkóvski, constitui um procedimento cinematográfico não o quadro, o plano ou a montagem, mas o próprio tempo. Ele escreve diretamente que não é o tempo abstrato dos filósofos, mas justamente a sua materialização que constitui o traço básico específico da cinematografia2. Para Tarkóvski, a materialidade do tempo está incluída não só na fixação de um momento que flui, e não só na possibilidade de reproduzir um momento já passado. Nesses casos, ainda pensamos o tempo como uma abstração, como uma escala de mudanças ocorridas, como um processo irreversível e, por causa disso, a possibilidade de reproduzir o passado não é mais do que um entretenimento cinematográfico. Para Tarkóvski, o tempo, em sua materialidade, é sempre o tempo da catexia, retenção da memória, retorno ao esquecido, preenchimento da própria lembrança com as lembranças dos outros. As coisas, no quadro, aparecem não como casuais, mas como se estivessem saturadas de significado, fato que predispõe
Michelangelo Antonioni, Profissão: Repórter, 1975.
2. “Uma obra musical pode ser tocada de formas diferentes, pode ter diferentes durações. O tempo, nesse caso, permanece apenas como uma condição cuja causa e consequências dispõem-se em uma determinada ordem dada. Nessa situação, o tempo possui um caráter abstratofilosófico. A cinematografia tem a possibilidade de fixar o tempo em seus indícios internos emocionalmente concebíveis. E então o tempo torna-se a base fundamental, da mesma forma como acontece com o som na música, com a cor na pintura, e com a personagem no drama (Andrei Tarkóvski. Zapechatlennoevremia (Tempo impresso). Disponível em: Андрей Тарковский. Запечатленное время). Цит. по: http://tarkovskiy.su/ texty/vrema/vrema6-3.html
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3. Intelligent: representante da chamada Intelligentsia.
diferentes tipos de interpretação dos filmes de Tarkóvski: do histórico-cultural ao religioso, do estético ao psicanalítico. Contudo, quase todas as interpretações de Tarkóvski deparamse com o fato de que cada elemento, no quadro, apesar de sua significância enfática, possui uma clara carência semântica que, como resultado do esteticismo, fica à beira do kitsch: assim, a fé é a religiosidade do neófito, os símbolos são um conjunto de estereótipos culturais do intelligent soviético3. Já a psicanálise talvez tenha sido chave para alguns motivos cinematográficos particulares, mas se assim fosse, teria sido muito difícil manter justamente essa especificidade das imagens de Tarkóvski que nos permite ir além dos limites de alguns filmes em concreto
e descobrir essa matéria cinematográfica que, provavelmente, mais do que em qualquer outro lugar, responde pela situação atual da cinematografia, mais do que naqueles anos em que foram feitos esses filmes. Nesse sentido, a catexia, como termo psicanalítico, explica por um lado a presença quase física do libidinal nas imagens dos filmes de Tarkóvski e sua predileção por determinados objetos, imagens e motivos e, por outro lado, a catexia obstaculiza a hermenêutica pura, mostrando assim que o cinema não é apenas um meio de expressão do autor, mas justamente um tipo especial de matéria na qual a memória aparece como um conjunto de repetições enfadonhas da mesma coisa, como um conjunto de “sumiços” e não correspondência que conforma o espaço afetivo singular do filme. Exatamente assim é a memória do menino de A infância de Ivan (1962) estruturada pelo trauma da guerra; e assim é também a memória que liga gerações afastadas entre si, e também épocas, tornado sensível o fluxo do tempo por meio do parentesco (episódio “O sino”, em Andrei Rublióv - 1966). No mesmo sentido, podemos
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mencionar a imagem da permanentemente ressuscitante Hari, de Solaris (1972). Mas todos eles se encontram na mesma série junto com o cofre, o livro, o relógio e... o cachorro. Só por meio dessas repetições insignificantes e do enfadonho, pode ser realizado esse tipo de catexia cinematográfica para a qual não há diferença entre coisas importantes e não importantes. Muito mais representativo, nesse aspecto, é o filme O espelho (1975), totalmente construído sobre a base da reunião de lembranças avulsas sobre a mãe e sobre aquele tempo quando o herói era inseparável dela, constituindo uma espécie de todo, e das próprias lembranças, das lembranças da mãe, das lembranças alheias e das lembranças gerais...
Ao falarmos hoje de plano-sequência, em muitos sentidos, podemos afirmar que, graças a Tarkóvski, no momento em que o Plano-sequência se torna uma necessidade para a imagem cinematográfica, significa que entra em vigor a função de manter na memória aquilo que se perdeu, que foi gasto e é irrecuperável. Contudo, a irrecuperabilidade existe não por causa da fraqueza da memória, mas pelo sem sentido e irrelevância do próprio objeto. Justamente, o fato de dotar um objeto casual com a energia erótica da lembrança transforma-o de signo cultural em elemento afetivo da memória. Lembremos o famoso plano-sequência de Stalker (1979), em que a câmera se movimenta suavemente sobre o chão alagado do quarto, captando os objetos mais variados, deixados pela civilização na sua retirada. Entre eles, algumas seringas, louças, uma pistola mauser, diversos aparelhos ultrapassados, moedas, um ícone, pedaços de jornal, folhas de almanaque, um cofre que o espectador atento já observou no filme Solaris... É claro que é possível construir o complexo semiótico-hermenêutico fazendo uma leitura de cada um
Andrei 1979.
Tarkóvski,
Stalker,
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dos objetos e do filme como um todo. No entanto não tem importância se analisamos cada um dos elementos no quadro a partir da ideia geral do filme ou, pelo contrário, reunimos o sentido a partir dos indícios espalhados nas coisas. Não interessa por qual lado entramos nesse círculo hermenêutico. Em qualquer caso, entramos em um espaço em que o sentido procurado aniquila a catexia. O mecanismo de interpretação dita ao filme uma determinada lei de visão e leitura dos signos. E essa lei organiza para si esse meio cinematográfico, o espaço, a matéria imagética não semiotizável que, por sinal, manifesta a preocupação afetiva, sem sentido, por tudo aquilo que ainda não atingiu o significado, por tudo aquilo que é dispensável e gasto. O plano-sequência, sem importar quão escrupulosamente ele seja construído, por causa do próprio modo como é percebido, fala da redundância das coisas e dos detalhes, da impossibilidade de capturá-los em uma única interpretação, e também sobre a débil resistência que opõe as coisas ao apontar para o todo gasto. A catexia sempre está dirigida justamente para esse espaço sem lei, e para aquilo que é redundante em relação à já acontecida compreensão ou ao ato de denotação. Na psicanálise, a catexia supõe o preenchimento da totalidade da memória por conta do substituído (esquecido) e pela eliminação do substituído no modo de representação. A catexia realiza uma função singular de mediação entre a consciência e o inconsciente e, nesse sentido, é possível analisá-la como uma categoria econômica. É só que a questão principal sobre essa economia soa um tanto inesperada por quanto estamos diante da economia do dispensável. E é importante não transformar o dispensável em valioso, não substituir essa débil economia da catexia por uma economia de troca, mas tentar manter esse outro tipo de economia dentro de seu campo de ação. É isso possível? Não será o espectro da economia da catexia (pois ela é a economia do plano-sequência) alguma coisa absolutamente fictícia que pode ser facilmente desdenhada? Minha tarefa é, sem desconhecer o fantasmagórico da economia sobre a qual estamos falando, tentar dar a sensação de sua materialidade e, se não sua significância, pelo menos sua indestrutibilidade. Por isso, vamos para começar, deixar de lado, por um momento, o cinema e ocupar-nos da própria palavra economia que, nos dias de hoje, soa demasiadamente concreta e está fortemente ligada às estratégias de conduta dentro de um mercado que, por sinal, é predominantemente capitalista.
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No entanto, a economia é uma coisa não unívoca, e esse caráter não unívoco está contido na própria palavra, constituída por duas palavras gregas antigas: oikos e nomos. A “oikonomia” grega está muito longe do conceito contemporâneo de economia no qual, o significado de oikos (casa, lar) praticamente se perdeu, enquanto que a prioridade é para o nomos (lei). Ainda por cima, o nomos funciona, justamente, como a “lei de perda” ou de carência, só que, no lugar da retenção do perdido (a catexia que pode ser entendida não apenas por meio da psicanálise, mas também da execução de práticas arcaicas, tais como o ritual), introduz a troca (a busca de um equivalente substitutivo). Dessa forma, contamos não com uma, mas com pelo menos duas economias diferentes. Uma, a economia doméstica e a segunda, a típica economia de troca (comércio, aquisição e acumulação). No mundo de hoje, a primeira forma de economia não está perdida, mas é interpretada em termos da segunda. Como mostra Jean Pierre Vernant, em seu estudo clássico, na época dos gregos, era diferente4. Cada uma dessas economias tinha seu deus, que era responsável por ela, e essas economias não eram, de modo algum, um todo unitário. Pela casa e o lar, era responsável a deusa Héstia, enquanto que pela peregrinação, viagens e comércio era responsável Hermes. Nos dias de hoje, podemos chamar a economia contemporânea, economia de Hermes ou até economia “masculina”. Dela fazem parte tanto a cultura como as descobertas científicas, a arte, os negócios, a guerra e o dinheiro... Quase tudo ao nosso redor tem sido formado por Hermes, e é significativo que a lembrança da deusa Héstia seja extremamente fraca. Entretanto Héstia é a responsável pela infância, virgindade e maternidade; graças a ela, existe a casa onde se dá a luz, para onde é possível voltar, ficar e morrer com tranquilidade, sem heroísmo trágico. Em certo sentido, essa economia pode ser chamada “feminina” ou “infantil”. Não vamos aumentar aqui a oposição de uma economia diante da outra. Entre elas não existe contradição. Simplesmente, a imagem histórica de apenas uma economia (Hermes) tornou-se, para nós, o conceito de economia, a sua lei. Enquanto isso, Héstia ficou fora dessa lei e é, por isso, que tudo o que está ligado ao “feminino, infantil”, “materno”, está dotado de debilidade, fragilidade e instabilidade. A casa está sempre sob ameaça de ser tomada e devastada. Tão logo Ulisses deixa sua casa em busca de dinheiro e de glória,
4. Vide Vernant J.-P. My thand Thought Among the Greeks. ZoneBook, N.Y., 2006. Ch. VI.
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5. É interessante que, ao analisar a Odisseia como um importante modelo de formação da autoconsciência europeia, Adorno e Horkheimer, em Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos, apontam para esse importante aspecto econômico: “O navegador Ulisses logra as divindades da natureza, como depois o viajante civilizado logrará os selvagens oferecendo-lhes contas de vidro coloridas em troca de marfim. É verdade que só, às vezes, ele aparece fazendo trocas, a saber, quando se dão e se recebem presentes da hospitalidade. O presente de hospitalidade homérico está a meio caminho entre a troca e o sacrifício. Como um acto (sic) sacrificial, ele deve pagar pelo sangue incorrido, seja do estrangeiro, seja do residente vencido pelos piratas, e selar a paz. Mas, ao mesmo tempo, o presente anuncia o princípio do equivalente: o hospedeiro recebe real, ou simbolicamente, o equivalente de sua prestação; o hóspede, um viático que, basicamente, deve capacitálo a chegar em casa” (Adorno T. W., Horkheimer M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos). Por outro lado, Derrida aponta para a figura de Ulisses que está no coração do conflito entre oikos e nomos, e com o qual está relacionado outro conceito de tempo: “A oikonomia sempre irá pelo caminho de Ulisses. Este último retorna a seus próximos, a suas afeições, a si próprio e, com isso, escapa da opinião de ele estar retornando para a pátria a fim de voltar para uma casa que foi o sinal da partida para sua predestinação, escolha dele e daqueles com quem foi afastado por imposição do destino (moira) (Derrida J. Given Time: I. Counter feit Money. The University of Chicago Press, p. 7). Andrei Tarkóvski, O espelho, 1975.
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Penélope é assediada por pretendentes que ameaçam destruir a estabilidade do mundo familiar. Se bem que essa firmeza e estabilidade são destruídas, por estranho que pareça, por uma lei, pois é uma lei inexorável o que exige a saída de Ulisses de casa para o mundo da guerra e da errância, e é a nostalgia (a lembrança do perdido) o que o leva para casa por meio da astúcia e dos enganos. Podemos notar que o viril Ulisses está o tempo todo sob o feitiço da lei vigente, mas ele se torna engenhoso e hábil, justamente, quando está sob a força da energia da nostalgia, que é um análogo singular à catexia. É por isso que a “Odisseia” é não apenas uma peregrinação, mas, antes de tudo, um retorno. O “retorno” reúne em si ambas economias, cada uma das quais condiciona a outra5. Na cinematografia de Tarkóvski, descobrimos uma interação semelhante das economias, não apenas no nível dos motivos da viagem e da casa. Esses motivos são evidentes e destacáveis tanto no nível do enredo quanto no nível semântico da imagem. Parece, inclusive, que praticamente todos os filmes, a começar por Solaris, estão sustentados pela junção dramatúrgica, peregrinação-viagem e nostalgia-memória. A primeira possui um caráter declaradamente melancólico e a segunda aparece como um acontecimento de revelação. Como exemplos radicalmente opostos, podem servir os filmes O espelho, que dá especial relevo às representações da memória, e o filme documental Tempo de viagem (Tempo di Viaggio 1983), que está dedicado a uma seleção de locações para o futuro filme Nostalgia. É peculiar que, até no nível figurativo e narrativo, seja fácil observar os traços arcaicos da economia de Héstia e Hermes: se em O espelho tudo está construído ao redor da figura da mãe e da casa materna onde transcorreu a infância, e a economia de valores está dada em forma de exaltadores objetos cénicos de Arte, Beleza e História, já no documentário, observamos a viagem de dois homens (Tarkóvski e Guerra) que, em sua conversa, planejam o futuro trabalho
conjunto. A irmandade masculina é a tal ponto acentuada, que, durante a maior parte do filme, quase não vemos em absoluto a mulher-tradutora cuja participação é reduzida à função de um instrumento útil, mas, em princípio, não indispensável. A junção buscador-artífice, não são necessárias nem mulheres, nem crianças, nem o calor do lar (Guerra: “Andrei, você nunca me disse se gosta da minha casa”; Tarkóvski: “Tonino, eu gosto de seus versos”). Além disso, a viagem e a casa, a peregrinação e a nostalgia, o ofício e a infância não são simplesmente motivos. Como diferentes tipos de economia, em primeira instância, são um modo de enquadramento e filmagem. Ambas economias estão presentes de forma simultânea, no quadro, não apenas como a semântica de representações concretas, mas como sintaxe cinematográfica. Se levarmos essa lógica até o limite, então podemos dizer que a economia de Héstia manifestase no filme como a sintaxe do cuidado com a construção e logística do próprio filme, o que lhe confere o caráter de lar virtual. Tarkóvski é um dos poucos diretores que conseguiu ressaltar ao máximo a sempre debilitada e abatida economia de Héstia, no mundo contemporâneo, onde as coisas-imagens não estão sujeitas a um processo de troca, simbolização, interpretação, mas se manifestam, graças à própria matéria cinematográfica, cujo componente principal é capturar dentro do quadro o redundante, o desnecessário, a própria vida em uma apresentação e representação que não são sentidas como necessárias. Para Tarkóvski, a cinematografia é imanente à memória, uma memória não individual, mas comum, que é o tempo. De fato, quando tratamos de cinema, então, ineludivelmente, estamos tratando da produção total e absolutamente submetida à economia de troca. Aqui se inclui a escrita do roteiro, e a escolha de locações, e também o próprio processo de filmagem, a montagem final, a sonorização, e, enfim, tudo o que se relaciona com o aspecto técnico, por exemplo, a estetização do quadro, a simbolização (atribuição de sentido à narração e à representação). Em outras palavras, tudo o que chamamos arte (tanto no sentido de ofício como de criação), a esfera de ação de Hermes. É muito mais difícil apontar para o lugar em que Héstia se manifesta. Apenas os motivos da maternidade ou da casa não são suficientes. Como relato, há muito tempo esses motivos estão fixos no campo da representação, e para que nem se pense em manifestar sua
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6. Eisenstein escreve com mais pormenores sobre o princípio pars pro toto no artigo “Диккенс, Гриффит и мы” (Dickens, Griffith e nós) (Эйзеншейн С. М. Собр. Соч. в 6 тт. М: Искусство, 1971, т. 5) e também sobre esse princípio no pensamento pré-lógico fala mais de uma vez em Metod (Método) (Эйзенштейн С. М. Метод. В 2-х тт. М.:Музей кино, Эйзенштейн-центр, 2002). 7. “É necessária uma educação analítica especial do olho para saber capturar o detalhe. É necessária uma capacidade sintetizadora especial do pensamento para que o olhar analítico saiba discernir, dentre aqueles dados, o detalhe decisivo, o detalhe característico, o detalhe capaz de, em um pedaço do todo, reconstituir a imagem da totalidade. É interessante que, durante o sono, o todo e a parte estão também harmoniosamente entretecidos, mas de forma tal que um e outro são visíveis” (Эйзештейн С. М. Мемуары (Memórias). Редакция газеты «Труд», Музей кино, 1997, т. 2, с.).
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“mobilidade” e nem se aluda à sua autonomia, eles são, por vezes, dotados de caráter arquetípico. Nisso, consiste uma das típicas técnicas evidentes da mentalidade europeia (a atribuição do status de típico, arquetípico, ontológico a uma coisa qualquer) graças à qual, qualquer diferença é reduzida à dualidade, à contraposição, à oposição, uma oposição por demais desequilibrada, em que apenas um dos lados considerase prioritário, às vezes, de forma evidente, às vezes, não. Ao trazermos aqui a diferença entre essas duas economias, involuntariamente reproduzimos também a lógica dessas oposições. E mesmo ao apontar para a condicionalidade dessa contraposição, ao apontá-la desde o lado da oposição, (a economia de Héstia) permanece submetida e oculta, justamente como economia, o que a manifesta como um complemento necessário e irredutível da economia de troca e, então, também nesse caso, reproduzimos alguma coisa que lembra a dialética. Para se distanciar tanto da ontologização de cada um dos lados da oposição apresentada, quanto da dialética, é preciso concentrar-se não no conteúdo filosófico-cultural, mas no aspecto econômico. Isso é ainda mais difícil pelo fato da economia ser pensada, quase sempre, como alguma coisa derivada da política de valores (como a economia política). Contudo, tentaremos estabelecer uma relação entre aquilo que tomamos da antiguidade e da mentalidade arcaica da economia de Héstia e da economia de Hermes, com elementos cinematográficos como a montagem e o quadro que, com frequência, são pensados exclusivamente como tecnológicos. Cada um desses elementos cinematográficos, como já o notara Eisenstein, representa em si mesmo o princípio pars pro toto (a parte pelo todo) que possui não apenas a parte substitutiva do tropo (metáfora ou metonímia), mas também o princípio do pensamento pré-lógico6. De fato, Eisenstein foi um dos que compreendeu o quadro, o close-up e a montagem, não como procedimentos cinematográficos, mas como princípios e forma de pensamento materializados na cinematografia e que, graças a ela, podemos reconhecê-los nas obras de arte do passado. Além disso, Eisenstein nota outro detalhe não pouco importante: a compreensão de que a expressão cinematográfica, imanente ao próprio pensamento, permite perceber a fantasmagoria e o onírico tanto da imagem-cinema como do pensamento7. Nesse espaço, ocorrem a indiferenciação, a mistura, o entrelaçamento da parte e do todo. Para Eisenstein, é esta uma variante singular da imagem dialética sob a lei comum de seu
funcionamento e desenvolvimento. Não é assim em absoluto para Tarkóvski, o antagonista permanente de Eisenstein. Seu princípio cinematográfico faz coisas tais como que o quadro ou a montagem fiquem subordinados não ao filme como obra, mas ao filme como o lugar em que o tempo é gravado. Para ele, a lógica da montagem das partes está subordinada à lógica do todo. Pois “o todo” encarna um filme idêntico, em palavras de Bergson, um recorte da matéria do tempo-memória. Eis o que ele escreve sobre a montagem: “A montagem é, afinal das contas, apenas uma variante ideal da colagem dos planos, que já está determinado, a priori, pelo material gravado na película. Montar o filme de forma certa, correta, significa não perturbar a junção orgânica de cenas avulsas e de quadros, pois é como se elas se montassem a si próprias com antecedência, já que dentro delas habita uma lei pela qual elas se juntam e é preciso apenas compreendê-la e senti-la, e realizar a colagem ou bem o corte desses ou daqueles quadros em correspondência com essa lei. Sentir a lei de correspondência, de afinidade dos quadros, muitas vezes, não é nada simples (especialmente quando a cena foi filmada de maneira imprecisa). Nesse caso, na mesa de montagem, ocorre não uma simples – lógica e natural junção de pedaços, mas um torturante processo de busca do princípio de junção dos quadros, durante o qual, passo a passo, de forma cada vez mais patente, surgirá a essência da unidade pré-determinada pelo material. Aqui existe uma relação oposta particular: criase a construção auto-organizativa na montagem graças às propriedades particulares do material, que foram prédeterminadas por ele durante a filmagem. É como se surgisse a essência do material filmado por meio do caráter da colagem8”. Nessa passagem, é bem visível que, para Tarkóvski, a montagem não é nem tecnologia nem forma, e nem um meio de expressão, mas uma forma de existência da própria matéria cinematográfica, na lógica da unidade, na lógica do todo. Justamente, à tal lógica, está submetido o planosequência que combina quadro e movimento de câmera, isto é, o espaço dentro e fora do quadro, o quadro e a montagem interna. Quando a montagem do filme se torna dependente do plano-sequência, como dominante estilística, então, o filme fica submetido a um tipo completamente diferente de economia: não à economia de produção, substituição e troca, mas à economia de adequação, de domesticação do filme, de atribuição a ele de características imanentes ao ambiente
8. Tarkóvski, Andrei. Idem.
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9. Tarkóvski, Andrei. Disponível em: <http:// tarkovskiy.su/texty/vrema/ vrema4-2.html>.
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da vida em si, e mais do que isso, uma montagem que não substitui a vida nem a representa, mas a restabelece. Essa é a variante de retorno ao tempo, materializado nas imagens da memória, que são, para Tarkóvski, as imagens do cinema. Aqui é possível observar os motivos bergsonianodeleuzianos na interpretação em que a imagem cinematográfica resulta ser um entrelaçamento de imagemmovimento e imagem-tempo. Tarkóvski, de fato, vira ao avesso todas essas ideias referentes à imagem no cinema, tais como as encontramos em Serguei Eisenstein: “...a imagem cinematográfica é, em seu fundamento, a observação dos fatos da vida no tempo, organizados de conformidade com as formas da vida mesma, com suas leis temporais. A observação está sujeita a uma escolha, pois conservamos no filme apenas aquilo que tem o direito de ser parte da imagem. Além disso, a imagem cinematográfica não pode ser dividida e desmembrada da sua natureza temporal, não se deve extirpar dela o tempo corrente. A imagem se torna autenticamente cinematográfica com a condição obrigatória (entre outras condições) de que não só ela habite no tempo, senão que o tempo habite nela, a começar por um quadro considerado separadamente. Qualquer objeto “morto” – uma mesa, uma cadeira, um copo, filmado em um quadro separado do todo, não pode ser apresentado fora do tempo corrente, como se fosse desde o ponto de vista da ausência de tempo. O desvio dessa condição cria imediatamente a possibilidade de introduzir no filme uma enorme quantidade de atributos de qualquer arte vizinha. Com ajuda desses atributos, é possível até fazer um filme muito impressionante, mas, do ponto de vista da forma cinematográfica, eles irão contrariar o desenvolvimento inerente à natureza, essência e possibilidades do cinema”.9 Esse fragmento também é interessante porque nele encontramos a ideia da lei do tempo (vremennógozakona – lei temporal), correspondente à forma da vida organizada dentro do quadro. Não se trata apenas de um certo regime organizado (nomos) senão que é justamente a ordem do oikos. Tarkóvski expressa tudo isso de forma especialmente evidente em sua concepção de montagem da intensidade de quadros diferentes. Para ele, a lei da montagem está ligada não à longa composição do quadro, nem à sua semântica, mas a essa perceptível característica difícil que ele denomina de “pressão do tempo no quadro”, que só à primeira vista pode parecer
subjetiva. É justamente essa “pressão” o que faz perceptível o plano-sequência. Ela se torna um meio para o planosequência ser notado. E, por sua vez, a montagem vem a ser o meio para transformar qualquer quadro, qualquer imagem, em uma variante de plano-sequência, a transformação dos meios técnicos (quadro, montagem) em relação às coisas que organizam a imagem cinematográfica, tornando-se, assim, em relações não de produção do filme, mas em sua economia com aquela lei de tempo (memória) que constitui o retorno a casa, ao oikos. E como cada um pode ter uma casa diferente, também o conjunto de coisas no quadro pode ser qualquer um. Não são as coisas o que nos leva de volta para a casa, mas um certo princípio de totalidade que não depende de nenhuma delas. Essa totalidade não se reúne por meio de parte alguma, e a própria totalidade não supõe nenhuma das partes. Essa totalidade – que Bergson chamou “totalidade da memória” - ultrapassa os limites de cada sujeito concreto da lembrança. Justamente isso é a pulsação, a pressão do tempo no quadro de Tarkóvski: a memória, que só em aparência, pertence a alguém, mas que pertence a qualquer um; o tempo que descobre sua lei nas formas humanas da inconstância da vida, e não na calculabilidade (por parte do ser humano) ou a finitude (a mortalidade do homem). Mas o que aponta para esse tempo dentro do filme? Como podemos fixar o tempo como lembrança ou como duração? Também Deleuze dá uma dica no segundo tomo de Cinema, dedicado à imagem-tempo. Ele analisa a estrutura do “filme-no-filme” que quase sempre é estudada como uma estrutura reflexiva que, por sinal, expressa a lógica do pars pro toto, ou como uma construção heráldica que introduz o momento da infinita reprodução da mesma coisa. Deleuze leva o leitor para a compreensão econômica dessa situação. Para ele, o filme-no-filme é uma das variantes daquilo que ele chama imagem-cristal, em que “a ação pode ser atualizável e virtual (interação de um com outro como um espelho) ou transparente e embaçada, ou embrião e meio”10. Por um lado, o embrião constitui em si uma imagem virtual que, posteriormente, cristalizará o meio amorfo atualizável, mas, por outro lado, o meio deve possuir uma estrutura virtual cristalizável em relação à qual, o embrião age, por ora, na forma da imagem atualizável”.11 Deleuze considera que justamente os filmes de Tarkóvski são a encarnação dessa interação-troca entre o virtual e o atualizável que constituem a imagem. Ele interpreta
10. Deleuze G. Kino. Ad Marginem. 2004. p. 370.
11. Idem. p. 373.
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12. Idem. p. 374.
13. Idem. p. 377.
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O espelho como um cristal que gira permanentemente, com umas fronteiras não visíveis (virtuais): o “pai” e a “mãe”, e umas visíveis (atuais): “a mãe junto com ele na infância” e “sua esposa com a criança”. Da mesma forma, em Solaris, observamos a tensão entre as fronteiras do planeta-oceano e os pensamentos, e entre o meio e o embrião, onde não é possível reconciliar o virtual (a esposa recuperada) e a forma cristalizável (atualizável) do mundo (a casa restituída)12. Para Deleuze, é importante apontar que, na formação da imagem-cristal (que de fato é a imagem-tempo), refletida na obra, participam os temas do embrião e o espelho nos quais está contida a ideia de criação. Mas não é menos importante, para ele, assinalar que a estrutura filme-no-filme não é apenas um procedimento narrativo, mas, justamente, um cristal: um embrião que cristaliza a seu redor o meio, e um reflexo que cria um duplicado fantasmagórico. Não é por acaso que constituem para ele um modelo de filmeno-filme não apenas os exemplos clássicos de Viértov e Buster Keaton, Fellini e Wenders, mas também quaisquer flashbacks, flashforwards (lembranças e sonhos), e também aquilo que ele chama “filme sobre dinheiro”. Ele escreve: “o dinheiro representa, em si mesmo, o avesso de qualquer imagem, cuja face é demonstrada pelo cinema, portanto um filme sobre dinheiro é um filme-no-filme ou sobre o filme (mesmo que implicitamente)”.13 O filme não é possível sem dinheiro e é por isso que o dinheiro tornou-se uma parte inalienável da imagem cinematográfica, uma parte de sua economia. Justamente aquela parte que liga as duas economias: crematística e oikonomia, a economia de produção, de troca, de distribuição da riqueza e a economia do lar (ou a economia da vida, pois ela é a economia da pobreza). Tendo sido radicalmente separadas na época burguesa, de novo, elas se unem na prática cinematográfica. O filme-no-filme é, de fato, um entrelaçamento que pode ser notado e atualizado dessas economias, uma das quais sempre tenderá a ser representada como um espetáculo enquanto a outra se esconde atrás das técnicas de filmagem, as técnicas de montagem e de narrativa escolhidas e assim por diante. Mas quando descobrimos que o plano-sequência ou o flashback não são apenas procedimentos estilísticos ou formas narrativas, então aparece, imediatamente, na superfície, essa lógica da imagem que supõe a relação contraditória e paradoxal, contudo, inquebrantável, da pura virtualidade do dinheiro e a materialidade do tempo vivido.
De forma especialmente sofisticada, unemse a produção do filme com a economia doméstica nos diários de Tarkóvski, fato que permite interpretar a imagem cinematográfica de forma mais ampla que aquela gravada na película. Eis apenas um exemplo de anotação. (há muitíssimos fragmentos como estes): “24 de abril de 1970 Compramos a casa em Miásnoe. Aquela que queríamos. Eis a casa: Agora não estou com medo de nada, se não me deixarem trabalhar, não estou nem aí com eles! Vou ficar na aldeia, e cuidar dos porcos e gansos, e da horta. Aos poucos vamos colocando a casa e o terreno em ordem e será uma ótima casa de campo. De alvenaria. As pessoas por aqui parecem boas. Faremos colmeias. Haverá mel. Seria bom também arrumar um gázik14. Então estará tudo em ordem. Agora é preciso ganhar um pouco mais de dinheiro para deixar a casa pronta antes do outono. Para que seja possível morar aqui no inverno. Ninguém vai fazer 300 quilômetros a partir de Moscou assim por nada. Agora são importantes duas coisas: 1. Que Solaris tenha duas partes. 2. Que Rublióv tenha um volume de cópias de pelo menos 100%. Então saldaria todas as dívidas. Sim! E se conseguisse fechar o acordo com Duchambé. Na casa, tem que fazer o seguinte: 1. Refazer o teto. 2. Refazer todos os pisos. 3. Fazer uma segunda moldura em uma das janelas. 4. Colocar o telhado no galpão. 5. Fazer uma estufa com aquecedor de vapor. 6. Tapar as rachaduras da ponte. 7. Fazer uma cerca ao redor da casa. 8. O porão. 9. Tirar o forro de madeira dos tetos. 10. Abrir a porta entre os quartos. 11. Colocar a laje na ponte. 12. Construir o banho no horto. 13. Fazer a privada. 14. Colocar a bomba (elétrica) do rio para a casa (se é que não fica congelado no inverno). 15. O chuveiro (no banho). 16. Plantar o jardim. 17. Pintar os pisos, as paredes na ponte e as vigas”15.
Aqui estão unidos, pela montagem, o cuidado de Tarkóvski, na produção do filme, e o próprio processo de arrumação de uma casa concreta, em cuja dedicação há
14. Forma diminutiva da sigla GAZ: Górkovski Avtomobilnyi Zavod – Usina Automobilística de Górki. Com esse nome, eram conhecidos os carros de fabricação soviética tipo Jeep (N. da T.).
15. Тарковский Андрей. Мартиролог. Дневники 1970-1986. М.: Международный Институт им. Андрея Тарковского, 2008, с. 18.
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Andrei Tarkóvski, Rublióv, 1966.
Andrei
uma parte prática da existência (ou, se quiser, uma “ética da existência”) que não pode deixar de fazer parte da produção do filme. E tudo (a “lista de assuntos”) está escrito como uma variante de um plano-sequência, de um percurso singular pela casa, para capturar as coisas que devem passar do plano virtual da existência para o atualizável, do campo da ação e produção ao seio do lar da família. E o próprio plano-sequência é uma variante de domesticação da natureza técnica do cinema, uma variante do filme-no-filme, o todo-no-todo ou, como anotou o próprio Tarkóvski, “tempo dentro do tempo”. Voltando para as duas formas de tempo antes descritas, o tempo de viagem (que é o tempo da errância, peregrinação, conhecimento) e o tempo da nostalgia (pela pátria, pelo lar, pelo seio materno) que estruturam praticamente todos os filmes de Tarkóvski, notamos que um desses tempos é aquele que estamos acostumados a chamar tempo, tanto no sentido real quanto no sentido fenomenológico – o tempo de transcurso do presente, o tempo de captura da verdade do momento ou da história, ou outro qualquer - justamente o “tempo dentro do tempo”. Se o primeiro está indiretamente ligado à economia de troca e acumulação de bens, já o segundo – o tempo da memória - o está à “economia da pobreza”, para a qual a “casa”, a “família”, a “mãe” constituem o limite da “riqueza”, que pode dar vida e que se regula, exclusivamente, pelas relações no oikos. Tudo o que se dá acima disso é redundante e exige, para si, uma regulação social, uma generalização da lei (nomos), isto é, a economia em sua concepção atual. Quando fazemos a pergunta sobre o significado de Tarkóvski para a história do cinema e da cultura, então, a própria palavra “significado”, isto é, significância, valor, involuntariamente, nos obriga a inscrevê-la na maneira de ação da economia de riqueza, realizações, ambições, e conferir o status de artista ao de autor-diretor que leva verdades elevadas ao espectador. Sem nenhuma dúvida, isso é, em parte, justo. Mas só em parte. De todas as maneiras, tal “elevação” de Tarkóvski como um artista do cinema, apesar de responder às ambições do próprio
diretor, não permite responder a questões que preocupavam Tarkóvski como ser humano, imbuído pela matéria do cinema, e pesquisador daquele “tempo dentro do tempo”, já que até os tempos da cinematografia permaneceram latentes, adormecidos. Abranger essa duplicidade, que é característica para Tarkóvski e para a cinematografia como um todo, quando o cinema é, ao mesmo tempo, um meio de ganhar dinheiro, uma tecnologia de obtenção de lucro, de acumulação de capital (real e simbólico), mas também uma imersão no mundo onírico criativo, retorno ao passado, sonhos sobre o futuro, e a infantilização que supõe tudo isso, significa capturar a relação inseparável que existe entre o cinema intelectual e de autor e o cinema de divertimento, que até agora permanece não evidente. É importante entender que, na imagem cinematográfica, essas duas economias são inseparáveis. E se agora vemos a absoluta infantilização do cinema, que está cheio de efeitos especiais, então, em Tarkóvski, o caminho para a infantilização (retorno para as sensações infantis naturais) encontra-se na invenção da pirotecnia cinematográfica. Só que, à diferença dos efeitos especiais contemporâneos de computador, Tarkóvski usa a arte como pirotecnia, a religião e a técnica cinematográfica na cena, os valores da arte e da fé, graças às cores e aos cantos, funcionam como um recurso pirotécnico, no momento em que a lógica do plano-sequência, ao descobrir outro tempo dentro do tempo global da cultura, contém esses valores, fazendoos partícipes de uma história da percepção muito pessoal e inocente do mundo. Justamente é esse tempo o que alguma vez Nietzsche chamou tempo de eterno retorno. O que retorna em eterno retorno? Em absoluto, alguma coisa supervaliosa ou supersignificativa, ou nem sequer valiosa ou significativa. O que retorna é aquilo que até nem poderíamos pensar que deveria voltar. Acontecimentos banais, mas que fazem parte da vida (da memória, da infância esquecida, da casa), do mundo, como diria Nietzsche, sem rancor nem negativismo. E nesse mundo, o clichê adquire a potência de mudar os valores e os valores descobrem sua temporalidade, sua inconstância.
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Андрей Тарковский: экономика длинного плана Олег Аронсон Когда кинематографисты или историки кино говорят о длинном плане (то, что по-английски называют long take), то имеется в виду, прежде всего, достаточно продолжительный отрезок фильма без монтажных склеек и с явно ощутимым, но не слишком быстрым движением камеры. Последнее обстоятельство чрезвычайно важно, поскольку именно такого рода длинный план будет нами обсуждаться, а не просто безмонтажный кусок, где камера может быть статична, а может двигаться в рваном ритме, с увеличенной скоростью, имитировать ручную камеру и прочее. Конечно, можно привести множество примеров длинного плана и без движения камеры, которые обычно сводятся к общему плану или план-эпизоду. Примеры из фильмов Флаерти, Уайлера, Уэллса проанализированы в работах Андре Базена. На их основе он строит свою теорию глубинной мизансцены кадра. Кроме того, современный кинематограф переполнен технически изощренными эпизодами, где движение камеры уже перестает быть соизмеримо с человеческой чувственностью, или, точнее, указывает на возможности расширения восприятия, ограниченного рамками повседневного перцептивного опыта. Первые эксперименты с такого рода необычными движениями были сделаны уже в кинематографе 20-х годов прошлого века и получили свое теоретическое обоснование в текстах Жана Эпштейна и Дзиги Вертова. Мы же сосредоточимся на длинном плане, который обладает определенной степенью консервативности по отношению как к монтажным экспериментам, так и по отношению к экспериментам с движением камеры. Он, с одной стороны отсылает нас к самому началу кинематографической технологии еще не знавшей монтажа, с другой – открывает важнейшее дополнительное движению в кадре измерение кинематографа – движение самого плана, то есть возможность внутрикадрового монтажа, монтажа без монтажных склеек. В этом смысле, с технической стороны, в длинном плане уже содержится «весь» кинематограф, то есть кадрирование плюс монтаж. Жиль Делёз показал, что кадр и монтаж являются теми двумя фундаментальными техническими характеристиками, которые создают новый тип образа (кинематографический образ) схватывающий мир движения, и, как следствие, саму изменчивость мира, в элементарных перцептивных актах. Однако при этом длинный план интересен именно тем, что он не сводится ни к кадрированию, ни к внутрикадровому монтажу. Не случайно основные примеры использования длинного плана мы находим в кинематографе после Второй мировой войны, который согласно Жилю Делёзу открывает образ-время, приходящий на смену господствовавшему образу-движению, формируемому именно кадром и монтажем. Образ-время возникает тогда, когда возможности выразительности образа-движения исчерпаны, когда звук, цвет, закадровое пространство настолько освоены кинематографическим восприятием, что различие между миром и
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изображением перестает быть существенным. И вот длинный план – это как раз один из тех кинематографических элементов, которые одновременно указывают на новые возможности кино и отсылают нас к киноархаике. Характерно, что одним из самых знаменитых фильмов, целиком построенном на длинном плане был фильм «Веревка» (1948) Хичкока, режиссера никогда не стремившегося к эксперименту с изобразительной формой а экспериментировавшим прежде всего с зрительским восприятием. Приведу еще два классических примера длинного плана. Первый: начальная сцена уэллсовской «Печати зла» (1953), когда камера на протяжении нескольких минут движется в ритме разных персонажей фильма, едущих на машине, периодически притормаживающей и останавливающейся на перекрестках, идущих пешком, пробегающих мимо… Все это время зритель уже знает про подложенную в машину бомбу, и потому его слежение за героями регулируется не столько движением камеры, сколько ожиданием катастрофической развязки. Точно также, кстати, и в «Веревке» длинный план оказывается оправдан как кинематографическое средство не-кинематографическим сюжетным поворотом – совершенным преступлением, улика которого (веревка) постоянно оказывается в поле внимания зрителя, но не персонажей фильма. В этих случаях длинный план дает зрителю некоторую полноту восприятия, и даже – его избыточность, в результате чего преступление перестает быть уникальным событием (как в детективе, например), а становится длящимся во времени, будучи уже совершенным. Это придание временнóго измерения событию, которое уже состоялось, и которое обычно выводится за пределы изображения, вообще характерно для длинного плана, превращающего банальные предметы попадающие в кадр в аффективные знаки. Однако, в свою очередь, длинный план осуществляет и противоположную процедуру – банализирует экстраординарные события повествования, которые являются его пружинами, перипетями. Потому также важен второй пример, который противоположнен вышеописанной логике целого. Это финальный план из фильма Антониони «Профессия: репортер» (1975), где камера покидает главного героя, выходит за пределы его комнаты, обозревает пространства и события вокруг, а возвращаясь, застает героя уже мертвым. Здесь длинный план акцентирует как раз то, что остается за пределами видимости, что ускользает, образуя своеобразное «слепое пятно» действия «самой» жизни прокравшейся в кадр, или, говоря в терминах Делёза, составляющей его виртуальное наполнение. Задав эти рамки понимания длинного плана, обратимся к фильмам Андрея Тарковского, для которого не просто характерно обращение к длинному плану как кинематографическому средству, но который обнаружил особую специфику этого средства, напрямую связывающего кинематограф и память. Можно даже сделать более сильное утверждение: для Тарковского длинный план перестает быть приёмом, а становится способом переосмысления и переопределения кинематографа. Другими словами, через длинный план в привычный пласт кинематографического повествования, киноизображения, входит нечто, что позволяет обнаружить саму материю кино, которая для Тарковского – время.
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Отчасти тема временности, длительности уже была затронута нами выше, когда приводились классические примеры длинного плана. Однако ни в одном из них время не предстает как ключевой образ, с которым связан длинный план. Практически повсеместно длинный план остается приемом, позволяющим решать конкретные задачи зрительского восприятия (как у Хичкока и Уэллса) или интеллектуального прочтения эпизода (Антониони). Для Тарковского же кинематографическим средством является не кадр, план или монтаж, а само время. Он прямо пишет, что не абстрактное время философов, а именно его материальность является основной специфической чертой кинематографа.� И материальность времени для него заключена не просто в фиксировании протекающего момента, и не в возможности воспроизвести момент уже прошедший. В этих случаях мы все еще мыслим время как абстракцию, числовую шкалу происходящих изменений, необратимых процессов, в силу чего возможность воспроизводить прошедшее есть не более, чем кинематографический аттракцион. Для Тарковского время в его материальности всегда время катексиса, удержания памяти, возвращения к забытому, наполнение собственного воспоминания воспоминаниями других. Вещи в кадре предстают не как случайные, а словно переполненные значением, что располагает к разного рода интерпретациям фильмов Тарковского от историкокультурных до религиозных, от эстетических до психоаналитических. Однако при этом почти все интерпретации Тарковского сталкиваются с тем, что несмотря на акцентированную значимость каждого элемента в кадре, этот же элемент обладает явной смысловой нехваткой, в результате эстетизм оказывается на грани китча, вера – религиозностью неофита, символы – набором культурных стереотипов советского интеллигента. Что же касается психоанализа, то, возможно, он и мог бы быть ключом к отдельным кинематографическим мотивам, но при этом очень трудно было бы удержать именно ту специфику образов Тарковского, которая позволяет нам выйти за рамки конкретных фильмов и обнаружить ту кинематографическую материю, которая, возможно, куда больше отвечает сегодняшнему состоянию дел в кино, нежели в годы, когда эти фильмы снимались. В этом смысле катексис как термин психоаналитический объясняет, с одной стороны, физически ощутимую либидиозную составляющую изображения в фильмах Тарковского, его привязанность к отдельным предметом, образам, мотивам, а с другой – препятствует чистой герменевтике, указывая на кино не просто как на средство авторского выражения, а именно на особый тип образной материи, в которой память предстает как набор навязчивых повторений одного и того же, набор ускользаний и несоответствий, образующие особое аффективное пространство фильма. Именно такова память ребенка из «Иванова детства», структурированная травмой войны, такова память, связывающая разорванные поколения друг с другом, соединяющая эпохи и делающая течение времени ощутимым через родство (новелла «Колокол» в «Андрее Рублеве). Также можно вспомнить и образ постоянно воскресающей Харри из «Соляриса». Но все они находятся в одном ряду со шкатулкой, книгой, часами и… собакой. Только через незначимые повторы и навязчивости может быть реализован этот род кинематографического катексиса, для которого нет различия между важными
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вещами и неважными. Наиболее показателен в этой связи фильм «Зеркало» (1975), весь построенный на собирании разрозненных воспоминаний о матери и том времени, когда герой с нею был неразделим, составляя с ней словно одно целое, воспоминаний своих, ее собственных, посторонних, общих… Когда мы говорим о длинном плане сегодня, то во многом благодаря Тарковскому, можем утверждать, что в тот момент, когда длинный план оказывается необходимостью для кинематографического образа, это значит, что в силу вступает функция удержания в памяти того, что утрачено, потеряно и невосстановимо. Однако невосстановимо это не в силу слабости памяти, а в силу бессмысленности и ненужности самого объекта. Именно наделённость случайного объекта эротической энергией воспоминания, превращает его из культурного знака в аффективный элемент памяти. Вспомним знаменитый длинный план из «Сталкера» (1979), где камера плавно движется над затопленным водой полом комнаты, выхватывая самые разнообразные предметы, ставшие оставленные здесь отступившей цивилизацией. Среди них шприцы, посуда, пистолет маузер, разобранные отслужившие свой срок механизмы, монеты, икона, обрывки газет, листки календаря, шкатулка, которую внимательный зритель уже видел в фильме «Солярис» (1972)... Можно, конечно, соорудить сложный семиотико-герменевтический комплекс, вчитав смысл и в каждый из предметов, и, в фильм в целом. При этом не важно, осмысливаем мы каждый из элементов в кадре исходя из общего замысла фильма, или же, наоборот, собираем смысл из рассыпанных в вещах указаний на него. Не важно, с какой стороны мы входим в этот герменевтический круг. В любом случае мы попадаем в пространство, где взыскуемым смыслом уничтожается катексис. Интерпретационный механизм диктует фильму определенный закон видения и чтения знаков. И этот закон подстраивает под себя ту кинематографическую среду, пространство, несемиотизируемую образную материю, которая как раз и проявляет бессмысленную аффективную озабоченность ненужным, утраченным, тем, что все еще не наделено смыслом. Длинный план сколь бы тщательно он не был выстроен, самим режимом его восприятия говорит об избыточности вещей и деталей, о невозможности их охвата единой интерпретацией, а также о слабом сопротивлении, которое оказывают эти вещи, самим указанием на утраченное целое. Катексис всегда направлен именно на это беззаконное пространство, на то, что избыточно по отношению к уже состоявшемуся пониманию или означиванию. В психоанализе он предполагает восполнение полноты памяти за счет вытесненного (забытого) и выведение вытесненного в режим представления. Катексис осуществляет своеобразную функцию посредничества между сознанием и бессознательным и в этом смысле ее можно рассматривать как категорию экономическую. Только основной вопрос этой экономики звучит несколько необычно, поскольку перед нами экономика ненужного. И важно не превращать ненужное в ценное, не подменять эту слабую экономику катексиса экономикой обмена, а попытаться удержать этот иной тип экономики в зоне его действия. Возможно ли это? Не является ли призрак экономики катексиса (она же
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– экономика длинного плана) чем-то, что абсолютно фиктивно и чем можно легко пренебречь? Моя задача, не отрицая призрачность экономики, о которой идет речь, попытаться дать ощущение ее материальности и если не значимости, то по крайней мере неустранимости. Потому, для начала, оставим на время в стороне кино, и обратимся к самому слову экономика, которое сегодня звучит слишком конкретно и накрепко привязано к современным стратегиям поведения в ситуации рынка, причем рынка по преимуществу капиталистического. Между тем, экономика – вещь неоднозначная. И эта ее неоднозначность зафиксирована в самом слове, состоящем из двух древнегреческих слов oikos и nomos. Греческая «ойкономия» весьма далека от нынешнего понимания экономики, в которой значение oikos’а (дом, очаг) практически утрачено, а приоритетом обладает nomos (закон). При этом nomos действует именно как «закон утраты», или – нехватки, только вместо удержания утраченного (катексис, который можно понимать не только через психоанализ, но и через практику архаические практики, такие как ритуал) вводится обмен (поиск замещающего эквивалента). Таким образом, мы имеем не одну, а по крайней мере две разных экономики. Одна – экономика хозяйства (домашнего очага), вторая – привычная экономика обмена (торг, приобретение, накопление). В нынешнем мире первая не утрачена, но интерпретируется в терминах второй. Как показывает Жан-Пьер Вернан в своем классическом исследовании – у древних греков было иначе.� Каждая из этих экономик имела своего бога, за нее отвечавшего, и они вовсе не были единым целым. За дом и очаг отвечала богиня Гестия (Hestia), а за странствия, путешествия и торговлю – Гермес (Hermes). Сегодня, вполне условно, мы можем назвать нынешнюю экономику – экономикой Гермеса, или даже «мужской» экономикой. В нее входит и культура, и научные открытия, искусство, бизнес, войны и деньги… Почти всё вокруг сформировано Гермесом и характерно, что память о богине Гестии крайне слаба. Между тем, Гестия отвечает за детство, девственность, материнство, благодаря которым есть дом, где рождаешься, куда можно вернуться, где можно остаться и умереть в спокойствии без трагического героизма. В каком-то смысле эту экономику можно назвать «женской» или «детской». Не будем умножать противопоставления одной экономики другой. Между ними нет противоречия. Просто исторически образ лишь одной экономики (Гермеса) и стал для нас пониманием экономики, ее законом. Гестия же осталась вне этого закона, потому все, что связано с «женским», детским», «материнским» обладает слабостью, хрупкостью и неустойчивостью. Дом всегда грозит быть захваченным и разоренным. Стоит Одиссею покинуть свой дом в поисках денег и славы, как Пенелопу осаждают женихи, угрожающие разрушить устойчивость мира семьи. Хотя эта устойчивость и стабильность разрушается, как ни странно, законом, поскольку именно неумолимый закон требует Одиссея ухода из дома, в стихию войн и скитаний, а ностальгия (память об утрате) движет его к дому,
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через хитрости и обманы. Можно заметить, что мужественный Одиссей все время подпадает под чары очередного закона, хитроумен и ловок он оказывается тогда, когда вступает в силу энергия ностальгии, своеобразный аналог катексиса. Потому «Одиссея» это не только странствие, но, прежде всего, возвращение. «Возвращение» объединяет в себе обе экономики, каждая из которых обуславливает другую.� В кинематографе Тарковского мы обнаруживаем подобное же взаимодействие экономик не просто на уровне мотивов путешествия и дома. Эти мотивы очевидны. Они вычленимы и на уровне сюжета, и на семантическом уровне изображения. И даже кажется, что практически все фильмы, начиная с «Соляриса», держатся на этом драматургическом соединении странствияпутешествия и ностальгии-памяти. Причем первое носит откровенно меланхолический характер, а второе возникает как событие откровения. Крайними примерами могут служить фильмы «Зеркало», акцентирующий исключительно образы памяти, и документальная лента «Время путешествия» (Tempo di Viaggo), посвященная подбору натуры для будущего фильма «Ностальгия». Характерно, что даже на уровне изобразительном и повествовательном легко прослеживаемы архаические черты экономик Гестии и Гермеса: если в «Зеркале» все строится вокруг образа матери и материнского дома, где прошло детство, а экономика ценностей дана в виде возвышающих орнаментирующих артефактов Искусства, Красоты и Истории, то в документальной картине мы наблюдаем путешествие двух мужчин (Тарковского и Гуэрры), ведущих между собой разговоры, планирующих будущую совместную работу. Это мужское братство настолько акцентировано, что большую часть фильма мы вообще почти не видим женщину-переводчика, участие которой сведено к функции инструмента, полезного, но, в принципе, не обязательного. Такому союзу искателей-созидателей не нужны ни женщины, ни дети, ни теплота очага (Гуэрра: «Андрей, ты никогда не говорил нравится ли тебе мой дом?» Тарковский: «Тонино, мне нравятся твои стихи»). Между тем, путешествие и дом, странствие и ностальгия, дело и детство, - это не просто мотивы. В качестве разного рода экономик, это, в первую очередь, способ кадрирования и съемки. То есть обе эти экономики соприсутствую в кадре не только в виде семантики конкретных изображений, но как кинематографический синтаксис. Если довести эту логику до предела, то можно сказать, что экономика Гестии в фильме проявляет себя как синтаксис заботы об устройстве и обустройстве самого фильма, придание ему характера виртуального очага. Тарковский один из немногих режиссеров, которому удалось максимально акцентировать эту, всегда ослабленную и подавленную в современном мире, экономику Гестии, где вещи-образы не подлежат обмену, символизации, интерпретации, а проявляются благодаря самой материи кинематографа, важнейшая составляющая которой – удерживать в кадре избыточное, ненужное, саму жизнь в предъявлении и представлении не нуждающуюся. Для Тарковского кинематограф имманентен памяти, причем памяти не индивидуальной, а всеобщей, которая и есть – время. Фактически, когда мы имеем дело с кино, то с неизбежностью имеем дело с производством, целиком и полностью подчиненным экономике обмена.
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Сюда входит и написание сценария, и подбор натуры, а также – сам процесс съемок, окончательный монтаж, наложение звука, но также все то, что этому технологическому порядку неизбежно сопутствует, например, - эстетизация кадра, символизация (придание смысла и значимости повествованию и изображению). Другими словами, все то, что мы называем искусством (и как ремесло, и как творчество), - сфера действия Гермеса. Гораздо труднее указать на то место, где проявляет себя Гестия. Одних мотивов материнства или дома недостаточно. В качестве повествований они давно закреплены в поле представления, а чтобы не думали проявлять свою «подвижность» и даже не намекали на свою самостоятельность, их порой наделяют архетипическим характером. В этом состоит одна из тех очевидных техник европейского мышления (придание чемулибо статуса типического, архетипического, онтологического), благодаря которой любое различение сводится к дуальности, противопоставлению, оппозиции, причем оппозиции неравновесной, одна из сторон которой обладает приоритетом, порой очевидным, порой неявным. Когда мы проводим здесь различение двух экономик, то невольно воспроизводим эту логику оппозиций. И даже намекая на условность самого противопоставления, указывая, что одна из сторон оппозиции (экономика Гестии) остается подавленной и скрытой именно в качестве экономики, и что проявляет себя она как необходимое нередуцируемое дополнение к экономике обмена, то даже в этом случае мы воспроизводим нечто, напоминающее диалектику. Чтобы дистанцироваться и от онтологизации каждой из сторон данной оппозиции, и от диалектики, необходимо сконцентрироваться не на философскокультурном содержании, а именно на экономической стороне. Это тем более трудно, поскольку экономика чаще всего мыслится как нечто производное от политики ценностей (как политэкономия). Тем не менее, попытаемся установить связь между тем, что было нами извлечено из античности и архаического мышления как экономика Гестии и экономика Гермеса, и такими кинематографическими элементами, которые зачастую мыслятся исключительно как технологические, как монтаж и кадр. Каждый из этих элементов кинематографа, что было замечено еще Эйзенштейном представляет собой принцип pars pro toto (часть вместо целого), обладая замещающим свойством тропа (метафоры или метонимии), но также и принципом пралогического мышления.1 Фактически Эйзенштейн был одним из тех, кто осознавал кадр, крупный план и монтаж не как кинематографические средства, а как принципы и формы мышления, воплощенные в кинематографе, и которые, благодаря кинематографу, мы можем распознать в произведениях искусства прошлого. Кроме того, Эйзенштейн отмечает еще одну немаловажную
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«Музыкальное произведение может быть сыграно по‑разному, может длиться разное время. Время в этом случае становится лишь условием причины и следствия, располагающихся в определенном заданном порядке, – оно носит в этом случае абстрактно‑философский характер. Кинематографу же удается зафиксировать время в его внешних, эмоционально постигаемых приметах. И тогда время в кинематографе становится основой основ, подобно тому, как в музыке такой основой выступает звук, в живописи – цвет, в драме – характер» (Андрей Тарковский. Запечатленное время). Цит. по: http://tarkovskiy.su/texty/vrema/vrema6-3.html
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деталь: осознание того, что кинематографическое выражение имманентно самому мышлению, позволяет ощутить призрачность, сновидность и кинообраза, и мысли.� В этом пространстве происходит неразличимость, смешение, переплетение части и целого. Для Эйзенштейна это своеобразный вариант диалектического образа, с единым законом его функционирования и развития. Совсем не так для постоянного антогониста Эйзенштейна Тарковского. Его кинематографический принцип делает такие вещи как кадр или монтаж подчиненными не фильму как произведению, а фильму, в котором запечатлено время. Для него логика монтажных частей подчинена логике целого. «Целое» же воплощает фильм тождественный, говоря языком Бергсона, срезу материи времени-памяти. Вот, что он пишет о монтаже: «Монтаж — в конечном счете, лишь идеальный вариант склейки планов, который уже априори заложен внутри материала, снятого на пленку. Правильно, грамотно смонтировать картину означает не мешать органичному соединению отдельных сцен и кадров, ибо они уже как бы заранее монтируются сами собой, ибо внутри них живет закон, по которому они соединятся и который надо лишь понять и ощутить и в соответствии с ним произвести склейку или подрезку тех или иных кадров. Закон соотношения, связи кадров почувствовать иногда совсем непросто (особенно тогда, когда сцена снята неточно) — тогда за монтажным столом происходит не простое — логическое и естественное — соединение кусков, а мучительный процесс поисков принципа соединения кадров, во время которого постепенно, шаг за шагом, однако все более наглядно будет проступать суть единства, заложенного в материале. Здесь существует своеобразная обратная связь — самоорганизующаяся конструкция создает себя в монтаже благодаря особым свойствам материала, заложенным в нем еще во время съемок. Через характер склеек как бы проступает суть отснятого материала».2 В этом фрагменте видно, что для Тарковского монтаж есть не технология, не форма, и не способ выражения, а способ существования самой кинематографической материи в логике единства, логике целого. Именно такой логике как раз и подчинен длинный план, сочетающий в себе кадр и движение камеры, то есть кадр и закадровое пространство, кадр и внутрикадровый монтаж. Когда монтаж фильма становится зависимым от длинного плана как стилистической доминанты, то он оказывается подчинен совершенно другому типу экономики, - не экономике производства, замещения и обмена, а экономике обустройства, одомашнивания фильма, придания ему характера среды имманентной самой жизни, более того оказывающейся не замещающей жизнь не изображающей ее, а восстанавливающей. Это вариант возвращения времени, материализованного в образах памяти, которые и есть для Тарковского образы кино. Здесь можно проследить бергсонианско-делезианские мотивы в его интерпретации, где кинематографический образ оказывается сплетением образадвижения и образа-времени. Тарковский, фактически, выворачивает наизнанку все
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Тарковский Андрей. Цит. соч. Там же.
те идеи относительно образа в кино, какие мы встречаем у Сергея Эйзенштейна: «…Кинообраз в основе своей есть наблюдение жизненных фактов во времени, организованных в соответствии с формами самой жизни, с ее временными законами. Наблюдения подлежат отбору: ведь мы оставляем на пленке только то, что имеет право быть слагаемым образа. При этом кинематографический образ нельзя делить и членить вразрез с его временной природой, нельзя изгонять из него текущее время. Образ становится подлинно кинематографическим при том (среди прочих) обязательном условии, что не только он живет во времени, но и что время живет в нем, начиная с отдельно взятого кадра. Любой «мертвый» предмет — стол, стул, стакан, взятый в кадре отдельно от всего, не может быть представлен вне протекающего времени, как бы с точки зрения отсутствия времени. Отступление от этого условия сразу же создает возможность тащить в фильм огромное количество атрибутов любого соседствующего искусства. С их помощью можно делать даже очень эффектные фильмы, но с точки зрения кинематографической формы они пойдут вразрез с естественным развитием природы, сущности и возможностей кино».� Этот фрагмент интересен еще и потому, что в нем мы находим идею закона времени («временного закона»), соответствующего форме жизни, располагающейся внутри кадра. Это не просто некий организованный порядок (nomos), но это именно порядок oikos’a. Особенно очевидно это выражено Тарковским в его концепции монтажа интенсивностей различных кадров. Для него закон монтажа связан не с длинной, композицией кадра и не с его семантикой, а с трудноуловимой характеристикой, которую он называет «давление времени в кадре», и которая только на первый взгляд может показаться субъективной. Именно это «давление» дает ощутить длинный план. Он становится способом его обнаружения. В свою очередь монтаж, оказывается средством превратить любой кадр, любое изображение в вариант длинного плана, превращение технических средств (кадр, монтаж) в отношение вещей, обустраивающих кинообраз, становящихся отношениями не производства фильма, а его хозяйства, с тем необходимым законом времени (памяти), который и есть возвращение домой, в oikos. И как дом у каждого может быть разный, так и набор вещей в кадре может быть какой-угодно. Не вещи возвращают нас к дому, но некий принцип целого, не зависимый ни от какой из них. Ни через какую часть это целое не собирается, и само это целое не предполагает частей. Это целое – то, что Бергсон называл «полнотой памяти», выходящей за рамки каждого конкретного субъекта воспоминания. Именно это и есть пульс, давление времени в кадре у Тарковского: память, которая лишь кажется твоей собственной, но принадлежит любому; время, обнаруживающее свой закон в нечеловеческих формах изменчивости жизни, а не в исчислимости (человеком) или конечности (смертности человека). Но что указует на такое время внутри фильма? Как мы можем зафиксировать время как воспоминание или как длительность? Подсказку дает тот же Делёз во втором томе «Кино», посвященном образу-времени. Он анализирует структуру «фильм-в-фильме», которую чаще всего рассматривают как рефлексивную
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структуру, выражающую как раз логику pars pro toto, или же как геральдическую конструкцию, вводящую момент бесконечного воспроизводства одного и того же. Делёз же подводит читателя к экономическому пониманию этой ситуации. Для него фильм-в-фильме – один из вариантов того, что он называет образомкристаллом, где «задействованы то актуальное и виртуальное (обращенные друг к другу как два зеркала); то прозрачное и тусклое; то зародыш и среда».� «…С одной стороны, зародыш представляет собой виртуальный образ, который впоследствии кристаллизует актуально аморфную среду; но, с другой стороны, последняя должна обладать виртуально кристаллизуемой структурой, по отношению к которой зародыш теперь выступает в виде актуального образа».3 Делёз считает, что именно фильмы Тарковского являются воплощением такого взаимодействияобмена между виртуальной и актуальной составляющими образа. «Зеркало» он интерпретирует как постоянно вращающийся кристалл с невидимыми (виртуальными) гранями – «отец» и «мать», и видимыми (актуальными) – «его мать с ним в детстве» и «его жена с ребенком». Также и в «Солярисе» мы видим напряжение между отражающими гранями планеты-океана и мысли, а также среды и зародыша, в котором невозможно примирить виртуальное (заново обретенную жену) и кристаллизуемую (актуализируемую) форму вселенной (возвращенный дом).� Для Делёза важно отметить как в формировании образа-кристалла (фактически, образа-времени) участвуют темы зародыша и зеркала, в которых заложена и идея творения, и идея творения, отраженного в творчестве. Но не менее важно для него и указание на то, что структура фильм-в-фильме не просто повествовательный прием, а именно кристалл: зародыш, кристаллизующий вкруг себя среду, и отражение, создающее призрачные дубликаты. Не случайно, что другими примерами фильма-в-фильме для него являются не только классические примеры из Вертова и Бастера Китона, Феллини и Вендерса, но и любые используемые флэшбэки и флэшфорварды (воспоминания и грёзы), а также то, что он называет «фильмы о деньгах». Он пишет: «Деньги представляют собой изнанку всяческих образов, лицевую сторону которых демонстрирует кинематограф, так что фильмы о деньгах это фильмы в фильме или о фильме (хотя имплицитно)».� Фильм невозможен без денег, а потому деньги стали неотъемлемой частью кинообраза, частью его экономики. И эта часть, которая соединяет обе экономики – хрематистику и ойкономию, экономику производства, обмена, распоряжения богатствами и экономику домашнего очага (или – экономику жизни, она же – экономика бедности). Будучи принципиально разведенными в буржуазную эпоху, они вновь соединяются в практике кинематографа. Фильм-в-фильме, фактически, есть это обнаруживаемое, актуализуемое переплетение этих двух экономик, одна из которых всегда стремится быть представленной в виде зрелищного аттракциона, а другая скрывает себя за техниками съемки, способами монтажа, выбираемыми нарративами и прочим. Но когда мы обнаруживаем, что длинный план или флэшбэк – это не просто стилистические приемы или способы повествования, то сразу же выходит на поверхность та логика образа, которая предполагает противоречивую,
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Тарковский Андрей. Цит. соч. См: http://tarkovskiy.su/texty/vrema/vrema4-2.html
парадоксальную, но и неразрывную при этом связь чистой виртуальности денег и материальности проживаемого времени. Особенно причудливо соединяется производство фильма с экономикой хозяйства в дневниках Тарковского, что позволяет интерпретировать кинематографический образ шире, нежели только тот, который запечатлен на пленке. Вот только один пример записи (и подобных фрагментов множество): «24 апреля 1970 купили дом в Мясном. Тот, который хотели. Вот он: Теперь мне ничего не страшно - не будут давать работать - буду сидеть в деревне, разводить поросят, гусей, следить за огородом, и плевать я на них хотел! Постепенно приведем дом и участок в порядок и будет замечательный деревенский дом. Каменный. Люди вокруг будто бы хорошие. Поставим улья. Будет мед. Еще бы ≪газик≫ достать. Тогда всё в порядке. Надо сейчас подработать денег побольше, чтобы кончить к осени с домом. Чтобы можно было жить тут и зимой. 300 км. от Москвы - не будут таскаться просто так. Сейчас важны две вещи: 1. Чтобы «Солярис» был двухсерийным. 2. Чтобы «Рублев» вышел хотя бы со 100% тиража. Тогда бы раздал долги. Да! И если бы удалось заключить договор с Душанбе. В доме надо сделать вот что: 1. Перекрыть крышу. 2. Перестелить все полы. 3. Сделать вторую раму у одного из окон. 4. Покрыть черепицей с крыши сарай. 5. Сделать печь с паровым отоплением. 6. Заделать трещины на мосту. 7. Поставить штакетник вокруг дома. 8. Подвал. 9. Снять фанеру с потолков. 10. Раскрыть дверь между комнатами. 11. Поставить на мосту плиту. 12. В огороде построить баню. 13. Сделать уборную. 14. Сделать насос (электрический) из реки в дом (если не будет замерзать зимой). 15. Душ (у бани). 16. Посадить сад. 17. Покрасить полы, стены на мосту и балки».4 Здесь монтажно соединены и включенность Тарковского в производство фильма, и то самое обустройство конкретного дома, погруженность в которое есть
4
Делёз. Ж. Кино. М.: Ad Marginem, 2004, c. 370.
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часть практики жизненного существования (если угодно «этики существования»), которая не может не быть частью и производства фильма. И все это («список дел») записано как вариант длинного плана, своеобразного прохода по дому, выхватывающего вещи, которые должны перейти из виртуального плана существования в актуальный, из области действия и производства в лоно семейного очага. Но и сам длинный план – это вариант одомашнивания технической природы кино, вариант фильма-в-фильме, целого-в-целом, или, как записал сам Тарковский «времени внутри времени». Возвращаясь, к двум режимам времени, описанным ранее, к времени путешествия (оно же время скитания, странствия, познания) и времени ностальгии (по родине, домашнему очагу, материнскому лону), которые структурируют практически все фильмы Тарковского, отметим, что одно из этих времен есть, собственно то, что мы привыкли называть временем и в физическом, и в феноменологическом смысле – время протекания настоящего, время схватывания истины момента или истины истории, другое же – именно «время внутри времени». Если первое косвенно связано с экономикой обмена, накопления благ, то второе – время памяти – с «экономикой бедности», для которой «дом», «семья», «мать» оказывается предельным «богатством», которое может дать жизнь, и которое регулируется исключительно отношениями в oikos’е. Все, что дается сверх этого – избыточно, и требует для себя уже общественного регулирования, распределения, закона (nomos), то есть экономики в ее нашем нынешнем понимании. Когда мы задаемся вопросом о значении Тарковского для истории кино и культуры, то само слово «значение», то есть – значимость, ценность, невольно заставляют нас вписать его в режим действия экономики богатств, достижений, амбиций, наделить его статусом художника, авторарежиссера, доносящего до зрителя горние истины. Несомненно, что отчасти это справедливо. Но только лишь отчасти. Все же такое «возвышение» Тарковского как художника от кино, хоть и отвечает амбициям самого режиссера, но не позволяет ответить на вопросы, которые волновали Тарковского как человека, захваченного материей кинематографа, исследовавшего то «время внутри времени», которое до кинематографа оставалось латентным, спящим. Схватить эту двойственность, которая характерна и для Тарковского, и для кинематографа в целом, когда одновременно кино – это и способ заработка, технология извлечения прибыли, накопления капитала (реального и символического), но и – погружение в сновидческие миры, возвращение в прошлое, грезы о будущем, и сопутствующая всему этому инфантилизация, значит, уловить ту неразрывную связь, которая существует между интеллектуальным и авторским кино и кинематографом развлечений, которая до сих пор остается неочевидной. Важно понять, что в кинообразе эти две экономики неразделимы. И если сегодня мы видим крайнюю инфантилизацию кинозрелища, наполненного спецэффектами, то у Тарковского путь к инфантилизации (возвращению к детским непосредственным
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переживаниям) лежит через изобретение кинематографической пиротехники. Только в отличие от современных компьютерных спецэффектов, Тарковский как пиротехнику использует искусство, религию и кинематографическую технику в ее самом простом измерении (длинный план). Здесь можно вспомнить его знаменитые планы из «Соляриса» (с «Охотниками на снегу» Брейгеля), «Жертвоприношение» (с «Поклонением волхвов» Леонардо), почти китчевый план со свечой из «Ностальгии», но наиболее показательным, на мой взгляд, является появление цвета в конце «Андрея Рублева», когда робкое движение камеры по изображению рублевских икон, наплывы, переходы, хоровое закадровое пение, создают своего рода идеальную конструкцию длинного долгого плана, хотя формально таковым он не является. В этой сцене ценности искусства и веры, благодаря цвету и пению, работают как пиротехнические средства, в то время как логика длинного плана, обнажая иное время внутри глобального времени культуры, их сдерживает, делая причастными очень личной и очень наивной истории восприятия мира. Именно это время, когда-то Ницше назвал временем вечного возвращения. Что возвращается в вечном возвращении? Вовсе не нечто сверхценное и сверхзначимое. И даже не ценное и не значимое. Возвращается то, про что мы и не могли подумать, что оно должно вернуться. Забытое и банальное, но причастное жизни (памяти, забытому детству, дому), миру, как сказал бы Ницше, без злопамятства и негативности. И в таком мире клише обретает потенцию изменения ценностей, а сами ценности обнажают свою временность, преходящесть.
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Este ensaio busca introduzir os conceitos de realidade vivente e realidade aparente que são qualidades observáveis nas obras de arte. As imagens, no cinema de Tarkóvski, destacam a qualidade de realidade vivente já, quando de sua construção, podendo ser percebida pelo espectador como uma experiência de fronteira, entre o mundo visível e o mundo invisível, assim como no sonho. Tais conceitos encontram seu fundamento nos estudos do matemático, físico, historiador da arte e teólogo Pável Floriênski. Palavras chave: Realidade vivente, realidade aparente, perspectiva inversa, cinema, Tarkóvski, Floriênski, arte.
Abstract: This essay aims to introduce the concepts of living reality and apparent reality that are observable qualities in works of art. Tarkovsky’s cinema was constructed with images that highlight the quality of living reality. This quality can be perceived by the viewer as an experience of border between the visible world and the invisible world, like a dream. These concepts find their basis in studies of the mathematician, physicist, art historian and theologian Pavel Florensky. Keywords: Living reality, apparent reality, reverse perspective, cinema, Tarkovsky, Florensky, art.
Andrei Tarkóvski e Pável Floriênski: o conceito de realidade vivente no cinema Neide Jallageas1
Andrei Tarkóvski (1932-1986) realizou um cinema conectado com a vida, e fielmente alinhado à concepção de arte e realidade, várias vezes, pensada por Fiódor Dostoiévski (1821-1881) que, em uma dessas variações, assim se posicionou: “Sempre afirmam que a arte precisa refletir a vida e tudo o mais. Mas é um absurdo: o próprio escritor (o poeta) cria a vida de uma maneira tal que nunca havia existido inteiramente antes dele...” (apud TARKOVSKI, 1990, p. 226). A afinidade do cineasta com o pensamento do escritor não é fortuita. Todos os elementos que integram a obra de Tarkóvski aspiram à vida; mesmo os seus mortos, nas batalhas mais sangrentas, como em seu filme Andrei Rublióv (1966), parecem respirar. A densidade de seu cinema é tão pungente e fecunda que tem a propriedade de transportar o espectador a um mundo, até então,
1. Este ensaio originou-se de comunicação apresentada no Congresso Fenomen Andrêia Tarkóvskovo. V Intiellêktualnoi i Khudójestvielnoi Kulturie (O Fenômeno Andrei Tarkóvski na Cultura Intelectual e Artística), na cidade de Ivánovo, Rússia, em junho de 2013, e publicado no livro: TSYMBAL, Evgueni (org.). Fenomen Andrêia Tarkóvskovo. V Intiellêktualnoi i Khudójestvielnoi. Ivánovo: PressSto, 2014. A reflexão sobre os conceitos de Floriênski em contato com o cinema de Tarkóvski originou-se em meus estudos de doutoramento, de 2002 a 2007. Cf. Tarkóvski + Floriênski: o cinema sob a perspectiva inversa. São Paulo: Kinoruss Edições (no prelo). TARKÓVSKI, Andrei. Andrei Rublióv, 1966 - parte 2 (00:02:48).
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invisível, assim como o próprio Tarkóvski reconhece e expressa textualmente: Uma descoberta artística ocorre cada vez como uma imagem nova e insubstituível do mundo, um hieróglifo de absoluta verdade. Ela surge como uma revelação, como um desejo transitório e apaixonado de apreender, intuitivamente e de uma só vez, todas as leis deste mundo — sua beleza e sua feiura, sua humanidade e sua crueldade, seu caráter infinito e suas limitações. O artista expressa essas coisas criando a imagem, elemento sui generis para a detecção do absoluto. Através da imagem mantém-se uma consciência do infinito: o eterno dentro do finito, o espiritual no interior da matéria, a inexaurível forma dada. Poder-se-ia afirmar que a arte é um símbolo do universo, estando ligada àquela verdade espiritual absoluta que se oculta de nós em nossas atividades pragmáticas e utilitárias (1990, p. 40, grifo meu).
A ideia da arte como “símbolo do universo”, a qual se refere Tarkóvski, foi amplamente discutida e defendida, antes dele, por Pável Floriênski (1882-1937), principalmente em seus fecundos e originais ensaios históricos e filosóficos sobre a pintura de ícones. Nesses textos, podemos ler como o teólogo compreende as relações construtivas que organizam o espaço e o tempo na obra de arte, perceptíveis nas pinturas de ícones, originárias do Bizâncio e que integram a História da Arte Russa e permeiam a filosofia russa. Aproximando-se da compreensão artística de Tarkóvski, o símbolo, para Floriênski, pelo ponto de vista teórico e filosófico, possui uma acepção bem específica, tratando-se de uma realidade que traz consigo a energia de outra realidade, uma realidade ulterior, que nunca está revelada em si mesma. Em consequência, concebemos a obra de arte como uma janela através da qual vemos uma certa realidade, mas que não se identifica, de fato, com aquela realidade (FLORENSKIJ, 2007, p. 252).
O teólogo aprofunda esse entendimento ao estudar um elemento que ultrapassa a qualidade arquitetônica, para integrar o conjunto de rituais da Ortodoxia Cristã que é a iconóstase. Esta consiste em uma parede divisória, composta de ícones, com um conteúdo simbólico invariável e que designa a passagem entre o profano e o sagrado, tanto no sentido material (pois essa divisória se encontra materializada em uma parede, no interior da igreja ortodoxa, dividindo o espaço permitido e o espaço
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proibido aos fiéis), como ritual, pois simboliza, dentro do culto religioso, a passagem de um mundo a outro, o profano e o sagrado. Floriênski destaca que, em particular, o conjunto de ícones que compõem a iconóstase, constitui-se em “fronteira entre o mundo visível e o mundo invisível” (Florensky, 2000, p. 62) e compara essa fronteira constituída por imagens com as imagens oníricas. Em suas palavras: os sonhos são precisamente as imagens que separam o mundo visível do mundo invisível, separam e, ao mesmo tempo, unem esses mundos. Esse lugar fronteiriço das imagens oníricas estabelece a relação das mesmas tanto com este mundo, como com aquele outro (FLORENSKY, 2000, p. 42).
Tanto no sonho quanto na arte, as imagens que aguçam a percepção artística da realidade afastam-se do objetivo de duplicá-la mecanicamente, ou de substituíla através de sua aparência, tal e qual as imagens fotográficas comuns, obtidas por meio de um aparelho configurado para modelar a aparência do que é visto, segundo as regras da perspectiva linear. A percepção artística da realidade é alcançada por meio da indicação do significado simbólico mais profundo da realidade. Assim Floriênski expressa esse pensamento: O objetivo da pintura não é duplicar a realidade, mas oferecer uma concepção mais profunda de sua arquitetônica, de seu material, de seu sentido; e a concepção deste sentido, deste material da realidade, de sua arquitetônica, só se faz possível ao olho contemplador de um pintor em contato vivo com a realidade, adentrando e sentindo a realidade. Entretanto o cenário teatral pretende, na medida do possível, substituir a realidade pela sua aparência: a estética dessa aparência é a conexão interna de seus elementos, mas não o significado simbólico do modelo original dado através de sua imagem personificada por meio da técnica artística. O cenário é um engano, embora belo, mas a pintura pura é, ou pelo menos deseja ser, antes de mais nada, a verdade da vida sem substituí-la, mas só marcando-a simbolicamente em sua profunda realidade (FLORIÊNSKI, 2012, p. 38).
O conceito de cenário teatral que Floriênski se baseia para sua argumentação em defesa da perspectiva inversa, opera no campo histórico. Refere-se à cenografia (scaenografia) investigada pelos filósofos gregos
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Demócrito (ca. 460 a.C.-370 a.C.) e Anaxágoras (ca. 500 a.C.-428 a.C.), cuja composição é fundada em um centro único, com o objetivo de oferecer ao espectador teatral a ilusão de realidade, demonstrando que: “ao determinar um ponto certo, de acordo com o campo de visão e a difusão dos raios luminosos, este ponto corresponderá a um alinhamento segundo um comportamento natural que nos diz que imagens variáveis de uma coisa variável poderão oferecer a aparência de edifícios nas pinturas das cenas (scaenarum picturis) e as coisas que sejam representadas em superfícies verticais ou horizontais parecerão ora afastadas ora salientes” (VITRUVIO, 1990, livro VII, cap.VII, verso 11, p. 304). Para Floriênski, as estratégias para a construção de imagens que se constituam em cenário, teorizadas por Demócrito e Anaxágoras, levam o espectador a uma realidade ilusória, aparente. Esse tipo de construção, além do mais, priva o espectador de sua própria vontade, pois não apresenta a ele a “própria essência da vida” e sim um “engano”, tornando o espectador privado de vida como se fosse o prisioneiro da Caverna de Platão (FLORIÊNSKI, 2012, p. 39). Nesse sentido, o espectador é passivo, privado de sua atividade, como que hipnotizado por uma imagem ilusória, obtida por um esquema geométrico, abstrato, portanto, que parte de um único ponto de interesse, um ponto central. Já a arte, para cumprir o seu objetivo, de acordo com Floriênski, deve propiciar uma experiência viva, ou seja, contatar a realidade e não simplesmente oferecer sua réplica, sua representação ilusória, sua aparência externa. Temos, então, uma distinção entre duas representações de realidade: uma que prima por oferecer a aparência, e outra que adentra suas camadas mais profundas (ou invisíveis, se for recuperado aqui a analogia com o sonho e a ideia de fronteira entre o mundo visível e o mundo invisível. Ou, em uma nomenclatura que venho estudando, entre uma realidade aparente e outra, a realidade vivente, assim consideradas, dentro da chave da criação e percepção artística. E, aqui, retomamos Tarkóvski. Há, em relação ao exposto, um trecho de uma carta, escrita por uma operária russa e enviada ao cineasta, cujo depoimento auxilia a compreender como o pensamento de Floriênski
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(e também do próprio Tarkóvski), em termos de vida, arte e realidade, pode ser alcançado pelo público. Diz ela: Na semana passada, vi o seu filme2 quatro vezes. E não fui ao cinema simplesmente para vê-lo, mas, também, para passar algumas horas vivendo uma vida real, com artistas e seres humanos verdadeiros. […] Todas as coisas que me atormentam, tudo o que não tenho e desejaria ter, que me deixa indignada, enojada ou que me sufoca, todas as coisas que me iluminam e me aquecem, e pelas quais vivo, e tudo aquilo que me destrói — está tudo ali, no seu filme; vejo-o como se num espelho. Pela primeira vez na minha vida um filme tornou-se algo real para mim, e é por essa razão que vou vê-lo: quero impregnar-me dele, para que possa realmente sentir-me viva (1990, p. 7- 8. Grifo meu).
2. Tarkóvski não explicita a qual filme a operária se refere.
O que essa operária de Novasibírski descreve como viver uma “vida real”, se “realiza” através do cinema de Tarkóvski. E, segundo suas palavras, a visão e a sensação de estar realmente viva não operam no que seria a sua vida cotidiana. No entanto o filme por ela assistido, permite-lhe atravessar uma determinada fronteira para que possa sentir-se viva e habitar uma certa realidade a qual ela não percebe usualmente! Ao filme, a operária nomeia realidade. O filme teria a particularidade de propiciar o trânsito entre uma esfera de sua vida e outra, na qual se sente mais viva do que na realidade cotidiana. Tarkóvski, enquanto artista, associa elementos da linguagem cinematográfica para alcançar, com sua obra, a realidade vivente. É por meio de procedimentos para construir o seu cinema que Tarkóvski se aproxima dos procedimentos da pintura medieval e, assim, se aproxima do pensamento de Pável Floriênski. Alguns dos procedimentos utilizados para construir seu cinema partem do conceito de Perspectiva Inversa, que Floriênski discute em sua obra. Pode-se argumentar, e com razão, que isso não poderia ser conseguido, já que Tarkóvski utiliza um meio tecnológico - a câmera filmadora -, que é descendente direta de outro meio - a câmera fotográfica - e, como esta, é habilitada a tão somente duplicar a realidade, ou seja, obter dela a sua aparência, uma vez que sua constituição, de fábrica, em sua estrutura, obedece aos cânones das imagens obtidas pela perspectiva euclidiana. Assim seria se Tarkóvski não interviesse, com sensibilidade histórica calcada na tradição construtiva
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3. Cf. JALLAGEAS, Neide. Tarkóvski + Floriênski: o cinema sob a perspectiva inversa. São Paulo: Kinoruss Edições (no prelo).
russa, para construir as imagens de seu cinema, com a qualidade de realidade vivente. Expliquemos: a Perspectiva Inversa teorizada por Floriênski diferencia-se da Perspectiva Linear, dentre outros motivos, porque é elaborada através de vários procedimentos artísticos peculiares à pintura de ícones. Ou seja, as imagens, com a qualidade de realidade vivente, são obtidas através de procedimentos artísticos distintos daqueles que se prestam a obter a realidade aparente. A esse conjunto de procedimentos artísticos, na obtenção de qualidades distintas de realidade, Floriênski denomina “arquitetônica da realidade”. Retomemos, por um instante, algumas das principais características que da Perspectiva Inversa: possui centros múltiplos, assegurando espaços-tempos coexistentes; suas linhas potenciais são conectores de espaço que tensionam, como espaços de força e não apenas como formas geométricas aparentes que encaminham a atenção do espectador para o fundo do quadro; e, ainda, tem a propriedade de condensar o espaço, à medida que possibilita a visão simultânea de eventos ocorridos em lugares e períodos distintos, em um mesmo quadro. Para o objetivo deste ensaio, dentre os três procedimentos principais que caracterizam a perspectiva inversa3, acima enunciados, vou me deter em apenas um deles que consiste no “deslocamento das linhas potenciais como trajetória do espaço”. No ícone, Floriênski descreve esse procedimento com o nome técnico de razdiélka, que não correspondem a nenhum objeto fisicamente visível (como as linhas sobre a roupa ou qualquer outro objeto no interior da pintura) caracterizando-se por serem “linhas potenciais” que […] revelam com maior força o esquema metafísico e a dinâmica do objeto em questão do que as linhas visíveis, mas por si só elas são completamente invisíveis e, sendo traçadas em um ícone, estabelecem, de acordo com a ideia do pintor, um conjunto de tarefas que se apresentam ao olho do observador como trajetórias que este deveria seguir ao contemplar um ícone. Essas linhas são um esquema de reconstrução do objeto observado na consciência e se fôssemos buscar suas bases físicas seriam linhas de força, linhas de tensão, [...] não obedecem às exigências da perspectiva linear (FLORIÊNSKI, 2012, p. 30-31).
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Guardemos que, principalmente, essas linhas não se constituem em elementos geométricos, e não são facilmente perceptíveis pelo espectador. São linhas que não estão aparentes, explicitadas formalmente no quadro, mas impulsionam a percepção a identificar sua presença invisível; tencionam os planos que se justapõem, no espaço, e este deixa de ser um espaço meramente contemplativo para vir a ser um espaço de evocação, de estímulos perceptivos para que o espectador saia da condição passiva e se constitua em espectador vivente. Tarkóvski cria linhas de força que intensificam, para o espectador, a trajetória do olhar dentro do plano e de um plano a outro, e no movimento, ainda, buscam o ritmo e a profundidade espacial. Há dois episódios que podem nos auxiliar a compreender como isso é realizado em seu cinema. Um é no filme Andrei Rublióv e o outro, no filme Stalker (1979). Primeiro, vejamos como Vadim Iússov descreve uma dessas construções com linhas que potencializam o espaço, quando da filmagem de Andrei Rublióv: […] há uma cena filmada em Pskov, próximo das paredes de um monastério […]. Queríamos criar a imagem de uma cratera. Os tártaros estão atacando, as pessoas estão lutando, como se estivessem sendo arrastados para baixo. A topografia do local nos permitiu fazer isso. Então, coreografamos a multidão para criar a ilusão que eles estavam sendo sugados para baixo num funil, desaparecendo no vazio. Filmamos em alta velocidade para parecer câmera lenta na tela. De repente, Andrei chegou trazendo dois gansos [...] Ele disse “vou lançá-los na cena”. Eu protestei, “Por que os gansos?” Eu estava muito tenso. Tinha trabalhado moldando esta cena por muito tempo. Ele insistiu, “Sim, eles deverão voar para lá.” Eu me rendi. “Sim, lance-os na cena se quiser.” E ele o fez. Só depois, quando vi na tela, percebi o efeito incrível que estes pássaros pesados criaram, voando para baixo. [...] Eles estavam mais caindo na cratera do que voando, agitando pouco as suas asas. [...] Tarkóvski disse e todos concordamos que aquela autenticidade na tela era imperativa4.
A linha diagonal descendente que se forma no voo dos gansos, encaminha o olhar do espectador do mais alto até o chão. Como descreve Iússov, o voo pesado dos pássaros conjugado ao efeito final na tela, que chega até o espectador, apresenta-se mais lento. Tal ilusão é consequência de um recurso técnico para alcançar um efeito poético. O recurso em si difere totalmente de
4. DVD DOSSIÊ Tarkovski (Solaris). Volume II. Entrevista com o diretor de fotografia Vadim Yússov, 00:20:22 a 00:22:20 h.
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deixar a câmera funcionando para capturar “a secção do mundo visível”. A sensação de realidade é reforçada no interior da cena, não do que o espectador vê como real, mas sim do que ele é estimulado a sentir como real: a opressão do povo em luta, combatendo pela sua cidade e sendo morto. A visão aérea ganha um sentido tátil, físico mesmo, de peso, de queda. Já em Stalker, da mesma maneira, é possível observar os recursos sonoros, aparentemente ambientes ou eletroacústicos que redimensionam e enfatizam o peso e a duração de determinadas sequências, ou seja, a espacialização e repercussão da imagem, através do som, no tempo. Esse atributo da imagem, outorgado pelo som em que ambos se articulam em linhas potenciais, está presente na sequência da “Entrada na Zona”. Trata-se de uma longa travessia, de um meio a outro. Sabemos que Stalker é uma espécie de iniciado que pode passar pelo limiar entre o espaço da cidade onde vive com sua pequena família e alcançar outro espaço, proibido, onde os mais insondáveis desejos podem ser realizados: a Zona. Quem ousa ultrapassar os limites da cidade para alcançar a região misteriosa, é recebido a tiros pela polícia que vigia a fronteira. Pois é justamente nesse umbral que Stalker, o Professor e o Escritor realizam um percurso que dura cerca de três minutos e meio. Esse deslocamento tão longo propicia ao espectador a sensação de que a travessia não vai acabar jamais. Essa sensação angustiante é estimulada, principalmente, pelo longo travelling, em primeiro plano na cabeça e torso de cada, personagem que segue sobre um carrinho, deslizando pelos trilhos da estrada de ferro abandonada. A linha que o autor nos sugere traçar na tela de nosso imaginário, com esse travelling, descreve uma longa trajetória, semelhante a um desenho expandido, que possa ultrapassar a folha de papel, e cujo traço ganha ritmo pelo som marcado, monótono e contínuo, de um trem em movimento. O poeta espanhol Antonio Mengs qualifica essa passagem de “viagem hipnótica”, através da qual Vôo dos pássaros (sequência) TARKÓVSKI, Andrei. Andrei Rublióv, 1966 - parte 2 (00:02:51 a 00:02:58).
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nossos sentidos entram no compasso da cena seguindo o lento e rítmico sacolejar e uma suave tensão que provém do fundo difuso da paisagem e a irrupção de rompantes sonoros
atuam como sedativo sobre os sentidos. Os olhares dos personagens se entrelaçam com o nosso; às suas silenciosas perguntas correspondemos com outras não menos temerosas, incapazes de averiguar o seu estado de ânimo salvo pela linha não declarada de uma incerteza comum. A ansiedade e inquietude de cada um aparece retratada exclusivamente em primeiro plano, dando a impressão de que vemos três facetas do mesmo (MENGS, 2004, p. 50).
O propósito de Tarkóvski é potencializar a atenção do espectador. Isso se dá através da dilatação do tempo que rege as sequências. O movimento (contido) dos personagens no quadro se relaciona, não apenas com os movimentos de câmera e os enquadramentos, mas diretamente com o trabalho dos atores em interagir com esse tempo intensificado. Erland Josephson explica em breves palavras o seu inicial estranhamento quando viu Stalker pela primeira vez:
5. Disponível em: <http:// www.andreitarkovski.org/ articulos.html>. Acesso em: 15 julho 2014.
6. Ibidem.
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Stalker pareceu-me um filme bastante difícil, porque empregava um idioma que resultava em um novo meio cinematográfico, com planos muito longos, pouco comuns. Diante deles eu ficava esperando um corte e dizia para mim mesmo: “Agora, agora é hora de cortar”; eu estava acostumado à linguagem conforme as categorias por mim conhecidas. […] Vi ainda naquela ocasião que era pedido algo aos atores de Stalker que também era pouco comum. Não sabia exatamente de que se tratava; não era apenas algo técnico, a capacidade, por exemplo, de atuar nessas tão longas sequências. Não sabia o que era, mas quando vi o filme pela segunda vez, compreendi que era uma das obras mais importantes do cinema contemporâneo5.
Josephson aponta a necessidade de sair das “categorias conhecidas” para adentrar o espaço-tempo tarkovskiano. Logo mais, ele trabalharia com Tarkóvski, desempenhando o papel de Domênico, em Nostalgia. E sobre essa experiência, Josephson faz um comentário que complementa o seu estranhamento anterior, sobre o desempenho dos atores em Stalker: Algo disso era o que eu já havia visto em Stalker, pois nessas tão longas sequências, o objetivo não estava com os atores, [Tarkóvski] não se interessava por eles individualmente senão enquanto partes da paisagem, da imagem, como se fossem um elemento integrante dela e existissem para ela, de uma maneira muito real, muito positiva6.
Essa sequência acima, bem como a anterior, é parte da estratégia de construção de Tarkóvski, através da qual a atenção do espectador é conclamada no desvio. Sobre esse tempo alargado, o próprio cineasta, segundo relato de Kontchalóvski, afirmara: se a duração normal de uma sequência é estendida, em um primeiro momento você se aborrece, mas se a estende um pouco mais, cresce o interesse, e se, inclusive, estende-a mais ainda, surge uma nova qualidade e intensidade (TARKÓVSKAYA, 2005, p. 56).
O uso da linha, como vimos, tenciona o espaçotempo e o estende ao indeterminado, fazendo o espectador perder a noção do percurso, da velocidade e do tempo decorrido. Essas imagens são apenas pequenos exemplos do que foi teoricamente exposto. Seguramente, o espectador não tem a consciência dessas linhas que mencionamos nesses exemplos. Exatamente por isso elas são tão importantes. Existem, mas aparentemente não são percebidas. E, no entanto, sua visualidade e sua sonoridade conclamam uma nova realidade, talvez indefinida conscientemente, talvez mal explicada racionalmente, mas, sem dúvida, existente em outro espaço e tempo, assim como nos sonhos. Imagens que nos transportam e que, na maior parte das vezes, quando conscientes, não conseguimos definir para onde.
Referências FLORENSKI, Pável. A perspectiva inversa. Trad. Anastassia Bytsenko, Neide Jallageas. São Paulo: Editora 34, 2012. Original em russo: обратная перспектива. FLORENSKIJ, Pavel. “Lezioni al VCHUTEMAS, anno accademico 1923/24”. In: P. Florenskij, Lo spazio e il tempo nell’arte. Trad. Nicoletta Misler. Milano: Adelphi, 2007. Original em russo: “Лекции в Вхутемас’е. 1923 – 1924 гт”.
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FLORENSKY, Pavel. Iconostasis. Trad. Donald Sheehan, Olga Andrejev. Crestwood, New York: St.Vladimir’s Seminary Press, 2000. Orinigal em russo: Иконостас. MENGS, Antonio. Stalker, de Andrei Tarkovski. Madrid: Rialp, 2004. TARKÓVSKAYA, Marina. Acerca de Andrei Tarkovski. Trad. J. L. Aragon, J. Gil Fernández y T. Pérez Hernández. Madrid: Ediciones Jaguar, 2001. Original em russo: О Тарковском. TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1990. Versão inglesa de: Jefferson Luiz Camargo. Original em alemão: Die versiegelte Zeit. Gedanken zur Kunst, Ästhetik und Poetik des Films. Frankfurt-Berlin: Ullstein, 1985. VITRÚVIO. De Arquitetura. Tradução e comentários de Luciano Migotto. Padova: Pordenone, 1990.
TARKÓVSKI, Andrei. Stalker, 1979 (00:33:40 a 00:34:28).
O presente artigo objetiva analisar os principais aspectos da semiótica da cultura de Iúri Lotman no contexto histórico e teórico que precedeu o seu surgimento e foi responsável pela sua formação. Em seguida, abordamos a narrativa cinematográfica, que, na obra de Lotman, é citada não apenas para exemplificar o seu raciocínio teórico, mas também se torna objeto do estudo, representando, ao mesmo tempo, a linguagem e o texto da cultura. Semiórica. Lótman. Escola Semiótica de Tártu-Moscou. Linguagem do cinema. Texto.
This paper aims to analyze the main aspects of Yuri Lotman’s semiotics of culture in historical and theoretical context that preceded its appearance and was responsible for its formation. Then we focus the cinematic narrative, which, in Lotman’s work, is cited not only to exemplify his theoretical reasoning, but also becomes an object of the study, representing at the same time, culture’s language and text. Semiotica. Lótman. Tartu-Moscow Semiotic School. Cineatic language. Text.
A semiótica de Iúri Lotman e a Linguagem do Cinema Ekaterina Vólkova Américo 1
O contexto A influência do positivismo e os avanços das ciências exatas ao longo do século XIX trouxeram a ideia de que os estudos linguísticos e literários deveriam apoiar-se em uma metodologia sólida e bem definida. O linguista, estudioso da literatura e filósofo russo Aleksandr Potebniá (1835-1891), em sua obra fundamental O pensamento e a linguagem (1862), analisou a correlação entre os processos de pensar e falar, e expressou a ideia de que os estudos linguísticos precisam combinar os métodos comparativo e histórico. Já o historiador da literatura Aleksandr Vesselóvski (1838-1906), autor da obra colossal, apesar de inacabada, Poética histórica (1899), tinha como objetivo esquematizar a história da
1. Em parte, o texto aqui apresentado baseia-se em sua tese de doutorado (VOLKOVA AMÉRICO, E. USP, FFLCH, 2012) com apoio financeiro da CAPES.
KALATÓZOV, Mikhail. Quando voam as cegonhas, 1957 (01:40:13).
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literatura mundial. A sua análise, baseada na comparação entre diversas culturas, permite chamá-los de fundadores do método histórico-comparativo dos estudos literários na Rússia, que, posteriormente, se tornou um dos principais instrumentos dos semioticistas de Tártu-Moscou. Dessa forma, Aleksandr Potebniá e Aleksandr Vesselóvski podem ser apontados como principais precursores dos estudos linguísticos e literários no século XX. De acordo com Aurora Bernardini, as duas “linhas” que surgiram a partir das obras desses grandes estudiosos nortearam os rumos de desenvolvimento das ciências humanas na Rússia e na União Soviética: De um lado, os trabalhos dos filólogos sobre o papel dos mitos na História da Literatura, a chamada “Linha Potebniá”, à qual ultimamente se acrescentam os trabalhos dos linguistas e semioticistas que estudam as questões da semântica antiga e determinados aspectos da teoria da cultura e, de outro lado, a “Linha Vesselóvski”, ou seja, o estudo etnográfico das religiões, comparadas com a filosofia e tendo em vista o reflexo, nos mitos religiosos, da prática da produção e da organização social (BERNARDINI, 2006, p. 67).
No século XX, a semiótica lotmaniana foi precedida pelo simbolismo, o futurismo e o formalismo russo, bem como pela atividade de Mikhail Bakhtin e dos pesquisadores que formavam seu Círculo de estudos. Um dos traços que mais destacava a Escola Semiótica de Tártu-Moscou (e a obra de Iúri Lotman como seu líder) era o seu caráter apolítico. Na opinião de Emmanuel Landoldt (2011), é uma das diferenças cruciais entre os semióticos soviéticos e franceses (pósestruturalistas), pois esses últimos eram defensores ativos das ideias marxistas. Portanto, se os semioticistas franceses eram radicalmente politizados, os soviéticos, pelo contrário, eram despolitizados: preferiam manter-se longe da política para sua própria segurança. No ensaio A semiótica da cultura na Escola semiótica de Tártu-Moscou, o filho de Iúri Lotman, Mikhail (único a seguir o caminho acadêmico do pai e se tornar semioticista), analisa ambas as correntes da semiótica ocidental e as compara com os conceitos elaborados pelos semioticistas soviéticos: Os herdeiros “diretos” de Saussure – estruturalistas e pósestruturalistas franceses – apesar de uma série de estudos
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brilhantes, não elaboraram a semiótica da cultura integral como o fizeram os pesquisadores integrantes da Escola de Tártu-Moscou (LOTMAN, M., 2002, p. 12)2.
2. Os ensaios de Lotman são citados em nossa tradução.
Ao falar da “semiótica da cultura integral”, o autor, provavelmente, está se referindo às Teses para uma análise semiótica da cultura3 elaboradas por semioticistas soviéticos durante a última reunião da Escola de Verão, que ocorreu em 1974. Ainda de acordo com M. Lotman, a Escola Semiótica Soviética era mais próxima às ideias de Saussure de que às de Charles Peirce. No entanto, se os estruturalistas ocidentais, continuando a tradição de Saussure, colocaram no centro dos seus estudos a língua, o signo e as oposições binárias, na semiótica da cultura de Lotman, a posição central é dada ao texto, apesar da clara presença de todos os conceitos mencionados.
3. Encontramos em MACHADO, 2003, uma tradução para o português e uma análise.
O texto No ensaio O problema do texto, de 1964, um dos primeiros dedicados a esse conceito, escrito no período em que a sua semiótica da cultura ainda estava se formando, Lotman formula vários problemas desenvolvidos posteriormente em sua obra. Em primeiro lugar, ele afirma a necessidade de separar o conceito de texto linguístico e texto literário: O texto é um sinal de um determinado conteúdo, que em sua individualidade está ligado à individualidade desse texto. Neste sentido, há uma profunda diferença entre a compreensão linguística e literária do texto. O texto linguístico permite expressões diferentes do mesmo conteúdo. Ele é traduzível e, por princípio, indiferente às formas de gravação (por meio de som, caracteres, sinais telegráficos etc.). O texto de uma obra literária, por princípio, é individual. Ele é criado para um conteúdo específico e, considerando a referida relação entre o conteúdo e sua expressão em um texto literário, não pode ser substituído por nenhum outro texto adequado em termos de expressão, sem que o plano do conteúdo seja alterado (LOTMAN, 2012, p. 175).
Dessa forma, o texto literário é um sistema construído com a base do texto, compreendido no sentido linguístico, em relação ao qual ele é um sistema de modelização secundário. Uma opinião semelhante foi expressa por Mikhail Bakhtin, apontado como um dos precursores e interlocutores da semiótica soviética
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(GRZYBEK, 1990). Em seu ensaio O problema do texto na linguística, filologia e outras ciências humanas, cujo título é quase o mesmo do artigo de Lotman já citado, Bakhtin também parte da comparação entre língua e texto: Por trás de todo texto encontra-se o sistema da língua; no texto, corresponde a ele tudo quanto é repetitivo e reproduzível, tudo quanto pode existir fora do texto. [...] Se por trás do texto não há uma língua, já não se trata de um texto, mas de um fenômeno natural (não pertencente à esfera do signo); por exemplo, uma combinação de gritos e de gemidos, desprovida de reprodutibilidade linguística (própria do signo) (BAKHTIN, 1997, p. 331).
Na teoria lotmaniana, a língua, em comparação com o texto literário, é uma estrutura semântica mais simples: já o texto literário é extremamente semantizado e, para seu estudo, é necessário considerar a multiplicidade dos significados que cada palavra pode representar tanto para o autor quanto para o leitor. Sendo assim, para os estudos semióticos, o texto literário é um objeto mais rico em possíveis ligações semânticas do que o texto linguístico. A riqueza semântica é a razão pela qual a análise das obras literárias tornou-se um dos temas centrais dos estudos tanto dos semioticistas de TártuMoscou, em geral, quanto de Iúri Lotman, em particular. Separada do texto linguístico, nos anos a seguir, a noção de texto literário continuou a ser constantemente ampliada, como podemos ver a partir das linhas a seguir: Podemos analisar como texto um poema de um ciclo poético. Nesse caso, a sua relação com o ciclo será extratextual. É uma relação do texto com as estruturas externas. Entretanto, a unidade de organização do ciclo permite, em certo nível, analisar o ciclo também como um texto. Da mesma forma, podemos imaginar o método no qual serão compreendidas como texto todas as obras de um autor escritas em um determinado período [...]. Finalmente, podem existir textos como “A obra de Shakespeare”, “A herança artística da Grécia Antiga”, “A literatura inglesa” e, como generalização levada ao extremo, “A arte da humanidade” (LOTMAN, 1970, p. 343).
O próximo passo da evolução da noção de texto na estrutura semiótica lotmaniana é a sua transferência da literatura para a cultura: ela mesma passa a ser analisada como um texto, ou mais precisamente, um texto composto por outros textos menores:
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A cultura como um todo pode ser analisada como um texto. Entretanto, é muito importante destacar que é um texto de composição complexa que se divide em uma hierarquia de “textos dentro de textos” e que forma entrelaçamentos complexos de textos. Já que a própria palavra “texto” inclui a etimologia de entrelaçamento, podemos dizer que através dessa interpretação devolvemos ao conceito de “texto” o seu significado autêntico (LOTMAN, 2002, p. 160).
A ideia de que o termo “texto” possa ser aplicado não apenas no sentido estritamente linguístico, mas também em relação à cultura, também foi expressa por Mikhail Bakhtin: Se tomarmos o texto no sentido amplo de um conjunto coerente de signos, então também as ciências da arte (a musicologia, a teoria e a história das artes plásticas) se relacionam com textos (produtos da arte). Pensamentos sobre pensamentos, emoção sobre emoção, palavras sobre palavras, textos sobre textos (BAKHTIN, 1997, p. 329).
Uma das categorias essenciais na definição lotmaniana do texto é a noção dos seus limites. Eles podem ser traçados por meio da comparação do texto com um “outro”, seja ele outro texto ou um “não-texto”: O papel de “outro” pode ser desempenhado, por exemplo, por uma realidade extratextual, por seu autor, leitor, outro texto e assim por diante; em outras palavras, o texto deve ser inserido na cultura. Dessa forma, o texto possui a mesma duplicidade semântica do signo: por um lado, o texto é imanente e autossuficiente (...); por outro, ele sempre está incluído na cultura e faz parte dela; uma completa exclusão do texto da cultura levará à eliminação da sua natureza (LOTMAN, M., 2002, p. 18).
A menção ao outro, feita por Lotman na citação acima, certamente “retoma a ideia do dialogismo bakhtiniano” (PAMPA, 2005), o que mais uma vez aponta para a obra de Bakhtin como um dos fundamentos da semiótica soviética. O fato de que Lotman se referia aos conceitos bakhtinianos intencionalmente pode ser observado, por exemplo, por meio da seguinte conclusão, feita por ele, com objetivo de mostrar a diferença entre a inteligência artificial e a mente humana: Nenhum dispositivo “monológico” (ou seja, monoglótico) é capaz de elaborar uma mensagem (uma ideia) totalmente nova, isto é, ele não é pensante. O dispositivo pensante deve possuir uma estrutura dialógica (bilíngue) por princípio (no
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esquema mínimo). Essa conclusão em particular contribui para que se dê um novo sentido às ideias antecipadas de M. M. Bakhtin em relação à estrutura dos textos dialógicos (LOTMAN, 2001, p. 566).
Como podemos ver, existe uma clara relação de hereditariedade entre os campos teóricos de Bakhtin e de Lotman, mas isso, é claro, não resulta em uma convergência entre esses dois grandes estudiosos da semiótica. Recentemente, Irene Machado fez um estudo de como o conceito bakhtiniano de dialogismo repercutiu e foi desenvolvido pelos semioticistas de TártuMoscou (MACHADO, 2013). Considerando que a análise comparativa dos conceitos de Bakhtin e Lotman não é objetivo do presente trabalho, mencionaremos apenas que há vários indícios de que a obra de Bakhtin influenciou significativamente a pesquisa dos semioticistas de TártuMoscou e de Iúri Lotman em particular. Em diversas ocasiões, Bakhtin foi convidado a participar das reuniões dos membros da Escola, chamadas de Escola de Verão, mas não pode aceitar por causa de sua saúde debilitada. Os trabalhos de Bakhtin são citados em vários ensaios de Lotman e, inclusive, um dos seus textos tardios se intitula A herança de Bakhtin e os problemas atuais da semiótica (LOTMAN, 2002 [1984]); nele, o autor afirma que a ampliação dos limites do texto que, como vimos, ocorreu ao longo do século XX, só tornou-se possível graças à contribuição de Bakhtin. Por sua vez, citando e comentando os conceitos de Bakhtin, Lotman e os semioticistas de Tártu-Moscou tiveram um papel decisivo no “descobrimento” da obra bakhtiniana, na União Soviética, nos anos 1960-1970. Como resultado da ampliação do conceito de texto, a cultura passa a ser vista também como um texto, e, portanto também depende do “outro” para existir. Nesse caso, o “outro” pode ser representado por outra cultura (por exemplo, a cultura russa toma consciência de si sempre em comparação com outras culturas, geralmente ocidentais). O “outro” também pode aparecer como “nãotexto”, “não-cultura”: por exemplo, a natureza, Deus. Além de interagir com outras culturas, cada cultura é heterogênea, isto é, consiste em vários subtextos e se manifesta por meio de diferentes linguagens. Dessa forma, o poliglotismo torna-se o seu traço fundamental:
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Nenhuma cultura é capaz de limitar-se a apenas uma linguagem. O sistema mínimo é formado pelo conjunto de duas linguagens paralelas, por exemplo, a verbal e a plástica. Posteriormente, a dinâmica de qualquer cultura passa a incluir a multiplicação do conjunto das comunicações semióticas (LOTMAN, 2001, p. 563).
Entre as linguagens mais antigas estão, por exemplo, a literatura e a pintura. Já no século XX, devido aos avanços tecnológicos, surgiram outras, entre elas a linguagem cinematográfica. Vejamos adiante qual abordagem ela recebe na obra de Lotman. Cinema: linguagem e texto O cinema sempre ocupou um lugar de destaque na obra de Lotman, o que revela nele um grande cinéfilo. Aliás, filmes e diretores citados, entre os quais se incluem Serguei Eisenstein, Dziga Viértov, Andrei Tarkóvski, François Truffaut, Michelangelo Antonioni e muitos outros, compõem uma perfeita lista de must see cinematográfico. Em muitos dos seus ensaios, filmes são citados para exemplificar os fundamentos teóricos, como ocorre, por exemplo, em O fenômeno da arte. Nesse ensaio, Lotman recorre a uma descrição detalhada do enredo do filme inglês If, de 1968, sob direção de Lindsay Gordon Anderson. Vejamos a menção feita por Lotman e a conclusão a que ele chega: Nos anos sessenta, o diretor inglês L. Anderson criou o filme If (Se). A ação do filme acontece em um colégio no qual os jovens vivenciam os difíceis conflitos entre destrutivas paixões sexuais, mercantis e ambiciosas que se apoderam deles e as convenções da norma que a sociedade lhes impõe por meio de seus professores. As imagens que surgem na alma dos protagonistas sob influência dessas paixões aparecem na tela com o mesmo realismo dos acontecimentos verdadeiros. Para o espectador, o real e o irreal se fundem absolutamente. Quando dois alunos, ao fugirem da aula, entram em um café e derrubam no chão uma linda e vigorosa garçonete, o espectador, depois de viver todas as emoções da testemunha da cena erótica, logo compreende que, na realidade, tratase apenas da compra de cigarros baratos. Todo o resto é if. O filme termina com a cena de visita dos pais no final de semana. Na tela, os pais, todos juntos, aproximam-se da escola com flores e presentes, enquanto os filhos, com a mesma imitação cinematográfica da realidade, escondidos com metralhadoras no telhado da escola, abrem fogo contínuo contra mães e pais. O enredo externo do filme trata do
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problema da psicologia infantil. Porém, também é levantada a questão da própria linguagem da arte. Essa questão é if. Por meio dela, são introduzidas na vida ilimitadas possibilidades de variantes (LOTMAN, 2001, p. 131).
ANDERSON, Lindsey. 1968 (01:47:57)
Se,
Como podemos observar, o enredo de If revela um dos pontos nevrálgicos da semiótica lotmaniana: a imprevisibilidade dos processos culturais, responsável pelo surgimento das novas obras de arte. A cultura é comparada por Lotman a um mecanismo gerador de novos sentidos cujo funcionamento é baseado em um diálogo entre dois ou mais indivíduos. Para explicar esse processo, Lotman revisou o conhecido esquema de Roman Jakobson (1960) que mostra o processo comunicativo: CONTEXTO MENSAGEM EMISSOR --------------------------------------------RECEPTOR CONTATO CÓDIGO
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Em A cultura como intelecto coletivo e os problemas da inteligência artificial (LOTMAN, 2001, p.557-567) ele questiona o fato de que a mensagem criada pelo emissor é a mesma que chega até o receptor. A incoerência do texto inicial e final foi observada por Aleksandr Potebniá que, ainda no final do século XIX, dizia: “Falar não significa transmitir o seu próprio pensamento a outra pessoa, apenas despertar no outro os pensamentos dele mesmo” (1980, p. 111). Na cadeia comunicativa, sempre existem alguns defeitos (ruídos) e, como resultado, o texto transmitido do emissor para o receptor pode sofrer alterações consideráveis e transformar-se em uma nova mensagem, um novo texto. Essa é a origem dos novos textos de uma cultura. No processo de transmissão textual e geração de novos textos, o código ocupa o lugar de destaque; para que o receptor consiga decifrar uma mensagem, mesmo que isso implique certos defeitos, ele precisa reconhecer os múltiplos códigos presentes em uma determinada cultura. O processo de compreensão, por parte do receptor, do texto enviado por um emissor, é chamado por Lotman de “tradução”: Dessa forma, o ato de comunicação (de todo modo bastante complexo e, portanto, valioso do ponto de vista cultural) deve ser analisado não como um simples deslocamento de uma mensagem, que permanece adequada a si mesma, da consciência do emissor à consciência do receptor, e sim como uma tradução de um texto da linguagem do meu “eu” para a linguagem do teu “tu”. A própria possibilidade dessa tradução é determinada pelo fato de que os códigos de ambos os participantes do ato comunicativo, embora não sejam iguais, formam pluralidades intermitentes (LOTMAN, 2001, p.563).
Como resultado desse processo, o texto final, percebido por um receptor, sempre será diferente (em um grau maior ou menor) do texto emitido inicialmente. Se o texto final for devolvido novamente ao emissor, não será mais o mesmo texto inicial e sim uma nova mensagem, cujo conteúdo é imprevisível. No centro desse mecanismo, encontra-se a individualidade de cada ser humano: é a incoerência entre a mensagem de um indivíduo e a sua compreensão por outro que gera um novo sentido, um novo texto.
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Dessa forma, a semiótica lotmanina revela-se como essencialmente antropocêntrica: Justamente o caráter variável da personalidade humana, desenvolvido e estimulado por toda a história da cultura, encontra-se na base de muitos atos comunicativos e culturais do ser humano (LOTMAN, 2001, p. 577).
ZVIÁGUINTSEV, Andrei. A expulsão, 2007 (01:05:09).
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Para definir o que é uma consciência individual, Lotman a compara à inteligência criada artificialmente, um “dispositivo”. Essa comparação aparece principalmente em seus ensaios dos anos 1970, como reflexo da popularidade de que essa ideia gozou no Ocidente na década anterior. Naquela época, a criação da inteligência artificial era um dos objetivos de uma então jovem ciência, a cibernética. Como os processos de transmissão de informação em vários sistemas eram um dos temas de estudo da Escola semiótica de TártuMoscou, os estudos cibernéticos tornaram-se uma das suas direções. São vários os ensaios de Lotman que abordam o tema da inteligência artificial: A cultura como
intelecto coletivo e os problemas da inteligência artificial (1977), O fenômeno da arte (1978) e O fenômeno da cultura (1978). Em O fenômeno da cultura, o autor chega, inclusive, a fazer uma “experiência” teórica ao comparar o comportamento de um dispositivo elementar dotado de três características: onisciência, ausência de dúvidas e compreensão completa do sinal emitido. Um dispositivo que funciona dessa forma só poderia se transformar em uma consciência individual se ele tivesse capacidade de guardar informações e, dessa forma, mudar o seu comportamento de acordo com a situação: Dessa forma, no momento em que complicamos a organização do dispositivo em questão a um ponto em que ele possa ser qualificado como dotado de intelecto, ao adquirir a possibilidade de reagir às mudanças do mundo ao seu redor de forma flexível e eficiente e orientar-se nele, construir em sua mente modelos cada vez mais ativos, ele ao mesmo tempo estaria na posição de deparar-se com uma crescente falta de conhecimento e de segurança (LOTMAN, 2001, p. 578).
É esse o momento em que o dispositivo hipotético se transformaria em um indivíduo pensante cujo comportamento é instável e imprevisível e, portanto, capaz de produzir novas ideias, novos textos. Essa compreensão iluminista do papel essencial da individualidade no processo do desenvolvimento cultural pode ser vista como uma continuidade da discussão, que se deu ainda na literatura russa clássica, sobre o papel da personalidade na história. Liev Tolstói defendia a prevalência dos processos históricos universais sobre o capricho humano e, como exemplo, descreveu em Guerra e paz a derrota de Napoleão em 1812. Já na opinião de Marina Tsvetáieva (1995), Púchkin, em História de Pugatchov (1834), e depois em A filha do capitão (1836), chama atenção para o papel decisivo da personalidade do impostor Emelian Pugatchov, na revolta dos cossacos, em 1773-1775. Dessa forma, nos deparamos com a hereditariedade entre os estudos semióticos e as tendências críticas e literárias anteriores a eles. Como se pode observar, o episódio cinematográfico utilizado por Lotman a título de um exemplo revela os
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aspectos fundamentais da sua semiótica da cultura. Nas páginas a seguir, mostraremos que, em sua obra, a arte cinematográfica é citada não apenas como exemplo do seu raciocínio teórico, mas, por sua vez, também se torna objeto da análise. Uma das principais características da obra lotmaniana é a sua constante ampliação. Nos anos 1960, ela é dedicada predominantemente à literatura russa; porém, nos decênios seguintes, ela passa a abranger a cultura em todas as suas manifestações, inclusive o cinema. Em 1973, foi lançada uma monografia que refletia essa versatilidade científica própria da escola de Tártu-Moscou, Semiótica do cinema e os problemas da estética cinematográfica (LOTMAN, 1973), que possui tradução para a língua portuguesa (LOTMAN, 1978). A sua essência foi resumida posteriormente em dois artigos que utilizamos no presente estudo: O lugar da arte cinematográfica no mecanismo da cultura [1977] e A natureza da narrativa cinematográfica [1993] (LOTMAN, 2005). O surgimento e o desenvolvimento do cinema, que marcaram o início do século XX, coincidiram com processos revolucionários na sociedade russa, acompanhados pelas transformações, também revolucionárias, em todas as áreas da cultura e da arte. Dessa forma, a nova arte foi, por um lado, herdeira de todas as artes antigas e, por outro, sua fusão e inovação. Não é por acaso que o momento do seu surgimento pode ser chamado, usando a terminologia de Lotman, de explosivo. Ele via toda a história cultural da humanidade como um processo de coexistência de duas tendências opostas: uma, acumular os conhecimentos, definir e enrijecer seus limites; e outra, caracterizada pelo desejo de ampliar os horizontes do desconhecido. O momento em que essas duas tendências se alternam pode caracterizar-se por acontecimentos “explosivos”, como guerras e revoluções. Nas primeiras décadas do século XX, por um lado, ocorria um isolamento das diferentes linguagens culturais e, por outro, estava se formando uma única cultura europeia. Na segunda metade, esses dois processos resultaram no surgimento de um olhar metacultural, marcado por três aspectos:
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1. Regeneração de alguns traços da consciência mitológica e formação da consciência pósmitológica. 2. Criação das meta-artes, como, por exemplo, a metapoesia (poesia sobre poesia), a metapintura (pintura sobre pintura) e o metacinema. 3. O uso de linguagens científicas, como matemática, física e linguística, como metalinguagens da cultura. Esse aspecto caracteriza em muito as primeiras etapas da semiótica russa (é o que vemos, por exemplo, no caso da comparação entre um dispositivo e um ser humano, citado acima). Nesse processo, o cinema ocupa um lugar especial, pois ele combina todas as três tendências. Tudo isso permite ver no cinema “um dos componentes mais importantes do metamecanismo da cultura moderna que está se desenvolvendo ativamente no presente” (LOTMAN, 2005, p. 661). No que diz respeito à mitologia, Lotman afirma que:
ZVIÁGUINTSEV, Andrei. O retorno, 2003 (00:13:23).
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É característico que no cinematógrafo as situações estereotipadas, a transformação dos tipos em máscaras e a simples percepção repetida do mesmo texto nos chocam muito menos do que em outras artes, pois, do ponto de vista mitológico, nenhuma dessas propriedades representa um defeito (LOTMAN, 2005, p. 659).
ZVIÁGUINTSEV, Andrei. Elena, 2011 (00:10:02).
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No entanto, pelo fato de o cinema também ser uma meta-arte, o aspecto mitológico se transforma nele em pós-mitológico. Por exemplo, o componente pós-mitológico, ou ainda meta-mitológico, está muito presente nos filmes de um dos maiores diretores russos da contemporaneidade, Andréi Zviáguintsev. Apesar de serem criados já após a morte de Lotman, eles servem como um ótimo exemplo de seu raciocínio. Em seus três primeiros filmes – O retorno (Vozvraschiénie, 2003), A expulsão (Izgnánie, 2007), e Elena (2011), a ação acontece em um espaço extra-temporal, ou seja, não sabemos e nem precisamos saber em que época se trata, pois os temas são universais. Os três filmes enfocam uma
família como símbolo da harmonia e um acontecimento mais dramático que a destrói: a morte de alguém próximo (do pai, do filho e do marido), e, não por acaso, em todas essas obras, o enredo é cíclico, representando uma metáfora da vida, do nascimento até a morte e outro nascimento. As três histórias remetem a enredos antigos e bíblicos, por exemplo, a Parábola do Filho Pródigo, o Massacre dos Inocentes, a história de Elena de Troia. Além disso, as três obras têm um componente mitológico como motivo central: a violação da harmonia universal, o caos e o restabelecimento da paz, abordado no ensaio de outro grande semioticista russo, Vladímir Toporov: “A estrutura dos romances de Dostoiévski em relação aos esquemas arcaicos do pensamento mitológico” (TOPOROV, 1995).4 Porém, como se trata da “consciência pós-mitológica”, os mitos ressuscitados por Zviáguintsev se transformam, na verdade, em antimitos, recorrendo à terminologia de mais um membro renomado da Escola Semiótica de Tártu-Moscou, Eleazar Meletínski:
4. Esse ensaio foi abordado por Edelcio Américo durante a sua apresentação no Congresso ABRALIC em 2007.
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Os escritores do século XX utilizaram os mitos tradicionais com um novo tratamento, que expressasse essa nova situação do homem, abandonado pela sociedade burguesa, ao passo que na Antiguidade e nas sociedades primitivas os mitos exprimiam pensamentos e sentimentos coletivos, sociais. Há aí uma grande diferença. Isso levou a que os mitos se transformassem em antimitos (MELETÍNSKI, 2006, p. 54).
Embora tanto Toporov quanto Meletínski se referissem à mitologia na literatura, tudo o que foi dito acima pode ser aplicado à reencarnação da mitologia no cinema e esclarece o conceito de “consciência pósmitológica” a que se referia Lotman. A proximidade entre o cinema e a literatura também é destacada pelo autor, que afirma a natureza narrativa da arte cinematográfica. Isso diferencia o cinema de outra arte recém-surgida, a fotografia, que tende à representação estática das imagens. Outra aproximação apontada por Lotman é a semelhança entre o cinema e a língua. De acordo com ele, a narrativa cinematográfica “imita a estrutura de uma língua natural” (2005, p. 665). Nesse processo: A gramática de uma língua natural era tomada como norma, de acordo com a qual era preciso criar a gramática da estrutura narrativa da linguagem cinematográfica. Isso lembrava o processo de criação das “gramáticas” para as línguas europeias “bárbaras” na época em que a gramática latina era considerada como um ideal e uma única norma da gramática em geral: a tarefa consistia em encontrar, nas línguas nacionais, categorias que permitissem descrevê-las segundo a estrutura do latim (LOTMAN, 2005, p. 665).
KALATÓZOV, Mikhail. Quando voam as cegonhas, 1957 (00:50:41).
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Assim como na gramática, aqui também predomina o princípio de causa-efeito. De acordo com essa ideia, a narrativa cinematográfica é construída de modo linear. A própria natureza da narração consiste no fato de que o texto é construído sintagmaticamente, ou seja, por meio da combinação de segmentos isolados em uma sequência temporal (linear) (LOTMAN, 2005, p. 662). A nossa percepção tende a ligar os fatos narrados entre si e transformá-los em um enredo. Isso ocorre mesmo quando a narração não segue uma ordem cronológica, apresentando os fatos de maneira não linear. Nesse caso, podemos falar de um procedimento chamado pelo críticoformalista V. Chklóvski de “estranhamento” e destinado a deter a atenção do leitor (e do espectador).
A quebra de uma narração cronológica permite perceber a existência de várias camadas temporais: o presente, o passado, o futuro ou, até mesmo, de fatos que ocorrem só na imaginação dos personagens (como no filme If citado acima). Tudo isso indica a presença, dentro da linguagem do cinema, das categorias verbais: de tempo (passado, presente e futuro) e até do modo conjuntivo para retratar algo que não aconteceu. Para exemplificar esse último caso, Lotman cita (LOTMAN, 2005, p. 669) o filme Quando voam as cegonhas (1957, do diretor Mikhail Kalatózov) em que aparecem imagens do casamento de Borís. Sabemos que essa narrativa não se refere a fatos reais porque paralelamente vemos Borís morrendo. As duas narrativas, a que acontece em tempo real e a do modo conjuntivo, são apresentadas em ritmos diferentes e, além disso, as imagens do casamento
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KALATÓZOV, Mikhail. Quando voam as cegonhas, 1957 (00:52:21).
imaginário estão levemente borradas: são os recursos que o diretor usa para destacar o modo conjuntivo na narrativa. Continuando a comparação entre a língua e a linguagem do cinema, Lotman afirma que essa última possui ainda um outro nível, o “extra-frasal”: [...] os diferentes trechos do texto cinematográfico – as frases cinematográficas – entram em relações estruturais de paralelismo, contraposição, contraste, identificação, responsáveis pelo surgimento dos sentidos adicionais. Normalmente, a correlação entre certos trechos é sinalizada para o espectador por meio das repetições das cinefrases no início (anáforas) (LOTMAN, 2005, p. 670).
Tudo isso nos permite concluir que Lotman destaca a presença de dois componentes centrais na narrativa cinematográfica: o propriamente cinematográfico e o que remete a sua origem linguística e literária: Dessa forma, a camada “literária” da narrativa – que é contada por meio das palavras e que de certo modo coincide com o roteiro – e a puramente cinematográfica, que pode ser imaginada visualmente, mas que não pode ser recontada com a ajuda das palavras, formam uma complexa unidade dupla que se encontra na base do enredo cinematográfico (LOTMAN, 2005, 671).
A análise lotmaniana da linguagem cinematográfica se baseia nas categorias linguísticas e nela também estão presentes as oposições binárias, oriundas da linguística saussuriana e herdadas dela por semioticistas de TártuMoscou. Entre as principais oposições destacadas por Lotman estão: 1. A justaposição das consciências mitológica e pós-mitológica 2. O caráter real e, ao mesmo tempo, ilusório da linguagem de cinema. 3. A presença dos planos textual e extratextual, literário e visual. 4. Ao contrário das artes estáticas, como pintura e fotografia, o cinema é uma arte dinâmica, narrativa, o que o aproxima da literatura. 5. O ator é percebido tanto como personagem do filme, quanto como um ser real, uma soma de todos os papéis que ele já interpretou.
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Desse modo, a linguagem cinematográfica possui três camadas essenciais: a primeira, linguística; a segunda, literária e a terceira, cinematográfica propriamente dita, sendo que a ordem em que elas se formaram é exatamente essa: primeiramente, a língua; depois, com base nela, a literatura e, então, o cinema como sua fusão e extrapolação. A comparação com a língua e a literatura desempenha, ainda, outra função: essas duas áreas constituem uma espécie do “outro” a partir do qual o texto do cinema define os seus limites e passa a existir como um fenômeno único e isolado. Portanto podemos concluir que o cinema possui dois desdobramentos na semiótica da cultura de Lotman: por um lado, é uma linguagem, um dos meios através dos quais a cultura se expressa, e, por outro, é um texto, isto é, uma unidade semântica vista como um objeto
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da análise. Vista como linguagem, representa uma combinação de características propriamente linguísticas (narrativa; enredo circular ou linear; diferentes tempos verbais, etc.) e extra-linguísticas (plano visual e auditivo, imitação da realidade e, ao mesmo tempo, a ilusão). Já em relação à sua manifestação textual, podemos definir vários textos cinematográficos possíveis. Por exemplo, podemos falar do texto de alguma cultura (como o texto do cinema russo na cultura mundial). Nesse caso, o limite do texto é definido a partir do seu contato com o “outro”, que pode ser representado por textos de outras culturas ou com textos de outras áreas artísticas, como, por exemplo, literatura, pintura, teatro ou fotografia. O texto ainda pode ser compreendido como uma totalidade das obras de algum diretor (nesse caso, podemos definir os textos de Eisenstein, Tarkóvski, Sokúrov, Zviáguintsev e outros, bem como a sua influência cultural). Além disso, é possível distinguir como texto algum tema recorrente na arte cinematográfica, como religião, pós-mitologia, guerra etc. Enfim, as possibilidades aqui são infinitas. É justamente esse caráter infinito e imprevisível que une as duas manifestações de cinema na semiótica de Lotman, pois, no centro dela, encontra-se a individualidade do ser humano.
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KALATÓZOV, Mikhail. Quando voam as cegonhas, 1957 (00:05:53).
СЕМИОТИКА ЮРИЯ ЛОТМАНА И КИНОЯЗЫК Екатерина Волкова Америко Аннотация: В настоящей статье рассматриваются основные аспекты семиотики культуры Юрия Лотмана в историко-теоретическом контексте, который предшествовал ее возникновению и повилял на ее развитие. Далее мы рассмотрим киноискусство, которое в работах Лотмана приводится не только в качестве примера теоретических рассуждений, но также становится объектом исследования, являясь одновременно языком и текстом культуры. Ключевые слова: семиотика – Лотман – Тартуско-московская семиотическая школа – киноязык текст Abstract: This paper aims to analyze the main aspects of Yuri Lotman’s semiotics of culture in historical and theoretical context that preceded its appearance and was responsible for its formation. Then we focus the cinematic narrative, which, in Lotman’s work, is cited not only to exemplify his theoretical reasoning, but also becomes an object of the study, representing at the same time, culture’s language and text. Keywords: Semiotics - Lotman - Tartu-Moscow Semiotics School - cinematic language - text
Контекст Под влиянием позитивизма и развития точных наук в XIX веке сформировалась идея о том, что лингвистика и литературоведение должны опираться на свою собственную прочную методологическую основу. Лингвист, литературовед и философ А. А. Потебня (1835-1891), в фундаментальной работе “Мысль и язык” (1862) рассмотрел связь между процессами мышления и говорения, а также предвосхитил идею о том, что языкознание должно основываться на сравнительно-историческом методе. Филолог А. Н. Веселовский (1838-1906), автор колоссального, хотя и незаконченного, труда «Историческая поэтика» (1899) поставил перед собой целью схематизацию истории мировой литературы. Его исследование, основанное на сравнении различных культур, также позволяет назвать основателем сравнительно-исторического метода в литературоведении, ставшего впоследствии одним из основных подходов Тартуско-московской семиотической школы (ТМШ). Таким образом, и Потебня, и Веселовский - главные предшественники языкознания и литературоведения XX века. Согласно Ауроре Бернардини, «линии», сформировавшиеся на основе работ этих великих ученых, предопределили пути развития гуманитарных наук в России и в Советском Союзе: С одной стороны, работы филологов о роли мифов в истории мировой литературы, так называемая “линия Потебни», к которой в последнее время прибавились работы лингвистов и семиотиков, занимающихся вопросами древней семантики и определенными аспектами теории культуры а, с другой стороны, «линия Веселовского», то есть этнографическое изучение религий в сравнении с философией, а также исследование отражения в религиозных мифах производственной практики и социальной организации (BERNARDINI, 2006, с. 67).
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В XX веке лотмановской семиотике предшествовали символизм, футуризм и формализм, а также научная деятельность Михаила Бахтина и ученых его окружения. Одной из наиболее характерных черт Тартуско-московской семиотической школы (и произведений возглавившего ее Ю. М. Лотмана) является ее аполитический характер. По мнению Эммануэля Ландольта (2011) в этом заключается одно из основных различий между советскими и французскими семиотиками (постструктуралистами), так как последние были активными сторонниками марксизма. Если французские семиотики были радикально политизированы, советские, наоборот, в целях собственной безопасности держались от политики в стороне. В эссе «Семиотика культуры в Тартуско-Московской семиотической школе» сын Лотмана, Михаил (единственный из сыновей последовавший по стопам отцам и занявшийся семиотикой), рассматривает течения западной семиотики и сравнивает их с концепциями, выработанными советскими семиотиками: «Прямые» наследники Соссюра — французские структуралисты и постструктуралисты, — несмотря на ряд блестящих разработок, не выработали целостной семиотики культуры, это сделали исследователи, входящие в ТМШ (ЛОТМАН, M., 2002, p. 12).
Под “целостной семиотикой культуры” автор, скорее всего, имеет в виду “Тезисы к семиотическому анализу культуры” (в Бразилии имеется их перевод и анализ: MACHADO, 2003), разработанные во время Второй Летней Школы в 1974 году. Кроме того, согласно М. Ю. Лотману, советская семиотическая школа более близка к идеям Соссюра, чем Чарльза Пирса. Но если западные структуралисты, продолжавшие традицию Соссюра, сконцентрировали свое внимание на языке, знаке и бинарных оппозициях, в семиотике культуры Лотмана центральное положение занимает текст, несмотря на бесспорное присутствие и других упомянутых понятий. Текст В статье «Проблема текста» от 1965, одной из первых посвященных этой теме и написанной в тот период, когда семиотика культуры еще формировалась, Лотман наметил ряд проблем, которые затем разбирались в его последующих работах. Во-первых, он заявил о необходимости разделения понятий текста лингвистического и литературного: Текст является знаком определенного содержания, которое в своей индивидуальности связано с индивидуальностью данного текста. В этом смысле существует глубокое различие между лингвистическим и литературоведческим пониманием текста. Языковой текст допускает разные выражения для одного и того же содержания. Он переводим
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и в принципе безразличен к формам записи (звуковая, буквенная, телеграфными знаками и т.д.). Текст литературного произведения в принципе индивидуален. Он создаётся для данного содержания и, в силу отмеченной выше специфики отношения содержания к выражению в художественном тексте, не может быть заменён никаким адекватном в плане выражения без изменения плана содержания. (ЛОТМАН, 1994, с. 206).
Итак, литературный текст – это система, построенная на основе текста в языковом смысле, и поэтому является по отношению к нему вторичной моделирующей системой. Похожее мнение было высказано Михаилом Бахтиным, которого также называют одним из создателей семиотики (ГЖИБЕК, 1990). В своем эссе, название которого почти дословно повторяет название уже упомянутой статьи Лотмана�, Бахтин также исходит из сравнения между языком и текстом: Каждый текст предполагает общепонятную (то есть условную в пределах данного коллектива) систему знаков, язык (хотя бы язык искусства). Если за текстом не стоит язык, то это уже не текст, а естественно-натуральное (не знаковое) явление, например комплекс естественных криков и стонов, лишенных языковой (знаковой) повторяемости (БАХТИН, 1986, с. 331).
В лотмановской теории язык по сравнению с литературным текстом является более простой семантической структурой, в то время как литературный текст исключительно сематизирован и для его изучения необходимо учитывать все многообразие значений каждого слова как для автора, так и для читателя. Таким образом, для семиотических исследований литературный текст представляет собой более богатый смысловыми связями объект, чем текст лингвистический. Именно благодаря этому семантическому богатству анализ литературных произведений стал одной из главных тем как для ученых ТМШ вообще, так и длч Ю. М. Лотмана в частности. Отделенное от текста в лингвистическом смысле, понятие литературного текста в последующие годы постоянно расширялось, в чем можно убедиться, например, из следующих строк: Мы можем рассматривать в качестве текста отдельное стихотворение из поэтического цикла. Тогда отношение его к циклу будет внетекстовым. Это отношение текста к внешним структурам. Однако единство организации цикла позволяет нам рассматривать на определенном уровне и его в качестве текста. Равным образом мы можем представить себе подход, при котором в качестве текста будут восприниматься все произведения данного автора за какой-либо четко выделенный отрезок времени («Болдинское творчество Пушкина», «Статьи Белинского в “Современнике”», «Крымские сонеты Мицкевича», «Голубой и розовый Пикассо»), произведения определенного, улавливаемого нами единства (стилевого, тематического и т. п.). Возможны, наконец, тек-
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сты типа: «Творчество Шекспира», «Художественное наследие Древней Греции», «Английская литература» и, как предельное обобщение, «Искусство человечества». Против утверждения о том, что любое из названных понятий может быть рассмотрено как текст, по сути, никакого строгого возражения выдвинуть невозможно (ЛОТМАН, 1970, с. 343).
Следующим шагом эволюции понятия текста в семиотической структуре Лотмана стал его перенос из области литературы в культуру, которая сама по себе начинает рассматриваться как текст или, точнее, как текст, состоящий из более мелких текстов: Культура в целом может рассматриваться как текст. Однако исключительно важно подчеркнуть, что это сложно устроенный текст, распадающийся на иерархию «текстов в текстах» и образующий сложные переплетения текстов. Поскольку само слово «текст» включает в себя этимологию переплетения, мы можем сказать, что таким толкованием мы возвращаем понятию «текст» его исходное значение (ЛОТМАН, 2005, с. 436).
Мысль о том, что понятие “текст” можно применять не только в узко лингвистическом смысле, но также и по отношению к культуре, также была высказана М. М. Бахтиным: Если понимать текст широко — как всякий связный знаковый комплекс, то и искусствоведение (музыковедение, теория и история изобразительных искусств) имеет дело с текстами (произведениями искусства). Мысли о мыслях, переживания переживаний, слова о словах, тексты о текстах (БАХТИН, 1986, с. 297).
Одной из центральных категорий в лотмановском определении текста является понятие о его границах. Они могут быть очерчены по мере сопоставления текста с “другим”, будь то другой текст или же “не-текст”: В роли другого может выступать, например, внетекстовая реальность, его автор, читатель, другой текст и т. п., иными словами, текст должен быть включен в культуру. Таким образом, в тексте заложена такого же рода семиотическая двойственность, что и в знаке: с одной стороны, текст иманантен и самодостаточен, он своего рода семантический универсум; с другой стороны, он всегда включен в культуру, является ее частью, полное исключение текста из культуры приводит к уничтожению его природы (ЛОТМАН, М., 2002, с. 18).
Упомянутый М. Ю. Лотманом в данной цитате «другой», конечно же, «восходит к идее Бахтина о диалогизме» (PAMPA, 2005), что еще раз позволяет нам выделить творчество Бахтина в качестве одной из основ советской семиотики. В том, что Лотман ссылается именно на концепции Бахтина, можно убедиться,
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например, исходя из следующего ниже отрывка, где говорится о разнице межу искусственным интеллектом и человеческим разумом: Никакое «монологическое» (то есть моноглотическое) устройство не может выработать принципиально нового сообщения (мысли), то есть не является думающим. Мыслящее устройство должно иметь в принципе (в минимальной схеме) диалогическую (двуязычную) структуру. Такой вывод, в частности, придает новый смысл предвосхищающим мыслям М. М. Бахтина о структуре диалогических текстов (ЛОТМАН, 2001, с. 566).
Итак, очевидно, что между теоретическими построениями Бахтина и Лотмана имеется преемственная связь, но это, конечно же, не означает, что теоретические положения этих двух крупнейших семиотиков полностью совпадают. В своей недавней статье Ирене Машадо рассмотрела влияние бахтинской идеи о диалогизме на Тартуско-московскую семиотическую школу (МАШАДО, 2013). Так как сравнительный анализ концепций Бахтина и Лотмана не входит в задачи данной работы, скажем лишь, что по многим признакам влияние работ Бахтина на ученых ТМШ, а также на самого Лотмана довольно значительно. М. М. Бахтина несколько раз приглашали участвовать в Летних Школах, но он не смог принять приглашений по причине своего нездоровья. Его концепции цитируются в различных работах Лотмана, в частности одна из его поздних статей названа «Наследие Бахтина и актуальные проблемы семиотики» (ЛОТМАН, 2002 [1984]): в ней автор говорит о том, что расширение текстовых границ на протяжении XX века стало возможно лишь благодаря влиянию идей Бахтина. В свою очередь, ссылаясь на концепции Бахтина и анализируя их, Лотман и ученые ТМШ сыграли решающую роль в “открытии” его творчества, имевшем место в Советском Союзе в 1960-1970 гг. В результате расширения понятия текста, культура тоже рассматривается как текст, чье существование также зависит от “другого”. В данном случае в роли другого может выступать другая культура (например, русская культура осознает себя в сравнении с другими культурами, особенно западными). Другим может быть и «не-текст», «не-культура», например, природа или Бог. Культура не только взаимодействует с другими культурами, она еще и гетерогенна, то есть состоит из различных более мелких текстов и выражает себя с помощью языков. Таким образом, ее важнейшей чертой является полиглотизм: Ни одна культура не может удовлетвориться одним языком. Минимальную систему образует набор из двух параллельных языков, - например, словесного и изобразительного. В дальнейшем динамик любой культуры включает в себя умножение набора семиотических коммуникаций (ЛОТМАН, 2001, с. 563).
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Если литература и живопись относятся к более старым языкам, в XX веке благодаря техническому прогрессу появляются новые, такие как, например, киноязык. Далее мы рассмотрим, какое место ему отводится в работах Лотмана. Кино: язык и текст Исходя из того особого места, которое искусство кино занимает работах Лотмана, его можно назвать настоящим киноманом. Его кинематографическая эрудиция тем более удивительна, если вспомнить, что в СССР попадали лишь немногие западные фильмы, да и те в сильно урезанном цензурой виде. Упоминаемые им фильмы и режиссеры, среди которых Сергей Эйзенштейн, Дзига Вертов, Андрей Тарковский, Франсуа Трюффо, Микеланджело Антониони и многие другие, представляют собой безупречный кинематографический must see. Во многих его работах фильмы приводятся в качестве примера к теоретическим размышлениям, как, например, в статье «Феномен искусства», где Лотман детально описывает сюжет английского фильма «If” 1968 г., режиссера Линдсея Гордона Андерсона и приходит к неожиданному выводу: В шестидесятые годы английский режиссер Л. Андерсон создал фильм «If” (“Если”). Действие фильма происходит в колледже, в котором молодые парни переживают сложные конфликты между разрушительными сексуальными, меркантильными, честолюбивыми страстями, которые их обуревают, и условностями идиотской нормы, в которую их загоняет общество в лице педагогов. Образы, возникающие под влиянием страстей в душах героев, предстают на экране в такой же реальности, как и подлинные события. В глазах зрителя реальное и зареальное безнадежно перепутываются. Когда двое школьников, сбежав с урока, заходят в кафе и валят на пол красивую мощную официантку и зритель переживает все эмоции свидетеля эротической сцены, ему тут же дают понять, что на самом деле происходит лишь покупка сигарет на нищенские деньги. Остальное все - if. Фильм завершается сценой прибытия родителей на уик-энд. На экране родители дружной толпой с цветами и подарками приближаются к школе, одновременно, с той же имитацией кинореальности, сыновья, засевшие с автоматами на крыше школы, открывают по папам и мамам огонь длинными очередями. Внешний сюжет фильма – проблемы детской психологии. Но одновременно поднимается вопрос самого языка искусства. Этот вопрос - if. Этим вопросом в жизнь вводятся неограниченные возможности вариантов (ЛОТМАН, 2001, с. 131).
Очевидно, что сюжет фильма “If” раскрывает самое главное в семиотике Лотмана: непредсказуемость культурных процессов, в результате которой возникают новые произведения искусства. Культура для Лотмана – механизм порождения новых смыслов, работа которого основана на диалоге одного или более индивидов. Чтобы объяснить этот процесс, Лотман пересматривает классическую схему коммуникативного акта, предложенную Якобсоном (1960):
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КОНТЕКСТ СООБЩЕНИЕ АДРЕСАНТ --------------------------------------------АДРЕСАТ КОНТАКТ КОД В статье “Культура как коллективный интеллект и проблемы искусственного разума” (ЛОТМАН, 2001, с. 557-567) ставится под вопрос идентичность отправленного сообщения и полученному. Несоответствие того, что мы говорим, тому, что понимают наши собеседники, было отмечено еще в конце 19 в. А. А. Потебней, который отмечал, что «нельзя передать другому своей мысли, а можно только пробудить в нем его собственную» (2010, с. 163). В коммуникативной цепи всегда будут иметь место некоторые погрешности (шум), в результате которых переданный отправителем получателю текст может подвергнуться значительным изменениям и даже превратиться в новое сообщение, в новый текст. Таково происхождение новых текстов культуры. Главная роль в процессе передачи сообщения и порождения новых текстов принадлежит коду: для того, чтобы получатель смог расшифровать сообщение, пусть и не совсем верно, он должен распознать многочисленные коды, имеющиеся в данной культуре. Процесс, в результате которого получатель осознает сообщение отправителя, Лотман называет «переводом»: Таким образом, акт коммуникации (…) следует рассматривать не как перемещение некоторого сообщения, остающегося адекватным самому себе, из сознания адресанта в сознание адресата, а как перевод некоторого текста с языка моего «я» на язык твоего «ты». Самая возможность такого перевода обусловлена тем, что коды обоих участников коммуникации хотя бы и не тождественны, но образуют пересекающиеся множества (ЛОТМАН, 2001, с. 563).
В результате этого процесса, усвоенный получателем текст будет в большей или меньшей степени отличаться от исходного. Если же итоговый текст будет снова возвращен отправителю, это будет уже другой текст, новое сообщение, содержание которого непредсказуемо. В центре этого механизма находится человеческая индивидуальность, ведь именно из-за расхождений между намерением одной личности и тем, как его понимает другая, и рождается новый смысл, новый текст. Таким образом, суть семиотики Лотмана – антропоцентризм: Именно вариативность человеческой личности, развиваемая и стимулируемая всей историей культуры, лежит в основе многочисленных коммуникативных и культурных действий человека (ЛОТМАН, 2001, с. 577).
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Для того, чтобы определить что же такое индивидуальное сознание, Лотман прибегает к его сравнению с искусственно созданным интеллектом, или “устройством”. Такое сопоставление появляется в его текстах 1970-ых годов, как следствие успеха, которым эта идея пользовалась на Западе в предыдущее десятилетие. В то время создание искусственного интеллекта стало одной из задач молодой науки, кибернетики. Так как процессы передачи информации в пределах разных систем очень интересовали участников ТМШ, кибернетические исследования стали одним из ее направлений. Тема искусственного интеллекта появляется в разных работах Лотмана, среди них: «Культура как коллективный интеллект и проблемы искусственного разума» (1977), «Феномен искусства» (1978) и «Феномен культуры» (1978). В “Феномене культуры” автор прибегает даже к теоретическому “эксперименту”, разбирая поведение элементарного устройства, обладающего тремя характеристиками: всезнанием, отсутствием сомнений и полным пониманием выпущенного сигнала. Устройство, организованное таким образом, может превратиться в индивидуальное сознание, только если у него будет возможность накапливать информацию и изменять свое поведение согласно меняющейся ситуации: Таким образом, в тот момент, когда мы усложнили организацию устройства настолько, что оно может быть квалифицировано, как обладающее интеллектом, оно, обретя возможность гибко и эффективно реагировать на изменения окружающего мира и ориентироваться в нем, строя в своем уме все более действенные модели, одновременно оказалось в положении непрерывно возрастающих незнания и неуверенности (ЛОТМАН, 2001, с. 578).
Именно в этот момент гипотетическое устройство превращается в думающую личность, поведение которой будет неустойчиво и непредсказуемо и именно поэтому оно будет способно производить новые идеи и тексты. Решающая роль личности в процессе культурной эволюции – вполне в духе Просвещения - является продолжением споров об участии личности в истории, которые велись в русской литературе. Так, Лев Толстой говорил о преобладании универсальных исторических процессов над человеческой волей и в качестве примера описал в «Войне и мире» поражение Наполеона в 1812 году. Марина Цветаева (1995), в свою очередь, считала, что Пушкин в “Истории Пугачева” (1834), а затем в «Капитанской дочке» (1836) обращает внимание на роль личности самозванца Емельяна Пугачева в восстании казаков в 1773-1775 гг. Таким образом, можно проследить преемственность между семиотическими исследованиями и предшествующими им литературно-критическими тенденциями. Как видим, киносюжет, приведенный Лотманом в качестве примера, является ключом к важнейшим проблемам его семиотики культуры. Но, как мы увидим далее, в его работах киноискусство не только приводится в качестве примера к теоретическим рассуждениям, но и само по себе становится объектом анализа.
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Одно из главных свойств семиотики Лотмана – ее постоянное расширение. Если в 1960-ых годах он занимается в основном русской литературой, то в последующие десятилетия круг его интересов распространяется на все проявления культуры, в том числе и на кино. В 1973 выходит «Семиотика кино и проблемы киноэстетики», в которой отразилась характерная для ТМШ научная многосторонность. Ключевые моменты этой работы впоследствии были изложены в двух статьях, к которым мы обращаемся в настоящей работе: “Место киноискусства в механизме культуры” [1977] e “Природа киноповествования” [1993] (ЛОТМАН, 2005). Возникновение и развитие киноискусства в начале XX в. совпало с революционными процессами в русском обществе, которым сопутствовали революционные же изменения во всех областях культуры и искусства. Таким образом, новое искусство стало с одной стороны преемником старых форм, а с другой – их слиянием и обновлением. Пользуясь терминологией Лотмана, момент возникновения киноискусства можно назвать взрывным. Вся история человеческой культуры рассматривается им как сосуществование двух противоположных тенденций: с одной стороны к накоплению знаний, определению и утверждению границ, с другой - к расширению горизонта неизвестного. Тот момент, когда одна тенденция сменяет другую, может сопровождаться «взрывными» событиями, например, войнами и революциями. В первые десятилетия XX века происходило одновременно выделение различных языков культуры и формирование единой европейской культуры. Во второй половине столетия оба процесса привели к возникновению метакультуры, которое было отмечено тремя тенденциями: 1. Возрождение некоторых черт мифологического сознания и, как следствие, формирование сознания постмифологического. 2. Появление метаискусств, например, метапоэзии, метаживописи и метакино. 3. Использование языка точных наук (математики, физики) в качестве метаязыков культуры. Это особенно характерно для первого этапа советской семиотики (например, в рассмотренном нами случае сравнения между устройством и человеческой личностью). Киноискусство занимает особое место в культуре, так как в нем сочетаются все три тенденции. Именно поэтому оно - «один из важнейших компонентов усиленно развивающегося в настоящее время метамеханизма современной культуры» (ЛОТМАН, 2005, с. 661). Что же касается мифологии в киноискусстве, Лотман пишет: Характерно, что штампы ситуаций, превращение типов в маски и просто повторное восприятие одного и того же текста в кинематографе гораздо менее шокирует, чем в других видах искусства, поскольку с мифологической позиции все эти свойства не являются недостатками (ЛОТМАН, 2005, с. 659).
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Тем не менее, так как кино является и метаискусством, мифологический момент в нем превращается в постмифологический. Например, постмифологическая (или же метамифологическая) составляющая очень характерна для фильмов Андрея Звягинцева, одного из самых значительных режиссеров современной России. Несмотря на то, что его фильмы были сняты уже после смерти Лотмана, они служат отличным примером его теоретических построений. В первых трех фильмах: “Возвращение” (2003), “Изгнание” (2007) и “Елена” (2011) действие разворачивается в безвременном пространстве и мы не знаем, о какой именно эпохе идет речь, а затронутые в них темы универсальны. Во всех трех фильмах в центре сюжета – семья как символ гармонии, причем изображается драматическое событие, ее нарушающее, например смерть близкого человека (отца, сына или мужа). Неслучайно и то, что у всех трех историй сюжет циклический, ведь речь идет о метафоре жизни от рождения к смерти и другому рождению. Все три киноповествования основываются на античных и библейских сюжетах, среди которых можно привести притчу о блудном сыне, эпизод избиения младенцев, историю Елены Троянской. Мифология присутствует в них и в качестве центрального мотива: нарушение мировой гармонии, хаос и восстановление мира – об этом писал в своей работе «О структуре романа Достоевского в связи с архаическими схемами мифологического мышления Достоевского» другой известнейший семиотик Владимир Топоров (ТОПОРОВ, 1995).� Но так как речь идет все-таки о “постмифологическом» сознании, возрожденные Звягинцевым мифы, по сути, являются антимифами, если прибегнуть к терминологии другого именитого участника ТМШ Элеазара Мелетинского: У писателей 20 века миф появляется в новом освещении, отражающем положение нового человека, покинутого буржуазным обществом, в то время как в древности и в примитивных обществах мифы выражали коллективные, социальные мысли и чувства. Здесь большая разница. В результате многие мифы превратились в антимифы (MELETÍNSKI, 2006, с. 54).
Хотя как Топоров, так и Мелетинский имеют в виду мифологический компонент в литературе, все выше сказанное можно применить и по отношению к возрождении мифологии в кино. Кроме того, их работы проливают свет на употребленный Лотманом термин «постмифологическое сознание». Лотман говорит и о близости киноискусства к литературе, утверждая его повествовательную природу. В этом отличие кино от столь же недавно появившейся фотографии, которая изображает реальность статически. Другой параллелью является сопоставление между кино и языком. Согласно Лотману, кинематографическое повествование это «имитация структуры естественного языка» (2005, с. 665):
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Грамматика естественного языка принималась за норму, по образцу которой предполагалось строить грамматику нарративной структуры киноязыка. Это напоминало процесс создания грамматик для “варварских” европейских языков в эпоху, когда латинская грамматика считалась идеалом и единственной нормой грамматики вообще: задача сводилась к тому, чтобы найти в национальных языках категории, позволяющие расписать их по структуре латыни (ЛОТМАН, 2005, с. 665).
Так же как и в грамматике, здесь тоже преобладает причинно-следственная связь. Согласно этой идее, киноповествование стоится линеарно. Сама природа повествования состоит в том, что текст выстраивается синтагматически, то есть путем сочетания отдельных сегментов во временной, или же линейной последовательности (ЛОТМАН, 2005, с. 662). Наше восприятие устроено так, что изложенные факты сами связываются между собой, превращаясь в сюжет. Это происходит и тогда, когда повествование не выстроено в хронологическом порядке, а факты в нем представлены нелинейно. В этом случае, можно говорить о приеме, который В. Б. Шкловский называл «остранением» и целью которого было привлечение читательского (в нашем случае зрительского) внимания. Нарушение хронологического порядка в повествовании позволяет выделить в нем различные временные слои: настоящее, прошлое, будущее или даже то, что имело место лишь в воображении героев (как в приведенном выше фильме «If”). Все это дает возможность говорить о присутствии в киноязыке категорий времени (прошлого, настоящего и будущего) и даже сослагательного наклонения, выражающего то, чего на самом деле не было. В качестве примера этого последнего случая Лотман (2005, с. 669) приводит фильм “Летят журавли” (1957, реж. Михаил Калатозов), в котором показана свадьба Бориса. Мы знаем, что здесь повествование идет не в реальном времени, так как параллельно видим, как Борис умирает. Оба повествования, реальное и ирреальное, показаны в разном ритме и, кроме того, изображение воображаемой свадьбы слегка размыто: с помощью этих приемов режиссер подчеркивает сослагательное наклонение повествования. Продолжая сравнивать естественный язык с киноязыком, Лотман говорит о том, что в последнем имеет место еще один уровень, “сверхфразовый”: [...] определенные куски кинотекста – кинофразы – вступают в структурные соотношения параллелизма, противопоставления, контраста, отождествления, в результате чего возникают дополнительные смыслы. Соотнесенность кусков, как правило, сопровождается и сигнализируется зрителю повторами в начале кинофраз (анафорами) (ЛОТМАН, 2005, с. 670).
Итак, Лотман выделяет две основных составляющих в киноповествовании: собственно кинематографическую и лингвистическо-литературную:
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Таким образом, «литературный» пласт повествования – пересказываемый словами и в определенном смысле совпадающий со сценарием – и чисто кинематографический, который можно себе зрительно представить, но нельзя пересказать словами, образуют сложное двуединство, лежащее в основе киносюжета (ЛОТМАН, 2005, с. 671).
Анализируя киноязык, Лотман основывается на лингвистических категориях, а также на бинарных оппозициях, идущих от лингвистики Соссюра и унаследованных тартуско-московскими семиотиками. Среди главных оппозиций, выделяемых Лотманом, присутствуют:
1. Противопоставление 2. 3. 4. 5.
мифологического и постмифологического сознаний. Реальный и в то же время иллюзорный характер киноязыка. Присутствие в нем текстового и внетекстового уровней, литературного и визуального. В отличие от статичных видов искусства, например, живописи и фотографии, кино – динамично и повествовательно, что приближает его к литературе. Актер воспринимается нами и как конкретный герой фильма, и как действительная личность, как сумма всех сыгранных им ролей.
Следовательно, в киноязыке имеется три основных слоя: первый – лингвистический; второй литературный и третий собственно кинематографический, причем порядок здесь именно такой: сначала язык, затем на его основе – литература, а потом кино как их слияние и преодоление. Сравнение с языком и литературой преследует и еще одну цель: обе эти области представляют собой своего рода «другого», исходя из которого кинотекст определяет свои границы и начинает свое независимое существование. Таким образом, в семиотике культуры Лотмана киноискусство представлено в двух ипостасях: с одной стороны, это язык, один из способов выражения культуры, а с другой - это текст, семантическая единица, объект анализа. В качестве языка оно сочетает в себе чисто лингвистические (повествование, линейный или циклический сюжет, разные категории времени и так далее) и внелингвистические свойства (изобразительный и звуковой планы, подражание реальности и то же время ее иллюзия). Что же касается текстового выражения, здесь можно выделить различные уровни: например, можно говорить о кинотексте определенной культуры (российское кино в мировом контексте). В данном случае, границей текста будет его контакт с «другими» – текстами других культур или же других областей культуры, например, литературы, живописи, театра или фотографии. Кроме того, текст может быть понят и как все произведения одного режиссера вместе взятые (и тогда мы можем выделить текст Эйзенштейна, Тарковского, Сокурова, Звягинцева или другого автора, а также говорить о его
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культурном влиянии). В качестве текста также можно вычленить определенную повторяющуюся в киноискусстве тему, например, религию, постмифологию, войну и прочее. Возможности здесь бесконечны. Как раз эта бесконечность и непредсказуемость прочтений объединяет оба отражения киноискусства в семиотике Лотмана, ведь в центре их находится неповторимая человеческая личность. Библиография: БАХТИН, М. М. Эстетика словесного творчества. Москва: Искусство, 1986. BERNARDINI, Aurora. «Mito e poética». In: Mitopoéticas: da Rússia às Américas. Org. de Aurora Fornoni Bernardini e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Humanitas, 2006, p. 59-70. JAKOBSON, R. “Closing statement on linguistics and poetics”. In: Style in language. Cambridge (Mass.), 1960, p. 353–357. ГРЖИБЕК, P. «Бахтинская семиотика и московско-тартуская школа. 1990. http:// www.peter-grzybek.eu/science/publications/1995/grzybek_1995_lotman-bachtin.html (Последний просмотр:14/04/2014). IVÁNOV, Viatcheslav Ivánovitch. «Duas forças no simbolismo moderno». In: Tipologia do simbolismo nas culturas russa e ocidental. São Paulo: Humanitas, 2005 [1908], p. 197-244. ЛАНДОЛЬТ, Э. “Один невозможный диалог вокруг семиотики: Юлия Кристева – Юрий Лотман” In: НЛО, № 109, 2011, с. 135-150. ЛОТМАН, М. Ю. Семиотика культуры в Тартуско-московской семиотической школе In: История и типология русской культуры. Санкт-Петербург: ИскусствоСПб, 2002, с. 5-20. ЛОТМАН, Ю. М. Структура художественного текста. Москва: Искусство, 1970. __________ Текст как семиотическая проблема. In: История и типология русской культуры. Санкт-Петербург: Искусство-СПб, 2002, с. 158-221. __________ Культура как коллективный интеллект и проблемы искусственного разума. In: Семиосфера. Санкт-Петербург: Искусство-СПб, 2001, с. 557-567. __________ Культура как субъект и сама-себе объект. In: Семиосфера. СанктПетербург: Искусство-СПб, 2001, с. 639-646. __________ Проблема текста. In: Ю. М. Лотман и тартуско-московская семиотическая школа. Москва, Гнозис, 1994, с. 201-214. __________ Символика Петербурга и проблемы семиотики города. In: История и типология русской культуры. Санкт-Петербург: Искусство-СПб, 2002, с. 208-221.
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O presente artigo tem como objetivo o estudo da imagem feminina de Moscou como um dos aspectos decorrentes da formação do texto da cidade e sua representação na literatura e no cinema. Cinema russo, texto da cidade, Moscou; São Petersburgo; imagem feminina; Bicentrismo
This paper aims to study the feminine image of Moscow as one of the aspects of the city text and its representation in literature and cinema. Russian Cinema, city text, Moscow; Saint Petersburg; female image; Bicentrism
A imagem feminina de Moscou no Cinema Edelcio Américo
A formação do espaço urbano O espaço urbano não pode existir por si só, ser independente de quem o habita. Inicialmente ocorreram as relações sociais, em um lugar bem definido, que tiveram como consequência a criação das cidades. Isto pode parecer óbvio nos dias de hoje, mas foi inteiramente novo no final do século XIX. Nesse período, foi iniciado um processo de maior valorização das singularidades. As cidades fornecem um “pano de fundo” que nos remete a uma determinada localidade; uma tomada do Big Ben ou da Torre Eiffel adverte-nos de que estamos em Londres ou Paris. Uma cidade não é simplesmente uma sequência de ruas e um caos, não é apenas um espaço potencial para roteiros, é um convite para experimentar e elaborar impressões e sensações.
PÍMENOV, Iúri. Moscou, 1937.
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Nova
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1. Nas obras Alma de São Petersburgo (Duchá Peterburga, São Petersburgo, 1923), Realidade e mito de Petersburgo (Byl i mif Peterburga, Petrogrado, 1924) e na antologia em três volumes Livro sobre a cidade (Kniga o górode, Moscou, 1926.
MENCHÓV, Vladímir. Moscou não acredita em lágrimas (Moskvá slezam ne viérum), 1980.
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O sentido especial que as cidades ocupam na cultura humana foi destacado, entre outros, por Nikolai Antsíferov (1889-1958), considerado o pioneiro, na Rússia, ao estudar o que hoje chamamos de “texto da cidade1”. De acordo com as palavras de Antsíferov, na obra Livro sobre a cidade, todos os caminhos levam à cidade. O crítico via as cidades como lugares de encontros, elos que relacionam processos econômicos e sociais, mais precisamente, centros que atraem várias forças por meio das quais vive a sociedade humana. Segundo o seu conceito, as cidades nascem e sempre crescem de acordo com a dinâmica do desenvolvimento histórico, sendo através delas reveladas as formas culturais. Não podemos deixar de mencionar que sempre houve grandes cidades. Babilônia, por exemplo, dois mil anos antes do nascimento de Cristo, pode ter sido tão grande como muitas capitais modernas. Mas, até meados do século XIX, muitas cidades ainda estavam localizadas no interior de muralhas medievais, sendo descritas como entidades isoladas, caracterizadas por seus monumentos, suas instituições, e seu passado.
As cidades surgiam ao longo dos séculos e, em detrimento dos avanços da civilização, como um sonho de ordem que nascia e crescia de acordo com novas distribuições de espaço, que enquadravam um novo modo de vida, um espaço delimitado estabelecido por um projeto que não objetivava apenas organizar os homens dentro de uma paisagem repetida. O espaço no qual está contida uma cidade ganha formas, estilo, inserção de uma realidade normalmente trazida de algum modelo urbano de duração secular. Uma vez estabelecidas em um espaço físico, as sociedades oriundas de modelos urbanos passam a reger o espaço geométrico por meio de uma razão ordenadora, social e hierárquica. Para que tal disciplina funcionasse, era indispensável à ordem dos signos, um projeto racional prévio e, ainda, segundo Angel Rama: É próprio do poder necessitar de um extraordinário esforço de ideologização para se legitimar, quando se despedaçarem as máscaras religiosas, construirá opulentas ideologias substitutivas... A palavra máxima para todo esse sistema é a palavra ordem... ativamente desenvolvida pelas três maiores forças institucionalizadas (a igreja, o Exército e a Administração) (RAMA, 1985, p. 26).
Estabelecida a ordem social, o acordado deve se consolidar em uma realidade física. Nas palavras de Rama: O desenho urbanístico prévio mediante linguagens simbólicas da cultura sujeitas à concepção racional... devia ser orientado pelo resultado que se haveria de obter no futuro... um futuro que ainda não existe”. (RAMA, 1985, p. 27).
A cidade tem o poder de dialogar com as personagens, falar a mesma língua delas, mesmo não se expressando com palavras, mas sim com suas ruas, praças, jardins, catedrais, estátuas. Esse é o conceito de texto da cidade. A cidade como texto O fenômeno das cidades ocupa um lugar especial e único na história universal e na história da cultura em
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particular. Essa afirmação diz respeito a todas as cidades do mundo, mas há que se admitir que entre elas existam algumas a que a consciência humana destina um status especial, não apenas devido ao seu valor históricocultural ou histórico-econômico, mas também no tocante à sua semântica e a seu significado especial para a cultura nacional e/ou mundial. As cidades, desde o aparecimento, são pontos distribuídos no espaço que carregam uma grande tarefa não apenas funcional, mas também no que diz respeito ao significado. A cidade em relação à aldeia, primitivamente, significava o que o centro representa hoje em relação à periferia. Dessa forma, surge uma mitopoética especial da cidade, o que pode ser percebido até nas cidades contemporâneas. Na cultura, o espaço artístico da cidade se mostra como fechado, sendo uma violação da ordem natural, o que se revela oposto ao espaço do campo. A oposição cidade x campo tem várias interpretações. Segundo uma delas, a cidade é vista como um espaço artificial, enquanto o campo é visto como um espaço natural; seguindo essa interpretação, as personagens que saem do campo com destino à cidade se perdem moral e psicologicamente. Apenas a natureza (o campo) faz com que a pessoa obtenha a salvação. Há cidades que possuem características semióticas sentidas por várias culturas, como Roma, Florença, Veneza, Atenas. Existem as que representam significação especial apenas para uma determinada nação, como Moscou e São Petersburgo para os russos, e além dessas, há cidades que exercem influência apenas sobre uma determinada pessoa. Na tentativa de buscar qualidades materiais que correspondam aos atributos de distinção e à estrutura da imagem que temos da cidade, somos levados a tentar determinar aquilo que melhor indica a distinção, a qualidade do objeto material e que possa despertar uma imagem intensa no inconsciente de qualquer observador. A ideia é traduzir certo setor da realidade em linguagem, transformá-lo em texto, isto é, em uma informação codificada, e introduzi-lo na memória coletiva, visto que só um texto traduzido de um sistema de signos pode vir a ser patrimônio da memória.
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Em 1960, o urbanista norte-americano Kevin Lynch publicou o livro A imagem da cidade, no qual destacou a possibilidade de lê-la como se ela fosse um texto (LYNCH, 1982, p. 16-19). Ao fazermos isso, percebemos que na cidade existem “pontos dominantes”, representados pelos pontos que melhor a caracterizam. Cada ponto dominante é reproduzido na memória e funciona como reminiscência do texto da cidade como um todo, devolvendo ao sujeito as sensações vividas anteriormente e funcionando como um estímulo para a personificação da imagem na palavra, nas tintas, nos sons. Dessa forma, o texto não é a realidade, mas sim um material para reconstruí-la; não é apenas um gerador de novos significados, mas um condensador da memória cultural. Todos esses aspectos são unidos no amplo entendimento de Lotman: A cidade é vista, de um lado, como texto e de outro como mecanismo de criação de texto... A observação da cidade ligada à história da civilização como texto sui generis é natural. Além disso, justamente no objeto de tal natureza, alguns traços ganham destaque abrangendo a heterogeneidade codificada, uma codificação obrigatória por vários códigos, uma heterogeneidade semiótica dos subtextos, aspirando, de modo contraditório, a formar um único texto. A característica do texto de guardar e regenerar constantemente a sua própria história aqui é evidente (LOTMAN, 1984, p. 3).
Ainda na opinião de Lotman: A cidade, como um mecanismo semiótico complexo, gerador da cultura, pode realizar essa função apenas porque representa em si um caldeirão de textos e códigos de diferentes formas e heterogêneos, que pertencem a línguas e níveis diferentes. Justamente o poliglotismo semiótico principal de qualquer cidade a torna um campo diversificado e colisões semióticas impossíveis em outras condições. Fazendo a junção de diferentes códigos e textos nacionais, sociais e estilísticos, a cidade realiza diferentes hibridações, codificações, traduções semióticas que a transformam em um poderoso gerador de uma nova informação. A fonte de tais colisões semióticas não é apenas a co-posição sincrônica de formações semióticas heterogêneas, mas também a diacronia: as construções arquitetônicas, ritos urbanos, cerimônias e o próprio plano da cidade, nomes das ruas e outras mil relíquias de épocas passadas se apresentam como programas de códigos, que constantemente geram novamente textos do passado histórico. A cidade é um mecanismo que constantemente engendra de novo o seu passado, conferindo-lhe a possibilidade de coexistir com o presente como que sincronicamente. Nesse
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2. Nesse sentido, a cultura e a técnica são opostas: na cultura, atua toda a sua espessura; na técnica, apenas o seu último corte temporal. Não por acaso que a tecnização da cidade, que ocorre tão intensamente no século XX, inevitavelmente leva a destruição da cidade como um organismo histórico.
sentido, a cidade, assim como a cultura, é um mecanismo que se contrapõe ao tempo.2 (LOTMAN, 1984, p.4).
Outro método de leitura urbana introduzido por Lynch é a “imaginabilidade”: a capacidade de reconhecer e imaginar uma cidade de acordo com os seus pontos dominantes. Para o conteúdo deste estudo, tal ideia é de extrema importância por se referir ao processo de surgimento do texto de uma cidade e aos seus elementos. Justamente a imaginabilidade de uma cidade elabora o seu texto. O historiador, filósofo e estudioso de religiões, Mircea Eliade, chama a atenção para outro aspecto importante na criação de uma cidade: uma das primeiras relações do homem e seu habitat era a sacralização do espaço ao seu redor. Tanto o homem caçador quanto o agricultor antigo veneravam a Mãe-terra, que, em muitas culturas, era representada por uma divindade feminina. Além disso, um dos primeiros passos de sacralização do mundo é o estabelecimento do seu Centro, do seu eixo central. Esse centro, geralmente, coincide com a cidade central da cultura em questão. O homem religioso tem de receber um sinal divino para reconhecer o lugar sagrado onde deverá ser construída a cidade. É por isso que, em várias culturas, existem lendas sobre a fundação da cidade que incluem essa “indicação divina”. Geralmente, ela é feita através da natureza, por exemplo, dos animais. Na mitologia, outra forma de abordagem diz respeito à localização das cidades, no limite da terra firme e do mar. Segundo a tradição folclórica, a água (rio, lago, mar...) representa a fronteira entre os mundos (dos vivos e dos mortos), entre o real e o fantástico, onde coexistem muitos outros meios aquáticos, entendida pela cultura popular com cidade fantástica ou até mesmo diabólica. Uma cidade excêntrica é a que se localiza “no limite” do espaço cultural: à beira mar, à margem do rio. Aqui não temos a antítese “céu/terra”, mas a oposição “natural/ artificial”: Essa cidade, criada contra a vontade da natureza, encontra-se em conflito com a mesma, o que permite uma possibilidade dupla de interpretação da cidade: como vitória do intelecto sobre os elementos naturais, de um lado, e como perversão da ordem natural do outro (LOTMAN, 2002, p. 209).
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Em torno do nome de tal cidade, se concentrarão mitos escatológicos, profecias relacionadas à morte; a ideia de estado irremediável e os triunfos dos elementos serão inseparáveis desse ciclo da mitologia da cidade. Esses tipos de cidade têm suas figurações específicas, mitologia, sistema de valores e significações, sua própria linguagem e, consequentemente, uma metalinguagem de descrição e definições textuais. A relação Moscou x São Petersburgo A capital atual da Rússia, cuja fundação data do ano de 1147, sempre foi de grande importância para a Rússia e para a União Soviética, sendo palco de acontecimentos históricos que decidiram o destino do país. Entretanto, quando da fundação de São Petersburgo3, Moscou passou a ser considerada a “segunda” cidade do país, ao perder o status de capital para a cidade de Pedro, o Grande4. A partir desse momento, as relações e discussões, envolvendo as cidades de Moscou e São Petersburgo, tornaram-se fato objetivo da história russa desde a fundação da nova capital, às margens do rio Nevá, e atingiram todos os segmentos do desenvolvimento histórico-cultural da Rússia. De fato, a partir desse momento, na cultura russa, começaram a se formar divergências essenciais entre a nova e a velha capital, que representavam dois conceitos políticos distintos e fixavam dois tipos culturais. A cidade de São Petersburgo, criada por Pedro, o Grande, em 1703, tinha o intuito de europeizar a Rússia, cujo atraso tecnológico e cultural, em relação aos países ocidentais, incomodava ao Tsar. A partir de então, Moscou passou a ser vista como a representação da “velha” Rússia, de sua origem, suas tradições e superstições; já São Petersburgo, como sendo uma cidade europeia, o símbolo do progresso. Desse modo, as duas capitais, a antiga e a nova, formaram uma oposição cultural. A contraposição cultural das duas cidades definiuse e agravou-se, principalmente, ao longo do século XIX, quando se iniciou o desenvolvimento de um olhar crítico da Rússia sobre si mesma. Nesse período, as questões filosóficas referentes ao futuro do país passaram a ser
3. Moscou ostentou o título de capital da Rússia de 1389 até 1712 (quando da fundação de São Petersburgo) e voltou a ser a capital com o resultado da revolução Bolchevique de 1918, permanecendo como capital até hoje. 4. Pedro, O Grande (16721725), Imperador russo, um dos grandes responsáveis pelo processo de europeização da Rússia, de abertura da Rússia para o Ocidente, fundador de São Petersburgo.
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discutidas em diferentes esferas da cultura, entre elas na literatura e, logo após, no cinema. Desde o início, São Petersburgo foi pensado como uma concretização da ideia da cidade “correta”, surgida do pensamento europeu desde o Renascimento. A contraposição com Moscou, uma cidade “russa e natural”, tornou-se óbvia. Porém, não seria correto afirmar que o fenômeno do “bicentrismo” da cultura russa teve seu início com a construção de São Petersburgo, pois a Rússia antiga, antes da primazia de Moscou, também possuía dois pólos: Kiev, ao sul, e Nóvgorod, ao norte. O bicentrismo é uma característica essencial da cultura russa e representa um modelo universal da cultura humana por estar presente nas principais oposições arquetípicas, como o Bem e o Mal, Deus e o Diabo, o Direito e o Esquerdo, o Homem e a Mulher e assim por diante. A presença das oposições binárias, como característica do pensamento universal, origina-se, antes de tudo, na divisão do cérebro humano em dois hemisférios. A partir da “competição” entre as duas capitais, cada uma adquire os seus traços peculiares. Lembrando as palavras de Nikolai Gógol de que a “Rússia precisa de Moscou; e Petersburgo precisa da Rússia”, podemos dizer que “São Petersburgo precisa de Moscou e Moscou precisa de São Petersburgo”. Iúri Lotman afirmava que, em todos os campos do pensamento humano, “podemos revelar a bipolaridade como estrutura mínima de organização semiótica” (LOTMAN, 1992, p 34-35) cuja origem está na bipolaridade do cérebro humano. Konstantin Issúpov desenvolveu esse conceito e o aplicou à cultura russa. Segundo ele, o “bicentrismo é o fator providencial da história russa” (ISSÚPOV, 2000, p. 19). Esse fenômeno possui uma única fonte: a duplicidade da cultura humana, sendo que ambos os pólos podem ser vistos como duas partes de uma só totalidade. A imagem de Moscou não pode ser analisada separadamente, sem citarmos Petersburgo, assim como esse último não existe sem referência à Moscou. Isso acontece justamente porque eles representam dois componentes indissociáveis e indispensáveis da cultura russa. Desde os tempos mais remotos, o homem associava a Terra à imagem feminina, materna; em muitas
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culturas, existem divindades femininas que personificam a Mãe Terra. Provavelmente, a mais conhecida delas é a deusa grega Gaia. Não é por acaso que, em muitas línguas, as palavras “terra” e “país” pertençam ao gênero feminino. Com a urbanização da cultura humana, essa característica feminina foi transferida para a cidade, que também é uma palavra do gênero feminino, por exemplo, em português. Embora em russo a palavra cidade, górod, pertença ao gênero masculino, muitos dos topônimos entre as cidades russas são femininos, basta lembrar Moscou (Moskvá), Samara, Vologda, Riazan etc. Entre os nomes de países, muitos também são do gênero feminino: Rússia, Inglaterra, Alemanha, França e assim por diante. De acordo com a estudiosa da literatura e cultura Olga Fréidenberg: A divindade local mais tarde torna-se a divindade de todos os povoados e, com o desenvolvimento da produção, a divindade da cidade; por isso, nas línguas antigas, entre elas a hebraica e a grega, cidade é pertencente ao gênero feminino (Fréidenberg, 1978, p.495). De acordo com Serguei Nekliúdov5, no folclore, as cidades, muitas vezes, são comparadas às noivas, viúvas, mães: elas podem se casar; e as noivas sofrem assédio e são tomadas como se fossem cidades. Provavelmente, fora do contexto folclórico, pela primeira vez, o motivo da comparação entre Moscou e mulher aparece no texto Petição de Moscou referente ao seu esquecimento, escrito ainda no século XVIII (1787), pelo príncipe russo Mikhail Scherbátov à Imperatriz Ekaterina II com objetivo de convencê-la a não esquecer Moscou em detrimento de São Petersburgo. Descrevendo a lamentável situação de abandono de Moscou, após a transferência da capital para São Petersburgo, Sherbátov, em nome da primeira capital russa, confessa que “fontes de lágrimas, como as de uma viúva, escorriam dos meus olhos” (apud AMÉRICO, 2011, p. 201).
5. Professor Doutor da Universidade Estatal de Humanidades de Moscou (RGGU), especialista em folclore. Criador e Diretor do Centro de Estudo Tipológicos e Semióticos do Folclore. Membro da Escola de Tártu – Moscou. Orientando de Eliazar Meletinski.
A imagem feminina de Moscou na literatura Muitos autores, de diferentes épocas, exploraram
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a imagem de Moscou em suas obras. Um dos aspectos das relações perturbadas entre as duas capitais russas é a sua relação com o princípio do masculino e feminino. Essa caracterização de gênero é motivada, antes de qualquer coisa, pelos nomes das cidades: Moscou (Moskvá, em russo) é uma palavra do gênero feminino, enquanto São Petersburgo (Sankt Peterburg, em russo) do gênero masculino. Essa é a razão principal para Moscou ser percebida, na cultura russa, como dotada de traços femininos, enquanto Petersburgo, de traços masculinos, fato que, além da rivalidade, gera relações de mãe e filho, irmã e irmão, noiva e noivo. Essas correlações entre as duas capitais russas são refletidas em muitos provérbios russos, como, por exemplo: “Moscou é a mãe de todas as cidades”, “Mãezinha Moscou de pedra branca, de cúpulas douradas, hospitaleira, ortodoxa e faladeira”, “Petersburgo quer casar, mas Moscou recusa”, e assim por diante. Além da metáfora de uma mulher jovem, muitos dos escritores russos do século XIX descreveram Moscou como uma velha ou viúva. Em comparação com a nova capital em desenvolvimento, Moscou “começou a ser percebida como mais arcaica do que era” (Iussúpov, 2000, p.10). Essa ideia foi claramente enunciada por Aleksandr Púchkin, que, em seu artigo Viagem de Moscou para Petersburgo, afirma: A decadência de Moscou é uma consequência inevitável da elevação de Petersburgo. As duas capitais não podem igualmente florescer dentro do mesmo Estado, assim como dois corações não coexistem no corpo humano (apud AMÉRICO, 2011, p. 67).
Já São Petersburgo, desde o momento de sua criação, foi relacionado ao nome de Pedro, o Grande e, por conseguinte, à figura masculina. Seguindo essa linha associativa, Nikolai Gógol desenvolveu a comparação entre Moscou e Petersburgo no plano da confrontação das características masculinas e femininas: Moscou é uma velha caseira, faz panquecas, olha de longe e escuta a história sobre o que acontece no mundo sem se levantar das poltronas; Petersburgo é um rapaz desembaraçado, nunca fica em casa, sempre está vestido, passeia na fronteira e se atavia diante da Europa, a qual vê, mas não ouve. [...] Moscou é do gênero feminino, São
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Petersburgo – do masculino. Em Moscou, todas são noivas; em São Petersburgo, todos são noivos (apud AMÉRICO, 2011, p. 215-216).
Em seguida, o paralelo “homem-mulher” é desenvolvido pelo autor no sentido da oposição tradicional entre as duas capitais, no qual Moscou representa o universo tradicional e São Petersburgo simboliza a aspiração do país rumo à Europa: Petersburgo é um homem ordenado, um alemão completo, olha para tudo fazendo contas, e, antes de dar uma festa, confere o bolso; Moscou é uma nobre russa, e se ela se diverte, faz isso até cair e não se preocupa se vai gastar mais do que tem no bolso: ela não gosta de meio-termo (apud AMÉRICO, 2011, p. 216).
Apesar de representarem opostos, as duas capitais também se completam e não conseguem existir uma sem a outra. Isso é revelado no modo como Moscou, a antiga capital, se refere a São Petersburgo, a nova capital: tratamento de mãe para com o filho: “Correr sete verstas para longe da mamãe! Mas que ágil!”. Se Gógol relacionava Moscou e São Petersburgo com um grau de parentesco típico de mãe e filho, outro escritor russo, Mikhail Zagóskin, as caracterizou como irmã mais velha e irmão mais novo. No ensaio intitulado Dois caracteres, publicado no ano de 1841, Zagóskin relata as diferenças entre as duas. A irmã é mais velha, de personalidade forte, porém receptiva; desleixada, porém afetuosa: Basta dar uma olhada nela para ter certeza de seu completo ódio por qualquer uniformidade e simetria. Olhem para o seu adorno na cabeça – que mistura! Que junção de cores vivas, que não possuem entre si nenhuma harmonia! Que estranha combinação do velho com o novo! (apud AMÉRICO, 2011, p. 221 ).
Enquanto o irmão é caracterizado como organizado, disciplinado, porém frio, calculista. Nas palavras de Zagóskin: O irmão anda muito a pé, não tem medo do aperto e gosta de viver no alto: ele não se assusta com escadas e nem com duzentos degraus. É difícil encontrar uma pessoa que aprecie tanto limpeza e asseio quanto ele. Da mesma forma ele gosta em excesso de uniformidade e simetria (apud AMÉRICO, 2011, p. 220).
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BONDARTCHUK, Serguei. Guerra e Paz, 1967.
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Apesar das diferenças, os irmãos se complementam, afinal, pertencem a mesma família. Zagóskin preza pela distância da narração, não tecendo elogios ou críticas a um modo de ser, ou a outro; apenas são apresentadas as concepções e comportamento de ambos, de modo que se tornam agudas e visíveis as diferenças. Um dos autores que melhor explorou a cidade de Moscou em sua obra foi Liev Tolstoi, especialmente em seu clássico Guerra e Paz. O tema de Moscou, na obra de Liev Tolstói, parece ser quase impossível de ser relatado por inteiro devido à sua vastidão. A cidade aparece ainda na novela A Infância e no romance Anna Kariênina, em suas obras sobre a história da Rússia e da religião. Através de rascunhos do futuro romance Guerra e paz, foi possível descobrir que, já nas versões iniciais, o foco da narração eram três localidades russas: Moscou, Petersburgo e o interior do país. Na versão final, inicialmente, a imagem de Moscou aparece em oposição a São Petersburgo. Já nos primeiros capítulos, temos a contraposição de dois salões, o de Moscou, na casa da família Rostóv, e o de Petersburgo, de Anna Pávlovna Cherer. Nessas descrições, a vida da elite de São Petersburgo é descrita como espiritual, intelectual, política e muito mais avançada que a de Moscou, que era chamada pela nobreza petersburguesa de “aldeia”.
A acolhedora casa dos Rostóv representa o lado tradicional e familiar de Moscou, as fortes ligações entre os parentes. Seria muito oportuno lembrarmos aqui da descrição do típico almoço moscovita feita pelo filósofo e crítico literário Vissarion Belínski: O almoço moscovita é quase sempre em casa. Lá até a maioria dos solteiros pobres gosta de almoçar em sua casa, fiel ao caráter familiar de Moscou. E mesmo se eles almoçam fora de casa, isso acontece na casa de uma família conhecida, principalmente, dos parentes. Em geral, Moscou é conhecida pelo seu caráter acolhedor e hospitaleiro, ela estranha a vida urbana e social e gosta de almoçar em sua casa em família. O Clube Inglês de Moscou também é famoso por seus almoços fartos; mas tente almoçar lá: apesar de estar sentado no meio de quinhentas ou mais pessoas você sem duvida achará que almoçou com os parentes. No que diz respeito aos membros constantes do Clube, eles acham que almoçam na sua casa, com sua família. O caráter familiar está em tudo e por toda parte em Moscou! (BELINSKI, 2000, p. 8).
Os Rostóv são o símbolo de uma família tipicamente moscovita e sua casa, de certa forma, representa toda a cidade. Não é por acaso que, durante a guerra de 1812, ela virou um hospital, lugar que recebia os feridos para devolvê-los à vida. A figura de Natacha Rostóva também pode ser associada à cidade de Moscou. Assim como a cidade foi reconstruída depois da devastação da guerra, Natacha recuperou-se da perda de Andrei Bolkónski e começou nova vida com Pierre. O casamento com ele foi bastante frutífero visto que eles tiveram quatro filhos. Essa feminidade e fertilidade de Natacha também podem ser correlacionadas à imagem da cidade de Moscou. Vrónski e Anna se conhecem em Moscou. Moscou também é representada por outra história amorosa, dessa vez feliz, entre Liévin e Kitty. De acordo com Serguei Nekliúdov, no século XX, a inclinação para visualizar Moscou como moça, noiva, tende a vencer; a cidade passa a ser comparada, cada vez mais, com uma jovem e bela mulher. Provavelmente, uma das poesias mais ternas dedicadas a Moscou, no período antes da revolução de 1917, é a de Aleksandr Blok, Manhã em Moscou, de 1909:
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Amo-te, minha panna, Minha juventude despreocupada E a ternura transparente do Kremlin Nessa manha é como o teu encanto (apud AMÉRICO, 2011, p. 155). ZARKHI, Aleksandr. Anna Kariênina, 1967. Tatiana Smailova, como Kariênina
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Aqui Moscou é novamente comparada à imagem da mulher, dessa vez, à mulher amada. Chama atenção
o epíteto “ternura do Kremlin”; dificilmente podemos imaginar alguém usando essa comparação após a revolução. Logo após a revolução, em 1918, Moscou volta a ser capital e passa a ser vista como uma representação de toda a União Soviética. Acompanhando o novo país, a capital também rejuvenesce. No romance inacabado Moscou feliz, de 1936, escrito por Andrei Platónov, Moscou é igualmente o nome da personagem principal. A heroína Moskvá Tchesnóva é uma bela jovem pela qual se apaixonam todos os homens. Porém ela não se interessa pelo amor, aspirando grandes feitos que mudem o futuro do país: ela salta de paraquedas e participa da construção do metrô, na qual, em decorrência de um acidente, perde uma das pernas. As relações entre a Moskvá-cidade e Moskvá-mulher foram delineadas por Serguei Nekliúdov no ensaio O corpo de Moscou: a questão da imagem da “cidade-mulher” na literatura russa. O tema de Moscou no Romance de Platónov se duplica, a cidade está personificada na figura da heroína, enquanto ela mesma adquire “conotações de cidade”, as imagens da mulher e da cidade estão combinadas e entrelaçadas, embora o autor evite colisões diretas (NEKLIÚDOV, 2005, p. 361).
De acordo com Nekliúdov, se tirarmos do contexto do romance algumas frases dedicadas à cidade ou à mulher, elas se tornam ambíguas e podem ser relacionadas às duas: Moscou não tinha noção nenhuma do quanto era famosa: e o que isso representava (1). [Ele] desfrutava de Moscou independente; ele já a amava como uma pura verdade e, por causa da sua felicidade, a via de modo obscuro e incorreto (2). O coração dele sofria por Moscou... (3). Ela, Moscou, vivia independente, sem se importar com o trabalho, o destino, as perseguições do mundo, toda bobagem, tudo, como uma planta que se mantém viva pelo calor interno, sob o vento, tempestade e neve. Ela se separou em nome da união com o futuro (4) (NEKLIÚDOV, 2005, p.365).
Através dessas citações, torna-se claro que Platónov “brinca” propositalmente com esse sentido ambíguo que pode ser remetido tanto à cidade quanto à mulher. A capital soviética aparece no romance como ser vivo, sendo possível até mesmo ouvir os batimentos do seu coração. A Moscou-mulher, assim como a cidade,
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deseja transformar o mundo e as pessoas ao seu redor, por isso recusa o amor do engenheiro Sartorius e pede a ele que trabalhe intensamente em grandes invenções. A imagem feminina de Moscou no cinema Em sintonia com as mudanças revolucionárias ocorridas na década de 20 do século XX, Moscou, agora capital da União Soviética, se tornou um símbolo, porém mantendo suas velhas características femininas. Isso logo foi absorvido pela “nova” arte, o cinema. Um dos primeiros filmes, sem conteúdo documentário, a destacar essa aproximação foi Triétia Meschánskaia, de 1927, dirigido por Abram Room, com roteiro escrito pelo teórico do formalismo russo Viktor Chklovski. No filme, a protagonista é uma mulher que engravida sem ter a certeza se o filho é do marido ou do amante; a opção da personagem é não escolher por um ou outro, mas sim continuar sozinha sua vida. Tal decisão pode ser entendida como uma emancipação da mulher na União Soviética, além disso, sendo Moscou a cidade onde os fatos acontecem, outra leitura da decisão pode ser da capital aberta a uma vida nova e independente. O título do filme por sua vez faz referência ao nome de uma rua de Moscou, porém a palavra meschanskaia faz igualmente menção à burguesia, cujos costumes passam a ser algo do passado. Em 1933, a Sociedade dos escritores de Moscou iniciou uma ação sob o título de Moscou proletária espera por seu artista, o diretor da Sociedade apresentou um discurso no qual dizia:
6. Comintern ou Komintern (do alemão Kommunistische Internationale) é o termo com que se designa a Terceira Internacional ou Internacional Comunista (1919-1943), isto é, a organização internacional fundada por Vladimir Lenin e pelo PCUS (bolchevique), em março de 1919, para reunir os partidos comunistas de diferentes países.
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O tema de Moscou é o tema da reconstrução do combate, tema de repercussão internacional, tema da revolução mundial... Mas porque os leitores não conhecem essa cidade maravilhosa na qual se reúnem pessoas de todo o mundo, tentando entender o que é essa Moscou vermelha, onde estão o Comintern6, o Comitê Central do Partido Comunista, a Internacional Vermelha das uniões profissionais, os melhores teatros do mundo e o proletariado, que mudaram, sob direção dos bolcheviques, liderados pelo camarada Kaganóvitch, a face de sua cidade transformando-a em uma cidade exemplar (Korniénko, 2000, p. 232).
Como resposta a esse apelo, foi publicado o artigo de Serguei Eisenstein Moscou através do tempo, no qual o autor convocava os escritores a criarem um enredo coletivo sobre Moscou. Segundo o diretor de O Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potiomkin, 1925) e Outubro (Oktiabr, 1927), a imagem de Moscou deveria ser descrita de acordo com as quatro forças da natureza água, terra, fogo e ar -, das quais consistem a harmonia e desarmonia do universo. A simbologia da “nova Moscou” era a seguinte: “O fogo das revoltas, as fogueiras ardentes da revolução de Moscou”; posteriormente, “Moscou como o centro nos anos de guerra civil” e, finalmente, “Moscou como o centro da vitória”, “centro de solução histórica daquilo que não podia ser solucionado durante séculos através do fogo e do sangue”, “centro de grandes realizações” e “centro da forja furiosa da construção do novo” (KORNIÉNKO, 2000, p. 233). Em 1938, como consequência da política stalinista, foi produzido o filme Nóvaia Moskvá (A Nova Moscou), do diretor Aleksandr Medviédkin, que mostrava a Moscou reconstruída de acordo com o plano de Stálin, inclusive com o Palácio dos Soviétes7 no local onde antes e atualmente se encontra a Catedral do Cristo Salvador. Assim como tal Palácio nunca foi construído, o filme igualmente nunca foi exibido nas telas. O protagonista do filme encontra o seu amor em Moscou. Um dos detalhes é que o personagem principal é um construtor. Era exatamente de construtores que a nova Moscou necessitava para ser reerguida. Curiosamente, no ano anterior, foi concluída a obra do pintor Iúri Pímenov com título homônimo, A Nova Moscou, no qual podemos ver uma mulher dirigindo um veículo nas largas avenidas da nova moscou, como um símbolo do novo papel da cidade de Moscou e da mulher soviética. Nos anos seguintes, Moscou passou a ser palco ainda mais frequente dos filmes do período soviético. Apresentarei apenas alguns dos filmes mais representativos para o tema aqui proposto. No ano de 1958, foi lançado Diévuchka bez ádresa (Moça sem endereço), do renomado diretor Eduard Riazánov, em que o protagonista, o jovem construtor (sic!) Pacha encontra uma moça, Kátia8, no trem para Moscou.
7. O Palácio dos Soviétes era um projeto arquitetônico proposto pelo governo soviético na década de 30 que não saiu do papel. A obra seria um enorme centro administrativo representando o poder do estado socialista. Com 415 metros, a edificação seria a mais alta do mundo, e, sobre a edificação, seria colocada uma estátua de Lenin de 100 metros. A área escolhida para a construção da edificação foi o local onde, anteriormente, estava situada a Catedral do Cristo Salvador, um dos principais centros de culto da Rússia, demolida em 1931 e reconstruida, posteriormente, com o término da perseguição religiosa imposta principalmente por Stálin.
8. Katia (Diminutivo do nome Ekaterina)
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RIAZÁNOV, Eldár. Moça sem endereço (Diévujka bez adressa). 1957.
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No início da conversa entre os dois, a sensação é de que os jovens não se parecem em nada: ele muito prático, ela sonhadora, com planos de vencer na capital. O motivo de esperança de que a “mãe”, Moscou, a receba com carinho, na expectativa de uma nova vida na capital, na esperança de realização dos sonhos, é recorrente em vários filmes soviéticos. Após algum tempo juntos no trem, as relações se harmonizam e os dois já planejam encontros em Moscou. Porém, assim como para Moscou, a história nunca foi fácil, para os jovens também é colocado um desafio para testar os sentimentos dos dois. No tumulto de saída do vagão, típico das grandes cidades, Pacha não consegue sair. Quando finalmente consegue se desvencilhar das sacolas e malas dos passageiros, corre e vê Kátia partindo dentro do ônibus. Naquele momento, grita perguntando o endereço da moça para encontrá-la. Como resposta, ele ouve apenas o início do endereço: “Nikolo...”
O desafio era grande. Como encontrá-la nessa cidade tão imensa sabendo apenas seu nome e as iniciais do endereço. Pacha e Mitia, seu fiel escudeiro, passam a procurar Kátia por toda Moscou. A cidade teria mais uma vez que ajudar nessa busca. Ao estimarem todas as combinações possíveis entre o nome, bairros e ruas, os amigos ficam diante do fato de que a busca pode demorar até três anos. Isso considerando a quantidade de ruas, bairros e pessoas que viviam em Moscou, em 1958. Enquanto Pacha procura por Kátia, o diretor trabalha em uma série de desencontros dos dois pela cidade. Kátia, nesse período, tenta a vida em Moscou, a cidade das oportunidades. A heroína, que inicialmente morava com seu avô e depois com a amiga Ólia, tenta vários empregos, sendo rejeitada em todos eles. Quando Kátia desiste e resolve voltar para a sua cidade, Moscou volta a ser “bondosa” e, na mesma estação de trem, ela encontra Pacha. Se todas as ruas de Moscou se estendessem em uma só Então por ela seria possível atravessar todo o país Se todas as escadas de Moscou se juntassem formando uma só Então seria possível chegar até a Lua Eis que ela é grande, enorme Amável a todos, viva em todos os corações Querida, familiar, A Bela Moscou9.
9. Música de Anatóli Liépin, letra de Vladímir Lífchitz.
A capital soviética aceitava novos habitantes em troca de trabalho e muitos esforços. Essa necessidade de receber o direito de morar em Moscou em “troca” de trabalho para o bem da sociedade foi relatada décadas depois em um dos filmes mais queridos na União Soviética, Moscou não acredita em lágrimas (Moskvá slezam ne viérit, 1980), do diretor Vladímir Menchóv. O filme apresenta a Moscou dos anos 50, e três amigas que vieram para Moscou, oriundas da província. Cada uma delas encontra o seu próprio caminho para “conquistar” a capital. O ponto principal é a característica da história da heroína, Ekaterina, que, de uma simples trabalhadora, torna-se diretora de uma grande indústria e encontra, na cidade, a satisfação plena, inclusive no
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10. Música de Serguei Nikítin, letra de Dmitri Súkharev e Iúri Vízbor.
amor. Como o próprio título sugere, Moscou é a cidade que não acredita em lágrimas, e sim em trabalho e na felicidade. É evidente que, nos anos 80, auge da “Guerra Fria”, o governo soviético promoveu a divulgação da força de trabalho feminino, a realização através do trabalho, etc. O filme conquistou tanta fama, que, de acordo com Vladímir Menchóv, em 1985, o então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, antes de se encontrar com Mikhail Gorbatchiov, o assistiu pelo menos oito vezes para melhor entender a mentalidade russa. No filme, Moscou é apresentada tradicionalmente pela figura feminina, dessa vez, a materna, acolhedora, pronta para ajudar a qualquer momento. O tema musical de Moscou não acredita em lágrimas, a canção “Aleksandra, Aleksandra”10, igualmente, é um ótimo exemplo de representação do texto de Moscou, em um dos seus versos: Moscou não escondia as inquietações, Moscou já viu de tudo, Mas todas as desgraças e tristezas Curvavam-se diante dela. O amor de Moscou não é rápido Mas é fiel e puro, Pois o amor materno É o mais forte de todos.
Ao contrário da relação da cidade de Moscou com a infelicidade no aspecto amoroso, que esteve presente na literatura do século XIX, nesse texto, a capital emana o seu amor para com seus habitantes. Essa comparação entre a capital e o jovem país soviético, ambas relacionadas à imagem feminina, pode ser observada com muita clareza nos versos de Vassíli Lébedev-Kumátch, Moscou de maio (1937), que passou a ser letra de uma das canções mais populares da toda a União Soviética: A manhã pinta com uma cor terna As paredes do antigo Kremlin, Acorda com o amanhecer Toda a terra soviética. [...] Bom dia, querida cidade,
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Coração da minha pátria! [...] Efervescente, Poderosa, Não derrotada por ninguém, Meu país, Minha Moscou, Você é a mais amada! (apud, AMÉRICO, 2011, p. 179).
Conclusões Embora seja impossível esgotar todas as obras da cultura russa em que Moscou é associada à figura feminina, o intuito do presente artigo foi apresentar um panorama geral do assunto e exemplificar tal fenômeno nas telas. Considerando o bicentrismo, presente em toda a história russa, as duas principais cidades russas sempre representaram duas partes de um mesmo povo, duas verdades de uma mesma história. A bipolaridade da cultura e mentalidade russa foi objeto de várias obras do filósofo Nikolai Berdiáev (1874-1948), entre elas, o livro A ideia russa, de 1946. Nele, Berdiáev dá uma definição muito interessante do caráter nacional russo: O povo russo é um povo extremamente polarizado, é uma combinação das oposições. [...] A contradição e complexidade da alma russa talvez esteja relacionada com o fato de que na Rússia colidem e interagem dois fluxos da história mundial: o Oriente e o Ocidente. O povo russo não é nem puramente europeu nem puramente asiático. A Rússia é uma parte do mundo, um enorme Oriente-Ocidente, ela junta os dois mundos. Na alma russa, sempre lutaram dois princípios, o oriental e o ocidental11.
11. BERDIÁEV. Disponível em: <http://lib.rus.ec/b/121191/ read#t1>. Acesso em: 23 junho 2014.
Conforme análise, a maneira como ambas as capitais, Moscou e São Petersburgo, são retratadas na cultura russa formando um todo, representa uma intensa correlação que também pode ser chamada de simbiose: são assim as relações entre mãe e filho, irmão e irmão. Dessa forma, as duas cidades se completam, uma não existe sem a outra.
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Ao longo do artigo, foram apresentados elementos que corroboram com a representação de Moscou como um exemplo de relações familiares, repleta de sentimentos, acolhedora e testemunha traços femininos de afeto e generosidade. Moscou lutou com a Rússia e pela Rússia, sofreu como todo o país, e foi defendida por seus filhos. Tal fenômeno também foi tema recorrente no cinema, assim, na arte do século XX, se confirmam os reflexos literários das representações de Moscou e suas relações com seus habitantes e com os visitantes da capital. Além disso, no cinema, tais relações foram acentuadas com a sensação de entusiasmo fruto do desenvolvimento de uma nova capital para um novo país, em que são necessários construtores e especialistas, em que há liberdade para novas experiências. A mulher que simboliza Moscou no cinema é independente e trabalhadora e o amor é feliz, ao contrário de muitos exemplos incorridos na literatura russa. As famílias felizes para o crescimento do país, a continuidade da esperança na “mãezinha Moscou”.
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Referências AMÉRICO, Edelcio. Os textos de Moscou e São Petersburgo como reflexo da identidade nacional russa. 2011. 324. Tese (Doutorado em Literatura e Cultura Russa). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. Antsíferov, Nikolai. Alma de Petersburgo, (Duchá Peterburga). São Petersburgo, 1923. Antsíferov, Nikolai. Realidade e mito de Petersburgo (Byl i mif Peterburga). Petrogrado, 1924. Antsíferov, Nikolai. Livro sobre a cidade (Kniga o górode). Moscou, 1926. BELÍNSKI, Vissarion. Petersburgo e Moscou (Peterburg i Moskvá). In. Pro et Contra Moscou – Petersburgo (Pro et Contra Moskvá – Peterburg), RGKHI: Moscou, 2000.
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ROOM, Abram. Três (Trôtia Mechanskaia), 1927.
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Resumo: neste ensaio, discute-se a noção de irresponsabilidade na concepção do filme Aleksandr Niévski, de Serguei Eisenstein, para refletir sobre o papel social do artista, na construção de sua obra de arte, considerando o contexto político e ideológico que, por vezes, tenta sobrepor-se ao projeto artístico.
Abstract: this essay discusses the notion of irresponsibility in the conception of the film Alexander Nevsky, of Sergei Eisenstein, to reflect on the social role of the artist in the construction of his masterpiece, considering the political and ideological context that sometimes tries to override the art project.
Serguei Eisenstein; Realismo Linguagem cinematográfica.
Sergei Eisenstein; Socialist Realism; Cinematic language.
Socialista;
A concepção artística de Serguei Eisenstein: o direito à irresponsabilidade1 Erivoneide Barros
[...] Daí botei meu primeiro verso: Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem. Mostrei a obra pra minha mãe. A mãe falou: Agora você vai ter que assumir as suas irresponsabilidades. Eu assumi: entrei no mundo das imagens. Manoel de Barros2
Ao ler a provocação da epígrafe, extraída da constatação do ser poeta, daquele que desloca o mundo e suas construções, somos impelidos a considerar a noção de irresponsabilidade do artista diante do mundo que compõe, por meio das imagens, na tentativa de estruturar uma ideia primeira (primitiva) que ganha um espaço nas anotações do artista e se transforma, aos poucos, em um novo objeto pleno e fértil de significações.
1. O cerne desta discussão é fruto da pesquisa de mestrado desenvolvida pela autora.
2. Poeta. In. Ensaios fotográficos. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 47.
Manuel Alvarez-Bravo, retrato de Sergei Eisenstein, México, década de 1930.
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3. HOUAISS, Antonio (Ed.). Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
4. CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
5. Termo utilizado por Iúri Lotman (1978, p. 27).
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Todavia a primeira indagação que pode gerar certo embaraço para o leitor desse ensaio está atrelada ao sentido imediato e corriqueiro da palavra irresponsabilidade. Oposto à noção de responsabilidade, “obrigação de responder pelas ações próprias ou dos outros3”, o vocábulo tem o seu valor jurídico ao indicar aquele que não responde ou se compromete com as suas atitudes. Nessa perspectiva, pensar no uso cotidiano da palavra irresponsabilidade seria considerar que o artista não teria responsabilidade sobre seus atos (sua obra)? Longe disso, entendemos essa palavra tal como é denunciada em sua raiz, enquanto um substantivo derivado de um verbo, uma ação <responder>4, assim irresponsabilidade seria a ausência da necessidade de responder a algo. Nesse sentido, a irresponsabilidade a qual fazemos referência, no trabalho do artista, advém de seu compromisso com a execução de um projeto coerente com primícias que emergem de seu trabalho (de maneira consciente ou não). Afinal, como conclui Iúri Lotman: “O fim da arte não é, portanto, re-produzir este ou aquele objecto, mas sim torná-lo portador de significação” (1978, p. 31). Nessa visão, o artista, dentro de seu papel social, não teria a responsabilidade de responder a uma necessidade política ou ideológica de seu presente ou que esteja em diálogo com o seu passado, mesmo que a matéria usada na composição de sua obra seja extraída de fatos verídicos ou, supostamente, preze por uma representação fidedigna de sua realidade imediata. Ainda que a afirmação acima possa ser relativizada (e será em determinados momentos, conforme veremos adiante), não podemos negar que o artista conduz o produto final de seu objeto artístico independentemente da origem da matéria que manipulou para a composição de seu objeto. Talvez a condição de texto-documento5, adquirida a partir da extração de elementos da realidade imediata, seja de maneira mais forte marcada nas jovens artes surgidas entre os séculos XIX e XX, a fotografia e o cinema, sendo que a última interessa-nos de modo mais particular. Como composição de um texto em que o cineasta inscreve suas escolhas estéticas e o tema de sua obra, no cinema, a linguagem foi construída (e ainda hoje é) na prática de suas produções, conforme vemos em
sua história, desde os primeiros registros de eventos do cotidiano, passando pelo uso expressivo da montagem paralela dos filmes de Griffith até as experimentações realizadas, em solo soviético, por nomes como Serguei Eisenstein, Dziga Viértov, Esfir Shub, Liev Kuléchov dentre outros. É neste processo teórico e prático que a cinematografia ganhou uma sintaxe própria que possibilitou a riqueza expressiva dos filmes produzidos, tal como salienta Lotman: Na realidade, toda a história do cinema, enquanto arte, é uma cadeia de descobertas que visam expulsar o automatismo, de todos os aspectos susceptíveis de um tratamento artístico. O cinema deixou de ser fotografia em movimento quando fez dela um meio activo de conhecer a realidade. O mundo que o cinema reproduz é simultaneamente o próprio objecto e um modelo desse objecto (1978, p. 34).
Sendo a matéria do cinema, o mundo referencial, dotada da dubiedade sujeito-objeto, ou seja, tema da produção e representação desse tema, o cineasta exerce o seu direito à irresponsabilidade ao se comprometer, primeiramente, com a sua proposta artística, a sua poética. Nesse ponto, evocamos a figura de Serguei Eisenstein que, na produção de seus filmes, busca construir seu
Serguei Eisenstein, Aleksandr Niévsk, 1938.
6. SHKLOVSKI, 1985, p. 369.
7. Grifo nosso.
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texto artístico nas entrelinhas da História (passado e presente), na sutileza dos conceitos e ideias que recolhe e materializa como metáfora (ou seria metonímia?) de tempos e de espaços. É o próprio cineasta quem estabelece a diferença entre a prática na vida e a prática na arte: “na verdade, para conseguir seu resultado, uma obra de arte dirige toda a sutileza de seus métodos para o processo” (EISENSTEIN, 2002, p. 21). Essa premissa da preocupação com o processo de construção de uma obra artística torna-se muito evidente nas anotações e artigos que escreveu durante o processo de concepção e execução do filme Aleksandr Niévski (1938). Baseado em uma importante figura histórica da Rússia medieval, Eisenstein tinha clareza do tipo de filme e personagem que pretendia construir, não apenas pelas indicações do Realismo Socialista, que, superficialmente, o filme parece contemplar, mas pelo comprometimento com o material que pretende desenvolver. Eisenstein, desde o momento em que recebeu a incumbência de trazer para o espectador uma proposta de leitura para o príncipe e santo Niévski, tinha a clareza da questão central que permearia a produção de todas as etapas do filme: “como coordenar a voz da época com seu destino?6”. Eisenstein vivia em um país que passava por profundas transformações políticas e culturais. Exercendo o seu papel de pensador inquieto, não deixava essas transformações passarem de modo despercebido, sobretudo, no que tangia às mudanças que o cinema enfrentava nos anos 30. Mudanças não apenas políticas e ideológicas, advindas das prescrições do Realismo Socialista, mas antes mudanças estéticas, acentuadas pela chegada do cinema sonoro e pelo aprimoramento das técnicas da linguagem cinematográfica As novas diretrizes para o cinema, de acordo com as primícias do Realismo Socialista, deveriam contemplar a “descrição da realidade ‘em seu desenvolvimento revolucionário’, fidelidade7 a personagens e situações ‘típicas’, tratamento de meios sociais em sua totalidade, otimismo idealizador manifestado em um ‘realismo heroico’ ou ‘romantismo revolucionário’, adesão ao ‘espírito do partido’ e ao ‘espírito nacional’” (BORDWELL, 1999, p. 194). Assim, o cinema, como uma construção
artística de grande alcance, desempenharia a sua função de divulgação e consolidação do regime stalinista e dos princípios de sua ideologia. De antemão, nesta brevíssima apresentação das bases do Realismo Socialista, ressaltamos o termo fidelidade, entendido aqui como a adesão plena de alguém a um valor supremo. Neste caso, o artista teria um compromisso primeiro com o Partido além da responsabilidade de divulgar, por meio de sua obra, a imagem do grande líder Iósef Stálin. Todavia a crítica de cinema Maia Turovskaia traz uma indagação pertinente sobre o limite de alcance de regras impostas dentro de um sistema institucional fechado: “No âmbito institucional – sejam os órgãos do poder estatal [...], o Partido, ou principais organizações públicas [...] – a ideologia ‘ordenou’ o tipo de cultura em que tinha interesse. Mas a ideologia, de fato, toma posse de toda a gama de cultura como realmente esta funciona diariamente na sociedade?” (TUROVSKAIA, 1993, p. 34). Certamente adentrar nessa discussão em um campo macro, seria tarefa para um texto de outra envergadura, porém podemos pensar essa questão em esfera micro, no universo criado pelo artista.
Serguei Eisenstein, Aleksandr Niévsk, 1938.
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Eisenstein constitui o projeto de Aleksandr Niévski dentro da nova conjectura política soviética. O cineasta dispunha das principais perspectivas do Realismo Socialista para o roteiro e a filmagem: o culto à personalidade, o patriotismo, destacando a valorização da terra mãe. Mas as primeiras preocupações do cineasta são de outra ordem, como podemos conferir no artigo de nome homônimo ao filme. Neste, o cineasta relata seu trajeto de pesquisa inicial, deixando, explícitas, suas intenções com a construção da personagem: “Eu pretendia fundamentalmente fazer de meu Alexandre um gênio” (EISENSTEIN, 1969, p. 50). O cineasta segue suas reflexões em torno de sua noção de gênio encaminhando-a para a construção de um conhecimento ou percepção quase intuitiva - e por que não fruto do acaso -, do estímulo gerador da estrutura da batalha: “o problema a resolver no filme coloca-se muito claramente: encontrar a ‘maçã de Newton’ que inspirou Alexandre, enquanto refletia sôbre [sic] a tática a seguir, a idéia [sic] de manobra da batalha de Peipus” (EISENSTEIN, 1969, p. 51). De antemão, percebe-se o desejo de construção de uma figura em que sua principal qualidade está na capacidade de articulação e construção de estratégia. Essa escolha gera um efeito central na concepção estética do filme, como explana o cineasta: Nada mais difícil do que inventar a imagem, quando o imperativo que o exige encontra-se formulado sob um rigor matemático: dada a fórmula do que é preciso, criar a partir daí uma imagem. Orgânicamente [sic] – e é de tal maneira mais vantajoso – o processo desenrola-se de outro modo completamente diverso; a percepção imaginada do tema e a cristalização progressiva da idéia [sic] (da tese) simultâneamente [sic] ligam-se e fundem-se, em fórmula (EISENSTEIN, 1969, p. 51).
Páginas antes, Eisenstein comenta sobre a condição de santo, atribuída a Niévski, que pretendia redimensionar para que outras características fossem salientadas. Cabe ressaltar que a escolha de um santo
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não ocorreu de modo fortuito ou apenas para contemplar as exigências que estavam na ordem do dia. Quando Boris Shumiátski, sob ordens de Stálin, ‘convidou’ Eisenstein para realizar um novo projeto, ofereceu duas possibilidades de trabalho: criar um herói nacional, utilizando a figura de Niévski, ou explorar a figura de um herói popular, Ivan Susanin. Eisenstein teria escolhido a primeira opção justamente porque, de acordo com a sua percepção, a historiografia russa continha poucas informações precisas sobre Niévski8. Mais do que se preocupar apenas com as indicações do Realismo Socialista, embora não haja dúvida de que essa “escola” merecia a atenção de Eisenstein, como vemos nas reflexões e artigos escritos pelo cineasta, ao longo dos anos 30, já que se pretendia determinar os rumos da concepção de fazer cinema (e de seu futuro como artista!), o diretor dirige sua atenção às questões estéticas e de composição de uma obra de arte, investigação que se revela, de modo peculiar, em seus textos críticos e artísticos. Como lembra David Bordwell (2001), a relação do cineasta com a estética do Realismo Socialista precisa ser revisitada, pois a sua suposta apropriação submissa, em Aleksandr Niévski, não parece ser tão simplista como, por vezes, foi avaliado pela crítica. Aliás, a aparente simplicidade do argumento é tida como um suposto indício de perda da complexidade da construção artística eisensteniana, após a declaração pública do Realismo Socialista. Porém, como avalia Viktor Chklóvski, “O valor máximo de Aleksandr Niévki é [justamente] a claridade da construção: o enfrentamento entre duas massas de povos, entre dois destinos populares: o dos cavaleiros que atacam, ou seja, o do povo que invade um país, e o de um povo que defende a própria terra” (1972, p. 188), pois é nessa extravagante simplicidade, riqueza da síntese artística para a construção do tema, que o cineasta conseguiu dar cabo a seu projeto de coordenar seu passado e presente. Outro aspecto que merece ser ressaltado do texto fílmico escrito pelo artista é o modo como a construção da identidade de Niévski foi pensada. Distante de ser um soberano, detentor do poder absoluto, os méritos do príncipe são compartilhados com uma multidão de
8. Cf. FERRETTI, Maria. Memoria pubblica e costruzione dell’identità collettiva nell’Urss degli anni Trenta: l’Aleksandr Nevskij. In. PITASSIO, Francesco (Org.). La forma della memoria: memorialistica, estetica, cinema nell’opera di Sergej Ejzenstejn. Udine: Fórum, 2009. pp. 23-57.
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anônimos, verdadeiros construtores da história de uma nação. Eisenstein relata que, durante as viagens que realizou para melhor compreensão do tema abordado, visitou a Igreja do Salvador, construída no século XII. De sua descrição, ressalta um comentário, consequência de sua vivência na igreja: “[...] suas pedras conheceram Alexandre. Alexandre as conheceu” (EISENSTEIN, 1969, p. 84). O cineasta prossegue suas incursões até revelar um cartaz que, de fato, mereceu sua atenção. No cartaz, está registrada a data de início e fim da obra. A rapidez com que tamanho monumento foi erguido, graças aos esforços de homens anônimos, é evidenciado da seguinte maneira: “Os homens que em poucos meses edificaram aquela catedral não eram ícones, nem miniaturas, nem estátuas ou estampas, mas gente como você e eu. Não são mais as pedras, agora, que nos falam e contam a sua história, mas os homens que as juntaram, talharam e carregaram” (EISENSTEIN, 1969, p. 45). Dentro dessa visão, conseguimos compreender porque o projeto deste filme pressupõe a presença das qualidades do príncipe em outras personagens: Um ardor contido pela lucidez constituía, em suma, a essência do personagem. A síntese disso seria sublinhada pelas figuras de dois de seus companheiros: um que nos vinha das crônicas de Neva; e outro descenderia de um dos heróis intemporais das canções de gesta de Novgorod. A intrepidez de Buslai e a sabedoria de Gavrilo emolduravam o vencedor de Peipus, que reunia uma e outra característica. (EISENSTEIN, 1969, p. 46-47).
9. De acordo com Maria Ferretti, teria sido o próprio Stálin quem fez esta ‘correção’ no roteiro (2009, p. 55).
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Nessa perspectiva, parece-nos que Niévski exerce apenas o papel de personagem catalisadora do tema, isto é, sintetiza a qualidade suprema que já pertence à alma russa: o amor pela pátria. Talvez por causa desse ponto, em que a importância do príncipe é compartilhada, o primeiro roteiro trazia a morte do príncipe Aleksandr, no final do filme, fato inusitado para uma obra em que se pretende enaltecer a figura de um grande líder. Para Eisenstein, “o santo príncipe” deveria ser colocado de joelhos, “em nome de uma aspiração mais alta” (EISENSTEIN, 1987, p. 305). O projeto de concluir o filme com a morte do herói, segundo relata Eisenstein, foi recusado9:
Outra mão que não a minha fez uma anotação com um lápis vermelho, após a cena da derrota dos alemães. - O roteiro termina aqui – rezava a anotação. – Um príncipe tão esplêndido jamais poderia morrer! (1897, p. 305).
Serguei Eisenstein, Aleksandr Niévsk, 1938.
O príncipe Niévski, no projeto artístico, parece tornar-se a base da articulação do povo russo que norteia o desenvolvimento do tema central, o patriotismo. É o povo, em todo o texto fílmico, que determinará a maneira de proceder como defensores da pátria, diante dos inimigos. Eisenstein, como um artista que goza do direito à irresponsabilidade, apresenta, em seus estudos para a filmagem de Aleksandr Niévski, antes de qualquer questão política e ideológica, uma clara preocupação em ressignificar os elementos selecionados para a construção de seu texto artístico. A responsabilidade que, aparentemente, os órgãos indicados para efetuar o controle das produções cinematográficas esperam surgir da obra de um artista comprometido com seu país, parece recair, na obra de Eisenstein, sobre a consciência artística, sem desconsiderar o espírito de sua época (zeitgeist), fato que torna sua produção ainda mais fértil e paradoxal.
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O cineasta, em sua irresponsabilidade, isto é, respeitando, sobretudo, sua consciência artística, assume seu papel social ao estabelecer, por meio de seus recursos estéticos, uma relação entre espectador e obra cinematográfica, em que as cadeias significativas são construídas, ativamente, na relação espaço-tempo. As questões históricas não são exploradas apenas como um pretexto para o cenário de um filme ou uma encomenda partidária, mas estabelecem um constante diálogo entre presente e passado, brincando de testar a potencialidade da cinematografia, já que a “imagem representa – é esse o termo – restitui uma presença” (1997, p. 197), como lembra Edgar Morin, ainda que seja de um projeto elaborado para romper seus aspectos narrativos, adquirindo um valor artístico que parte de sua organização interna e se ressignifica nas reverberações externas sempre que é visitada por um espectador inquieto como o artista que o produziu.
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A utilização da cor no cinema já era motivo de reflexão para Serguei Eisenstein muito antes que ele pudesse realizar sua primeira e única sequência cor: a sequência do banquete, no filme Ivan o Terrível - segunda parte. Lançando mão da Teoria das Cores, de Goethe, que Eisenstein cita em um de seus textos, analiso três situações distintas, sempre partindo de suas reflexões, que são diretamente relacionadas com a cor no cinema. A primeira situação parte de dois comentários sobre dois filmes em branco e preto; a segunda situação refere-se às cores utilizadas na sequência do banquete colorido; e a terceira, sobre a transição entre a cor e o branco e preto no final da cena do banquete.
For Sergei Eisenstein the use of color in cinema was a cause for reflection long before he could make his first and only color sequence: the color banquet sequence in Ivan the Terrible - second part. Making use of Goethe’s Theory of Colours, that Eisentein quotes in one of his texts, and having his reflections and production as a start point, I analyze three different situations which are directly related to the use of color in cinema. The first situation comes from two comments upon two black and white films; the second refers to the colors used in the color banquet sequence; and the third refers to the transition from color to black and white at the end of the banquet scene.
Eisenstein. Goethe. Cinema. Branco e preto. Cor.
Eisenstein. Goehte. Film. Black and white. Color.
Considerações sobre a cor no cinema de Serguei Eisenstein Paulo Angerami
68 À noite, posicione duas velas acesas, uma diante da outra sobre uma superfície branca, e, entre elas, um fino bastão na vertical, de modo que sejam lançadas duas sombras. Coloque um vidro colorido diante de uma das luzes, de forma que a superfície branca apareça colorida; no mesmo instante, a sombra lançada pela luz colorida e levemente iluminada pela luz incolor mostrará a cor complementar (GOETHE, 1840, 30).1
A utilização da cor no cinema foi motivo de extensa reflexão para Eisenstein e teve início muito antes que ele pudesse realizar qualquer sequência com uma película cor. Neste breve artigo, vamos desvendar algumas possíveis manifestações da leitura que Eisenstein2 fez do livro Theory of Colours, de Goethe3. Para isso, escolhemos três situações para serem analisadas: uma em que o cineasta faz comentários sobre dois filmes
1. Place two candles at night opposite each other on a white surface; hold a thin rod between them upright, so that two shadows be cast by it; take a coloured glass and hold it before one of the lights, so that the white paper appear coloured; at the same moment the shadow cast by the coloured light and slightly illuminated by the colourless one will exhibit the complemental hue. (GOETHE, 1840, 30.Trad. autor)
2. Sabemos que Eisenstein leu o livro Theory of Colours porque, em seu texto Colour and Meaning (no livro The Film Sense), encontramos algumas citações da parte VI Effect of colour with reference to moral associations. 3. Johann Wolfgang Goethe (1749 – 1832).
von
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(imagem de abertura) Sergei Eisenstein, Ivan o Terrível parte 2, 1945 (01:16:08).
4. Goethe tem um capítulo dedicado às patologias e, quando descreve experimentos, supõe um olho são. 5. Mas ela pode ser simulada digitalmente.
6. yellow is the colour nearest the light (GOETHE, 1840, 306.Trad. autor). 7. seems to retire from us (GOETHE, 1840, 311.Trad. autor). 8. gives an impression of cold (GOETHE, 1840, 311.Trad. autor).
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branco e preto, um de Dovjhenko e outro de Korda; e outras duas relacionadas a um de seus filmes, sendo uma, diretamente, a partir de uma das cenas e outra, a partir do comentário que ele fez sobre uma cena. A epígrafe é um excerto da primeira seção do livro de Goethe, Physiological Colours. O experimento descrito, nessas poucas linhas, aparece no capítulo Coloured Shadows. Essa cor complementar, que colore uma das sombras, pode-se dizer, não existe, ela não está lá onde mira o observador. É uma cor que se forma apenas na estrutura fisiológica de um olho são4, uma cor que, tanto não existe que não pode ser registrada por qualquer tipo de dispositivo, seja analógico, seja digital5. Sobre essa seção do livro, desconheço qualquer referência de Eisenstein, no entanto, assim como no experimento descrito, Eisenstein, em alguns momentos, comenta sobre a cor, em filmes branco e preto, uma cor que, também, não está lá onde mira o espectador; uma cor que só existe na percepção do espectador e contribui para a construção de significados e emoções. Ao pensar a cor a partir do branco e preto, Eisenstein parece oferecer uma importante chave para entender suas ideias sobre a utilização da cor no cinema, pois não basta que a tecnologia ofereça os meios para realizar a cor; além de planejar o uso da cor para a construção dos significados e emoções, é preciso que o espectador seja ativo para adquirir esta percepção. Comecemos, então, pelo branco e preto com comentários que aparecem no texto de Eisenstein, A cor no cinema ou o cinema em cores?. O primeiro filme é Schors (1939), de Aleksandr Pietróvitch Dovjenko (18941956), sobre o qual Eisenstein comenta que os tons de azul e ouro das cenas do funeral do Comandante Bojhenko ficaram marcados em sua memória (EISENSTEIN, 1969, p.136). Eisenstein poderia ter comentado outra cena qualquer do filme, mas, sem dúvida, esta é uma cena importante e imprime, no espectador, uma grande carga emotiva. Segundo Goethe, “o amarelo é a cor mais próxima da luz6” e, no seu estado perfeitamente puro e brilhante, nos transmite a sensação do ouro. Nesse estado, o amarelo é sereno e nobre. O azul, por outro lado, “parece se afastar de nós7”, “provoca uma sensação de frio8” e, “a
aparência dos objetos vistos através de um vidro azul é sombrio e melancólico9”. Na cena do filme, a terra pisada pelo funeral é forrada por uma gramínea alta de estepe. Por ser uma gramínea, não é polida e nem brilhante como o ouro, porém, fora o brilho das espadas e alguns pontos claros nas nuvens, é aquilo que aparece como mais claro e luminoso na cena, remetendo o espectador a um amarelo dourado e, assim, à nobreza do comandante morto. O céu, por sua vez, apesar de algumas nuvens, parece limpo, nos levando a associar sua cor com o azul. Mas o azul nos remete à sensação de frio, por exemplo, do corpo de Bojhenko, nos remete a distância que se abre entre este e seus companheiros que se mantêm vivos, à tristeza da perda.
9. the appearance of objects seen through a blue glass is gloomy and melancholy (GOETHE, 1840, 311.Trad. autor).
Aleksandr Dovjenko, Schors, 1939 (02:08:59), cena do funeral do Comandante Bojenko.
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Mesmo trazendo apenas trechos mínimos dos capítulos sobre o amarelo e sobre o azul, percebe-se uma grande identificação entre estes e a leitura de cores, a partir da cena, ou seja, o texto de Goethe parece um subtexto do comentário de Eisenstein. No texto Cor e Significado, encontramos outro comentário a respeito da cor no cinema branco e preto, muito semelhante ao analisado acima. Nesse trecho, Eisenstein (1990, p.78-79) faz uma crítica ao filme Rembrandt (1939), de Alexander Korda (1893-1956). Segundo o diretor russo, a escala cromática que domina o autorretrato do pintor, aos 55 anos, é de “amarelos fundindo-se em verdes escuros e marrons desmaiados”, no entanto, apesar do ator ter sido cuidadosamente vestido e maquiado para representar a produção desse autorretrato, a imagem final do filme é de uma parede do atelier do artista, banhada pela luz do sol, que remete o espectador a um amarelo brilhante, um dourado, talvez. Assim, Eisenstein conclui que “nenhuma tentativa foi feita para espelhar esta trágica escala cromática, tão típica de Rembrandt, através de uma equivalente escala de iluminação cinematográfica”. Por outro lado, se Eisenstein esperava uma escala de iluminação que pudesse espelhar a trágica escala cromática do autorretrato, de 1661, talvez Korda quisesse outra coisa, pois o filme não mostra um Rembrandt trágico; talvez o diretor quisesse remeter a um Rembrandt nobre, sugerindo, assim, um amarelo claro quase dourado; não uma escala de iluminação objetiva, mas uma escala de iluminação subjetiva. A segunda situação que vamos analisar é uma cena cor do filme Ivan, o Terrível (Ivan Grozni, 1945) – segunda parte. Para isso, é necessário estabelecer algumas referências. A primeira é a escolha da versão do filme e, a segunda é a cena particular da sequência. A versão é da Criterion Collection e a cena a ser analisada é a primeira em que entra a cor. Nessa cena, a cor de fundo da parede é um verde puxado para o azul e a roupa dos dançarinos, um vermelho puxado para o laranja. No círculo cromático de Goethe, essas cores são complementares, produzindo uma totalidade cromática,
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uma harmonia cromática que, segundo ele, satisfaz o olho. Quando nos fala do verde, diz que “o olho experimenta uma sensação notavelmente gratificante a partir dessa cor10”, porque resulta da mistura equilibrada das cores primárias, que, para ele, são o amarelo e o azul. Mas esse verde está puxado para o azul “que carrega um princípio de escuridão11” e uma energia negativa, produz uma sensação de frio e nos lembra a sombra. Assim, a satisfação do verde está esmaecida por uma sombra fria e negativa. Talvez o prenúncio de uma morte. O vermelho, por sua vez, “transmite uma impressão de gravidade e dignidade12”. Mas esse vermelho está puxado para o laranja que, no círculo cromático, é a posição de mais alta energia “e não é de se admirar que os homens rudes, impetuosos e sem instrução encontram plena satisfação nessa cor”13. Esse vermelho puxado para o laranja aparece
Alexandr Korda, Rembrandt, 1939 (01:23:26), cena final do filme. 10. the eye experiences a distinctly grateful impression from this colour (GOETHE, 1840, 316.Trad. autor). 11. brings a principle of darkness with it (GOETHE, 1840, 310.Trad. autor).
12. conveys an impression of gravity and dignity (GOETHE, 1840, 314.Trad. autor). 13. and it is not to be wondered at that impetuous, robust, uneducated men, should be especially pleased with this colour (GOETHE, 1840, 309-310.Trad. autor).
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Sergei Eisenstein, Ivan o Terrível - parte 2, 1945 (00:56:46).
principalmente na roupa dos enérgicos dançarinos. Enquanto vermelho, poderia representar a dignidade do Tsar, no entanto esse vermelho está desviado para o laranja e aparece na roupa dos dançarinos da Opritchina, que é o canal pelo qual Ivan extravasa sua brutalidade.
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A última situação que iremos analisar, que faz parte do mesmo filme, refere-se à passagem da sequência cor, do banquete, para a sequência branco e preto, da catedral. Quando em 1945 surgiu a possibilidade de filmar com película cor, todas as sequências da segunda parte já estavam prontas faltando apenas o banquete. A
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Sergei Eisenstein, Ivan o Terrível - parte 2, 1945 (01:14:28).
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entrada da cor no filme não era um problema, mas a volta para o branco e preto era um desafio. Essa passagem é cuidadosamente discutida pelo diretor em Acerca de la puesta en escena (EISENSTEIN, 1982). A nossa referência para essa análise será esse texto e não alguma versão do filme. Ao final do banquete, é o príncipe Vladímir, que está vestido com os paramentos do Tsar, quem deve conduzir a todos até a catedral. Mas Vladímir sabe que é na catedral que deve se realizar o assassinato do Tsar. Vladímir sabe o que o aguarda. Tenta recuar, mas não pode. Para realizar essa passagem entre a cor e o branco e preto, foram utilizados dois recursos: a interposição de algumas cenas monocromáticas, tingidas de azul, que já haviam sido filmadas, e uma transição para o azul, nas últimas cenas cor. As cenas monocromáticas correspondem aVolínets, o assassino, deslizando sorrateiro entre as colunas da catedral, e Vladímir conduzindo os Opritchniks pelo pátio nevado até a catedral. A transição para o azul é acompanhada pelo predomínio do preto das capas dos Opritchniks que se preparam para serem conduzidos até a catedral. Nessa transição para o azul, existe uma cena que é, particularmente, marcante surgindo como uma montagem em paralelo com a cena de Volínets. É a cena em que Vladímir olha para fora através da porta do salão e toma consciência daquilo que o espera. Ao voltar o rosto para a câmera, ele é banhado em uma luz azul. Entra a cena de Volínets e, em seguida, o príncipe banhado em azul, que vai perder o tom azul. Podemos dizer, então, que, tecnicamente, a transição entre cor e branco e preto está resolvida, mas todo esse malabarismo com o azul não se encerra na técnica. Ele tem uma finalidade dramática, ele participa da construção dos significados e da emoção da cena. Retomando Goethe, o azul sempre implica algo escuro, é energeticamente negativo, é sombrio e frio. E, nessa transição, ele vem junto com as capas pretas dos Opritchniks e nos conduz para o domínio das sombras da catedral. Ele é frio como a neve no caminho. Frio, negativo e sombrio como a morte que aguarda o príncipe. Morte que fica estampada em seu rosto logo antes de atravessar a porta.
Mais uma vez somos remetidos ao livro Theory of Color. Contudo vale a pena lembrar que nem toda reflexão e produção de Eisenstein sobre a utilização da cor no cinema podem ser reduzidas aos estudos de Goethe.
Referências EISENSTEIN, Sergei. Acerca de la puesta en escena. In. Cinematismo. Trad. Luis Sepulveda from the original Russian Cinematizm. Buenos Aires: Domingo Cortizo, 1983. __________. A cor no cinema ou o cinema em cores? In: Reflexões de um cineasta. Tradução de Gustavo A. Doria a partir da edição francesa de 1958 por Editions du Progress, de Moscou. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. __________. Cor e Significado In: O Sentido do Filme. Tradução de Teresa Ottoni. Título original: The Film Sense. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. GOETHE, Johann Wolfgang von. Theory of Color. Tradução de Charles Lock Eastlake. Londres: John Murray, 1840.
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Sobre O Pracinha de Odessa Luis Felipe Labaki
O Pracinha de Odessa (2013) é um retrato do tradutor, ensaísta e professor Boris Schnaiderman que realizei como meu trabalho de conclusão do Curso Superior do Audiovisual da ECA-USP. Como diretor, talvez eu seja a pessoa menos aconselhável para falar do filme, mas vou me deixar tranquilizar pelo fato de estar escrevendo para uma revista sobre cinema russo - provavelmente a cinematografia com a mais extensa coleção de textos de cineastas refletindo sobre a própria obra. A única vantagem da minha posição é a possibilidade de tentar explicitar quais foram minhas intenções em cada momento da realização; as desvantagens, por sua vez, apenas começam com a dificuldade de avaliar se elas foram, de fato, concretizadas, depois de meses debruçado sobre o mesmo material. Seja como for,
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1. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. (N. da E.)
2. Força Expedicionária Brasileira. (N. da E.)
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essas minhas reflexões não substituem – ainda bem! – o próprio curta, que já está pronto e pode também falar por si mesmo. A ideia de realizar O Pracinha de Odessa surgiu da confluência de diversos temas pelos quais fui me interessando ao longo da graduação. Paralelamente ao curso de audiovisual, movido principalmente por minha curiosidade cada vez maior pelo cinema e pela literatura da Rússia (e da União Soviética), decidi aprofundar meus estudos da língua russa e, além das muitas aulas com professores particulares, frequentei também algumas matérias do curso de russo da FFLCH1 como aluno regular. Mas meu interesse pelo trabalho de Boris já vinha de antes disso, de quando ainda na adolescência eu começara a ler suas traduções de Tolstói, Dostoiévski e Tchékhov. Minha mãe, Maria Paula Gurgel Ribeiro, é tradutora de literatura hispanoamericana, o que inevitavelmente contribuiu para que eu passasse a me interessar não só pelas obras literárias, mas também pelas traduções em si, pelas soluções encontradas por Boris e por outros tradutores para os mais complicados casos. Depois de passar por muitas das traduções de Boris, fui atrás de seus outros trabalhos, como Os escombros e o mito, Turbilhão e semente, o essencial Tradução, ato desmedido e seu romance Guerra em surdina, baseado em sua experiência na FEB2, durante a ofensiva brasileira na Itália, na Segunda Guerra Mundial. Eu admiro muito o trabalho de Boris não só como tradutor, mas também como ensaísta. Aliás, a ele também não é estranha a característica autorreflexiva do cinema russo: ele próprio é um intenso comentador e revisor de suas obras e traduções. Seus textos me impressionam pela clareza e franqueza com a qual discute o próprio trabalho, elucidando métodos e expondo abertamente as dificuldades que encontra pelo caminho, sempre em uma relação muito concreta, muito próxima com o seu objeto de estudo. Esses elementos todos foram aos poucos compondo para mim a imagem da abrangência da obra de Boris, e também de sua trajetória de vida. Comecei a pensar que talvez fosse possível fazer um retrato seu em que convivessem, na tela, justamente essas duas linhas: de um lado, seu universo de trabalho, representado pelas
obras literárias, e, de outro, sua trajetória biográfica. No momento de apresentar um projeto de conclusão de curso, acompanhando também meu interesse em desenvolver um documentário que permitisse certas experimentações formais, decidi propor a realização de um curta-metragem sobre Boris que apresentasse a variedade de estilos literários com os quais ele trabalha e que incorporasse em sua própria forma certas questões relativas à tradução, transpostas para o meio audiovisual. Realizar um retrato – literário, pictórico, cinematográfico – envolve, assim como a tradução, a perda de certas características intransponíveis, mesmo quando seu objetivo não é - o que, aliás, seria impossível - uma “representação total” do objeto de estudo, seja ele qual for. Busca-se um recorte e a maneira pela qual o ponto de vista escolhido pode revelar algo a respeito do tema. Minha intenção nunca foi dar conta de toda a trajetória pessoal e profissional de Boris em apenas vinte minutos, e sim partir de alguns exemplos para compor uma apresentação de seu universo de trabalho. Um dos pontos de partida do projeto foi o de que ele não deveria ser um filme meramente informativo, uma “reportagem audiovisual” e, nesse sentido, o único formato que eu sabia de antemão que queria evitar era o de um retrato composto a partir de depoimentos de amigos e estudiosos. Minha proposta estava mais próxima de um filme-ensaio, buscando estabelecer um diálogo ativo com a produção de Boris, sendo interesse meu, como realizador, desenvolver uma forma criativa pela qual ele seria retratado, assumindo o filme como um ponto de vista pessoal sobre sua obra. Dois filmes surgiram como referências para mim: Mishima: A Life in Four Chapters (1985), de Paul Schrader, e Thirty Two Short Films About Glenn Gould (1993), de François Girard. Vou me deter neles brevemente porque ambos tiveram um papel importante num estágio inicial do meu trabalho, quando eu ainda estava tentando entender de que forma poderia abordar as questões que me interessavam. Talvez o principal ponto em comum desses dois filmes seja o fato de que ambos buscam reproduzir certas características dos artistas retratados e de suas respectivas obras em sua própria estrutura fílmica, valendo-se deliberada e assumidamente de
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3. Em 25 de novembro de 1970, Mishima e quatro membros de seu exército privado Sociedade do Escudo invadiram um quartel, fizeram um general refém e ordenaram que as tropas fossem reunidas para que ouvissem um pronunciamento de Mishima. O escritor, discursando sobre lealdade ao imperador, a necessidade do retorno ao código de honra samurai e sobre a decadência do Japão contemporâneo, foi ridicularizado pelas tropas que o ouviam. Ele então se suicidou, cometendo seppuku.
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estilos contrastantes de construção cinematográfica ao longo de sua duração. O ponto de partida de Paul Schrader para realizar seu retrato do escritor japonês Yukio Mishima talvez não tenha sido uma vontade de “espetacularização” da vida de Mishima, mas antes a constatação de que a vida do escritor foi realmente espetacular, com um desfecho digno de seus romances e planejado como tal3. E, partindo desta relação simbiótica entre a vida de Mishima e sua obra – simbiose autoconsciente, na opinião de Schrader –, cenas de diferentes livros do escritor foram filmadas em estúdio com cenários não-realistas, de cores exuberantes e rigidamente codificadas, intercalando-se ao longo do filme com flashbacks autobiográficos, filmados a la Ozu e com a encenação costagavrasiana do último dia de vida de Mishima. O efeito gerado por essa estruturação é de que, no fim das contas, a obra literária se mostra tão importante quanto as informações biográficas para a composição de um retrato de Mishima, enquanto artista, e a decisão de diferenciar os registros muito claramente impede que se crie uma “confusão metafísica” entre vida e arte (‘Será que essa cena aconteceu com Mishima ou com um personagem seu?’). Os excertos literários antes dialogam com a vida do escritor como prolongamentos de suas questões filosóficas e estéticas, não se tratando de uma relação estrita de “causa e consequência”, em que as cenas retiradas dos romances surgiriam para “atestar” a influência da vida sobre a criação, ou em que as cenas da vida de Mishima aparecessem para explicar (ou ‘decodificar’, como um rosebud) sua literatura. O que se desenvolve é um jogo de “ecos temáticos” entre os dois registros, em que o raciocínio iniciado em um é completado no outro. O que Schrader parece dizer também é que simplesmente elencar os fatos da vida do escritor e dizer que “em 1959, ele publicou O Templo do Pavilhão Dourado” não seria de grande utilidade; é necessário mostrar precisamente esse templo para que um título abstrato se concretize e possa dizer algo a respeito de seu autor, havendo aqui também um interesse pela própria literatura, por fazer uma apresentação do universo ficcional de Mishima sem reduzir os excertos a um mero papel funcional de decodificadores de sua vida.
Thirty two short films about Glenn Gould (1993), de François Girard, é estruturado de maneira semelhante a Mishima, mas radicaliza a fragmentação, sendo construído através de trinta e duas cenas, tratadas de maneira autônoma, cada uma com seu título próprio. Cada uma delas busca captar um aspecto de Gould, e por “aspecto” deve-se entender não apenas características ou momentos da biografia do pianista, mas, a rigor, qualquer coisa que esteja ou possa ser relacionada a ele: a sétima cena, por exemplo, é apenas um fragmento de menos de um minuto que mostra o desenho do som óptico da gravação de Gould para a Variação em Dó Menor, de Beethoven; a décima, uma série de closes em um de seus pianos favoritos; a vigésima, um trecho de uma animação de Norman McLaren, canadense como Gould, acompanhada por uma de suas gravações; a trigésima, imagens de arquivo do lançamento da espaçonave Voyager, que levou para o espaço um disco com suas famosas gravações das Variações Goldberg, de J.S. Bach. Há grande variação formal entre os diferentes segmentos, mas uma boa parte dos trinta e dois curtas é filmada segundo preceitos da narrativa ficcional clássica, com o ator Colm Feore interpretando o pianista – e é importante notar que não há nenhum momento em que o Gould verdadeiro apareça em cenas de arquivo. O mais interessante destas encenações é que, apesar de algumas situações terem sido criadas especificamente para o filme, uma parcela significativa parte literalmente de textos escritos por Gould ou de entrevistas realizadas com ele, das quais o exemplo mais interessante é o segmento Gould Meets Gould, encenação de uma “autoentrevista”, escrita por ele. A ideia por trás da estruturação do filme parece ser a de fornecer suporte cênico e cinematográfico a qualquer material que possa ser relacionado a Gould. Nesse aspecto, talvez o filme de Girard seja um documentário, no sentido estrito da palavra: um grande mosaico de documentos relacionados ao pianista, ou melhor, uma série de interpretações de documentos relacionados a Gould. A reencenação de situações é apenas uma dentre as estratégias do filme, que “cinematiza” também diversos materiais de fato produzidos pelo próprio Gould, desde suas gravações, que compõem a trilha sonora, a seu diário
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pessoal, com notas sobre os remédios tomados.
4. CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; SCHNAIDERMAN, Boris (orgs.) Poesia Russa Moderna. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. 5. SCHNAIDERMAN, Boris. Guerra em surdina. 4a. ed., revista pelo autor. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
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O Pracinha de Odessa foi construído guiado por esse mesmo princípio de liberdade de uso de materiais e estilos. O trabalho foi centrado em duas estratégias: de um lado, a gravação de um depoimento com o próprio Boris; de outro, a filmagem em estúdio – com um fundo infinito preto e cenografia minimalista, sem qualquer pretensão de “realismo” - de um conjunto de encenações representando seu universo de trabalho. Dessas, uma seria um segmento biográfico que deveria servir de introdução ao filme e também à Odessa da infância de Boris; as demais concretizariam cenicamente algumas obras literárias trabalhadas por ele. Restava a tarefa de decidir quais seriam, afinal, os textos que representaríamos. Sabendo que não seria possível dar conta de tudo, minha estratégia foi procurar incluir exemplos de diferentes “modalidades” praticadas por Boris: para a tradução de prosa, uma cena baseada na literatura russa do século XIX; para a tradução de poesia, algo que partisse do livro Poesia Russa Moderna4; para sua própria prosa, uma cena de seu romance Guerra em surdina5. Comentarei brevemente cada uma delas. A chave da estruturação do filme é o diálogo entre essas duas linhas que se complementam, sendo que o principal fio condutor é o depoimento que gravamos com Boris em sua casa. Ele foi realizado quando já havíamos determinado quais textos abordaríamos nas encenações, de modo que pudemos construir realmente uma conversa de Boris com os segmentos encenados a partir de seus comentários, passando também por elementos biográficos como sua infância e sucessivas viagens à União Soviética, sua decisão de ir combater na Itália e o início de seu trabalho como tradutor. O segmento introdutório do filme, representando a infância de Boris em Odessa, tem como função estabelecer uma iconografia do período que sirva de apresentação tanto à sua figura quanto a uma parte do universo com o qual ele viria a trabalhar, cumprindo também a função de introduzir, no filme, o procedimento formal de misturar materiais “documentais” com encenações assumidas. O ponto de partida da cena foi a canção popular “História de um rabino de Kakhovka”,
o “tango de Odessa”, a que Boris dedica um capítulo de seu Tradução, ato desmedido, mencionando-o como uma lembrança viva de sua infância – aliás, até hoje ele se recorda da letra da música. Ao som do tango, a cena se desenvolve, algo como uma paródia de um cinejornal soviético, descrevendo a URSS de 1925, incluindo, nessa narrativa, algumas das lembranças de Boris e da vinda da família Schnaiderman para o Brasil. Seguindo o tom estilizado da própria narração over, misturam-se de maneira livre objetos, atores e projeções na parede do estúdio, que exibem trechos de filmes de Dziga Viértov (incluindo algumas edições do seu cinejornal Kino-Pravda e alguns planos de O décimo primeiro ano [Odínnadtsati, 1928] e Um homem com uma câmera [Tcheloviék s kinoapparátom, 1929]) e a famosa sequência da escadaria de Odessa, de O encouraçado Potiômkin (Bronenôssets Potiômkin, 1925), de Serguei Eisenstein, cuja filmagem Boris testemunhou por acaso ao ir brincar, como sempre, nos degraus da escadaria. Foram incluídas ainda fotografias da família Schnaiderman, tanto do período logo anterior à partida quanto já aqui no Brasil. A cena dedicada a Guerra em Surdina foi baseada no início do capítulo “Sem quartel nem compaixão”. Essa passagem, provavelmente um dos mais belos momentos literários do romance, suscita diversas possibilidades de transposição para o meio audiovisual, devido à sua técnica de fluxo de imagens individuais (as latinhas de ração C; os rapazes de fuzil na mão; o Coronel que dá largas passadas pela cocheira; um estrondo longínquo, etc.). Dada até mesmo a citação ao filme Nada de novo no front nesse trecho do romance de Boris, não é impossível supor uma influência cinematográfica na própria construção da passagem literária. A forma encontrada para encenar a passagem foi realizar um longo plano em meio a uma cenografia minimalista representando apenas alguns dos elementos citados no texto. O fundo preto foi preenchido por trechos de filmes de guerra e fotografias da coleção pessoal de Boris, que acabam acentuando o contraste entre o realismo das cenas ali contidas e a artificialidade do espaço cênico, claramente delimitado pela terra espalhada no chão do estúdio. A voz do ator Gustavo
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6. AIGUI, Guenádi; FERREIRA, Jerusa Pires (org.); SCHNAIDERMAN, Boris (org.). Silêncio e clamor. São Paulo: Perspectiva, 2011.
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Sol declama o texto, mas o próprio Boris junta-se a ele na leitura das últimas duas sentenças, encerrando a passagem da mesma maneira como ela havia se iniciado: “Isso é guerra?”. As duas sequências que compõem o bloco dedicado ao trabalho de Boris com poesia estão relacionados ao volume Poesia Russa Moderna: o primeiro poema - na realidade, os dois primeiros, sendo um complementar ao outro - Atítulo e Sobre a leitura em voz alta do poema ‘Atítulo’, de Guenádi Aigui, foram traduzidos por Boris em conjunto com Haroldo de Campos. Eles foram incluídos também em Silêncio e Clamor6 (2011), coletânea de textos e poemas de Guenádi Aigui, organizada por Boris e Jerusa Pires Ferreira, destacada no filme por ser um dos mais recentes livros de Boris, fruto de um longo convívio com o poeta tchuvache, e também por ser, de certa maneira, um desdobramento de seu trabalho em Poesia Russa Moderna. Especificamente desse volume, escolhi Encantação pelo riso, um poema de Velímir Khlébnikov traduzido por Haroldo de Campos – mesmo sem a participação direta de Boris, decidi incluí-lo dada a importância do trabalho com os irmãos Campos nessa área, destacada por Boris na entrevista. Além de gostar dos próprios poemas e das traduções, escolhi Encantação pelo riso e Atítulo também por motivos gráficos. Nessa sequência, me interessava trabalhar com a materialidade da palavra escrita no livro, e ambos os poemas continham elementos interessantes para isso: Encantação aparece ao lado de um fac-símile do poema original em russo, e Atítulo inclui partituras a serem tocadas entre um verso e outro. As páginas do livro foram escaneadas e decidi partir do texto concreto, tal qual aparecia no volume, para criar as sequências. Para Encantação pelo riso – um poema publicado pela primeira vez em 1910 – criei uma cena inspirada no cinema de vanguarda dos anos 20: efeitos de íris, sobreposições, inversões, a colagem no interior do mesmo quadro de elementos tomados em momentos diferentes, as bocas tornadas autônomas pela exclusão de todo o resto do corpo. Inseri também alguns elementos gráficos da capa do volume e de outras páginas de Poesia Russa Moderna. Para colocar em evidência o processo de tradução, me parecia importante incluir o texto tanto em
português como em russo, e um fac-símile do original de Khlébnikov também aparece na tela, acompanhado da voz que declama o poema. Optei por intercalar o original com a tradução a fim de que as soluções encontradas para cada verso fossem mais claramente percebidas; poderíamos também ter escolhido justapor as duas versões, preservando o ritmo total do poema, mas a intercalação acabou criando um jogo interessante entre as duas vozes que lêem o texto, que quase se sobrepõem na passagem de uma língua à outra. Para a trilha musical, compus uma pequena marcha-pastiche a la Stravínski. Atítulo já continha sua própria música: dois trechos de partitura sugerem ataques ao piano entre um verso e outro. Na própria página do poema, há também dois quadrados vermelhos (que, por sua vez, me remeteram à obra do suprematista Kazimír Maliévitch) que decidimos usar para compor imageticamente a sequência, pontuando as duas intervenções musicais sugeridas pelo texto. O poema Sobre a leitura em voz alta do poema ‘atítulo’ ditou as diretrizes rítmicas e, em oposição à exuberância sonora de Encantação pelo riso, o poema de Aigui sugeria longos períodos de silêncio. Por se tratar de um poema em verso livre, decidimos incluir apenas a versão em português. Para representar o trabalho de Boris como tradutor de prosa, escolhi o conto Razmazniá, de Anton Tchekhov, principalmente, por duas razões: além de fazer parte de A dama do cachorrinho e outros contos7, a primeira coletânea que Boris assinou sem usar o pseudônimo de Boris Solomônov, ele possui um título que por si só já apresentava um desafio de tradução, discutido por Boris no texto “Abrasileirar? Manter afastamento?” incluído em Tradução, ato desmedido8, e que se tornaria o ponto central de toda a cena. O diálogo do conto é interpretado quase integralmente, em uma alternância entre o texto em russo e em português. Os dois atores da sequência, porém, Gustavo Sol e Priscilla Herrerias – que, aliás, participou do Caderno Kinoruss nº1, com o texto Sobre o ator em Tarkóvski – viver e confiar – não são fluentes em russo e tiveram que decorar o texto a partir de transcrições fonéticas e gravações em áudio. Realizamos ensaios semanais durante um mês e meio antes da filmagem,
7. TCHÉKHOV, Anton. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução e organização de Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 1999. 8. SCHNAIDERMAN, Boris. Tradução, ato desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011, p.90.
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concentrando-nos, inicialmente, nas intenções do texto em português e, aos poucos, incorporando também a versão em russo, com base em gravações das falas que preparei para ambos. Como repetiríamos todas as ações nas duas línguas, criamos marcações rígidas para toda a cena, com o objetivo de manter a mesma decupagem em ambas as versões e também facilitar o trânsito dos atores entre os dois idiomas. O resultado da operação nos pareceu interessante: mesmo nos planos em russo, nos quais o texto dito não é inteligível para o nosso, digamos, “público alvo”, as intenções das falas dos personagens se mantiveram claras, sendo possível acompanhar o fluxo de ação da cena através do trabalho corporal dos atores. Foi no final desta cena que conseguimos realizar o melhor exemplo de transição entre o material encenado e a entrevista; é no final do conto que está a expressão geradora de grande dúvida para Boris: como traduzir o termo “razmazniá”? Em sua primeira versão, ele o traduziu como “pamonha”. Na cena, o personagem de Gustavo Sol diz, portanto, sua última fala (‘Como é que se pode ser tão pamonha?’), com o letreiro “PAMONHA” sobre seu rosto. E então, ainda neste mesmo plano, a voz de Boris comenta: “Eu mudei de pamonha para... molenga”, e o letreiro “MOLENGA” substitui o anterior. Depois, corta-se para um plano de Boris em que ele diz: “Não se faz pamonha na Rússia!”. Ele segue explicando que decidiu alterar o termo devido a uma intervenção de um estudante de ensino médio que estranhou o “abrasileiramento”. Esse momento ilustra o tipo de ligação que estávamos buscando entre as encenações e a entrevista: cortes que criassem uma complementaridade entre os dois registros. Logo antes do início de Pamonha, Boris diz: “Depois que eu vi o livro impresso fiquei desesperado, porque vi os defeitos que havia na minha tradução...”, e a cena tem início. Ao retornarmos à entrevista, ela não é retomada do ponto exato em que parou, como se no filme tivesse sido feito apenas um “desvio ilustrativo” para a encenação do conto. Pelo contrário, o comentário de Boris refere-se a uma questão de tradução apresentada justamente pela cena, e sua voz surge como se ele próprio também a estivesse assistindo, esperando apenas
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o momento oportuno para se manifestar. São justamente as falas de Boris sobre sua trajetória de vida e sobre seus trabalhos que constituem o ponto central do filme. Não há nada que expresse melhor sua atitude diante do trabalho de tradução do que sua fala a respeito de seu primeiro trabalho, “Os irmãos Karamázov”, ou sobre a ousadia de se traduzir um grande autor, ou ainda o momento, ao final de Pamonha, descrito acima: a encenação teria permanecido incompleta se não houvesse o comentário de Boris a respeito do conto. A abordagem de Boris sobre tradução enaltece seu caráter criativo e artístico ao mesmo tempo em que a desmistifica, evidenciando um lado muito concreto do ofício. O caso de Pamonha, aliás, é exemplar: graças à intervenção do estudante, Boris alterou o título de sua tradução, já há muito tempo estabelecido, e é esse processo de atenção contínua que o faz voltar a textos já publicados e encontrar novas soluções para antigos problemas. Em um texto de Tradução, ato desmedido chamado “Orgulho e modéstia do tradutor”, Boris se expressa de maneira similar a que faz em sua entrevista no Pracinha: Não tenhamos dúvida: qualquer compromisso de traduzir um grande escritor é ato de soberba. (...) Falando com franqueza, quem sou eu para traduzir um Tolstói, um Dostoiévski? No entanto, é uma exorbitância que eu tenho de assumir, quem puder que o faça melhor. 9
9. Idem, ibidem.
Modestamente, foi esse equilíbrio que buscamos no filme. As encenações são, sem dúvida, atos de soberba, “ousadias”, tentativas de tradução de obras literárias para o meio audiovisual que não escondem seu caráter de experimento. Pareceu-me interessante e necessário expor o universo de trabalho de Boris para que, assim como em Mishima, os títulos dos textos que ele escreveu ou traduziu não permanecessem apenas entidades abstratas, mas se materializassem na tela. Trata-se apenas de mais uma das muitas estratégias possíveis para se compor um retrato, mas, enfim, é sempre necessário escolher alguma. O contraponto a elas é justamente a figura de Boris, que compartilha suas experiências em primeira pessoa, sem a mediação de atores e cenários. Nesse
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10. “É uma ousadia, traduzir é uma ousadia... Quem sou eu para traduzir Tolstói, Dostoiévski e etc.? Mas... tem que ser feito, a tradução tem que ser feita. Quem puder fazer melhor, que faça!”
sentido, sua fala final10, aliás, pode servir também como uma advertência ao próprio filme: tentar apresentar em vinte e dois minutos (ou em sessenta, ou noventa) a vida e obra de qualquer pessoa talvez seja realmente “um desacato”. Mas, de todo modo, insistimos em tentar fazêlo. Pouco depois de finalizado o filme, mostrei-o para Boris e sua mulher, Jerusa. Fico feliz em dizer que ambos disseram ter gostado – ele pareceu se divertir especialmente na primeira sequência, Odessa, e no final de Pamonha -, e conversamos longamente sobre o filme e as obras ali citadas, além dos trabalhos que Boris desenvolve atualmente. Quando eu já estava me preparando para sair, ele se lembrou de algo e pegou papel e caneta para fazer uma correção: pediu para que eu anotasse que havia um erro em uma nota de um dos textos de Tradução, ato desmedido: ao invés de “aristocracia”, deveria estar escrito “autocracia”. Incansável, ele continua trabalhando.
BIBLIOGRAFIA AIGUI, Guenádi; FERREIRA, Jerusa Pires (org.); SCHNAIDERMAN, Boris (org.). Silêncio e clamor. São Paulo: Perspectiva, 2011 CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; SCHNAIDERMAN, Boris (orgs.) Poesia Russa Moderna. 6a edição. São Paulo: Perspectiva, 2001. TCHÉKHOV, Anton. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução e organização de Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 1999. SCHNAIDERMAN, Boris. Tradução, ato desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011. ______________________Guerra em surdina. 4a edição, revista pelo autor. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
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Resumo: este artigo pretende mostrar a importância de David Vygódski como crítico literário, a partir da tradução de dois textos do autor sobre as relações entre a revolução russa e a cultura.
Abstract: this paper focuses on the importance of David Vygodsky as a literary critic. It presents the translation of two of his texts about the relations between the Russian Revolution and culture.
Palavras-chave: David Vygódski; intelectuais russos; Revolução Russa.
Keywords: David Vygodsky; Russian intellectuals; Russian Revolution.
David Vygódski: um crítico literário e a cultura da revolução russa em dois momentos Bruno Barretto Gomide
Em 1931, o poeta peruano César Vallejo, durante uma de suas visitas recorrentes à União Soviética, foi ciceroneado em Leningrado por David Vygódski. No livro que resultou da viagem, Vallejo poderia ter se referido a ele de diversas maneiras: de forma mais prosaica, simplesmente como um funcionário da burocracia soviética, cujo aparato de relações culturais com o exterior trabalhava a todo vapor para dar conta do grande fluxo de visitantes, em um momento que registrava o auge das viagens de verificação do experimento soviético. Poderia ter ressaltado o papel de tradutor e editor de seu anfitrião. Vygódski já tinha uma correspondência considerável com intelectuais e escritores da península ibérica e da América Latina. Os intercâmbios proporcionados pela troca “transatlântica” (o termo é de Jorge Amado) de missivas, acompanhadas de dicionários, livros e recortes de jornais,
Aleksei Radákov, 1920.
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1. César Vallejo. Ensayos e reportajes completos. Edición, estudio preliminar y notas de Manuel Miguel de Priego. Lima, Pontificia Universidad Católica del Perú, 2002.
2. Sobre a vida e a obra de Vygódski, cf. GOMIDE, Bruno.“David Vygódski: a voz solitária de uma biblioteca”. Kinoruss, ano 2, n. 3. São Paulo, 2012; “David Vygódski e um “conto cinematográfico”. Kinoruss, ano 3, n. 4. São Paulo, 2013; “David Vygódski e o “Tartarin de Lisboa”. RUS, n. 2. São Paulo, 2013; “David Vygódski: modernismo e política no Brasil e na União Soviética”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (USP). São Paulo, n. 58, jun. 2014.
haviam ajudado a gerar um bom número de traduções para o russo. O papel de Vygódski, à frente de outros hispanistas de Leningrado, foi pioneiro nesse sentido. A apresentação do russo como “poeta” também poderia caber apropriadamente no livro de Vallejo, um ótimo praticante do gênero, mas isso exigiria um conhecimento mais profundo do seu interlocutor. Vygódski era autor de um livrinho de versos editado em Gómel, no começo da década anterior e, embora nunca mais tivesse repetido a experiência editorial, continuaria a escrever versos até o final da vida, inclusive no cárcere. Muitos, por fim, se referiram a esse intelectual tão variegado como “poliglota”, dado o seu espantoso conhecimento de idiomas – no mínimo vinte, o número de línguas a partir das quais Vygódski traduziu, mas é possível supor que ele conhecesse outras mais. Porém Vallejo optou por chamá-lo de crítico literário1. O visitante latino-americano intuiu uma dimensão fundamental da atividade do polifacetado Vygódski, que publicou quase trezentos artigos e resenhas entre 1910 e 1938. A rarefeita fortuna crítica sobre Vygódski o define quase sempre pelas atividades acima indicadas – embaixador cultural, tradutor, poeta e, ocasionalmente, poliglota, sendo que esse último termo é geralmente utilizado em estudos sobre as relações de David com seu primo Liev Vygótski.2 Contudo a crítica literária foi exercida com afinco por Vygódski e jamais constituiu uma atividade secundária, em brilho ou quantidade. Vejamos a seguir, de modo breve, alguns dos principais temas em que a crítica vygodskiana se concentrou ao longo das décadas de dez e trinta: 1910 – 1914: cerca de 30 artigos escritos em esperanto e publicados em Gómel. São notas sucintas sobre tópicos variados (estatística, educação, tradução, poesia etc). 1914 – 1916: cerca de 30 artigos, a maioria publicada em Gómel: Balmont, Severiánin, Tagore, Tchekhov, a guerra e a literatura, Bialik, cultura judaica, teatro e música em Gómel. 1916 – 1923: 140 artigos, a maioria em Petrogrado. Púchkin, Lérmontov, Korolienko, poesia judaica, tradução,
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poesia europeia, arte europeia, Walt Whitman, poesia da Geórgia, poesia ucraniana, futurismo russo (Khliébnikov, Maiakóvski), poesia e revolução, Zamiátin, Tíkhonov, Chaguinian, Polónskaia, Stefan Zweig, Khodassiévitch, resenhas de livros novos. 1924 – 1927: 7 artigos, todos em Leningrado. Púchkin, Proust, Blasco Ibáñez, literatura japonesa. 1928 – 1937: 60 artigos (Leningrado). Conan Doyle, Theodore Dreiser, escritores proletários, a tradução de literaturas “nacionais”, questões de tradução, escritores da Geórgia, escritores ucranianos, literatura portuguesa, espanhola (Lorca, Cervantes, Alberti) e latino-americana (Arráiz, Mancisidor, a recepção da literatura russa na América Latina). Essa listagem sumária mostra que os anos mais produtivos de Vygódski, na imprensa, foram aqueles imediatamente anteriores e posteriores à revolução, quando o crítico multiplicou-se em diversos jornais e revistas, de orientações políticas e culturais as mais variadas. A profusão foi motivada, em parte, pela relativa pluralidade cultural do período, mas também pela juventude de Vygódski, um escritor ainda iniciante, que tentava encontrar a sua voz e um eixo de atuação mais consistente na vida intelectual do país. O aspecto financeiro não é menosprezível: a produção em série de artigos e resenhas permitia algum tipo de remuneração mínima, em uma época na qual Vygódski, sempre parco de meios, embora já estivesse filiado a iniciativas do novo poder, como o gigantesco projeto editorial da Vsemírnaia literatura3 (Literatura mundial), ainda não se ligara de modo mais estável às novas instituições culturais soviéticas delineadas com mais força a partir de meados dos anos vinte. É justamente essa transição de um jornalista “livre” e tateante para um intelectualfuncionário que pode explicar a queda abrupta na publicação de textos críticos, apenas sete, ocorrida entre 1924 e 1927. A essa altura, provavelmente Vygódski estava se inserindo nos novos arranjos institucionais do país, especialmente as editoras estatais e as associações culturais de contatos com o exterior. É muito sintomático que, nesse sentido, no poema brincalhão de Mandelstam e Lívchitz4, escrito entre 1924-1925, dedicado a Vygódski,
3. Centenas de traduções de obras literárias, que seriam lançadas em edições de grande circulação.
4. O poema é oficialmente atribuído a Mandelstam, mas há indícios de que Lívchitz tenha contribuído.
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David Burliuk, 1917, 1917.
Revolução
5. Na tradução de Mário Ramos Francisco Júnior, a quem agradeço.
6. Ver, por exemplo, o excelente estudo de Jochen Hellbeck. Revolution on my mind: writing a diary under Stalin. Cambridge e Londres, Harvard UP, 2006.
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um magro e sinuoso “garrancho de hebraico alfabeto”, saído das profundezas da cultura judaica, apareça “indo para a editora estatal”, a Gossizdat5, ironicamente identificado com ela, como se esta fosse o seu novo modus vivendi. Mais revelador ainda, Vygódski começa a manter um diário exatamente nesse período: um caderno em 1926, dois em 1927, quatro em 1928, quatro em 1929 e cerca de um por ano até 1935, quando, é possível supor, a repressão política crescente houvesse tornado tal prática arriscada (mas nunca eliminada na cultura soviética, mesmo no período do terror). A importância dos diários para a auto-modelagem bolchevique tem sido objeto de bons estudos recentes6, e somente a leitura dos caderninhos depositados na Biblioteca Pública de São Petersburgo, tarefa dificultada sobremaneira pela impenetrável letra do autor, poderá corroborar essa
linha de pesquisas e verificar se esse viés investigativo é adequado para a trajetória de Vygódski e suas complexas relações entre o intelectual e o poder. Em todo caso, o período de decréscimo na publicação de artigos críticos e de simultâneo começo de uma “escrita de si” coincide com o nascimento de um terceiro fator, decisivo na vida de Vygódski: a sua atuação como hispanista. Esse era um interesse que o autor cultivava de longa data. Há testemunhos no sentido de que ele já se interessava pelo assunto desde os seus estudos universitários, no começo da década de 1910, em Petrogrado. Aliás, o referido poema de MandelstamBagrítzki também expunha uma síntese “hispanobielorussa” na figura de Vygódski. Embora o interesse hispanizante estivesse latente, não há um único texto que trate do assunto dentre as centenas de artigos publicados antes de 1924, quando, enfim, sai um sobre Blasco Ibáñez (salvo menções muito ligeiras, como aquela feita sobre o Brasil no artigo sobre Donogoo-Tonka, cuja tradução foi publicada em número anterior desta revista, e no qual o país aparece como um coadjuvante da questão principal, o texto de Jules Romains). A atividade de tradutor e comentador de temas ibero-americanos só começará, de fato, a partir de 1927, quando passa a publicar antologias de literatura e inicia a sua correspondência com intelectuais de países daquelas regiões. Também aí nota-se a presença da política soviética, já que a América Latina, entre outros rincões “coloniais”, só se tornou uma área de interesse (relativo) a partir do sexto congresso do Comintern, realizado em 1928. A pesquisa sobre o vasto trabalho de Vygódski como crítico literário ainda está em andamento, e todos esses aspectos terão, necessariamente, que ser levados em consideração. Por ora, me limitarei a apresentar dois artigos publicados em jornais de Gómel, no período da Guerra Civil, quando Vygódski alternava sua residência entre a cidade natal e Petrogrado. Os textos mostram uma visão ambígua em relação ao novo poder. A oscilação entre definições da revolução como apocalipse ou como nascimento de um novo mundo era típica do período e comum a diversos intelectuais, que costumavam vazar essa alternância em possantes imagens naturais: torrentes, tempestades, erupções, alvoradas ou brotos.7
7. Vygódski publicou dezenas de artigos no jornal Nóvaia Jizn (A Vida Nova), de Górki, que tinha uma postura extremamente crítica em relação à destruição do patrimônio cultural russo.
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Essa pequena amostra permitirá que o leitor perceba a argúcia da crítica vygodskiana. Ele mapeou consistentemente a vida literária russo-soviética de 1910 a 1930, atravessando os principais temas e discussões. Sem grandes lances de ousadia (como tinham seus amigos Chklóvski ou Tyniánov), é verdade, mas constantemente próximo das correntes mais audaciosas e sempre avaliando os processos culturais de modo criterioso e sofisticado. Retornemos, portanto, ao começo deste texto e à definição de Vallejo, e o acompanhemos ao sugerir que é preciso restituir a David Vygódski a sua faceta fundamental de crítico literário. 1.“A revolução e a cultura”. Gómelskaiamysl, n. 8, 14 (1) de março de 1918. David Vygódski Traduzido por Bruno Barretto Gomide Logo nos primeiros dias da revolução russa, quando se desvelou a vitória sobre a ordem e as pessoas que representavam a velha “Rússia”, ficou evidente que a revolução não era somente uma reviravolta política. O seu sentido e significado claramente eram muito mais profundos e multifacetados. Tratava-se não apenas do estabelecimento de uma ou outra ordem política, mas da produção de novas formas e de vida social diversa, e do ajuste dos padrões culturais diferentes ou antigos. Ficou claro que a revolução russa marcava o começo de uma revolução do espírito. Essas circunstâncias, assim que foram compreendidas, imediatamente após a primeira explosão de fervor e entusiasmo, afastaram da revolução os círculos mais conservadores da sociedade russa, que estavam prontos a abrir mão, na esperança de um futuro melhor, de suas bases políticas habituais. Porém eles não podiam se reconciliar com os atentados contra os seus fundamentos culturais e espirituais, eternos e inabaláveis na aparência. Por outro lado, as mesmas circunstâncias levaram a outra consequência, muito mais significativa e importante para os interesses da revolução. Como a revolução tinha um caráter político, muitos elementos
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da sociedade que não estavam acostumados a viver em torno de interesses políticos posicionaram-se fora de seu âmbito. Mas quando o amplo alcance da revolução tornou-se perceptível, o seu fluxo impetuoso invadiu a íntegradas camadas da população e todos inevitavelmente acabaram caindo em seu curso, pois não havia indivíduo ou interesse vital de que a revolução não se apoderasse, e todos, de um modo ou de outro, positivo ou negativo, foram obrigados a participar. Não é de se admirar, portanto, que desde os primeiríssimos dias da revolução, aqueles que atuavam nas áreas da religião, arte, educação e cultura se inquietassem; que, praticamente em paralelo às discussões sobre uma assembleia constituinte, confabulassem uma assembleia
Autor desconhecido. Dia Internacional da mulher, 1917. Nos cartazes, acima Glória das mulheres guerreiras da Liberdade (Slava Jênshchinam bortsam za Svobódu); abaixo: Manifestação de Mulheres (Manifestátsia Jênshchin)
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constituinte dos realizadores das artes. Não surpreende que os escritores, pintores e artistas começassem a se organizar e a ansiar por uma nova “arte livre”. Os pregadores religiosos de todas as confissões, seitas e persuasões também confabularam, proclamando doutrinas e ensinamentos religiosos novos e renovadores. É claro que a questão em jogo não é apenas a maior liberdade de manifestação da criação cultural ou a queda do jugo da censura e das demais proibições, mas sim algo realmente novo, que, em sua raiz, não se assemelha (e é até contraditório) ao que existia antes e que era considerada uma lei inalterável até agora. A revolução francesa levou à troca da cultura aristocrática de corte pela cultura da burguesia urbana. A revolução russa trouxe – e isso rapidamente se manifestou – a cultura da democracia popular. Não é a primeira ocasião em que palavras sobre crises variadas ressoam por todo canto, cada vez mais persistentes. Por vezes, parece que adveio a crise da filosofia, ou então que toda a antiga ciência foi para o buraco, a arte se meteu em um beco sem saída, a nossa ética é inconsistente e todos os alicerces morais entrarão em colapso, etc. Realmente, sob a mente crítico-criativa do nosso século, muitos edifícios que, há pouco tempo, pareciam dotados de robustez incomum se mostraram frágeis. A estabilidade dos elementos químicos, a decantada constância da matéria e a eternidade da energia – tudo aquilo sobre o qual se erguia, até tempos recentes, a assim chamada ciência positiva, se revela um mito, uma superstição dos nossos pais, e o “positivo”, nesse caso, acaba sendo o mesmo que no sistema solar de Ptolomeu. Isso vale para outras áreas. Se há algo que une todos esses fatos dispersos e crises específicas é o desejo geral de libertação em relação a determinados enquadramentos, o anseio de romper as cadeias arranjadas pelas gerações precedentes em vários setores do pensamento e da criatividade. Isso é perceptível com clareza na mais aguda e profunda área do espírito humano, a criação artística. Na música, Scriábin se ergueu com todas as forças do seu talento contra os ensinamentos escolásticos de harmonia. Ou os teóricos e músicos contemporâneos que desfizeram
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os laços do temperamento bachiano, que, por muitos séculos, obstruíram o desenvolvimento da arte musical. Na pintura, são as correntes contemporâneas que recusaram a representação do aspecto exterior dos objetos e que se impuseram a tarefa de apreender o segredo das coisas por meio de sua decomposição em formas geométricas (cubismo), em linhas-raios (raionismo), ou em pontos separados (pontilhismo) etc. Na escultura, o anseio de conferir energia e movimento à pedra morta e imóvel, e, ao invés da paz épica que ela expressou ao longo de milênios, transmitir-lhe dinamismo e a possibilidade não apenas de mostrar, mas também de contar. São, afinal, na poesia e na literatura, as correntes criativas que já de longa data vinham se insinuando, mas que apenas na última década ganharam forma e se realizaram sob o nome de “futurismo”, a arte do futuro. Nesse caso, temos, novamente, o mesmo princípio básico: a libertação. Liberdade em relação às amarras da filosofia, do ensaísmo e da sociologia. Enfim, da lógica, da filosofia, e até mesmo da gramática e da língua. Aqui não é o lugar para comentarmos em que medida cada uma dessas tarefas que a arte se impôs foi e será cumprida. Não é o caso de discutir se a arte está no caminho certo. E quem poderia dizê-lo? O importante nesse momento é apenas que a arte e todos os ramos do espírito humano que lhe são afins – religião, filosofia, ciência, ética – estão em uma encruzilhada e concluíram um percurso. Terminada uma enorme etapa, agora é preciso seguir por um novo caminho, mesmo que no momento ele talvez esteja intransitável. Há outra coisa importante: a revolução russa somente podia irromper por meio da sede de renovação, e só aconteceria no solo compartilhado e profundo que contém a insatisfação e a decepção em relação a tudo o que é antigo. Dificuldades políticas ou descontentamentos sociais não poderiam, sem essas causas profundas, levar à grandiosa explosão que os dias de fevereiro e março celebraram. Não desembocariam no élan que a Rússia inteira exibiu naquele ano. Tudo o que se infiltrara em gotas, miúdas ou grandes, na consciência de cada homem e se acumulara nas profundezas, de modo frequentemente invisível, de
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repente rompeu os invólucros e jorrou como uma fonte colossal, espalhando-se em torrente. Não resta dúvida de que todas as crises pequenas e isoladas confluíram em uma crise geral – uma crise da cultura. Certamente estamos em um limiar, assistindo ao nascimento de um novo espírito humano. Descortinam-se os infinitos horizontes da criação de uma vida futura. Dissemos acima que essa cultura nascente é a cultura de uma democracia nacional. No decorrer do ano, muita gente falou e escreveu sobre a cultura democrática, várias palavras interessantes e significativas foram ditas, mas uma definição mesmo, ninguém forneceu. Isso é compreensível. Não é segredo que essa cultura ainda não existe. Há apenas manifestações isoladas, brotos que a custo descobrem um terreno coletivo e que não estão prontos para sistematização e definição. Saibamos que a cultura não se constrói do nada e que os valores culturais não surgem do vazio. As conquistas da velha cultura não podem ser destruídas enquanto em seu lugar não houver algo de novo. É por esse motivo que, quando estamos na fronteira entre duas culturas, sempre testemunhamos uma mescla. Separar o que pertence a somente uma é quase impossível. Se quisermos examinar de relance os passos dados pela nova cultura nesse ano revolucionário, então dificilmente veremos algo de muito agradável. As realizações são, realmente, pouquíssimas. Talvez sejam em número muito maior os eventos de tipo oposto: a destruição de monumentos históricos, a insensata dilapidação de tesouros artísticos, as inauditas ações de violência e crueldade que há tempos se tornaram fenômenos cotidianos e universais, o embrutecimento e a selvageria que vemos ao redor – esses são fatos que podem levar às conclusões mais pessimistas e a um olhar altamente cético sobre a nova cultura. Ser pessimista nos dias atuais é fácil, com certeza. Contudo não podemos esquecer que os tempos correntes são excepcionalmente desfavoráveis para a cultura em geral. Lembremos que a atmosfera de sangue que toda a humanidade vem respirando intoxica o nosso organismo com um veneno perigosíssimo, que torna quase impossível qualquer tipo de trabalho cultural.
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Mas é preciso olhar de frente e penetrar mais fundo – o otimismo sempre é mais profundo do que o pessimismo – para que observemos os brotos da cultura e o renascimento do espírito. Apesar de tudo, eles conseguem arrojar-se através do solo sangrento e coberto de destroços. E o fundamental: é preciso cuidar com carinho desses brotos e permitir que eles se preservem até o dia em que, numa atmosfera límpida, cresçam magníficos e orgulhosos, e sejam capazes de nos sustentar. Uma nova cultura está nascendo com dor e esforço, por meio das incalculáveis riquezas espirituais e físicas trazidas em seu sacrifício. Mas estes nunca são em vão. Tenhamos fé em que logo veremos os orgulhosos troncos de um novo espírito e também os seus magníficos frutos. 2. “A literatura russa em 1918”. Poliésse, n. [135], 3 jan. 1919 David Vygódski Traduzido por Bruno Barretto Gomide Na vida literária, um ano sempre foi um período curto demais para que grandes acontecimentos pudessem se fazer notar. Todavia, quando lançávamos um olhar retrospectivo mesmo para um percurso tão breve, sempre era possível ver na retaguarda um espesso florescimento, em meio ao qual aqui e ali luziam belas flores e troncos robustos. Já se foi o tempo! Um quadro completo do que sucedeu na vida literária russa nesse ano não está disponível. Não o temos porque nem tudo atravessou as [?]8 fronteiras que sulcavam a Rússia. Contudo sabemos que a literatura russa, se permanecia viva, era apenas naquela parte do país que agora se chama Grande Rússia, na qual sempre vivera mais intensamente. Suas culminâncias, como de hábito, estavam em Petersburgo e em Moscou. Quando examinamos o caminho percorrido ao longo de um ano, vemos apenas uma estepe nua, coberta por escassa grama. Somente agora o leitor russo passará a acreditar na velha verdade, inter arma silent Musae: quando as armas falam, as musas se calam. Ele não tinha
8. Palavra apagada no original.
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razões para crê-lo porque os primeiros anos da catástrofe mundial diziam o contrário. No quinto ano de uma carnificina ininterrupta e de incessante desordenamento da nossa vida, as musas russas afinal silenciaram. A literatura não foi obrigada a se calar por nenhum dos expedientes dos censores pré-revolucionários, pela canalização de todas as forças para a esfera da vida sóciopolítica, ou pelas guerras e rebeliões. Silenciou, enfim, sob o golpe das ondas da indiferença e do embotamento trazidos por pensamentos e sentimentos que se expandem cada vez mais... A fórmula blasfema de Rózanov, “eu não quero a verdade, eu quero a paz”, que há apenas dois ou três anos soava exatamente como tal, hoje é aceita por muitíssimos. Porém uma literatura que procura a paz, uma literatura sem a busca de alguma forma de verdade, como quer que esta seja entendida, não existe e não pode existir. O governo soviético tomou para si a iniciativa na área literária e em todos os demais ramos da vida, mas pouco fez. É bem verdade que ele editou e difundiu milhões de exemplares de livros bons e necessários, e,
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nesse sentido, seus méritos diante da cultura russa são indiscutíveis, mas em relação à literatura eles equivalem a zero. O governo soviético não conseguiu criar livros novos e não elaborou novas edições dos antigos. Todos os numerosos tomos de Koltzóv, Nikítin, Krylóv, Tchekhov, Saltykóv e Tolstói são reimpressões de velhas matrizes confiscadas, nas quais não se mudou uma vírgula sequer. Exceto a capa com o selo da editora estatal, não trazem nenhuma novidade. É certo que houve, vindas desse mesmo lado, repetidas tentativas para a criação de uma nova literatura. As assim chamadas arte e literatura “proletárias” foram cultivadas e incentivadas pela ação do governo e dos círculos ligados a ele. Deveriam, segundo a opinião dos dirigentes desse movimento, produzir a revolução na literatura mundial, gerar algo nunca visto e ouvido, diante do qual tudo o que fora criado até o momento hodierno seria aniquilado. Mas também, nesse ponto, as forças foram mal calculadas, e tais tentativas deram em nada. Até agora essa literatura só legou uns semanários magrinhos, com poemas fracos e traduções de contos, e uns dois ou três livrecos sobre o ferro, o martelo e outros objetos sem os quais a arte proletária é impensável. Sem dúvida, a atração das massas populares para a vida sócio-política e a familiarização delas com a literatura terá repercussões. Não se discute que nas profundezas escuras do povo repousam fontes intocadas, repletas de forças criativas, mas não é assim tão fácil vivificá-las. Não basta um decreto; é necessário escavar com vagar e obstinação. Somente então elas irromperão e, talvez, jorrem feito uma fonte nutriente. Mais frutífera e, em todo caso, mais interessante, acabou sendo a literatura não-oficial. Porém, a desolação é similar. Praticamente o único fenômeno interessante e merecedor de atenção na vida literária do ano passado foram os “Citas” e o ciitismo. Ao redor dos Citas, se agruparam poetas de peso como Andrei Biély, V. Briússov, A. Blok. Dentre os mais jovens, N. Kliúiev, S. Essiénin, P. Oriéchin e outros. Apesar de envidarem esforços, eles não conseguiram criar uma nova orientação. O traço distintivo de sua teoria é o ecletismo. Não devemos, porém, negar algumas de suas conquistas artísticas. Sem dúvida, o poema revolucionário Os doze,
Nikolai Kupre Janov, 1922.
(nas duas páginas seguintes) Marc Chagall, Revolução 1917, 1937.
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de A. Blok, que causou um barulho considerável, deverá receber os méritos mais elevados. O dom artístico do poeta não feneceu, e vem se manifestando em facetas sempre renovadas. Nesse poema, Blok pôde sobrepor as conquistas técnicas dos últimos tempos ao que era característico dos seus primeiros livros. Bem menos interessante é o poema de A. Biély intitulado Cristo ressuscitou, também dedicado à revolução e escrito, em medida significativa, sob a influência de Maiakóvski. No âmbito da prosa, merece um registro o encerramento do romance Kótik Letaiev, de A. Biély. Este teria sido um grande acontecimento, caso as questões literárias contemporâneas não tivessem recuado para segundo plano em função dos eventos de outra natureza. Abstraindo-se os Citas, quase que só resta Eralach, o novo livro de contos de Górki. Os livros publicados com os nomes de Balmont (Serei eu um revolucionário?), Briússov (Experiências) e V. Ivánov (Infância) não acrescentaram louros aos seus
autores, nem trouxeram valores para a poesia russa. O solo da Ucrânia foi espantosamente ingrato para a literatura russa. Apesar de para lá terem acorrido todas as forças literárias das capitais e de terem se formado em Kíev, Khárkov e Odessa centros editorais fortes e projetos editoriais de todo tipo, cultivados às centenas, não se criou nada de relevante. O único fato prazenteiro é o renascimento da revista grossa, que depois de prolongada agonia falecera em Petersburgo e em Moscou. Mas as duas revistas surgidas (Obediniénie [A união], em Odessa, e Rodnaia Zemliá [Terra Natal], em Kíev) foram publicadas apenas em um volume, no lugar dos quatro prometidos, e o destino delas se anuncia duvidoso. Um balanço lamentável, pois. Quais são as perspectivas? Sem temer virar um profeta vivo, é possível predizer que, em todo caso, as perspectivas radiosas não serão mais agradáveis do que os resultados já apresentados.
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Grigóri Kôzintsiev e seu livro O Espaço da Tragédia Anastassia Bytsenko
A adaptação da literatura clássica para o cinema é uma tarefa difícil, ainda mais no ambiente de outra cultura. Entre os melhores exemplos dessas tentativas, podemos mencionar o filme O Desprezo (1963), do cineasta francês Jean-Luc Godard, baseado no livro do escritor italiano Alberto Moravia. Há também Decameron (1971), de Pasolini, inspirado na obra do italiano Giovanni Boccaccio, assim como filmes do alemão Friedrich Murnau, que buscou enredos na literatura francesa, inglesa, irlandesa etc. Podemos também lembrar o filme Fahrenheit 451 (1966), de François Truffaut, baseado no livro homônimo do americano Ray Bradbury. Na década de 1960-1970, o diretor de teatro e cinema Grigóri Kôzintsiev (1905-1973) ficou conhecido mundialmente após ter criado suas versões cinematográficas de Hamlet (1964) e Rei Lear (1971).
KÔZINTSEV, Grigóri. Rei Lear (Korol Lear), 1971.
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1. Leoníd Trauberg (19021990), diretor de cinema e roteirista soviético. Assim como Grigóri Kôzintsiev, trabalhou como professor do Instituto de Artes Cênicas de Leningrado. 2. Ver: KLEIMAN, N. O Excêntrico e o Trágico. Comunicação para a conferência internacional “FEKS e o excentrismo”, Moscou, dezembro de 1989. Tradução por Elena Vasilevich e Tieza Tissi. In. Cadernos de Pesquisa Kinoruss: EISENSTINIANAS. Ano 3, n.4, 2013, pp. 89-94. 3. O estúdio Lenfilm foi fundado em 1914, mas leva esse nome a partir do ano 1934. 4. Odna foi o primeiro filme falado feito no Lenfilm. 5. Com exceção dos filmes Iúni Fritz (O Jovem Fritz, 1943) e Dom Quixote (1957).
6. Atual teatro Aleksandrínski, em São Petersburgo.
7. O Período do Degelo (entre anos 1953-1964), na União Soviética, foi marcado por uma leve liberalização política e ideológica, durante o governo de Nikíta Khruchtchióv.
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Contemporâneo de cineastas como Dziga Viértov, Vsévolod Pudóvkin, Liev Kulechóv e Serguei Eisenstein, desde o ano 1919 até o fim da vida, Kôzintsiev morou e trabalhou em Leningrado. Nessa cidade, junto ao amigo e colega Leoníd Trauberg1, fundou a Fábrica de Ator Excêntrico (FEKS), um laboratório inovador de arte teatral que, em 1924, também amplia para o cinema2. No Lenfilm3, o estúdio mais antigo do país, Kôzintsiev realizou seus primeiros projetos cinematográficos: As Aventuras de Oktiabrína (1924), O Capote (1926), Odna (Sozinha, 1931)4 e a trilogia sobre Maksim (1935 - 1939). Todos criados na linha da FEKS, que pressupunha uma expressão excêntrica, cômica e circense. A partir do filme Nova Babilônia (1929), teve início a colaboração entre Kôzintsiev e um dos ilustres moradores de Leningrado: o compositor Dmítri Shostakóvitch, que escreveu música para todos os filmes do diretor5, incluindo Hamlet e Rei Lear. No início dos anos 1950, Kôzintsiev trabalhou nos teatros, onde a pressão da censura era um pouco menos intensa do que no cinema, porque possuía menor alcance. Assim, em 1954, no Teatro Púchkin6, ele monta o espetáculo Hamlet. Essa foi a terceira obra de Shakespeare que o diretor encenou no teatro, depois de Rei Lear (1941) e Otelo (1944). Em 1957, Kôzintsiev volta para Lenfilm onde, no mesmo ano, faz o filme Dom Quixote (1957), com Nikolái Tcherkássov, no papel principal. Após a morte de Stálin, durante o período do Degelo7, houve algo que pode ser chamado de renascimento cultural. Tanto jovens cineastas, como Andrei Tarkóvski, quanto os mais experientes, como Grigóri Kôzintsiev, ganharam a oportunidade de expressar, com relativa liberdade, seu modo de pensar e ver o mundo. Surge um novo cinema soviético. Os filmes de Kôzintsiev, baseados nas peças de William Shakespeare, foram uma espécie de deixa que permitiram ao cineasta criar uma parábola filosófica sobre o homem e o poder. Nos anos seguintes, o diretor realizou várias viagens ao redor do mundo. Liderou a delegação durante a Semana do cinema soviético na Inglaterra. Visitou o Japão, o México e os Estados Unidos. Em 1960, participou do XIII Festival de Cinema de Cannes, como um dos membros do júri.
Trinta anos de sua vida, Kôzintsiev dedicou ao estudo da obra de William Shakespeare. Escreveu livros, criou espetáculos teatrais e, em 1964, filmou Hamlet. Depois dessa película, Kôzintsiev começou a pensar sobre um novo projeto. Estava concebendo A Fuga, um filme sobre os últimos dias de vida de Liev Tolstói. Ele já estava incluído nos planos de Lenfilm de 1966, mas Rei Lear estava quase pronto. Ocorreu que ambos os trabalhos pareceram bastante interligados para mim. Alguns traços de Lear, percebi no homem [Tolstói] que não gostava de Shakespeare, em especial dessa tragédia. Não estou me referindo às semelhanças internas ou externas, mas à própria escala do indivíduo.8
Liev Tolstói ficou amplamente conhecido por causa das fortes críticas que fez à peça Rei Lear, no ensaio Sobre Shakespeare e o Teatro9. Kôzintsiev foi um dos estudiosos que percebeu semelhanças entre a vida de Tolstói e do rei Lear, um personagem cujas atitudes o escritor não compreende e tanto critica. A citação acima vem do livro O Espaço da Tragédia, que nasceu a partir do diário que o diretor manteve durante as filmagens de Rei Lear. Kôzintsiev
8. KÔZINTSIEV, G. Prostránstvo Traguédii. (O Espaço da Tragédia). Leningrado: Iskusstvo, 1973, p. 35. 9. TOLSTÓI, L.N. Sobre Shakespeare e o Teatro. In: TOLSTÓI, L.N. Os últimos dias. São Paulo: Penguin & Cia das Letras, 2011. pp. 259-331.
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tomava notas sobre todo processo da produção desse filme, assim como seus pensamentos e buscas artísticas. Durante a leitura, encontramos, também, pensamentos e referências que vão além do filme. Kôzintsiev fala sobre o cinema, a literatura, a arte de ator e a arte em geral. No trecho do livro, traduzido especialmente para esta edição do Kinoruss, Kôzintsiev pondera sobre vários assuntos. Faz reminiscências sobre o passado, discorre sobre a importância que a arte japonesa teve, inclusive para o cinema. Expressa sua admiração pelo filme O Idiota (1951), de Akira Kurosawa, baseado no livro de Fiódor Dostoiévski. Kôzintsiev fala sobre suas buscas, incertezas, dúvidas e fontes de inspiração. Compartilha, com leitores, seu modo de pensar, mostra as associações que o inspiram. A imaginação de um artista, às vezes, pode estar impulsionada por coisas que, aparentemente, não têm nenhuma relação com a obra de arte final. O teatro Kabuki, assistido na década de 1920, o Jardim de Pedras, as máscaras do teatro Nô, filmes e espetáculos de outros diretores e a experiência de toda uma vida, durante a qual o artista acumula forças criativas para, finalmente, dar à luz a uma obra de arte. Nesse livro, Kôzintsiev aparece como o cineasta que sempre compartilha, troca ideias, mantém um diálogo vivo com outros artistas e diversas obras de arte ao redor do mundo. Em seu livro, Grigóri Kôzintsiev indaga como as imagens nascidas no solo de uma cultura diferente se transformam e renascem em outro país, em meio a outra cultura; que caminhos sinuosos e complexos levam ao surgimento de uma obra como um filme? O diretor nos oferece suas respostas para essas perguntas. Seu Rei Lear, criado na União Soviética da década de 1970, reavalia, transforma e repensa a eterna obra de William Shakespeare.
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O Espaço da Tragédia: O diário do diretor Grigóri Kôzintsev Traduzido por Anastassia Bytsenko [1] Uma nova montagem nunca foi para mim apenas uma obra puramente profissional; não se tratava só de aplicar conhecimento ou experiência especial ao trabalho. Era necessário, como se fosse começar a viver tudo novamente. Os acontecimentos e os destinos, inventados, às vezes, séculos atrás, invadiam sua vida e ocupavam nela um lugar cada vez maior. Já aconteceu comigo de o fictício começar a parecer real. Dia após dia, revelavam-se traços novos e completamente reais de um universo peculiar, assim como das pessoas que o habitavam. O universo alheio misturava-se com o seu. Desse modo, começava a se formar o corpo das imagens cinematográficas, as palavras tornavam-se visíveis.
KÔZINTSEV, Grigóri. Rei Lear (Korol Lear), 1971.
KÔZINTSEV, Grigóri. Rei Lear (Korol Lear), 1971.
E, então, a arte mais naturalista – a fotografia capturava rapidamente o movimento da vida que passava das páginas de um livro para a tela. Tanta coisa poderia acontecer no caminho dessa transição! Tanta coisa estava envolvida. A memória tornava-se viva - os livros lidos, os países visitados, a infância, as discussões com amigos ou consigo mesmo tudo fazia parte do trabalho. Era preciso discutir com o filme a que você assistiu ontem e com pessoas que já não estavam mais neste mundo. As habilidades profissionais e a experiência não ajudavam, antes atrapalhavam. Era necessário ir além da profissão e refutar a experiência. Era preciso estudar. Tive de estudar todo dia. Aprender com mestres que, aparentemente, não tinham relação direta com meu trabalho, mas que ensinavam mais que os outros. Era preciso preparar as lições e ficar triste por causa de uma nota baixa - hoje você deu a si mesmo essa avaliação baixa à mesma redação que há uma década ganhou a nota mais alta - assim me parecia na época.
Surgiam muitos sentimentos e pensamentos bastante contraditórios. Mas você é a pessoa que “adiante será designada como Diretor” (assim escrevem nos contratos padrão) e a organização, “adiante designada como Estúdio de Cinema”, confiou-lhe uma filmagem. A partir de um determinado dia, seus pensamentos e sentimentos foram lançados para um livro de registros e planejamentos. A máquina de calcular foi ligada e a montagem começou. No entanto os pensamentos e os sentimentos não queriam obedecer a um cronograma e muito ainda ficava fora da programação diária para a realização de um produto chamado “filme”. Então, acrescentavam-se outras anotações aos esboços do roteiro e da encenação. Às vezes, estavam relacionadas àquilo que aconteceu hoje durante as filmagens ou, às vezes, ao dia que passou. As anotações aumentavam, algumas se agrupavam em um conjunto e outras permaneciam como páginas fragmentadas do diário. Esse diário, eu mantive durante a montagem de Rei Lear para o cinema. A primeira versão deste trabalho foi o espetáculo do Bolchói Dramatítcheski Teatr Górkovo (Grande Teatro de Drama de Maksim Górki, 194110); a segunda, foi um capítulo do livro William Shakespeare nosso contemporâneo (1962); e a terceira versão foi o filme de 1967-1970. 1 Quanto mais eu trabalho com filmes chamados históricos, menos entendo o significado dessa definição. Eu procuro neutralizar, mostrar de forma mais simples e menos perceptível tudo relacionado às características de um entorno antigo. Os limites que separam épocas podem ser ressaltados, mas também podem ser atenuados. (No que temos de focar a atenção: no corte de roupa ou nos rostos das pessoas?). Nas obras de Shakespeare, um dos elementos mais imprecisos é a delimitação do tempo, cuja ação parece ocorrer na antiguidade. Como no passado o futuro amadurece, Assim no futuro arde o passado...
As estrofes de Anna Akhmátova11 explicam esses processos intrincados.
10. Esse teatro encontra-se na cidade de São Petersburgo. Depois da II Grande Guerra, quando a produção cinematográfica havia sido bastante reduzida na URSS, Kôzintsiev trabalhou como diretor teatral. Montou espetáculos - Rei Lear (1941), Othelo (1943) e Hamlet (1954) - nos teatros de Leningrado.
11. Anna Akhmátova (18891966) poeta russa que também trabalhou com crítica literária e tradução. Uma das personalidades mais importantes da literatura e poesia russa. Essa estrofe faz parte de uma poesia que integra o poema 1913 ou Poema sem Herói, escrito entre os anos 1940-1945.
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Vamos voltar para a obra em si. A peça é Rei Lear. Os espaços são: o palácio do rei, o castelo do duque, uma tenda para os porcos, uma estrada a caminho de Dover, o universo; os trajes: desde o luxo extremo até os trapos mais imundos; os adereços: uma coroa, um mapa do país, uma corda para enforcamento. O tempo da ação? De acordo com as rubricas do autor, naquela época, juravam em nome de Apollo e Juno, batizavam crianças e havia o posto de capitão no exército. Além disso, o autor acreditava que os eventos ocorriam em tempos pré-históricos. O que fazer então? Provavelmente, encontrar, pelo menos, algumas datas precisas. Assim, por exemplo, os eventos não ocorreram após a morte do autor. Bem, sendo assim, eles não podiam acontecer antes de quê? Não tomaram lugar antes do surgimento dos estados e da ideia de divinização de um monarca. O desafio era conseguir que a ação interna e a análise profunda da vida não terminassem no final do filme, mas continuassem no universo espiritual dos
espectadores. Não mostrar, mas despertar. Uma amizade tinha me unido ao artista plástico Virssaladze12 desde Hamlet. A ideia de que trabalharíamos juntos novamente deixava minha alma mais tranquila. - O principal é que tenhamos tudo bem escasso. - disse Soliko Bagrátovitch13, durante nossa primeira reunião. Então, vamos ter tudo bem escasso. Vou tentar entender o significado dessas palavras. Talvez algo venha à memória?…
12. Simon ou Soliko Virssaládze (1909-1989) artista plástico e cenógrafo teatral soviético, nascido na Geórgia. 13. Nome e patronímico de Virssaládze. Esse tipo de tratamento é usado comumente na Rússia como um modo formal de chamar as pessoas.
2. As Anotações Japonesas Um pequeno pátio, cercado por muros baixos de argila, com uma pequena cobertura de telhas. No chão coberto por um cascalho claro, longe uma da outra, estão algumas pedras de formatos diferentes. No limite do pátio, algumas pessoas estão sentadas sobre uma plataforma de madeira; seguindo a tradição japonesa, elas deixam seus sapatos na entrada, ficam com as pernas penduradas para fora e, sem mexer, olham para o chão em silêncio. O lugar é um dos mais famosos do Japão. Sua visitação está incluída em cada guia de viagem. Sem entender ainda em que é preciso prestar atenção, eu tiro meus sapatos e sento em um lugar livre. O impacto do jardim de pedras começa com a sensação provocada pelo vazio iluminado e pela escassez de formas isoladas. Tem uma quantidade ínfima de elementos nesta imagem delimitada por paredes de barro, mas cada um deles é diferente, possuem características próprias e relações especiais uns com os outros. O cascalho é colocado em linhas retas e paralelas; as pedras estão contornadas por círculos concêntricos (outro tipo de ordenação de cascalho); os círculos se encaixam dentro das linhas retas. Uma pedra e um vazio, mais duas pedras baixas encostadas, como se estivessem enraizadas dentro de um fragmento pontiagudo, novamente um vazio e um outro volume. Algumas pedras têm superfícies lisas e polidas pelo tempo, outras são ásperas. A alternância entre o vazio e as formas isoladas esconde um sentido profundo que não é fácil de perceber. Você olha para o jardim de pedras como se estivesse
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prestando atenção a uma música: a harmonia do espaço envolve, revela-se um padrão de organização, você começa a viver o ritmo oferecido pelo artista. Não há mais pedras nem trilhas escavadas no cascalho; a primeira e mais simples associação preenche, com um conteúdo vivo, as formas abstratas: é o mar, o movimento interminável do fluxo das águas e a alteração de marés, altas e baixas. As pedras de formato irregular parecem rochas que se elevam sobre uma voragem. Os ritmos mudam. Em toda sua variedade, surgem as ilhas de pedra, os oásis no deserto infinito das águas. Uma sensação de paz e um movimento consciente da vida nos envolvem. Isso é um oceano. É o Japão visto da altura do voo de um pássaro. Alguma coisa aconteceu. A luz do dia mudou ou, talvez, meus olhos tenham captado algo de novo: as correntes alteraram seu movimento e o ponto de vista mudou. Surge um outro significado: os continentes inteiros, os mundos se elevaram do mar, subiram sobre o oceano ou acima das nuvens. O universo e os planetas no espaço… Um guia paciente e gentil toca, com cuidado, o meu ombro; infelizmente, o tempo estava acabando, permanecemos aqui por tempo demais e a programação não será cumprida. Para mim, é difícil ir embora daqui, pois vi muito pouco ainda. Meus olhos só começaram a abrirse, eu apenas toquei a essência da obra, enquanto ela é inesgotável e indescritível com palavras. Tudo o que vinha à memória eram apenas associações simples. O problema não estava só com o jardim e com aquilo que estava contido nele, mas comigo também, com aquilo que ganhava vida dentro de mim diante do contato com a arte. Com cascalho e algumas pedras. As antigas palavras dos filósofos sobre revelação infinita de si mesmo e o desenvolvimento próprio da natureza que se semelha ao fluxo eterno do oceano. O jardim de pedras está localizado em Kyoto, a antiga capital do Japão; ele ocupa trinta metros de leste a oeste e dez metros de sul a norte. Composto por quinze pedras, o jardim foi criado pelo artista e jardineiro Soami, que morreu em 1525. O Jardim de pedras encontra-se dentro dos limites do Templo Ryōan-ji.
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Ao lado, está o magnífico esplendor dos palácios, templos, casas de campo, jardins, o requinte das formas, o acúmulo dos detalhes, os andares de pagodes, as pequenas pontes arqueadas sobre as águas verdes com peixes dourados (pontezinhas e peixes e não pontes e peixinhos!), os mini-jardins e as estufas de brinquedo, onde tudo foi planejado: cada flor é artificial, cada movimento vivo é comedido e delimitado pelo tamanho pré-concebido, cada detalhe foi pacientemente cultivado violando o natural. Aqui, até mesmo a lua que reflete dentro de uma lagoa, em uma determinada hora, tornase parte de um cenário para encenação da “cerimônia do chá”, no terraço. A data ou a hora da estreia é a noite do dia quinze de agosto, durante a lua cheia. Como, às vezes, algo simples é difícil e como algo completamente simples é complicado. Estamos nos referindo ao canto do rouxinol. Será que depois das descrições feitas por poetas é possível ouvir algo novo, ainda desconhecido sobre ele?… Consegui ouvir os gorjeios e silvos, em condições especiais, que davam novas nuances aos trinados mágicos. Aqui, no palácio do século XVII tudo era requintado: as pinturas preciosas sobre paredes – o mar, as montanhas, as flores, - os manequins vestidos com roupas antigas. O cerimonial refinado ganhava vida nessas figuras: os dignitários aguardavam um sinal do ministro, o imperador e sua esposa estavam sentados sobre as esteiras como divindades. O piso do corredor que leva até o quarto tinha um mecanismo especial. Bastava pôr o pé sobre o revestimento e um dispositivo inteligente entrava em ação: as tábuas gorgolejavam, estalavam, assobiavam e os gorjeios de rouxinol percorriam o palácio. A arte cercava a tirania e a burocracia, ela lisonjeava os olhos e os ouvidos. Ao mesmo tempo, ela cumpria uma função prática: depois do canto do rouxinol corriam os guardas com espadas fora das bainhas. Os gorjeios do cantor de amor estavam afinados com o latido de um cão de guarda. Em agosto de 1928, o teatro Kabuki veio com uma turnê para a União Soviética. Eu não perdi nenhum espetáculo. Muitas vezes fui junto com Eisenstein. Para
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14. Sadanji Ichikawa (1880 -1940) pertencia a terceira geração de uma dinastia dos artistas de teatro Kabuki. Um dos atores mais progressivos e destacados de seu tempo, Sadanji II buscou revitalizar a arte do Kabuki. No ano de 1928, ele liderou a trupe que fez turnê em cidades russas Moscou e Leningrado.
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uma geração de jovens artistas dos anos 1920, que cresceram nutrindo uma aversão contra o naturalismo, as apresentações de artistas japoneses eram uma festa. Diante de nós, estava uma arte que influenciou as mais ousadas experiências dos diretores europeus do século XX. Recebemos os Hanamichi (o caminho das flores) e os kurombi (os assistentes de preto que trocam o cenário diante dos olhos do público) como velhos amigos. Mas, no original, tudo era muito mais interessante. Na estética de Kabuki, Eisenstein encontrou a estrutura cinematográfica: a realidade desmembrada em partes e, novamente, montada; mas, de acordo com outras leis, em que cada elemento torna-se apenas uma unidade da influência, um estímulo de direitos iguais na fila de montagem, da montagem de atrações. A arte sintética da qual tanto se falava nos primeiros anos após a Revolução apareceu diante de nossos olhos: as cascatas de movimentos da trupe de Sadanji Ichikawa14 eram interrompidas por posturas estáticas, um som dava continuidade ao gesto, o som transformava-se em cor e a canção em uma dança. Tudo era metafórico, tinha um significado especial, longe da simples verossimilhança. Fiquei impressionado com a força da paixão e o acabamento das formas. E, talvez, por mais uma coisa: pelo esplendor de um “luxuoso balagan” sobre o qual tanto escreveu Meyerhold. Os quimonos feitos de tecidos bordados e de cores vibrantes (os tesouros, passados, como herança,
de geração a geração); a extravagância fantástica de maquiagens; a celebração feroz do ritual de lutas, os raios das espadas de samurais; a graça de boneca das intérpretes de personagens femininas (a maestria de personificação!); a unidade de drama, acrobacia, canto e dança. Ver tudo isso com os próprios olhos parecia um milagre. Eu pensei que conhecia a verdadeira arte japonesa. Como fiquei sabendo, conhecia infinitamente pouco. O público estava sentado em seus lugares à espera do início de espetáculo; muitos tinham livros em mãos. Era o texto da peça que seria apresentada nesse dia. No palco, havia esteiras e uma parede não muito alta de madeira clara sem pintura. Eu estava à espera do início do espetáculo do teatro Nô. Na minha memória, surgiu vivo o Kabuki, um festim de cores e movimentos. Não houve nada nem de longe parecido com aquilo. Escutou-se um som fraco e seco, um clique. Os músicos entraram com um passo lento em simples quimonos pretos, sentaram-se de cócoras diante da parede da casa; eles tinham flautas, pequenos tambores, os bateristas usavam dedais de madeira. Igualmente calmas, surgiram outras pessoas com roupas cinzas e pretas; o coro tomou seu lugar sobre as esteiras. Mais uma vez escutou-se um clique, entraram a flauta e os tambores.
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Um japonês de idade, sem maquiagem, vestido de forma modesta, com os mesmos tons escuros, sentou ao lado dos músicos. Era o segundo ator. A entrada do primeiro ator, eu não tive tempo de notar. As pessoas na plateia viraram a cabeça para a esquerda e eu também fiz o mesmo. Com passos inaudíveis, um homem de roupa larga, de cor azul, caminhava lentamente. No rosto do primeiro ator, estava uma máscara branca contornada com cabeleira eriçada; em uma das mãos, segurava uma varinha fina. O coro canta. Os espectadores olham nos livros. Meu companheiro traduz o conteúdo em voz baixa. No começo, foi difícil entender a essência daquilo que estava acontecendo. As palavras do coro e dos atores não lembravam um diálogo. Não era uma peça, mas um poema filosófico, com divagações líricas; a avaliação daquilo que estava acontecendo e os monólogos do autor. O corifeu dirige-se ao ator de máscara branca, mas nenhum dos membros do coro olha para ele que, por sua vez, continua a bater calmamente com sua varinha no chão, canta em voz baixa sem prestar atenção em ninguém; entra a voz de um homem idoso, novamente apenas a orquestra toca. Agora vi com meus próprios olhos e, finalmente, entendi a antiga arte teatral. Foram-me reveladas as apresentações autenticas de tragédias, o diálogo entre o coro e o protagonista, os apelos ao público e a entrada em ação do deuteragonista (o segundo intérprete).
A trama lembrou a intriga paralela de Rei Lear a história do conde de Gloucester e seu herdeiro Edgar. O nobre senhor amaldiçoou e baniu seu amado filho: alguém o tinha caluniado. O filho experimentou toda dor que pode acontecer a um homem. Tornou-se um “mendigo infeliz”. A peça é chamada desse mesmo jeito: O Mendigo Infeliz. O exilado vagava errante pelas terras estrangeiras e distantes, pedia esmola e ficou cego de tanta tristeza (ao contrário da história de Shakespeare, nessa obra, foi o filho que perdeu a vista). Depois de muitos anos, sem saber, ele chegou à terra natal. O Kabuki impressionava e estonteava; a maestria estava baseada em um frenesi de uma obra épicoheróica e na bufonaria cômica, levados a um limite extremo, impensáveis para a arte europeia. No teatro Nô, predominava a paz, uma grande discrição e absoluta clareza. Os gastos com cenários e figurinos eram ínfimos. A filosofia estava inseparável do sentimento, a poesia da música; a força da intensidade lírica impactava mais do que tudo. Os espectadores entendiam isso perfeitamente: vieram aqui não para simpatizar com os heróis no palco e nem para se preocupar com o que ia acontecer a seguir: como será o desfecho da história? As pessoas olhavam nos livros, deleitavam-se com a poesia, sentiam-na junto com a música e o canto. Do mesmo modo, os músicos, às vezes, ouviam um concerto olhando para a partitura que haviam trazido consigo.
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Não havia nem o menor vestígio de efeitos especiais ou de alguma atração. Todos os elementos dramáticos e emocionais não estavam apenas enfatizados, mas eram como se estivessem omitidos. Havia o mínimo de atuação. O ator de máscara e o japonês de idade (na peça, o pai e o filho) não se falavam, nem sequer olhavam um para o outro. O protagonista não imitava um cego: não procurava o caminho, e seu passo não estava prejudicado. A uniformidade de batidas baixas e o ritmo monótono do batuque da varinha criavam uma sensação de cegueira. O poema surgia como se fosse por si só, nos sons, nas imagens poéticas, na relação entre a narração e os pensamentos. As batidas leves da varinha e o barulho dos dedais de madeira sobre tambor. O Corifeu pergunta: - Por que seu passo mudou? O que te surpreendeu? - Senti o perfume dos campos cobertos de flores, - responde o homem de máscara. - Eu conheço o cheiro deles.
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O batuque do tambor. O homem de idade está sentado sem olhar para ninguém. As batidas da varinha. A máscara branca deu um pequeno passo para frente: - Desde minha infância, lembro-me do perfume destas flores. - De que tipo de flores você se lembra? - pergunta o homem idoso. - Crisântemos, peônias, tulipas… – disse ao máscara, olhando para a frente.- Elas cresciam em um jardim perto da casa onde eu nasci. Não consegui encontrar o texto da peça, por isso relato apenas o sentido geral do diálogo. As pessoas, na plateia, viram as páginas dos livros. O pai reconhece seu filho, ou melhor, o coro canta que ele o reconheceu. Então, um milagre acontece: a máscara torna-se o rosto do cego. Você pode ver claramente o rosto do homem que ficou pálido, [um rosto] distorcido pela dor com buracos escuros no lugar dos olhos.
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Provavelmente, o ator virou a cabeça mudando o ângulo da visão, mas esse movimento era quase imperceptível. Agora, uma máscara igual está pendurada na parede da minha casa, em frente à mesa. Seu aparecimento causou desaprovação de toda a família. Queriam tirála e guardá-la em algum lugar bem longe. A máscara é tão plástica que é capaz de mudar a expressão mesmo quando está imóvel. O artesão espiritualizou um pedaço de madeira; a menor mudança da luz ou alteração do ponto de vista sobre ela nos faz contemplar, de um novo modo, os olhos puxados com buraquinhos no lugar das pupilas. A máscara, como se estivesse acompanhando você, espia, entra em um diálogo silencioso contigo. Em sua aparência, há algo triste ou trágico. Uma forma simples, uma cor branca uniforme. A máscara, na arte do nosso século, é um tema especial. Provavelmente, terei que voltar a ele novamente. Os espetáculos de kabuki, quando os assisti de novo, me pareceram demasiadamente decorativos e exóticos, e ainda, por cima, produzidos para exportação. Os cenários faziam-me lembrar de lojas de souvenirs e o requinte exterior não podia esconder a pouca profundidade. Durante minha viagem, o tempo estava quente e úmido. As cidades surgiam na malha fina da chuva. Tudo parecia cinza, da cor de asfalto. Nas ruas, moviam-se lentamente os fluxos contínuos de guarda-chuvas pretos e molhados. A arte japonesa, pela qual me apaixonei, não era feita com cores vibrantes, mas com marrom escuro e cinza quase preto; tinha formas tranquilas e vozes baixas. O maior impacto sobre mim causou a profundidade de lirismo concentrado. Obviamente, eram apenas algumas das características da arte japonesa, aquelas sobre as quais eu não tinha nem ideia antes: minha turnê estrangeira e as gravuras me deixaram acostumado com outras imagens. No ano de 1929, Eisenstein escreveu que o paradoxo da arte japonesa é que, em muitas de suas formas, sua estrutura tem caráter cinematográfico, no
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entanto ela não dispõe de seu próprio cinema. Os filmes japoneses daquela época não representavam nenhum interesse. Desde quando esse artigo foi escrito, muitos anos se passaram. O cinema japonês não só nasceu, mas provocou um impacto significativo sobre o europeu. Akira Kurosawa tem pouco interesse em Kabuki, mas, como ele disse muitas vezes, foi influenciado pela tradição do teatro Nô. Ao saber disso, bem antes de minha viagem ao Japão, fiquei surpreso: o que pode unir a antiga convenção (muitos elementos do Nô foram preservadas desde o século XIII) com o caráter imagético do cinema que aparentava ser tão semelhante à vida real? “Semelhança com a vida real”, “cinematográfico” – será que esses conceitos existem em um único estado, petrificado? O Idiota15 de Kurosawa, na minha opinião, é um milagre da transformação de uma obra clássica para o cinema. As páginas de Dostoiévski tornaram-se vivas, as palavras - definições sutis - materializaram-se. Na tela, eu vi os olhos de Rogójin - frenéticos, ardentes como carvão em brasa -, tais como eles foram descritos por Dostoiévski. Mas Toshiro Mifune, que interpreta esse papel, tem olhos puxados! A ação do filme se passa no Japão contemporâneo. Tudo está diferente. Tem um vapor no lugar do trem, um talismã budista em vez de um crucifixo. Cada costume está apropriado para o outro povo que não se parece com o russo. E, de fato, no início, quando surgiram os primeiros enquadramentos, fiquei surpreso ou então indignado: como está diferente! Pode-se falar o que quiser, mas cada um de nós assiste às encenações estrangeiras de obras clássicas russas com uma descrença. De todo modo, começo assistir assim, mas logo eu me esqueci do cotidiano. As características faciais de outra raça tornaram-se habituais para mim. Na tela, estava nevando, a vitrine de uma loja estava congelada, mas, através do vidro coberto de gelo, podia se ver uma fotografia do rosto de uma mulher. Imediatamente reconheci Nastássia Filíppovna e sua beleza trágica. E quanto aos olhos japoneses? Eu já não os percebia. Estava no universo dostoiévskiano, entre suas personagens; no meio de um
15. O Idiota (1951), filme de Akira Kurosawa, baseado em obra homônima de Fiódor Dostoiévski.
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KUROSAWA, Akira. O Idiota (Idiot), 1951.
16. Mercado Sennói (Mercado de Feno) fica na praça homônima de São Petersburgo. É um dos lugares perto do qual viveu o próprio Dostoiévski e onde também circulavam várias personagens suas.
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conjunto complexo e singular de seus heróis, de seus encontros e desencontros estranhos. Tudo era diferente na aparência e absolutamente exato pela ação interior, do mesmo modo como esse universo foi criado pelo escritor. Eu vi com clareza as pessoas andando pelo mercado Sennói16, tão familiar para mim. No entanto, na tela, não havia nenhum vestígio de São Petersburgo. Apenas um único detalhe semelhante à Rússia, como um motivo inoportuno atravessava todo o filme: estava nevando. Os flocos brancos caiam em abundância, formavam-se os montes de neve, as pessoas escorregavam no gelo, as ruas ficavam encobertas e tudo se tornava branco. Um rosto branco. A neve branca. Duas imagens
aparentemente díspares: uma máscara japonesa e A Máscara de Neve, de Blok17. Um fracasso aguarda qualquer estrangeiro que empreende uma encenação com reprodução de detalhes de uma vida cotidiana alheia a ele. Um dos cineastas americanos começou assim seu filme Anna Karenina: o caviar negro estava sendo servido nos pratos com colheres de sopa. O que então era o principal, muito mais importante do que sinais externos, que Kurosawa conseguiu captar e por que ele foi capaz de solucionar esta tarefa tão difícil?... Ele soube expressar na tela aquele “realismo fantástico” sobre o qual, com tanta persistência, escreveu Dostoiévski. No filme, as imagens externas não eram parecidas, mas tudo lembrava a essência e a conexão entre as coisas. No caráter real do filme, havia tanto uma naturalidade contemporânea, quanto um elemento religioso antigo, uma estranha paz do universo espiritual de príncipe Míchkin e a inflamada consciência de Rogójin. “Dostoiévski é meu autor favorito, – disse Kurosawa - para mim ele é a pessoa que escreve de maneira mais honesta sobre a existência humana. No início, ele parece terrivelmente subjetivo, mas quanto mais trabalho com sua obra, mais percebo que não há um autor mais objetivo do que ele. Foi desumanamente difícil, para mim, filmar O Idiota. Às vezes, sentia que queria morrer. Dostoiévski é muito difícil. No entanto, mesmo agora, continuo sob sua influência. Os críticos consideram esse filme como meu fracasso. Não concordo com eles. Após sua estreia, recebi muito mais cartas dos espectadores do que depois de outros filmes meus. Eu acredito no público. Se um cineasta não tem o hábito de mentir para seus espectadores, então pode confiar neles” (Sight and Sound, de 1964, nº 3). As obras clássicas russas influenciaram muitos outros trabalhos de Kurosawa. Eu não me refiro só às filmagens de O Idiota e Ralé, mas aos outros projetos. Em Viver18, baseado em uma obra japonesa, é fácil encontrar semelhanças tanto com Bashmáchkin um burocrata múmia de Gógol19, quanto traços de A Morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói.
17. Um ciclo de poemas líricos de Aleksandr Blok (1880-1921), escrito em 1907.
18. O filme Ralé está baseado na peça No Fundo, de Maksim Górki. O filme Viver foi realizado no ano de 1952. 19. O Capote, de Nikolai Gógol.
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KUROSAWA, Akira. O Idiota (Idiot), 1951.
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Provavelmente, Kurosawa é um dos mais ousados inovadores. Ele não tinha medo de rejeitar tudo o que foi considerado como a base do cinema. Em O Trono manchado de Sangue (o nome japonês é Castelo de Intrigas), baseado em Macbeth, ele desistiu de close-ups. As cenas mais trágicas foram filmadas, com planos gerais, quando os atores ficavam sentados sobre esteiras em silêncio por um longo tempo. Às vezes, o cenário consistia em apenas uma mancha de mofo na parede de papel. O teatro Nô migrou para a tela de cinema: Lady Macbeth foi maquiada como uma máscara; o jeito de andar dos atores fazia lembrar um passo ritual; os movimentos dos dedos assemelhavam-se à dança; o posicionamento assimétrico dos corpos, no vazio do tablado, era um estilo que pertencia à antiguidade. Porém, quando do nevoeiro saiam a galope os cavalos de samurais, tornaram-se visíveis os olhos ferozes e as temíveis armas negras – os signos da morte e da grandeza. Oito vezes os guerreiros correram em torno de um mesmo lugar sem conseguir escapar do nevoeiro, a respiração ficou presa, por causa da força de Shakespeare e, ao mesmo tempo, do poder do cinema. [...]
Complementações
ANASTASSIA BYTSENKO Russa, radicada no Brasil. Tradutora e pesquisadora, graduada pela Universidade de Cultura de São Petersburgo (Rússia). Defendeu mestrado e doutorado no Programa de Estudos Pós-graduados em Literatura e Cultura Russa da USP. No doutorado pesquisou o teatro de Liév Tolstói e sua realização cênica os palcos russos no decorrer de cem anos. Entre as traduções está A Perspectiva Inversa de Pável Floriênski, em parceria com Neide Jallageas (Editora 34) e os roteiros do cineasta Andrei Tarkóvski (Editora É Realizações). Para uma coletânea verteu três textos de Liév Tolstói, dentre os quais, os polêmicos ensaios “Sobre Shakespeare e o Teatro” e “O Que é A Arte?” (Companhia das Letras) e ainda artigos e ensaios em periódicos especializados.
BRUNO BARRETO GOMIDE Brasileiro. Doutor pela UNICAMP, com estágio de doutorado CAPES em Berkeley. Desde 2005 é professor de literatura russa na USP. Foi pesquisador-visitante no Instituto Górki de Literatura Mundial, em Moscou, na Universidade de Glasgow, no Púchkinski Dom e em Harvard. Publicou os livros Da estepe à caatinga: o romance russo no Brasil (1887-1936), pela Edusp, a Nova antologia do conto russo e a Antologia do pensamento crítico, ambos pela Editora 34.
CAMILA CAVALCANTE Brasileira. Formada em Letras com Habilitação em línguas portuguesa e inglesa. Possui Certificado de Proficiência em Língua Inglesa pelo Cambridge English Language Assessment, centro especialista de avaliação linguística da Universidade de Cambridge. Leciona em institutos de idiomas desde 2007.
DMITRI GUTÓV Russo. Artista visual e um dos fundadores do “Lifshitz Institute” in 1994. Recentes exposições de seus trabalhos incluem a Terceira Bienal de Arte contemporânea de Moscou; Documenta 12, Kassel, Alemanha; Thaw: Russian Art. From Glasnost to the Present, Chelsea Art Museum, New York; La 52 Biennale di Venezia, Venice; Repetition, Canon, Comeback, Deceleration, Stupor, No Surprises, Moscow Museu de Arte Moderna, Moscou,
EDELCIO AMÉRICO Brasileiro. Doutor em Literatura e Cultura Russa pela FFLCH/USP. Tradutor/ intérprete da Empresa Binacional Alcantara Cyclone Space.
EDITH DERDYK Brasileira. Tem realizado exposições coletivas e individuais desde 1981 no Brasil (Museu de Arte Moderna- SP e RJ; Pinacoteca do Estado de São Paulo, Centro Cultural Banco do Brasil-RJ; Museu de Arte de São Paulo, entre outras) e no exterior (México, EUA, Alemanha, Dinamarca, Colômbia, Espanha, França). É autora de livros sobre o desenho e suas poéticas. Letrista e ilustradora também assina livros de histórias infantis. Dentre bolsas, residências e prêmios com os quais foi contemplada destacam-se Prêmio Funarte Artes Visuais (2012), Residência_The Banff Centre Canadá (2007) e Artista residente_MAC-USP/Vermont Studio Center_USA (1999).
EKATERINA VÓLKOVA AMÉRICO Russa radicada no Brasil. Formada em História, Literatura e Cultura Russa e Hispano-americana pela Universidade Estatal de Ciências Humanas de Moscou. Possui mestrado (2006) e doutorado (2012) pela Universidade de São Paulo em Literatura e Cultura Russa. Atualmente é bolsista de pós-doutorado pela CAPES. É tradutora e pesquisadora de obras de Iúri Lotman, Mikhail Bakhtin, Pável Medviédev, Piotr Bogatyriov e Roman Jakobson, entre outros.
ELENA DULGHERU Romena. Doutora em Artes Cinematográficas pela Universidade I. L. Karandjale, em Bucareste. Atua como crítica de cinema, ensaista e tradutora. Dentre suas publicações destacam-se Tarkovsky. Film as a Prayer (Arca Invierii, Bucharest, 2002), and The Ladder of Heaven in Cinema. Kusturica, Tarkovsky, Parajanov (Arca Invierii, 2011).
ERIVONEIDE BARROS Brasileira. Pesquisadora, mestranda junto ao Programa de Literatura e Cultura Russa (FFLCH/USP) e especialista em Psicopedagogia Clínica. É coordenadora de área (línguas) e leciona literatura e língua portuguesa, em instituições de ensino, desde 2006.
FABIOLA NOTARI Brasileira. Doutoranda junto ao Programa de Literatura e Cultura Russa (FFLCH/ USP) e mestre em Poéticas Visuais pela Faculdade Santa Marcelina (FASM/ASM). Leciona História da Fotografia e Fotomontagem no curso superior de Fotografia no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, instituição onde se bacharelou em Artes Visuais. Coordena o Grupo de Estudos Livros de artista, livros-objetos: entre vestígios e apagamentos. Realiza e expõe trabalhos de artes visuais, no Brasil e no exterior.
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IRENE MACHADO Brasileira. Professora Livre Docente da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e do PPG em Meios e Processos Audiovisuais. Pesquisadora do CNPq (PQ - 1D) no campo da Semiótica da Comunicação na Cultura.
KÁTIA KUWABARA Brasileira. Fotógrafa, com trabalhos profissionais nas áreas de arquitetura e artes cênicas. Formada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Mackenzie, encontra na fotografia seu trabalho e o suporte de inquietudes pessoais. Com participações em exposições no Brasil e exterior, atualmente desenvolve experimentos utilizando as linguagens de fotografia, performance e música em intervenções artísticas.
LUIS FELIPE GURGEL RIBEIRO LABAKI Brasileiro. Formado no Curso Superior do Audiovisual da ECA-USP, onde atualmente desenvolve sua pesquisa de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais sobre os escritos do cineasta russo Dziga Viértov. Atua como diretor, montador, compositor de trilhas sonoras e tradutor de língua russa. São Paulo, SP, Brasil.
NATALIA QUINTERO Colombiana. Tradutora de russo e espanhol, formada em Estudos Literários pela Universidade Nacional da Colômbia, mestre em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e doutoranda do programa de Pósgraduação em Literatura e Cultura Russa da mesma universidade, onde desenvolve uma pesquisa dedicada aos diários de Liev Tolstói.
NATHALY FELIPE FERREIRA ALVES Brasileira. Licenciada em Letras (FSA), pós-graduada em Literatura pela PUC/SP. É coordenadora de área (português) e corretora de redação do Colégio Franciscano Pio XII. Leciona literatura e língua portuguesa na rede municipal de ensino de São Caetano do Sul.
NEIDE JALLAGEAS Brasileira. Pós-doutoranda junto ao Programa de Meios e Processos Audiovisuais (ECA/USP, bolsa CNPq). Pós-Doutora junto ao Programa de Pós-Graduação em Cultura e Literatura Russa (FFLCH/USP, Bolsa Fapesp), com estágio no Centro Eisenstein de Pesquisa e Museu de Cinema Russo em Moscou (Bolsa BEPE-Fapesp). Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) com tese sobre Andrei Tarkóvski. Mestre em Estética do Audiovisual (ECA-USP), traduziu um conto de Clarice Lispector para a linguagem do vídeo e da fotografia, trabalho que se encontra em acervos públicos (Mam-SP, Coleção Pirelli-Masp, Sesc-SP e MAC/USP). Traduziu, com Anastassia Bytsenko, o livro A perspectiva inversa, do filósofo russo Pável Floriênski (Editora 34).
OLEG ARONSON Russo. Graduado no Departamento de Matemática Aplicada do Instituto de Moscou de Engenharia Ferroviária. Em 1997 defendeu sua dissertação de mestrado, concentrada em uma abordagem filosófica para a análise do cinema. Atualmente é pesquisador associado sênior do Instituto de Filosofia da Academia de Ciências da Rússia. Suas principais áreas de interesse são a filosofia contemporânea, as teorias do cinema, teoria da mídia, a filosofia da matemática. Em 2008 foi laureado com o Prémio Andrei Biély (categoria teoria). Entre suas publicações destacam-se Metacinema (2003); A Imagem comunicativa. Cinema - Literatura - Filosofia (2007) e Além da imaginação. Filosofia Contemporânea e de Arte Contemporânea (2009) (co-autoria com Helen Petrovsky).
PAULO ANGERAMI Professor do Curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Uberlândia. Realiza doutorado em Artes Visuais na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. É mestre em Comunicação e Semiótica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, graduado em Artes Plásticas na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.
TIEZA TISSI Brasileira. Atriz e professora de teatro, mestre em literatura e cultura russa pela USP. Tradutora da língua russa e pesquisadora de teatro. Traduziu diretamente do russo as partituras de Stanislávski e pesquisa a relação entre as formas poéticas deste com as de Anton Tchekhov.
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Conteúdo não creditado no texto Dimitri Gutov Cercas em Kuzminki Série fotográfica Nossa Senhora orando Metal soldado 150 x 80 x 35 cm Edith Derdyk e Katia Kuwabara ATILHO Desmontagem da instalação ARCADA. Edith Derdyk, 2013. Prêmio Funarte Artes Visuais, Galeria Mario Schenberg, SP. Fotografias de Katia Kuwabara Luis Felipe Labaki O Pracinha de Odessa pág. 215: 00:12:45:00, 00:12:47:20, 00:12:54:05 pág. 216 e 217: 00:17:42:05 pág. 218 e 219: 00:13:00:06 pág. 220 e 221: fotografia de Luis Felipe Labaki pág. 222 e 223: 00:11:24:19 pág. 224 e 225: 00:16:03:06 pág. 226 e 227: fotografia de Ricardo Miyada
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RUSSIA
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ISSN 2237-2105