cadernos kinoruss 3 SOKUROVIANAS II

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kinoruss

cadernos de pesquisa ano 2 n. 3 2012

SOKUROVIANAS Hist贸ria e Poder


VIDA CINEMA SOK HUMANO

PODER

HISTÓRIA


ÚROV


EDITORA RESPONSÁVEL

Neide Jallageas

PRODUÇÃO EDITORIAL

Erivoneide Barros Fabiola Notari Neide Jallageas Tieza Tissi

PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS E REVISÃO

Erivoneide Barros

REVISÃO

Tieza Tissi

PROJETO GRÁFICO

Fabiola Notari

GP E.XXI

Breno Morita Erivoneide Barros Fabiola Notari Juliana Rosa Monica Berto Neide Jallageas Tieza Tissi

COLABORADORES

Ademir Maschio Ana Paula Tósca Anastassia Bytsenko Birgit Beumers Bruno Barretto Gomide Daniela Mountian Elena Vássina Jerusa Pires Ferreira Jorge Schwartz José de Quadros José Manuel Mouriño Julia Mykaelian Lara Souto Santana Lúcia Monteiro Marcelo Monzani Marcos Kahtalian Nancy Condee Paulo Pina Rodolfo Caesar Rosa Esteves Sônia Branco Vera D Horta

APOIO

SUPERVISÃO DE PROJETO

Arlete Cavaliere http://www.kinoruss.com.br Os cadernos de pesquisa kinoruss constituem-se em publicação eletrônica não comercial, semestral, editada pelo Grupo de Pesquisa E.XXI [GP E.XXI]. As opiniões expressas em seu conteúdo são de responsabilidade de seus respectivos autores. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio, sem a prévia autorização. Doações de materiais relevantes sobre o cinema russo, colaborações, sugestões e dúvidas poderão ser encaminhadas para kinoruss.cadernos@gmail.com.














EDITORIAL

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jogos de armar josé de quadros

03

ANOTAÇÕES

21

As distorções em Fausto como desafio à ordem geral: ensio sobre o poder

mônica berto | tieza tissi

E nada mais: a construção de um discurso poético em Aleksandr Sokúrov erivoneide barros | fabiola notari

23 39

O conflito como estratégia de construção em Sonata para Hitler

breno morita | juliana rosa

57

Taurus: um filme onde a cor é procedimento para reconhecer a História neide jallageas

95

INTERSECÇÕES

97

jerusa pires ferreira

73

Sokúrov e seu Fausto autoral o sonho do soldado: incursão histórica e estética em torno da figura do militar na obra de Sokúrov

103 marcos kahtalian

Retrospectiva de Leningrado (1957-1990), de Aleksandr Sokúrov: a busca por uma forma transitória, ou a nostalgia do presente

119 lúcia ramos monteiro

Aleksandr Sokúrov: Fausto (Faust, 2011)

139 nancy condee

David Vigódski: a voz de uma biblioteca

149 bruno barretto gomide

fragmetos de Elegia de uma Viagem

161 fabiola notari | daniela mountian | rodolfo caesar

ensaio Lasar Segall 167 neide jallageas | fabiola notari 185

COMPLEMENTAÇÕES



16

EDITORIAL Os cadernos de pesquisa kinoruss chegam ao seu terceiro número trazendo novamente um dossiê sobre a obra de Aleksandr Sokúrov. Se o segundo número dos cadernos, e primeiro dedicado a este cineasta, introduziu a sua produção enlaçada ao Oriente e, mais especificamente, ao Japão, agora buscamos adentrar, também de forma introdutória, o vasto universo no qual Sokúrov trabalha de forma mais constante e punjente, enveredando na difícil trama entre História e Poder. Pode-se dizer que esse vem sendo o núcleo central de sua fértil produção cinematográfica, desde o início. O que poucos sabem, pois sequer consta no site oficial do cineasta, é que antes mesmo de ingressar na poderosa escola de cinema VGIK, em Moscou, por onde passaram Eisenstein e Tarkóvski, dentre outros, Sokúrov iniciou seus trabalhos na Televisão de Górki, ao mesmo tempo em que se graduava em História. Essa foi sua primeira escola de cinema, onde iniciou como assistente e depois realizou trabalhos de caráter documental que já apontavam para sua produção futura. Com essa breve nota biográfica, gostaria de sublinhar que a assim denominada Tetralogia do Poder constitui apenas uma parte pequena - de uma extensa filmografia dedicada tanto ao Poder quanto à História. Essa edição do kinoruss, a exemplo das duas primeiras, empenha-se por oferecer visibilidade às investigações que vem sendo realizadas pelo GP E.XXI (Grupo de Pesquisa Eisenstein no Século XXI) que, dessa vez, dedicou-se aos pares, a determinada obra, com excessão dessa editora que assina um texto solo. Outro importante objetivo do kinoruss, que é o diálogo com pesquisadores externos ao grupo, também foi contemplado, bem como a iniciativa de apresentar projetos artísticos que se aproximem ou mesmo abracem o trabalho do cineasta em pauta. As Anotações agregam o conjunto de trabalhos do Grupo de Pesquisa E.XXI. O processo de escrita foi dinâmico, fértil e durou meses. A metodologia eleita foi a troca, entre duplas, do conhecimento adquirido no processo de pesquisa. Assim, temos três textos de três duplas de pesquisadores que elegeram livremente o filme e a abordagem teórica sobre os quais se debruçariam. Durante os meses de trabalho, os textos foram sendo escritos e colocados em discussão, coletivamente, em reuniões semanais, até atingirem o seu ponto final. O resultado desse work in progress é apresentado a seguir.


17 As distorções de Fausto como desafio à ordem geral: ensaio sobre o poder foi o título eleito por Mônica Berto e Tieza Tissi que propuseram discutir as anamorfoses presentes no último filme de Sokúrov, pautando-se pelo ensaio do filósofo russo Pável Floriênski sobre a construção do olhar e a significação no mundo através das artes sob as regras de perspectivas diferentes e, por vezes, complementares, a linear e a inversa. Esses procedimentos, demonstram as pesquisadoras, articulam um desafio à história tradicional e, portanto, a um poder instituído e autor dessa mesma história. Erivoneide Barros e Fabiola Notari ocuparam-se de um filme pouco conhecido dos brasileiros que integra um conjunto de trabalhos de Sokúrov, retidos nas prateleiras da Lenfilm, no início dos anos 1980, até que os ventos da pierestróika permitissem sua finalização e exibição. Trata-se de I Nitchevó Bolshe, traduzido como E nada mais. Classificado como documentário, esse filme é riquíssimo em sua montagem realizada através de velhos filmes dos arquivos sobre a Segunda Grande Guerra, a qual os russos nomeiam de Grande Guerra Patriótica. As autoras discutem a pluralidade de vozes que se articulam no filme através da presença de um sujeito lírico e investigam a intersecção de tempos, principalmente à luz dos conceitos de voz off e de montagem intelectual, concebida por Eisenstein enquanto elementos de sintaxe no cinema, remetendo, ainda, a pouco conhecida e raramente estudada Esfir Shub, cineasta soviética de origem ucraniana, pioneira dos filmes de compilação e com quem o próprio Eisenstein estagiou quando se iniciava no cinema. Pouco antes de E nada mais, e com o mesmo destino imediato da prateleira, Sokúrov realizou Sonata dlia Guítlera, ou, em português, Sonata para Hitler. Trata-se de um curta, de inequívoco parentesco com Moloch, que seria realizado vinte anos depois, em 1999. Desse peculiar discurso cinematográfico, ocuparam-se Breno Morita e Juliana Rosa. Demonstrando, através de cuidadosa decupagem, aspectos da montagem que retomam o conceito de conflito, elaborado por Serguei Eisenstein. Os autores ainda desdobram e aprofundam, por meio da análise de um trecho desse filme, os estudos sobre a relação entre representação (izobrajénie) e imagem (obraz), na teoria eisensteiniana, inicialmente explorados por Morita no segundo número de kinoruss. Encerrando o conjunto de textos do GP E.XXI é Taurus que é discutido por essa editora, sob o ponto de vista do deslocamento semântico da cor, efetuado por Sokúrov como um gesto de interferência denominado kinoglásni, procedimento desvelador do que se ocultava através da estética do Realismo Socialista. Aspectos da fotografia de Taurus são colocados em contraponto, principalmente com o filme A Queda de Berlim, de Mikhail Tchaurelli, obra emblemática do período stalinista. Trata-se de uma primeira iniciativa de trazer à tona a hipótese de que a memória russa recente, quando retomada nos filmes de Sokúrov, coloca em cheque os jogos de poder do período soviético sinalizando criticamente as implicações éticas na produção estética em regimes totalitários. As contribuições de colaboradores, em diálogo com o GP E.XXI, estão reunidas na sessão Intersecções, aberta com a exclusiva e poética reflexão de Jerusa Pires Ferreira, que há muitos anos se dedica ao estudo de Fausto e suas múltiplas manifestações culturais. A pesquisadora detém-se na figura de Mefistófoles e explora a profusão de contornos no Fausto desenhado por Sokúrov, enlaçando-o com o Fausto de outros autores, da literatura e ainda do cinema, como o de Manuel de Oliveira, deliciosa versão que, não sem uma boa dose de ironia, o cineasta português nomeou de O Convento.


18 A seguir, é o texto de Marcos Kahtalian que nos instiga a pensar ou a colocar em dúvida, a pertinência de classificar a obra de Sokúrov em ficção e não ficção. E o faz analisando a representação da figura do militar, do soldado, presente em toda a história russa e em grande parte da filmografia do cineasta. O autor problematiza, sob rico ponto de vista, o tratamento fílmico singular que Sokúrov dedica ao se aproximar de temas históricos, familiares e políticos, outra classificação que Kahtalian coloca em questão. Lúcia Monteiro apresenta, em texto originalmente em francês, traduzido para o português pela própria autora, a análise que realiza da série Retrospectiva de Leningrado (1957-1990), considerando as interferências digitais produzidas por Sokúrov, em material de arquivo, composto por cinejornais, compilados a partir da recolha nos Estúdios de Filmes Documentários de Leningrado (EFDL). Monteiro busca compreender esse trabalho à luz do momento em que foi finalizado por Sokúrov, justamente quando da transição do regime político, com a dissolução da União Soviética e encerramento dos cinejornais. Ainda no conjunto Intersecções comparece o texto de Nancy Condee, sobre Fausto, originalmente publicado na revista KinoKultura, em inglês, aqui traduzido por Breno Morita. A autora pressupõe a ruptura de Fausto com os outros filmes da Tetralogia do Poder e o aproxima de Arca Russa, buscando estabelecer alguns parâmetros para que se compreenda Sokúrov como um cineasta russo que ultrapassou as fronteiras de seu próprio país com uma linguagem cinematográfica única e a fina habilidade de reunir talentos para realizar trabalhos artísticos de valor duradouro. Publicando essa tradução, o kinoruss inaugura um diálogo colaborativo com o KinoKultura, por meio de Condee e de sua editora, Birgit Beumers. E para pontuar a linha que descreve o círculo das Intersecções, Bruno Barretto Gomide nos conduz, através da saga dos arquivos do tradutor, escritor e intelectual russo David Vigódski, ao contexto de Leningrado, ao tempo em que a cidade foi bloqueada pelos nazistas, fato tantas vezes presente nos filmes de Sokúrov de forma elegíaca. E de início, o pesquisador já nos provoca com o título de seu artigo: A voz solitária de uma biblioteca, referência indubitável ao polêmico e censurado filme de Sokúrov A voz solitária de uma pessoa, motivo de sua transferência de Moscou a Leningrado no final dos anos 1970. Além de trazer informações inéditas sobre um importante intelectual russo do período da primeira metade do século XX, Gomide expõe a travessia de uma biblioteca que sobreviveu, por milagre , tanto à prisão política de Vigódski, quanto ao devastador cerco de Leningrado, para nos alcançar nos dias de hoje, iluminando, como faz Sokúrov com seus filmes, um passado tão sombrio quanto historicamente esclarecedor. Relevante ainda porque Vigódski foi tradutor de obras latino-americanas, de autores como Mário de Andrade e José Lins do Rego e de uma antologia de poesia brasileira, além de ter recepcionado Tarsila do Amaral e seu marido, quando em visita à União Soviética, e mantido correspondência com brasileiros durante um bom período. A aproximação com a América Latina, e mais propriamente com o Brasil, encontra ressonância ainda, no kinoruss, não apenas na travessia de uma biblioteca que depois de quase um século apresenta a potência do diálogo entre diversas línguas e culturas, como a de Vigódski. É Sokúrov também quem nos estimulou a pensar nas fronteiras, muitas vezes, desesperadamente atravessadas como fuga derradeira rumo à possibilidade de reconstrução, fato que iria repercutir em uma obra realizada por Lasar Segall, pintor nascido no Império Russo, no final do século XIX e radicado no Brasil a partir dos anos 1920.


19 Uma sonoridade especial pontua essa passagem do caderno e está acessível em um clique. Trata-se da composição do músico brasileiro Rodolfo Caesar, realizada especialmente para esse número. Ela introduz os frames do filme Elegia da Travessia e breve monólogo de Sokúrov, traduzido por Daniela Mountian, sobre o poder daqueles que detém o direito de ir e vir, que determina muitas vezes não apenas a viagem ou o regresso, mas o destino de muitas vidas. Entre a respiração opressa de Sokúrov, diante dos guardas de fronteiras que exigem seu passaporte, nos poucos frames do filme Elegia da Travessia, e os carimbos no passaporte russo de Lasar Segall, muitos anos se passaram. Entre Sokúrov e Segall os desenhos desse último, da série Visões de Guerra, atravessam espaços e tempo tão distintos, quanto são comuns a ambos a memória de dores e horrores em trágicos períodos. De Segall, também apresentamos duas cartas que atravessaram o Atlântico, trocadas com seu amigo russo, o também pintor Vassíli Kandinski. Registros esses que poderiam estar inseridos em um dos filmes de Sokúrov. Outro percurso, de um canto a outro do oceano que separa o Brasil da Europa, com equivalente potência poética, é o conjunto de pinturas que abrem o caderno e que integram a série Jogos de Armar, do artista brasileiro José de Quadros, há muito radicado na Alemanha. O artista utiliza, como suporte, jornais germânicos de propaganda nazista, material histórico que sobreviveu por quase oitenta anos, e que, quando chegou às mãos de Quadros, sobreviveu ainda ao incêndio que devastou o ateliê do artista, em Kassel. Camadas de resina e tinta branca velam partes dessas estranhas telas, sobre as quais se redimensionam animais e pequenos insetos desenhados em sépia. A sensibilidade do artista em reescrever, através dos desenhos, tão estranha fauna, propõe ao público uma reflexão sobre a retomada da prática medieval de escrever alegorias utilizando representações de animais, um mundo imaginado que ficou conhecido como bestiário. Resta a dúvida de quem afinal seriam as bestas e a certeza de que o horror nazista não é apenas imaginação. E ainda que não tenha sido presentificada aqui, em momento algum, a travessia de Walter Benjamin paira sobre esse número como um cristal. Ele que fez de sua morte não um ponto final, mas uma passagem para pensarmos e fazermos (ou não) algo, talvez o impossível, dos fragmentos que nos foram legados, cacos, farelos de história, apagamentos de memórias, desenhos de várias instâncias de poder.


20

ao lado

Vozes espirituais. (SOKĂšROV, 1995, 00:19:01)



ANOTAÇÕES



This essay discusses the nature of challenge to the

Este ensaio discute a natureza do desafio ao poder que

power on Faust, film directed by Alexander Sokurov as

permeia o filme Fausto, dirigido por Aleksandr

part of the so called tetralogy of power. Based on the

Sokúrov, enquanto parte da, assim denominada,

concept of reverse perspective developed by the

tetralogia do poder. Partimos da noção de perspectiva

Russian philosopher Pavel Florensky, we consider that

inversa, estudada e desenvolvida pelo filósofo russo

the anamorphic images wisely constructed and

Pável Floriênski, para propor que a presença de

distributed along Faust are in aesthetic procedure

imagens anamórficas, habilmente construídas e

whose challenging nature that challanges the

distribuídas ao longo de Fausto, constitui-se em

established order (linear perspective) enlarging the

procedimento estético cuja natureza que desafia a

discussion of power that permeates the whole tetralogy

ordem estabelecida (perspectiva linear) estende-se à

of power.

discussão sobre o poder que perpassa toda tetralogia.

As distorções em Fausto como desafio à ordem geral: ensaio sobre o poder Mônica Berto | Tieza Tissi (1) Um dia na vida: a representação histórica na tetralogia 'do poder' de Sokúrov. Tradução nossa. (2) Especialista em história russa e soviética, e Professora Doutora na Universidade de Vermont. (3) Postmodern historical film. (4) A historiadora usa o termo inglês postmodern history, que manteremos literalmente traduzido por história pósmoderna, sem entrarmos na discussão sobre história e historiografia que, não só foge ao tema do ensaio, como está

além

especialidade.

de

nossa

Em artigo intitulado A Day in the life: historical representation in Sokurov's 'power' tetralogy (1), Denise Youngblood (2) discute o modo como os três primeiros filmes da chamada Tetralogia do Poder, de Sokúrov, desafiam a história, a qual denomina tradicional . A historiadora considera que Moloch (Molokh, 1999), Taurus (Teliéts, 2000) e O sol (Solntsié, 2004) constituem exemplos de filmes históricos pós-modernos (3), que adotam um procedimento análogo ao da história (4) pósmoderna. A argumentação de Youngblood gira em torno da diferenciação entre a história tradicional (moderna) e a história pós-moderna , considerando como fundamental diferença entre as duas concepções de história a qualidade da primeira em apresentar eventos e pessoas, enquanto a segunda representaria eventos e pessoas. O importante é a prerrogativa de que a história pós-moderna é compreendida como um processo de construção cultural (YOUNGBLOOD, 2011, p.123). Para analisar os três filmes de Sokúrov, Youngblood desenvolverá longamente a tese dos historiadores Robert Rosenstone e Hayden White, que aproximam a história pósmoderna e o filme histórico pós-moderno. A nós interessa não o caminho dessa aproximação, mas, partindo dela, observar como o cineasta (também historiador de formação), representando os personagens Hitler, Lênin/Stálin e Hirohito, desestabiliza o ponto de vista histórico dominante sobre os personagens e sobre os episódios aos quais estiveram ligados, construindo personagens extremamente humanizados, que destoam dos contornos míticos que a história tradicional lhes confere. Sokúrov traz seu ponto de vista ou perspectiva de personagens e fatos históricos, não afirmando uma maneira de mirar como estes se apresentam, mas abrindo possibilidades de perspectiva. Desse modo, desconstrói a ideia totalitária que haveria na verdade dos fatos apresentados pela história

24


25 haveria na verdade dos fatos apresentados pela história tradicional. Quando Youngblood escreve seu artigo, Fausto (2011) ainda não fora lançado, portanto não o inclui em sua tese, embora considere que isso não fosse necessário para concluí-la. Fausto figura a mesma galeria de personagens, ao lado de Hitler, Lênin/Stálin e Hirohito. Mas é claro que há uma diferença contundente entre o Fausto de Goethe e os demais personagens da tetralogia, conforme observa o teórico Francesco Verri, autor do ensaio La banalità del potere. Il quarto cerchio di Aleksandr Sokurov:

(5) Dichiarato dal regista già nei titoli di testa come quarto tassello della saga sul potere, Faust si trova quindi in compagnia di Hitler, Lenin e Hiroito, protagonisti assoluti della fino ad allora 'trilogia' sokuroviana. Lo scarto è evidente: i tre dittatori del novecento sono immersi in questione e problematiche di natura 'politica' alle qualli devono sottostare e sottomettere le loro instanze individuali. Il libero uomo di scienza vuole fuggire dalle convenzioni e dalle pastoie della vita 'normale', e per far ciò è disposto a stipulare il famoso contrato (VERRI, 2012, p. 114).

Declarado nos créditos, pelo diretor, como o quarto filme da saga sobre o poder, Fausto encontra-se, portanto, em companhia de Hitler, Lênin e Hirohito, protagonistas da até então 'trilogia' sokuroviana. A diferença é evidente: os três ditadores do século XX [enquanto figuras políticas] estão imersos em questões e problemáticas de ordem 'política' às quais as suas instâncias individuais devem se subjugar e se submeter. O homem livre da ciência almeja fugir das convenções e das amarras da vida normal e para isto está disposto a contratar o famoso pacto (5) (2012, p.114).

Ao humanizar os três personagens históricos que estão entre as mais importantes figuras políticas do século XX, Sokúrov desafia a perspectiva da história tradicional que os coloca como grandes protagonistas totalitários. Hitler, por exemplo, hipocondríaco, incrivelmente autocentrado, é cercado por pessoas dispostas a concordar incondicionalmente com suas ideias, por soldados e empregados para lhe servir e por milhares de soldados (como afirma a personagem) dispostos a cumprir qualquer ordem sua. Ou seja, há, no filme, a representação de um contexto social que permite a atuação de Hitler. Lênin e Hirohito (seu poder divino é reconhecido e endossado por seus súditos) também contam com apoio social; são considerados grandes homens (Hirohito descenderia diretamente da linhagem dos deuses), mas Sokúrov conferelhes corpos humanos extremamente falíveis, com doenças, suores, tiques nervosos. Essa visão humanizante dos três grandes líderes deslocaria um pouco a ideia de que o poder está com eles para a ideia de que o poder foi conferido a eles . Isso não os redimiria, pois o cineasta não chega a assumir uma nova perspectiva, [como, por exemplo, a da banalidade do poder], mas desestabilizaria a ideia de uma perspectiva absoluta. As máscaras sublimes que os protagonistas dos três primeiros filmes levam coladas à fronte, estão em constante tensão com aspectos grotescos, às vezes escatológicos, nos quais esbarram A ideia de desafiar uma perspectiva que se impõe como absoluta, de desestabilizar a perspectiva, permearia o último filme da tetralogia de uma maneira um pouco distinta dos três filmes anteriores. Ensaiaremos a inclusão de Fausto, na Tetralogia do Poder, a partir da lógica do desafio da perspectiva dominante. Trataremos de verificar a natureza do movimento de


26

(6) Cf. Houaiss, 2009.

Poder, a partir da lógica do desafio da perspectiva dominante. Trataremos de verificar a natureza do movimento de desconstrução de tal perspectiva em Fausto. Observaremos, no entanto, um deslocamento do que aqui chamamos perspectiva. Vimos tratando perspectiva, em diálogo com as ideias de Youngblood, como maneira de pensar, como forma ou aparência sob a qual algo se apresenta (6). Como modo de entender, de 'apresentar' os fatos (no caso da história tradicional, hegemônica) e como modo de 'representar' os fatos, com a autoconsciência de sua parcialidade (no caso da história pós-moderna e do filme histórico pós-moderno, donde inserimos os três primeiros da Tetralogia). Para Fausto, no entanto, trataremos de perspectiva como modo de representação espacial.

As anamorfoses em Fausto como desafio à ordem geral

(7) Com a tradução de Neide Jallageas

e

Anastassia

Bytsenko e apresentação de Jallageas para a Editora 34.

Consideremos o ponto de vista da análise estética. Especifiquemos. Tratemos das possibilidades de representação do espaço tridimensional para superfícies bidimensionais (quadro pictórico, plano cinematográficos etc.). Qual a perspectiva desafiada por Sokúrov em seu Fausto? Para ensaiarmos sobre este tema, convidamos a nos acompanhar, o filósofo, matemático e padre ortodoxo russo Pável Floriênski (1882-1937), cuja obra Perspectiva Inversa, recém-publicada em língua portuguesa (7), pode iluminar e orientar nosso caminho. É necessário recuarmos um instante. Para apresentarmos o modelo representacional que se encontra na câmera de cinema, seja ela digital ou de película, devemos voltar nosso olhar para o período que a História da Arte, ocidental e eurocêntrica, vem denominando Renascimento. Jacques Aumont e Michel Marie oferecem-nos, no verbete Perspectiva, um dos caminhos elucidativos para o campo do cinema. Segundo o Dicionário Teórico e Crítico do Cinema desses autores, a perspectiva é: (...) uma transformação geométrica, que consiste em projetar o espaço tridimensional em uma superfície plana segundo certas regras. (...) [sendo que] existe, geometricamente falando, um grande número de sistemas perceptivos (2009, p. 227).

Os autores vão além da geometria e seguem com a explanação sobre a perspectiva também no campo da ideologia, afirmando que a utilização de sistemas perspécticos parte necessariamente de convenções e explicam que: (...) o sistema predominante na pintura ocidental a partir do século XV (perspectiva artificialis) procura copiar a percepção natural (perspectiva naturalis) dando assim à visão um papel


27 de modelo para a representação. (...) [a perspectiva artificialis] foi interpretada como um sistema cuja centralização traduziria, figurativamente, a emergência do sujeito ao Humanismo; (...) idéia [sic] [que] foi muito retomada a propósito das técnicas fotográficas e cinematográficas, que utilizam, por construção, no mais das vezes, a perspectiva artificialis; (Idem, p.228).

Assim, tanto no panorama da arte como no do cinema, entendemos que, no mais das vezes , tem havido um esforço de tomar uma convenção de representação espacial, dentre várias outras, de maneira que passemos a crer nesse modelo representacional como aquele que melhor transpõe objetos tridimensionais para a bidimensionalidade do plano pictórico ou cinematográfico. A ideia de naturalismo perceptivo é então difundida e aceita (ainda hoje) para essa convenção que reina soberana desde o Renascimento. Tal crença no que se desenvolve e se afirma como naturalista e verossimilhante , herdada pelo cinema, remonta ao modelo de base cientificista que se dissemina pela arte e história da arte, desde o início da Idade Moderna. Desta forma, a perspectiva artificialis ou perspectiva linear, conforme passaremos a nomeá-la neste ensaio, tendo fundamentos nas ciências ditas exatas (geometria, ótica), justifica sua soberania e validade nas artes até meados do século XIX. É justamente no início da afirmação da perspectiva linear antropocêntrica, ou seja, na transição entre a chamada Idade Media e o Renascimento que se situa o Fausto de Goethe, escolhido por Sokúrov, como texto base para sua livre adaptação audiovisual. Introduzamos, neste momento, Pável Floriênski, cuja característica plural de sua formação e atuação, como pensador russo, transpõe-se ao saber que ele apresenta, em seu ensaio A Perspectiva Inversa, a contestação da unicidade, da hegemonia e da arbitrariedade tomada como verossímil da perspectiva linear. Floriênski, Oito anos antes da publicação do livro de Panofsky A Perspectiva como forma simbólica (1927) (JALLAGEAS, 2012, p.7), conforme pontua a pesquisadora e artista Neide Jallageas (1959-), engendra, em seu ensaio, uma desconstrução dos princípios representacionais, de caráter definitivo e canônico, atinentes à perspectiva artificialis ou perspectiva linear, cujo fundamento na geometria euclidiana, agrega o valor científico. O pensador russo não intenciona negar a perspectiva linear enquanto modo de representação artística e nem mesmo oferecer uma outra opção. Floriênski habilmente desconstrói crenças profundamente enraizadas na cultura artística até final do século XIX, evidenciando e comprovando, também de maneira exata e científica, quando assim o julga necessário, que O esquema da história da arte e da história do conhecimento em geral, (...) é, desde a época do Renascimento (...), invariavelmente o mesmo (FLORIÊNSKI, 2012, p.48). E é exatamente esse o modelo de perspectiva, de representação de espaço, fortalecido consensualmente e estabelecido como hegemônico por mais de quinhentos anos, no Ocidente, que acreditamos que Sokúrov desafia.

ao lado

Fausto. (SOKÚROV, 2011, 01:39:54)


28

(8) Professor do programa de Pós-graduação

em

O aperfeiçoamento da perspectiva linear como forma representacional alcançou mesmo nossa cultura visual contemporânea, apesar dos desafios e rupturas propostos pelas artes modernistas do início do século XX. Esse verdadeiro fascínio pelo que incontestavelmente se estabeleceu como forma verossimilhante de representar o mundo a nossa volta, arrebata o cinema em geral, conforme nos indica Arlindo Machado (1949-).

Comunicação e Semiótica da PUC-SP e do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA-USP.

Na fotografia, no cinema, na televisão e mesmo nos novos produtos audiovisuais propostos pela informática, há uma predominância quase absoluta da imagem especular [imagem perspéctica] consistente do século XV, da qual não conseguimos nos desprender mesmo depois de quase um século de desconstrução dessa imagem pela chamada arte moderna (1997, p. 228).

E, tentando diluir a crença de que as inovações tecnológicas do universo audiovisual de hoje seriam uma maneira de abalar esse monolito indissolúvel da representação perspéctica, Machado assevera ainda que: O mais sofisticado spot publicitário exibido na televisão, apesar de construído com recursos tecnológicos de última geração, (...) nada mais faz que celebrar uma iconografia historicamente datada, tomada como modelar e repetida até a exaustão pelas sucessivas gerações. (ibidem).

(9) Apesar de Floriênski não tratar diretamente do cinema, estende sua discussão à fotografia que deixa o modelo perspéctico como legado para o cinema. Além disso, é exemplar, na análise da perspectiva

inversa,

enquanto prática extensível ao cinema, a tese defendida, em 2007, por Neide Jallageas, intitulada Estratégias de construção no cinema de Andriêi Tarkóvski a perspectiva inversa como p r o c e d i m e n t o . http://univerciencia.org/ind ex.php/record/view/16596.

Floriênski inicia seu ensaio dedicado a resgatar a perspectiva inversa como possibilidade construtiva, que foi e ainda é praticada na pintura dos ícones russos (9), trazendo à tona o tipo de efeito perceptivo que pode ocorrer na observação de construções imagéticas que não se utilizam da perspectiva linear, mas de outros sistemas (por exemplo, imagens do período da Idade Média Oriental ou Ocidental): espanto, evidente incongruência , desenho primitivo , ignorante . No entanto, lembra o autor que toda essa provável percepção que tacha perspectivas outras, que não a linear, de ingênuas, débeis e defeituosas, ao mesmo tempo, deixa-se deliciar pela beleza dessas criações cujo valor artístico, no mínimo, tem sido revigorado, desde o início do século XIX (vanguardas artísticas) pelo sistema das artes (artistas, instituições, críticos e teóricos da arte, etc.). Em sua tese, Floriênski denomina perspectiva inversa um conjunto de procedimentos para a construção de imagem que enfatiza uma desobediência aos ângulos da perspectiva linear e atesta que seu uso por parte das artes é consciente e legítimo de uma estética fecunda (2012, pp. 1732). Como guia para a análise que propomos abaixo, sublinhamos a fala de Floriênski que afirma o impulso criativo ou vontade primordial como o cerne da criação artística, sendo ela perspéctica ou não:


29 Nossa tese (...) afirma que o motivo pelo qual há períodos da história da criação artística nos quais não se aplica o uso da perspectiva não se deve ao fato de que seus artistas figurativos não sabiam como empregá-la, mas porque decidiram ignorá-la. Ou, para sermos mais exatos, preferiram utilizar outro princípio de representação, distinto daquele da perspectiva (2012, p. 53-54).

Em Fausto, situado no tempo histórico da afirmação da perspectiva linear como a perspectiva , Sokúrov cria planos e sequências que a subvertem. Mais ou menos no mesmo período (início do Renascimento), um tipo de perspectiva também era experimentado, a anamorfose. Tal perspectiva exige que o observador se coloque em um determinado ponto de vista para enxergar uma imagem proporcionada. Esse ponto não coincide com o ponto de vista exigido pela perspectiva linear, ao qual estamos tão acostumados frontal e mais ou menos centralizado. Portanto, no caso da anamorfose, o que vemos, em geral, é uma imagem distorcida, a não ser que nos coloquemos no ponto exigido por ela. Sokúrov se aproveita da condição de imobilidade do espectador de cinema para oferecer uma série de sequências anamórficas.

(10) Fausto comenta, num momento

anterior,

que

aproximou sua cama da janela, tomando proveito da luz do dia que possibilita sua leitura. (11) Embora o nome da personagem, em alemão, esteja

grafado

como

“Margarete”, optamos por manter a tradução para o português de Jenny Klabin Segall, adotando a grafia de “Margarida”, conforme edição bilíngue, pela Editora 34 (2004). (N. da E.).

No fotograma (fotograma 4:53), os personagens encontram-se dispostos frente a frente, iluminados por uma luz que, segundo o próprio Fausto, vem da janela (10) e que incide nos dois personagens da esquerda para direita, iluminando com maior intensidade o rosto de Margarida (11) e as costas e nuca de Fausto. O que se segue a esse momento de encontro de olhares, inicia-se abruptamente, por um corte seco: uma sequência enquadrada em close-up, com uma imagem bastante distorcida do rosto de Fausto; tanto o close-up quanto a distorção borram as linhas de contorno mais próximas às bordas do plano, espalhando uma massa luminosa que se confunde com a pele do rosto de Fausto, além de curvarem visualmente uma viga de madeira à direita do quadro do fotograma (4:54). Seguindo adiante com a sequência (fotograma 4:59), o close-up e a distorção chegam agora a fundir o rosto de Fausto tanto com a madeira quanto com a luminosidade que vem de trás; o rosto dele, absorto pela superfície da imagem, é exposto de maneira a tornar visíveis suas partes que, no geral, não poderiam ser vistas simultaneamente, a não ser que se caminhasse em semicírculo frontal a ele para enxergar desde a orelha esquerda até a face carnosa à direita. O rosto de Margarida predomina no prosseguimento da sequência. Notamos que além do primeiríssimo plano, a distorção dá sua marca expressiva à passagem: os rostos são táteis , transbordam o quadro. Ressonando este recurso expressivo, há a luz que chega à sequência numa intensidade e numa qualidade que não passam despercebidas. A luz quente amarelo-alaranjada é vigorosa, febril e associa-se ao rosto de Margarida, envolvendo-o e tomando-o numa reflexão clara que eventualmente incidirá em Fausto. Tal luminosidade lembra ouro refletindo.


30


31

(12) nacht

Gibt mir eine ganze mit

...?

fala

do

personagem Fausto no filme.

Cada quadro, cada fotograma dessa sequência que discutimos, contrasta esteticamente com os quadros, sequencialmente, anteriores e posteriores. Marcando esse contraste, Sokúrov parece pontuar o desvio, a dissonância, o estranhamento que, esteticamente construído, coincide, do ponto de vista da narrativa, com o momento decisório para os personagens Fausto e Margarida: ele, desafiado face a face pela chance de satisfação carnal, encoraja-se, toma o poder de decisão para si e sabe o que pedir a Mauricius: uma noite inteira com Margarida (12); ela, mesmo ainda receosa e inquieta (pois foi ver Fausto para exigir explicações sobre a morte de seu irmão), também se revela (visualmente) satisfeita com o encontro (fotograma 5:55). Supomos que tal sequência antecipa, esteticamente, a inflexão da narrativa, ou seja, indica que novos caminhos (mais carnais e menos ideários) serão tomados pelo personagem Fausto que, finalmente, assinará o pacto. Isto se confirma na sequência do filme em que Fausto e Margarida consumam seus desejos. Um tipo semelhante de distorção anamórfica pode ser observado quando Fausto estende a mão para auxiliar Mauricius. Nesse caso, a quebra da expectativa da perspectiva linear alcança um efeito de ênfase ao gesto, ressaltando a carga simbólica da ação do personagem. Naquele momento, Fausto ainda não assinara o pacto com Mauricius, mas os dois estão estreitando seus laços. Este é o tipo mais recorrente de subversão às leis da perspectiva linear que encontramos no filme de Sokúrov. Uso alternante das construções perspécticas linear e anamórfica

Sokúrov, durante todo o filme, vai alternando planos distorcidos/anamórficos e não distorcidos. Essa dinâmica mantém ativa a percepção de que, na tela cinematográfica, há diferentes modos de representação do espaço. O leve estranhamento que a troca de perspectivas provoca impede que a percepção se acomode a um único modo de representação, exigindo atividade do espectador. Uma única forma de representação (seja distorcida ou não), durante toda a obra, mesmo que causasse inicialmente um estranhamento, acabaria por se naturalizar para o espectador. Desse modo, o audiovisual deixaria de provocar a percepção para a própria natureza da composição de sua linguagem. Essa é a proposta de Floriênski sobre a perspectiva inversa modos diferentes de representação do espaço podem coexistir numa mesma obra, de acordo com sua necessidade e com a vontade do artista. Entendemos essas construções anamórficas como um procedimento atrelado à perspectiva inversa, conforme definida por Floriênski que, ao provar em sua tese a falibilidade da perspectiva linear como representação naturalista do mundo, afirma sobre seus defensores:


32


33 É fácil reconhecer em tal artista perspectivista a encarnação do pensamento passivo e condenado a toda passividade, pensamento este que num instante olha o mundo como se estivesse espionando de maneira ladina, furtiva, através da fresta dos limites subjetivos, inanimado e imóvel, incapaz de capturar o movimento, mas que pretende que seu lugar e seu momento de espia tenham caráter divino e incondicional. Esse é o observador que de si próprio nada traz para o mundo, nem mesmo pode sintetizar todas as suas impressões isoladas, que sem entrar em contato vivo com o mundo e sem viver nele, não tem consciência da própria realidade, embora em seu arrogante isolamento do mundo julgue-se a última instancia por sua experiência furtiva construa toda uma realidade sob o pretexto da objetividade, encaixando-a dentro do próprio diferencial observado (FLORIÊNSKI, 2012, p.111-112).

Já Arlindo Machado, em seu livro A imagem especular, ressalta a importância da anamorfose como um procedimento ativo e crítico de representação: A anamorfose nasceu mais ou menos junto com o sistema projetivo renascentista e constitui 'uma contínua advertência dos elementos aberrantes e artificiais da perspectiva' (Baltrusaitis, 1977: 2). Na história da pintura ocidental, ela comparece em momentos isolados, corroendo a autoridade do olho hegemônico da representação através de um segundo olho, contraditório com a posição do primeiro. Reorganizando inteiramente a topografia da cena a partir de um novo ângulo de visão, esse segundo olho torna o lugar tradicional de mirada do quadro o ponto frontal um lugar precário para visualizar a cena (MACHADO, 1984, p. 79).

Essa dinâmica de construções perspécticas, no filme de Sokúrov, age como desafio à hegemonia da ordem estabelecida pela perspectiva linear, cientificamente monocular, que declara o seu único ponto de vista como derradeiro, verdadeiro, totalitário. As anamorfoses vêm não somente introduzir um novo olho, mas, junto a ele, novas possibilidades de pontos de vista, sejam eles óticos ou históricos (resgatando Youngblood). Ao analisar a pintura Os Embaixadores (1533), de Holbein (1497?-1543), que traz em sua composição as estruturas anamórficas e perspécticas em coexistência, Arlindo Machado conclui que O segundo olho introjetado na cena é o olho crítico, cuja função é desmantelar as certezas do sistema renascentista (1984, p. 79). Floriênski também, ao longo de sua tese, chama a atenção para a coexistência de diferentes perspectivas, mesmo em quadros de Leonardo ou de Rafael, concluindo que mesmo um mestre como aquele não se resignava à unicidade representativa perante as necessidades de sua obra. Os fotogramas seguintes, dispostos sequencialmente, evidenciam a alternância entre representações anamórficas e representações perspécticas tradicionais. Em Fausto, há outras tantas sequências construídas com alternância de perspectivas. Selecionamos duas delas como exemplos.


34


35 O olho crítico

O desafio ao poder consistiria em mostrar a perspectiva dominante como uma das perspectivas. Com esse ato, qualquer forma de poder é obrigada a flertar com sua finitude e ver desabar sua ilusão de hegemonia. A perspectiva linear (a qual aprendemos a denominar apenas a perspectiva, excluindo outras possibilidades de representação) relacionar-se-ia com o movimento da história tradicional, tal como colocada por Youngblood. Em sua tetralogia, Sokúrov questionaria a univocalidade/unifonia dessas perspectivas. Tanto quanto a história tradicional se fez dona de verdades únicas, fez-se da perspectiva linear a única maneira de representação do mundo condizente com a que se chamou de verdade . A escolha do Fausto de Goethe para o último filme da tetralogia resgata ainda algumas das tensões do fim da chamada Idade Média, momento em que o embate entre os pensamentos racionalista/humanista e mítico/teocêntrico encontre, talvez, o seu auge. É nesse embate, que se manifesta em Fausto, de Sokúrov, na tensão entre a perspectiva linear dominante (desde então) e a perspectiva inversa (e seus diferentes procedimentos de representação), que a arte desafia o poder. A arte pode propor novas maneiras de olhar. A incidência de personagens, não diretamente ligados à trama, observando de seu ponto de vista a ação principal, sugere-nos a insistência da ideia da adição de outro olho, como outra possibilidade perspéctica. Ao longo do filme, podemos pinçar exemplos de personagens capturados enquanto espiam, observam, assistem à ação principal. Esses personagens voyers, como denomina Youngblood, também aparecem nos três primeiros filmes da tetralogia, ressaltando a existência desses outros pontos de vista. Youngblood chama atenção para o papel da audiência como preenchedora dos espaços em branco da história, sugerindo que, quando Sokúrov introduz esses observadores ordinários, está, de alguma forma, abrindo possibilidades de pontos de vista sobre a história do poder. Assim como Lênin, em Taurus, o imperador [Hirohito em O Sol] está sempre sendo espreitado, seja pelo seu staff, por MacArthur, pelo intérprete ou pelos fotógrafos. Sem observadores, não há história, sem ninguém para ouvir a queda da árvore na floresta, o historiador necessita dizer que não ouve som de queda. Existem vários observadores neste filme, mas qual é a sua perspectiva das ações? Historiadores são treinados para analisar pontos de vista, mas qual é a visão quando o ponto não está claro? (YOUNGBLOOD, 2011, p. 134).

Os fotogramas abaixo ilustram alguns dos vários observadores diegéticos de Fausto. Esses observadores, que não chegam a ter grande saliência quanto a sua atuação na trama de Fausto, reforçariam, no entanto, a existência de segundos olhos ou de diferentes perspectivas ao longo do filme. Esses segundos olhos seriam metáforas da proposta multi-perspéctica adotada por Sokúrov como um procedimento agregador de possibilidades construtivas dentro e fora do espaço da representação.


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37 Fotogramas voyers

Num movimento ensaístico derradeiro, revelamos que o ensaio A Perspectiva Inversa, de Floriênski, foi por nós estudado e escolhido para embasar nossa argumentação sobre o filme Fausto, de Sokúrov, não somente pela importância teórica ou pelo desenvolvimento exímio e minucioso do raciocínio contestador de Floriênski, ao longo de seu ensaio, e, nem, muito menos, somente pelo adjetivo nacionalizante que acompanha o pensador russo coincidir com o do cineasta russo. Negar que todos esses porquês , em si, oferecem boas razões para nossa escolha, também não podemos... O que exatamente enseja e acentua nossa escolha de colocar em diálogo as contestações de Floriênski e Sokúrov? É a lição que assimilamos e desejamos retransmitir. Há uma notável semelhança entre os propósitos atribuídos ao ensaio de Floriênski cujo caráter contestador o levou à morte (apesar das contribuições que este realizou a favor de seus conterrâneos e de seus carrascos) e àqueles propósitos que aqui defendemos para o filme Fausto, de Sokúrov: a contestação de modos tirânicos, arbitrários de poder modos de ver, pensar, representar etc. Assim, em oposição a esses modos, tanto cineasta quanto pensador se colocam em defesa das possibilidades, da pluralidade dos modos - de ver, pensar, representar etc. Cantos às possibilidades , é como percebemos ambas as obras.


38 Bibliografia FLORIÊNSKI, Pável. A perspectiva inversa. Trad. Neide Jallageas e Anastassia Bystenko. São Paulo: Editora 34, 2012. Título original em russo: Obrátnaia perspectiva. HOUAISS. Dicionário eletrônico Houaiss. Objetiva, 2009. JALLAGEAS, Neide. A perspectiva violada. In: FLORIÊNSKI, Pável. A perspectiva inversa. Trad. Neide Jallageas e Anastassia Bystenko. São Paulo: Editora 34, 2012. Título original em russo: Obrátnaia perspectiva. MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas: Papirus, 1997. __________________. A ilusão especular. São Paulo: Brasiliense, 1984. PANOFSKY, Erwin. Perspective as simbolic form. Trans. Christopher S. Wood. New York: Zone Book, 1997. Título original em alemão: Die Perspective als symbolische Form. PEZZELLA, Mario. Apunti sul Faust. In: PEZZELLA, M.; TRICOMI, A. (org).: Il corpi del potere: il cinema di Aleksandr Sokurov. Milano: Jaca Book, 2012. VERRI, Francesco. La banalità del potere. Il quarto cerchio di Aleksandr Sokurov. In: PEZZELLA, M.; TRICOMI, A. (org).: Il corpi del potere: il cinema di Aleksandr Sokurov. Milano: Jaca Book, 2012. YOUNGBLOOD, Denise J. A Day in the life: historical representation in Sokurov's 'power' tetralogy. In: The cinema of Aleksandr Sokurov. London/New York: I. B. Tauris, 2011.



In this essay, we seek to analyze the film And

Neste ensaio, busca-se um percurso de análise do

nothing more, A. Sokurov, proposing the use of

filme E nada mais, de Aleksandr Sokúrov, em que se

voice off as an important language feature film to

propõe a utilização da voz off como um importante

constitute the filmic perception. For the theoretical

recurso da linguagem cinematográfica para a

approach, are used the concept of intellectual

constituição da percepção fílmica. Para a

montage of Serguei Eisenstein and practice of

abordagem teórica, são utilizados o conceito de

compilation film by Esfir Schub in the twenties.

montagem intelectual, de Serguei Eisenstein, e a prática de montagem de filme de compilação realizada pela cineasta Esfir Schub, na década de vinte.

E nada mais:a construção de um discurso poético em Aleksandr Sokúrov (1)

Erivoneide Barros | Fabiola Notari A arte é um dos órgãos do progresso humano. Por meio da linguagem, o homem permuta seus pensamentos. Por meio da arte, permuta seus sentimentos com os homens de seu tempo, igualmente com sentimentos das gerações passadas e futuras. Liev Tolstói

(1) Todas as traduções foram realizadas

pelas

autoras

Erivoneide Barros e Fabiola Notari com colaboração de Julia Mikaelian (língua russa). (2)

In.ANDRADE,

Carlos

Drummond. Sentimento do mundo. 1. ed. Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008. p. 6163 (Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros; v. 4). (3) Entende-se por sujeito lírico/eu lírico a voz que é responsável pela construção do discurso poético (poesia).

No poema A noite dissolve os homens (2), do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade (1902 -1987), publicado no livro Sentimento do Mundo, em 1940, o sujeito lírico estabelece uma reflexão metafórica sobre a guerra e sobre os impactos gerados por esta que afetam diretamente a vida dos homens, grupo de anônimos que se sintetiza nos espaços públicos e privados evocados nos primeiros versos do poema. As casas, as ruas, os campos tornaram-se espaços dominados pelo medo. Todavia o sujeito lírico (3) espera a chegada da Aurora, figura que personifica um momento de esperança e transformação. A contraposição das imagens da noite que desceu sobre os homens e a esperança da aurora, evocada na segunda parte do poema, em um processo de montagem, criam uma imagem do sentimento daqueles que viveram ou refletiram sobre as dores geradas pela guerra.

40


41 A noite desceu. Que noite! Já não enxergo meus irmãos. E nem tampouco os rumores que outrora me perturbavam. A noite desceu. Nas casas, nas ruas onde se combate, nos campos desfalecidos, a noite espalhou o medo e a total incompreensão. A noite caiu. Tremenda, sem esperança... Os suspiros acusam a presença negra que paralisa os guerreiros. E o amor não abre caminho na noite. A noite é mortal, completa, sem reticências, a noite dissolve os homens, diz que é inútil sofrer, a noite dissolve as pátrias, apagou os almirantes cintilantes! nas suas fardas. A noite anoiteceu tudo... O mundo não tem remédio... Os suicidas tinham razão. Aurora, entretanto eu te diviso, ainda tímida, inexperiente das luzes que vais acender e dos bens que repartirás com todos os homens. Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações, adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna. O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos, teus dedos frios, que ainda se não modelaram mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório. Minha fadiga encontrará em ti o seu termo, minha carne estremece na certeza de tua vinda. O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam, os corpos hirtos adquirem uma fluidez, uma inocência, um perdão simples e macio... Havemos de amanhecer. O mundo se tinge com as tintas da antemanhã e o sangue que escorre é doce, de tão necessário para colorir tuas pálidas faces, aurora.


42 Nas múltiplas imagens, apresentadas nas duas partes do poema, são justapostas construções em torno das três pessoas do discurso (quem fala, com quem se fala e sobre o que se fala). O poema inicia com a marcação da primeira pessoa ( Já não enxergo meus irmãos ); na segunda etapa do poema, é predominante a troca da posição do sujeito lírico que, aos poucos, passa a ocupar o lugar de segunda pessoa ( Aurora,/entretanto eu te diviso, ainda tímida ). Dos versos finais, emerge da estrutura poética uma fusão do sujeito lírico com os homens, irmãos, guerreiros a quem fez referência no início do poema ( Havemos de amanhecer ). Desse modo, o sujeito lírico surge como um catalisador de vozes pertencentes ao eu e ao outro , tornando-se um sujeito nós (coletivo) ao unir seus anseios e expectativas a de outros, permitindo que tais sentimentos sejam presentificados por aqueles que entrarão em contato com o poema, objeto artístico.

(4) Neste artigo, foi utilizada a versão

em

compilado

espanhol no

volume

intitulado Cinematismo. Os dados completos da obra estão disponíveis no final do artigo.

O teórico e semioticista Iuri Lotman (1922-1993), ao falar sobre a natureza da montagem cinematográfica, tal como é abordada na teoria do cinema soviético, lembra-nos de que a justaposição de elementos heterogêneos, seja por meio da oposição ou da integração, constitui uma lei geral da formação da significação artística (LOTMAN, 1978, p. 87). Portanto aparece em diferentes linguagens não se limitando à linguagem cinematográfica. Sob este prisma, o cineasta e teórico Serguei Eisenstein (1898-1948), no texto Pushkin montajista (4), aponta, a partir do princípio da montagem, que uma condição obrigatória para a composição da peça da montagem será que esta seja não simplesmente qualquer detalhe, mas o detalhe, o elemento que possui a qualidade de provocar, através de sua parte, a máxima sensação plena do todo (EISENSTEIN, 1982, p. 141). Desse modo, a exploração do tema pode ocorrer na relação entre detalhes de um plano em relação ao detalhe de outro plano, ou, de modo mais abrangente, na interação entre conjuntos de planos, tal como analisa Lotman (1978, p. 117118), para quem o tema é uma construção orgânica de uma imagem do mundo que se desloca de seu ambiente cotidiano para criar o texto artístico. Para exemplificar o tipo de interação mais abrangente, pensemos em uma sequência construída a partir da justaposição de planos gerais e planos médios, ou na intercalação sistemática do movimento da câmera em plongée ou contraplongée. Nesses casos, a forma contribui para a construção do tema, tal como ocorre no poema de A. S. Púshkin (1799-1837), analisado por Eisenstein, e no poema de Drummond, conforme demonstraremos abaixo. No poema de Drummond, a justaposição ocorre em dois níveis: na estrutura do poema e no tema abordado. Sobre a estrutura formal, o sujeito lírico divide suas reflexões em duas etapas. A primeira, constituída pelos vinte e quatro versos iniciais, traz a presença marcada da noite que ofuscou a todos e estabeleceu o medo. A forma utilizada para a construção do discurso artístico são os versos com métrica estabelecida, redondilha maior (versos com sete sílabas poéticas). Versos marcados pelo ritmo mais truncado, fruto das vírgulas e da


43 combinação de fonemas diversificados, mas com a predominância de sons labiais e labiodentais. Já a segunda parte do poema é construída com versos livres, sendo que o ritmo agora é marcado pela junção da fluidez dos fonemas sibilantes combinados com fonemas nasais. O leitmotiv da guerra e a maneira como este afeta a percepção do sujeito lírico são transmitidos por meio da forma, extrapolando as imagens metafóricas construídas ao longo do poema. Para tornar plena a compreensão da angústia que perpassa a observação do sujeito lírico, é necessária a relação entre a primeira parte do poema e a segunda. Em sua Estrutura da lírica moderna (1978), ao pensar sobre a construção da lírica de meados do século XIX, Hugo Friedrich, salienta que a poesia moderna não se preocupa mais com a mera observação dos fatos da realidade ou com a maneira que tais situações afetam a subjetividade do sujeito lírico. Para Friedrich, a poesia moderna almeja a transformação da sua matéria artística. (Idem, p. 17). De acordo com o crítico: Ela [a poesia moderna] prescinde da humanidade no sentido tradicional, da experiência vivida , do sentimento e, muitas vezes, até mesmo do eu pessoal do artista. Este não mais participa em sua criação como pessoa particular, porém como inteligência que poetiza, como operador da língua, com o artista que experimenta os atos de transformação de sua fantasia imperiosa ou de seu modo irreal de ver num assunto qualquer, pobre de significado em si mesmo (Idem).

Ao criar um objeto artístico que ultrapassa a vivência pessoal para encontrar no outro, leitor, nova significação, o artista rescinde com fronteiras de tempo e espaço, tornando sua obra universal. Assim, a poesia rompe com seus contornos rígidos, podendo oscilar entre o rigor da métrica e a fluidez dos versos livres, aparentando se diluir em meio aos fragmentos: O núcleo desta poesia quase não é mais de caráter temático, parece, antes, uma excitação efervescente. [...] ela não mais produz tessituras de sentido completo mas, sim, fragmentos, linhas truncadas, imagens agudas, perceptíveis aos sentidos, mas irreais; tudo isto, porém, de tal forma que, naquela unidade, vibra o caos que foi necessário para a unidade tornarse linguagem (FRIEDRICH, 1978, p. 60).

(5) Agostinho de Hipona nasceu

em

Tagaste,

na

província romana de Numídia. Entra para o clero, em 386, período em que desenvolveu seus estudos sobre a alma humana e a natureza divina.

O deslocamento do tempo e do espaço ou a sua condensação durante a contemplação da obra artística permite que o transformar a realidade por meio da poesia seja sempre presentificado no momento da leitura já que o leitor torna-se o principal cúmplice do trabalho do poeta. A proposição anterior nos faz lembrar a concepção de tempo tal como formulada por Santo Agostinho (354-430) (5), para quem o tempo é algo contínuo, portanto, indissolúvel, não há divisões entre passado/presente/futuro, simplesmente porque o passado e o futuro não existem, apenas o presente: Quando está


44 decorrendo o tempo, pode percebê-lo e medi-lo. Quando, porém, já tiver decorrido, não o pode perceber nem medir, porque esse tempo não existe (AGOSTINHO, 2004, p. 325). No momento em que o espectador interage com uma obra de arte, como a poesia, os diferentes tempos e espaços evocados por ela emergem, constituindo uma rede de intersecções no agora, conforme nos explica Santo Agostinho: Ainda que se narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não os próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígios [sic]. Por conseguinte a minha infância, que já não existe presentemente, existe no passado que já não é. Porém a sua imagem, quando evoco e se torna objeto de alguma descrição, vejo-a no tempo presente, porque ainda está na minha memória (AGOSTINHO, 2004, p. 326).

Dominique Combe, ao falar sobre o sujeito lírico, qualifica-o como pertencente ao tempo mítico, uma vez que as vivências do eu empírico, isto é, do poeta, ganham uma dimensão mítica. Desse modo, a principal consequência da 'mitificação' do 'eu' empírico é a abolição das fronteiras entre o passado e o presente a 'presentificação' do antigo [...] (COMBE, 2009-2010, p.125). Conforme salientamos anteriormente, as vivências do eu empírico, muitas vezes, fornecem matéria para a construção do discurso de uma entidade outra aqui denominada como sujeito lírico. Assim, na dialética entre a vivência real (empírica) e a vivência construída (poética) cria-se o objeto artístico. Entendemos que as mesmas premissas que surgem do estudo da poesia moderna e da teoria agostiniana podem ser encontradas na construção da significação fílmica tendo como base os recursos específicos da sintaxe cinematográfica. Enquanto linguagem, o cinema também pressupõe uma organização artística fundamental para a construção do discurso pretendida pelo cineasta. No momento em que o texto artístico é estruturado, o sentido ainda está por se construir, afinal, como defende o formalista russo Victor Shklóvski (1893-1984), a arte é um meio de experimentar o devir do objeto (CHKLÓVSKI, 1917, p.45). Na linguagem cinematográfica, Iuri Lotman (1978, p. 60) propõe que a base de significação do cinema encontra-se na organização dos elementos que compõe o seu discurso. Ainda que se narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não os próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígios [sic]. Por conseguinte a minha infância, que já não existe presentemente, existe no passado que já não é. Porém a sua imagem, quando evoco e se torna objeto de alguma descrição, vejo-a no tempo presente, porque ainda está na minha memória (AGOSTINHO, 2004, p. 326).

Como meio de organização de um discurso, a montagem revela, de modo profícuo, significações oriundas do processo de combinação, justaposição e sobreposição de imagens. É nessa articulação entre as potencialidades para organizar o discurso cinematográfico e as imagens de um passado presentificadas, tal como ocorre no poema de Drummond, que entendemos o contexto de produção do filme E nada mais (I Nitchevó Bolshe, 1982-1987), de Aleksandr Nikoláievitch Sokúrov (1951-). Toda escolha artística está subjugada a um ponto de vista conforme nos lembra Lotman (1978b, p. 50). Assim a informação mais essencial é a que consiste na escolha do tipo de linguagem artística (Idem). Tendo em vista que Sokúrov seleciona elementos


45 (6) Optamos por utilizar a nomenclatura

de

sujeito

lírico/eu lírico para nomear a figura

abstrata

que

normalmente, no cinema, é denominada como narrador, porque entendemos que o trabalho

realizado

audiovisuais específicos para construir um discurso em que as vivências de uma geração circulam entre o passado e o presente, buscar-se-á, neste ensaio, propor possíveis leituras decorrentes das articulações entre os componentes da linguagem cinematográfica e a maneira como o sujeito lírico (6), voz do discurso fílmico-poético, amplia-se até significar um grande e inclusivo 'nós' (COMBE, 2009-2010, p.124).

por

Aleksandr Sokúrov, neste filme, ultrapassa a estrutura

Organização de um discurso: algumas escolhas do cineasta

meramente prosaica de um relato histórico, já que seu trabalho com a composição formal propõe uma leitura crítico-reflexiva em que o procedimento de articulação d a

l i n g u a g e m

cinematográfica assemelhase a “um princípio poético” tal como

propôs

Victor

Shklóvski. (7)http://www.sokurov.spb.r u/index.html

ao lado

E nada mais. (SOKÚROV, 1982-89, 00:29:44, 00:49:24, 00:54:42, 01:10:32, 01:17:47, 01:20:57, 01:00:02, 00:59:55)

(8)

No filme E nada mais, a Segunda Guerra Mundial é o ponto de partida para as relações que o cineasta estabelece com outros períodos históricos, como a Revolução Russa e a Primeira Guerra Mundial. Para a construção da obra, o cineasta utilizou imagens de arquivos cinematográficos e de diferentes documentos históricos como fotografias, pinturas, selos e trechos de filmes documentais. O filme foi inicialmente encomendado para comemorar o Quadragésimo Aniversário da Vitória sobre a Alemanha Nazista, na chamada Grande Guerra Patriótica (Segunda Guerra Mundial), fato ocorrido em 09 de maio de 1945. Porém, depois de finalizado, o documentário não teve sua exibição permitida por conter, segundo autoridades da época, uma atmosfera trágica da guerra, conforme nos relata Aleksandra Tutchínskaia, no site oficial do cineasta (7). Sua exibição só foi permitida cinco anos depois, em 1987.


46

(8) Como o filme não está disponível comercialmente, utilizamos uma cópia, em DVD, do programa exibido pela televisão pública italiana RAI

(Radiotelevisione

Italiana). Na ocasião, foram exibidos, na sequência, os filmes Sonata para Hitler (Sonata dlia Guítlera, 19791989)

e

E

nada

mais,

portanto, a indicação de minutagem,

utilizada

na

legendas, equivale ao tempo total das duas obras.

Merece atenção o fato de haver essa divergência entre o filme esperado pelas autoridades e o objeto artístico apresentado pelo cineasta. Entende-se, neste ensaio, que tal resultado final é fruto de uma escolha de organização de discurso em que o cineasta não se deteve ao mero relato histórico ou a uma simples exposição dos fatos, mas buscou, na combinação de imagens, uma fenda por meio da qual fosse possível refletir sobre as motivações da Guerra. Esse nível de significação só é plausível porque o cineasta utiliza-se dos elementos da linguagem cinematográfica para criar uma dubiedade no discurso fílmico, conforme mostraremos adiante. Ao recuperar imagens de líderes importantes como Josef Stálin (1878-1953), Franklin Roosevelt (1882-1945) e Winston Churchill (1874-1965), com posicionamentos políticos tão distintos, mas unidos pelos mesmos interesses, ao menos momentaneamente, e registros de multidões que tiveram seus destinos marcados pela união desses três estadistas, o sujeito lírico, que relata os eventos históricos no filme E nada mais, reorganiza e ressignifica os documentos históricos selecionados propondo uma leitura reflexiva a partir do presente, assim como o sujeito lírico do poema A noite dissolve os homens, de Drummond. Para dar conta da pluralidade das vozes que o sujeito lírico evoca no filme, a retomada de procedimentos estéticos utilizados por cineastas, como Esfir Schub (1894-1959) e Serguei Eisenstein (1898-1948), durante a década de 20, na União Soviética, não pode passar incólume no processo de análise, aqui proposto.


47 Entende-se o filme de compilação, isto é, filme montado a partir de planos extraídos de outros filmes, como um possível meio para estruturar um princípio poético que dá conta do movimento do tema (EISENSTEIN, 1982, p. 215). O cineasta expande a sua leitura sobre os eventos históricos que envolveram a Rússia (União Soviética), nos últimos vinte e cinco anos, ao também selecionar outros documentos, como os já citados, para formar um conjunto que possa dar conta das diversas tensões geradas por esses eventos. (9) Shub inaugura sua carreira como cineasta com o filme A queda da Dinastia Románov (Padiênie Dinasti Románovikh, 1927). Para a construção

desse

filme,

foram utilizados materiais de cinejornais do período entre 1912 e 1917, conforme relata Jay Leyda (1971, p. 26). Neste filme, a cineasta desenvolve uma consciência de que os filmes

de

materiais

arquivo históricos

são e,

portanto, estão sujeitos a n o v a s

l e i t u r a s

e

interpretações; desde que compilados e submetidos a um processo de montagem que “não é uma simples sucessão de planos, nem mesmo uma soma de seus conteúdos, mas produz algo novo, algo original” (SHUB apud LEYDA, 1971, p. 27).

Para Esfir Schub (9), a quem o teórico Jay Leyda atribui a origem do conceito de filme de compilação, o papel do cinema era guardar as imagens não-encenadas dos fatos de um período a fim de que as gerações posteriores pudessem ter acesso à vida que realmente passou (SHUB, 1988, p. 187). Esfir Shub sugere a criação de uma montagem expressiva, isto é, uma montagem ideológica [que] visa a um ponto preciso político ou moral unindo imagens que não têm uma estrita relação causal ou temporal (Idem, p. 27). Desse modo, diferentes documentos, de diferentes épocas podem ser utilizados para a construção de um discurso, que suscita um tempo passado presentificado no momento da exibição do filme. Essa relação aparentemente ambígua entre o tempo e o discurso cinematográfico que se cristaliza no momento da exibição do filme é análoga ao pensamento sobre o tempo de Santo Agostinho: Existem, pois, estes três tempos [...]: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras (AGOSTINHO, 2004, p. 328). É nessa intersecção de tempos que entendemos o posicionamento do sujeito lírico na construção de E nada mais. Trata-se de um olhar presente que retoma lembranças do passado a fim de provocar uma reflexão sobre o futuro, por meio das imagens recolhidas. Tal fato que o torna um filme de compilação. Conforme explica Leyda, Marcel Martin, em uma pesquisa para compreender o conceito de filme de compilação, retoma os esforços de Eisenstein para definir uma dramaturgia da forma visual do filme tão regular e precisa quanto à existência da dramaturgia do argumento do filme (LEYDA, 1971, p. 27). Ainda que não tenha realizado filmes de compilação, Eisenstein propõe uma discussão em torno da composição plástica e da interação entre os planos, aspectos importantes na estruturação desse tipo de filme. Esse resgate é possível porque Eisenstein buscava compreender as potencialidades do cinema a partir dos meios que, segundo o cineasta, seriam essencialmente cinematográficos. De acordo com ele, tais recursos comporiam uma tentativa de sintaxe do cinema (EISENSTEIN, 2002, p. 60). O texto que aparentemente é utilizado por Martin como referência, Dramaturgia da forma do filme (1929), traz exemplos da obra do próprio cineasta em que as diversas


ao lado

E nada mais. (SOKĂšROV, 1982-89, 00:21:56, 00:28:00, 01:00:18, 01:00:54)


49 potencialidades na composição dos planos são exploradas. Tais processos de composição são considerados tanto dentro dos planos como na relação entre eles. De acordo com Eisenstein (2002, p. 58), ocorre uma relação dialética entre os elementos formais em que são estabelecidos os conflitos na construção da montagem intelectual. Além da superposição de movimento ótico (Idem, p. 64), que gera o conceito de imagem em movimento, é possível estabelecer o que o autor denomina de combinações emocionais , isto é, cadeias de associações psicológicas (Idem, p. 64), estabelecendo o conceito de dinamização emocional. Neste caso, há a liberação de toda a ação a partir da definição de tempo e espaço (EISENSTEIN, 2002, p. 65). Aqui a relação é puramente simbólica, já que dois fragmentos são justapostos independente da noção real de tempo e espaço que eles carregam. Nesse processo dialético, é um terceiro significado que emerge dessa relação. Sobre esse processo, Eisenstein afirma: o efeito emocional começa apenas com a reconstrução do evento por fragmentos de montagem, cada um dos quais vai criar uma determinada associação cuja soma será um complexo abrangente de sensação emocional (EISENSTEIN, 2002, p. 67). Assim, diferentes fragmentos de origens diversas podem ser combinados a fim de instituir um novo significado. O mesmo trabalho de montagem intelectual é realizado por Sokúrov em E nada mais. Ao recuperar a matéria-prima que foi desenterrada (LEYDA, 1971, p. 27) de diferentes fontes, enquanto processo de seleção e organização realizada por meio da montagem intelectual. Sujeito lírico: um elemento poético

Tal como apresentado ao lado, o sujeito lírico é um dos elementos audiovisuais do filme. Este surge como voz off, em um movimento de recorrer, organizar e transmitir comentários sobre os fragmentos fílmicos. É importante assinalar a diferença que há entre um som no cinema classificado como fora de campo e o denominado som off. No primeiro caso, a fonte [do som] é invisível num dado momento temporária ou definitivamente . Já o som off é aquele cuja suposta fonte não só está ausente da imagem, mas que é também não-diegética, ou seja, está situada noutro tempo e noutro lugar que não a situação direta evocada (CHION, 2008, p. 62). A partir dessa distinção proposta por Chion, percebe-se que a presença da voz off, sujeito lírico, supostamente é recurso da linguagem cinematográfica que contribui com a ambiguidade das imagens apresentadas, pois o sujeito lírico já detém o conhecimento sobre os acontecimentos, conhece todos os aspectos da história e de seus personagens, podendo descrever seus sentimentos e pensamentos, além de poder relatar eventos que ocorrem em locais distintos simultaneamente, assim como ações oriundas de diferentes épocas em uma mesma sequência. Portanto, sua presença não é neutra. Nessa primeira sequência selecionada para análise, destaca-se a construção metonímica de cenas que parecem construir um cenário de desolação diante dos efeitos devastadores da guerra. De acordo com Serguei Eisenstein, essa soma de detalhes é fundamental para a composição do tema: Já temos assinalado o feito de que a montagem é composta, em essência, não por detalhes mas por inumeráveis representações gerais acerca do objeto ou fenômeno, as quais, pela lei de parte pelo todo surgem a partir dos detalhes (EISENSTEIN, 1982, p. 141). Assim, o tema proposto não pode ser considerado apenas pela análise individual dos planos, mas deve ser considerado como um produto do todo. Nessa sequência, é estabelecida uma relação metonímica entre o que é dito e o que é mostrado. Enquanto cinco milhões e setecentos mil, número revelado pelo sujeito lírico, pode ser uma abstração numérica, a imagem de muitos seres humanos caminhando de um


50

Просчитанная ярость обрушилась на Советский Союз. Гибли окруженные армии, 5 миллионов 700 тысяч

Uma fúria calculada caiu sobre a União Soviética. Pereciam os exércitos cercados, cinco milhões e setecentos mil de nossos compatriotas saberão o que

наших соотечественников узнают, что такое плен в

é o cativeiro nesta guerra. Mais de metade deles

этой войне. Более половины из них погибнут.

perecerá.


51 lugar ao outro, de uma nada para outro, faz que o quantitativo torne-se qualitativo. Assim, os fragmentos remontados em intersecção com a voz do sujeito lírico aproximam o espectador de um tempo, agora distante, mas que, por meio da montagem intelectual, traz sensações e sentimentos que são experimentados no presente, no momento de contato entre espectador e filme.

(10) Grifo do original.

página anterior e ao lado

E nada mais. (SOKÚROV, 1982-89, 00:34:06 a 00:34:57)

No início da sequência, há pessoas e animais se movimentando em diagonal do fundo à frente, da direita para a esquerda, em direção à câmera. Com um corte seco, essa sequência é substituída por outra com pessoas andando, porém, no sentido oposto. Este movimento de conflito entre as linhas gráficas formadas pelos elementos constituintes do plano e o posterior conflito entre os planos, quando a direção da multidão é alternada, evoca o cinema revolucionário soviético, em especial, obras de Eisenstein, como O encouraçado Potemkin (Bronenósets Potiómkin, 1925). O cineasta teórico explica esse procedimento da seguinte maneira: Conflito dentro de uma tese (uma idéia (sic) abstrata) se formula na dialética da legenda se forma espacialmente no conflito dentro do plano e explode (10) com crescente intensidade no conflito de montagem entre os planos isolados (EISENSTEIN, 2002, p. 58). Ainda de acordo com Eisenstein, a profunda relação entre os planos demonstra como seu discurso de sucessão compositiva vai repetindo rigorosamente o movimento do tema do conteúdo (EISENSTEIN, 1982, p. 215).


52 Depois de mostrar os civis, nesse período de guerra, o plano seguinte desloca o espectador para o campo de batalha, onde os soldados correm da direita para a esquerda em punho com suas armas. Depois do corte brusco, a sequência é substituída por carrinhos de madeira guiados por pessoas, que se movimentam no sentido inverso. Com esses movimentos, em sentidos opostos, tem-se a sensação de conflito da própria guerra, desse modo, o jogo compositivo contribui para reforçar o tema plástico da guerra, tal como formulado por Eisenstein (1982, p. 216).

(11) Grifo do original.

Quando o sujeito lírico surge e relata questões específicas da União Soviética, transforma-se a interação plástica que contribuía para uma visão geral da guerra. É inserida uma imagem em primeiro plano. Assim, estabelece-se um movimento diferente do proposto do início da sequência: agora a construção mantém a construção do todo para a parte (11). Na sequência, aparecem dois soldados próximos a um tanque abatido. Esses soldados movimentam-se da esquerda para a direita (em plano geral). Em seguida, há um plano médio dos soldados. Em uma terceira sequência, mostra-se uma mão sendo enfiada num buraco no casco no tanque (em close up). Assim, o dinamismo da sequência está tanto nos diferentes enquadramentos quanto no movimento dentro do quadro. Ao mostrar o detalhe de uma cena, o braço, abre-se espaço para outro plano de modo metonímico que se desenvolve por meio de um movimento inverso da câmera: pernas e sombras que andam. Tais contornos tornam-se pessoas andando num mesmo sentido, e assim essas pessoas tornam-se muitas, em seguida, são milhares. Trata-se dos muitos milhões já anunciados pelo sujeito lírico alguns segundos antes. O indivíduo torna-se uma massa que corta a paisagem, que permanece estéril e passiva a esse movimento. Nesses jogos de composição estabelecidos pela montagem, a voz do sujeito lírico parece criar ecos das vozes da multidão de anônimos que sofreu de alguma maneira as reverberações da guerra, desse modo, o sujeito lírico singular torna-se sujeito lírico nós . Assim, essa nova categoria de sujeito lírico torna-se o resgatador do tempo, estabelecendo sempre no presente os outros tempos (passado e futuro), tal como afirmou Santo Agostinho. Nessa segunda sequência, a estrutura é muito parecida com a da primeira, ora mostrando o todo, ora mostrando partes do todo. Antes do surgimento da voz do sujeito lírico, mostra-se uma paisagem, que, aos poucos, com o afastamento de câmera, revela-se: trata-se de um campo de concentração. Vazio. Cabe ressaltar que os limites do campo são mostrados após a declaração do sujeito lírico de que o mundo fora dividido em dois. A voz off do sujeito lírico retorna. O assunto agora não é mais a Segunda Guerra Mundial, mas, anos antes, 1917. Agora o



54 conflito é constituído para além da relação entre os planos. Aqui é estabelecida uma experimentação, típica dos primeiros filmes sonoros, realizados no final da década de vinte. Há uma espécie de contraponto audiovisual, pois, ao mesmo tempo em que o sujeito lírico fala de um mundo segregado, a imagem na tela é de pessoas vibrando de alegria. Este recurso estabelece uma proposta de leitura, conforme indica Chion: O contraponto audiovisual só se nota se opor o som e a imagem num ponto preciso, não de natureza, mas de significação, ou seja, se condicionar a leitura que se vai fazer tanto do som quanto da imagem, uma vez que postula uma certa interpretação linear do sentido dos sons, reduzindo esse 'sentido', em geral, a uma pura questão de identificação e de causa (2008, p. 36-37).

O sujeito lírico parece propor, de modo sutil, que há uma ruptura social, política e ideológica tão relevante quanto à Segunda Guerra Mundial, e que influenciou eventos decisivos posteriores. Trata-se da Revolução Russa de 1917. Da relação entre fala e imagem, parece emergir uma questão fundamental na estrutura política russa: a relação entre o líder e o povo. Ao discutir sobre a possível natureza dos eventos que marcam o fim da monarquia russa, Daniel Aarão recupera a discussão estabelecida, segundo ele, por críticos do socialismo soviético e por acadêmicos liberais (AARÃO, 2003, p. 66). De acordo com esses intelectuais, esse deslocamento político tenderia a um caráter golpista . Aarão sintetiza a discussão da seguinte maneira: Golpe ou revolução? A análise das circunstâncias sugere a hipótese de uma síntese: golpe e revolução. Golpe na urdidura, decisão e realização da insurreição, um funesto precedente. A política dos fatos consumados, empreendida por uma vanguarda que se arroga o direito de agir em nome das maiorias. Revolução nos decretos, aprovados pelos sovietes, reconhecendo e consagrando juridicamente as aspirações dos movimentos sociais, que passaram imediatamente a ver no novo governo o Conselho dos Comissários do Povo, dirigido por Lenin o intérprete e a garantia das reivindicações populares (AARÃO, 2003, p.67).

Aarão traz, na citação acima, o contraste presente no filme E nada mais, ao contrapor a atitude de um pequeno grupo, que se denomina representante da maioria, ao domínio exercido por uma única pessoa: o líder. Por meio da linguagem cinematográfica, Sokúrov parece demonstrar a leitura proposta pelo filósofo Nikolai Berdiáiev (1874-1948) que, ao analisar a revolução russa de 1917, conclui: O passado inteiro se repetindo por trás de novas máscaras (apud PIPES, 2008, p. 409). Retomando a sequência analisada, a fala do sujeito lírico continua, após um corte seco. No entanto, as várias pessoas são substituídas por um homem de feição preocupada, reação que passa a encontrar uma relação direta com o teor do conteúdo histórico narrado, como se realmente aquele homem estivesse ouvindo a voz off (sujeito lírico). Mais um corte, a multidão do início da sequência volta, porém, agora, em outro ângulo, composta em sua maioria por homens. Eles se aglomeram em frente ao que seria um palanque. Novamente, as atitudes presentes em cena não se relacionam com o conteúdo narrado, pois, em vinte segundos, o narrador condensa todos os acontecimentos do período entre Guerras; procedimento muito semelhante à proposta de leitura realizada por Esfir Shub, na década de 20, ao retomar imagens da Casa Románov. Todos os indícios que já anunciavam a iminência de uma segunda guerra e as profundas alterações pelas quais passou a Rússia, em vinte e cinco anos, são expostos pelo sujeito lírico, enquanto a massa que ocupa a imagem parece se preocupar com o espetáculo, com algo que os distraía.


55 Em meio ao silêncio que se instaura, a fotografia de Lênin, sob fundo vermelho, recebe aos poucos, a companhia da figura de Josef Stálin. De modo simbólico, há espaço para que reverberem os vinte e cinco anos evocados anteriormente pela voz do sujeito lírico. Do outro lado do poder, materializado pelas duas figuras políticas, há o povo. Entre planos gerais, o cineasta constrói uma atmosfera de desesperança, de uma espera interminável. A montagem dessa sequência, lembrando os estudos de Eisenstein (2002, p. 58), na construção da dramaturgia da forma, cria a sensação de que essa multidão observa seus líderes, pois ora eles olham da direita para a esquerda, ora da esquerda para a direita e, por fim, retoma a posição inicial, como se a câmera fizesse desse grande palanque um lugar de encontro do poder. Em ambos os trechos selecionados e descritos anteriormente, buscou-se articular, a partir da estrutura formal dos planos e de seu conteúdo na montagem audiovisual, as relações que há entre o sujeito lírico e a construção do discurso fílmico-poético. Retomando a teoria da montagem intelectual, utilizada por Serguei Eisenstein, e o método de montagem proposto por Esfir Shub, durante a década de vinte, há uma nova forma de contar a História, que não consiste em apenas destacar fatos, mas incide uma reflexão sobre o leitmotiv da guerra, analisada no filme E nada mais, de Aleksandr Sokúrov. A maneira como o discurso cinematográfico é construído recoloca a importância das imagens recuperadas e instaura a intersecção entre o passado/presente/futuro. Sendo assim, o sujeito lírico fundamenta seu trabalho na interpretação e na reapresentação de fragmentos audiovisuais, desse modo tudo é anacrônico e simultâneo. Nisso há uma tensão dialética, pois, enquanto se busca a necessidade do lembrar, depara-se com a sua impossibilidade. As imagens são construídas a partir disso, estão sempre no limite entre vistas e reconhecidas, entre presenças e ausências. A partir do entrecruzamento de manifestações passadas e presentes, torna-se cada vez mais difícil determinar as marcas que caracterizam presente, passado e aspirações ao futuro. Esse movimento permite a reconstituição de vários presentes que se fundem para compor outro presente, que resiste como forma. O sujeito lírico, enquanto elemento da montagem, surge, desse modo, como elo que une os diferentes tempos no presente. Assim, os irmãos, guerreiros, evocados pelo sujeito lírico de Drummond, e o sujeito nós, presente no filme de Sokúrov, também recebem voz para que suas experiências sejam alvo de leitura e constantes reflexões sobre o tipo de construção que se pretende para o futuro.

páginas 50 e 51

E nada mais. (SOKÚROV, 1982-89, 00:35:25 a 00:38:43)


56 Bibliografia AARÃO, Daniel Reis Filho. As Revoluções Russas e o Socialismo Soviético. São Paulo: Editora UNESP, 2003 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 2004. ALBERA, François (org.). Los fomalistas rusos y El cine: La poética del filme. Buenos Aires: Paidós, 1998. ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. 1. ed. Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008. p. 61-63 (Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros; v. 4). CHION, Michel. A audiovisão: som e imagem no cinema. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2008. COMBE, Dominique. O sujeito lírico entre a ficção e a autobiografia. Trad. Iside Mesquita e Vagner Camilo. Revista USP, São Paulo, n. 84, p. 112-128, dez.-fev. 2009-2010. EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2002. ________________. Cinematismo. Trad. Luis Sepulveda. Buenos Aires: Domingo Cortizo / Editorial Quetzal, 1982. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna: da metade do século XIX a meados do século XX. Trad. Marise M. Curioni et.al. .São Paulo: Duas cidades, 1978. LEYDA, Jay. Film beget Film: a study of the compilation film. New York: Hil and Wang, 1971. LOTMAN, Iuri. Estética e semiótica do cinema. Lisboa: Editorial Estampa, 1978. _____________. Estrutura do texto artístico. Lisboa: Editorial Estampa, 1978b. PIPES, Richard. História Concisa da Revolução Russa. Trad. T. Reis. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008 SHUB, Esfir. We Do Not Deny the Element of Mastery. In. TAYLOR, Richard; CHRISTIE, Ian. The Film Factory: russian and soviet cinema in documents 1896-1939. Cambridge: Harvard University Press, 1988. p. 185-187.



Aiming

to

inspect

the

cinematographic

Com o objetivo de examinar a construção

construction of the first minute and 19 seconds,

cinematográfica do primeiro minuto e 19 segundos

Sonata for Hitler (1979-1989) direct by Aleksander

do filme Sonata para Hitler (1979-1989), de

Sokurov, this paper analyses the chosen sequence

Aleksandr Sokúrov, o artigo analisa a sequência

baring in mind the concept of conflict in montage

escolhida, tendo em vista o conceito de conflito

theory of Sergei Eisenstein (1898 - 1948).

presente na teoria da montagem de Serguei

Therefore the investigation of this sequence is

Eisenstein (1898-1948). Para tanto, a mesma

based on the concept of graphic conflict and the

sequência é investigada a partir do conceito de

relations between depiction and image in

conflito gráfico e da relação entre representação

Eisenstein`s theory.

(izobrajénie)

e

imagem

(óbraz)

na

teoria

eisensteiniana.

O conflito como estratégia de construção em Sonata para Hitler Breno Morita | Juliana Rosa (1) Sua filmografia pode ser encontrada em russo e em inglês em seu site oficial http://www.sokurov.spb.ru. (2) Rússia, 11', cor, 19791989 . (3) VGIK (Vsiorossiski Gosidárstveni Universitiét Kinematógrafi Imeni S. A. Guerasímova, Universidade de Cinematografia do Estado Russo S. A. Gerassímov). Foi a primeira instituição de ensino superior

de

cinema

do

mundo, criada na Rússia, em 1919. (4) Essa política é conhecida como

Pierestróika

e

foi

simultânea a política da Glasnost, que visava oferecer aos cidadãos uma maior transparência das políticas públicas. No cinema, tais políticas foram introduzidas pelo Quinto Congresso de Cineastas da União, em 1986 (LARRY,

1998,

atenuando

as

p.

327)

austeras

d e t e r m i n a ç õ e s implementadas pelo decreto do Realismo Socialista de 1932.

Dentro da filmografia (1) de Aleksandr Sokúrov (1951-), Sonata para Hitler (2) (Sonata dlia Guítlera, 1979-1989) é o terceiro entre seus filmes. Realizado no ano em que o cineasta concluiu sua formação na VGIK (3), em 1979. A primeira exibição pública oficial do filme ocorreu apenas dez anos depois, no período de abertura política, iniciada na Rússia, na década de 1980, durante o governo de Mikhail Gorbatchóv (4). Estes primeiros anos de sua carreira como cineasta constituem uma fase difícil para Sokúrov. Kirill Galetski, numa entrevista (5) feita com o cineasta (SOKÚROV, 2001, p. 4), diz que este momento corresponde a uma espécie de ciclo de Sísifo em que os projetos eram aprovados e financiados pelo governo, mas, depois de realizados, tinham sua circulação vetada. Continuar a fazer filmes na incerteza de que seus trabalhos seriam ou não exibidos é tarefa árdua e um dado que aponta para uma postura de resistência e persistência artística do cineasta. Sonata para Hitler é produzido a partir de arquivos fílmicos originários da Alemanha e da URSS relativos à Segunda Guerra Mundial. Prescindindo de novas filmagens, constitui-se de apropriação e reorganização de materiais documentais tendo como trilha sonora música de Johann Sebastian Bach (1685-1750) e de Krzysztof Penderecki (1933-). Tal procedimento não segue enquanto novidade dentro do contexto de produção no cinema soviético e russo. Esfir Shub (1894-1959) e Dziga Vertov (1896-1954) estão entre os cineastas que o utilizaram largamente, cada um a sua maneira. Entretanto, apesar do trato com materiais de arquivo, partimos da hipótese que a organização do filme de Sokúrov tem importantes afluências com a teoria da montagem eisensteiniana. Dessa maneira, este artigo tem como norte a investigação da sequência inicial do filme Sonata para Hitler

58


59 (5) Todas as traduções de trechos de livros e entrevistas em línguas estrangeiras para o português foram feitas pelos autores.

investigação da sequência inicial do filme Sonata para Hitler considerando seus pontos de contato com a concepção de montagem cinematográfica de Serguei Eisenstein (1898-1948), sugerindo como possível elemento de confluência entre os dois cineastas o conflito como estratégia de construção. Cinema, linguagem e conflito

A inexistência de atores, maquiadores, direção de cena, etc., em Sonata para Hitler, confere ao filme uma intensidade como fragmentos de uma realidade. Entretanto, como aponta Lotman (1922-1993), sobre a linguagem do cinema como um todo, esta semelhança [entre o cinema e o mundo], que faz pensar não haver nada a aprender, é precisamente uma fonte de erros (1978, p. 14). Lotman, em Estética e semiótica do cinema (1978), defendendo o cinema como forma de comunicação e, consequentemente, possuidor de uma linguagem própria, ressalta que para compreender a mensagem é necessário conhecer a sua linguagem (Ibidem). O autor nos diz que: O cinema assemelha-se ao mundo que nós vemos. O reforço desta semelhança é um dos factores constantes da evolução artística do cinema. Mas esta semelhança é traiçoeira, como as palavras estrangeiras que se parecem foneticamente com as da língua materna: o diferente mascara-se de idêntico. Cria-se uma compreensão aparente onde não há verdadeira compreensão. Só teremos a convicção de que o cinema não é a cópia servil e mecânica da vida, mas uma reconstituição activa em processos de conhecimento intenso, por vezes dramático da vida, depois de termos compreendido a sua linguagem. (6) (Ibidem). (6) Grifo nosso.

Nessa citação, Lotman nos aponta considerações importantes para a discussão de Sonata para Hitler, pois, sem o entendimento de que o cinema não mimetiza o mundo, será mais difícil adentrarmos na teoria da montagem eisensteiniana. Na apresentação do livro A forma do filme (2002), José Carlos Avellar conta que Eisenstein, em uma de suas aulas na VGIK, disse a seus alunos que a arte não pode ser reduzida à mimese da natureza. Segundo Avellar, Eisenstein acredita que a arte é o conflito entre a representação de um evento e a compreensão e o sentimento que temos desse fenômeno. Esta relação pode ser depreendida de um trecho de aula de Eisenstein: Para conseguir voar, o homem estudou atentamente o movimento das asas dos pássaros, e ao se dar conta das múltiplas funções que elas desempenham durante o vôo (sic), ao se dar conta de que as asas dos pássaros funcionam às vezes como hélices e às vezes como superfícies para planar, dividiu essas funções em diferentes partes, criando para cada uma delas uma parte em separado; então, através da montagem dessas partes numa outra ordem, inventou o avião. Para criar uma obra de arte, para conhecer e transformar a realidade através da arte, o homem trabalha assim como trabalhou para inventar o avião (EISENSTEIN apud AVELLAR, in:


60 realidade através da arte, o homem trabalha assim como trabalhou para inventar o avião (EISENSTEIN apud AVELLAR, in: EISENSTEIN, 2002a, p. 7)

Para Eisenstein a invenção não pode ser reprodução fiel do que vemos. Se assim a fizéssemos, copiando o pássaro tal e qual o vemos, não chegaríamos ao iventado avião. O cinema, como voo, é metáfora profícua para certo entendimento de como Eisenstein desenvolve sua concepção de montagem, pois das partes separadas do pássaro, nossa referência, é que pudemos organizá-las de outra maneira a conseguir reinventar o voo. Retomando Lotman, se quisermos compreender o cinema, é necessário que conheçamos suas especificidades, e circunscrito nesse contexto, elegemos a noção de conflito desenvolvida por Eisenstein como estratégia de construção em Sonata para Hitler. Como toda análise fílmica caminha lado a lado com uma teoria cinematográfica, a perspectiva de cinema proposta por Serguei Eisenstein servirá como influência para a análise da parte inicial de Sonata para Hitler. Seu princípio dramático propõe a montagem como pensamento que nasce a partir do choque de pedaços independentes um em relação ao outro (EISENSTEIN, 2002, p. 54). Assim, sua teoria sobre a montagem cinematográfica encontra fôlego no conflito como estratégia de construção cinematográfica. Apontamentos sobre a análise

(7) Entre 00'24” e 01'19”. A demarcação

do

tempo

seguirá o seguinte padrão: minutos e segundos. Dessa maneira, 00'24” refere-se ao fotograma encontrado em 00 minutos e 24 segundos de filme.

Para abordarmos a linguagem cinematográfica deste filme, selecionamos sua sequência inicial (7), cuja decupagem encontra-se ao final deste. A escolha do trecho se dá à medida que trabalhando pontualmente com uma obra, seja ela audiovisual ou não, pode-se investigar sua relação entre a parte e o todo. Mesmo que este artigo apresente apenas a análise de um trecho do filme, recomenda-se assistir ao filme integralmente. A proximidade de abordagem entre a montagem por meio do conflito de Eisenstein e a utilização da linguagem cinematográfica, em Sonata para Hitler, é sobre o que trataremos, e assim, nos restringiremos aos seus primeiros minutos. Antes de seguirmos, são necessários alguns apontamentos que justificam nossas escolhas instrumentais. Para análise do trecho selecionado, recorreremos a uma planificação baseada na leitura de planos e sequências, entretanto eles precisarão de algumas adequações. Jacques Aumont e Michel Marie, em seu Dicionário Teórico e Crítico de Cinema (2006), oferecem três diferentes definições para plano. A que tomaremos, a priori, é a terceira delas: um plano é qualquer segmento de filme compreendido entre duas mudanças de plano (2006, p. 230), em outras palavras, um trecho entre dois cortes. Porém, aqui, deve-se atentar a alguns dos procedimentos utilizados por Sokúrov na construção do filme. Os fragmentos escolhidos pelo cineasta ocupam apenas um pedaço central da tela. Ao seu redor, apresentam-se alguns


61 filme. Os fragmentos escolhidos pelo cineasta ocupam apenas um pedaço central da tela. Ao seu redor, apresentam-se alguns elementos: nos cantos superior direito e inferior esquerdo, há, em cada um deles, um número composto por quatro dígitos; na lateral, há marcas que remetem aos furos na película fílmica que, tecnicamente, servem para sua rodagem; a esquerda outra marca, como se estivesse faltando um pedaço do filme. Ao conjunto desses elementos, ao redor dos planos, atribuímos o nome de moldura; e, aos números, de contadores. Assim, compreendemos plano como sendo cada um dos trechos de filme, selecionados por Sokúrov, sem levar em consideração a moldura que os circunda. Plano, conflito e montagem em Eisenstein

No cinema, tecnicamente e de uma maneira geral, montagem trata-se de colar uns após os outros, em uma ordem determinada, fragmentos de filme, os planos cujo comprimento foi igualmente determinado de antemão (AUMONT, et al., 2006, p. 195196). Entretanto, existem diferentes teorias sobre os critérios de organização dos planos. Em Fora de quadro (EISENSTEIN, 2002a, p. 42), argumentando a respeito de sua concepção de montagem, Eisenstein define o plano da seguinte maneira: O plano não é um elemento da montagem. O plano é uma célula da montagem. Exatamente como as células, em sua divisão, formam um fenômeno de outra ordem, que é o organismo ou embrião, do mesmo modo no outro lado da transição dialética de um plano há a montagem. O que, então, caracteriza a montagem e, conseqüentemente (sic), sua célula - o plano? A colisão. O conflito de duas peças em oposição entre si. O conflito. A colisão. (...) ... da colisão de dois fatores determinados, nasce um conceito. (Idem, p. 42)

Essa concepção de plano como célula procura opor-se à ideia de montagem como técnica de juntar fragmentos para compor um todo a partir da somatória de suas partes. Para ele, a montagem deveria ser capaz de suscitar, através de conflitos, um produto qualitativamente diferente que a simples soma de suas partes. É importante notar que o conceito de conflito que Eisenstein apresenta está, como boa parte das suas considerações referentes à montagem, no nível das relações. Ou seja, enquanto existência garantida, o conflito necessita sempre de dois objetos, para que possa existir entre eles. Ele não pode se sustentar como um objeto em si, depende sempre do contato entre partes. Em seu texto conhecido como Montage 1937 (In: EISENSTEIN, 2010), Eisenstein defende que, na construção de um plano, deve-se atentar para que ele expresse graficamente seu conteúdo, conforme aprofundaremos mais adiante. Apesar da construção dos planos ser alheia a qualquer interferência do cineasta, pois são imagens de arquivos, sua escolha, na organização dos mesmos, transparece uma preocupação com seu encadeamento gráfico, na esteira das preocupações composicionais de Eisenstein. Nossa análise de um trecho de Sonata para Hitler será feita em duas etapas. Primeiramente, investigando-o plasticamente, procurando em seus conflitos gráficos possíveis encaminhamentos de leitura. E, em seguida, em função do conceito de imagem baseada na relação entre a concepção de representação (izobrajénie) e imagem (óbraz) no corpus teórico de Eisenstein.


62 Conflito Gráfico

(8) A numeração dos planos a que nos referimos encontrase na decupagem da primeira sequência de Sonata para Hitler ao final do texto.

Eisenstein, na defesa e tentativa de sistematizar sua teoria da montagem, oferece uma vasta tipologia de conflitos que serviriam como material, entre outras especificidades do cinema, para a organização e efetivação de sua concepção de montagem. Dentre elas, conforme dito anteriormente, abordaremos o conflito gráfico. Este tipo de conflito, como o nome sugere, refere-se à relação entre as linhas, podendo existir tanto no interior de um plano quanto entre planos distintos. Em Sonata para Hitler, esse conflito pode ser visto, por exemplo, no plano 03(8). Simplificando sua composição plástica, podemos abstrair seus elementos em termos de linhas de força, conforme indicado na quarta coluna da decupagem. Assim, suas mãos sugerem uma linha diagonal, e, na parte inferior do quadro, uma diagonal perpendicular em relação à primeira. Levando essa concepção de conflito do interior para o entre planos, ela pode ser percebida no intervalo dos planos 03, 04 e 05: suas linhas de força, tal como sugeridas anteriormente, formam, no primeiro deles, um X; no plano seguinte, o conflito forma-se com uma linha horizontal e outra vertical; e, por último, novamente, surgem as linhas diagonais, mas com a diferença de que a mão aponta para a direção oposta àquela do plano 03. Este tipo de sequência de planos em que um mesmo tema é mostrado seguidamente de diferentes pontos de vista é chamado, por Eisenstein, de montagem de associações, servindo como forma de aguçar emocionalmente uma situação e provocar uma impressão de dinâmica espacial (EISENSTEIN apud ALBERA, 2002, p. 97), isto é, provocar a percepção de um tipo de movimento que não se realiza fisicamente, mas perceptivamente. Outro caso de conflito gráfico acontece quando dois planos, dessa vez, diferentes quanto ao tema, possuem uma unidade de comportamento. Como, por exemplo, entre os planos 01 e 02. Neste caso, são distintos enquanto matéria filmada e ângulo de filmagem, etc., mas ligam-se por uma unidade gestual, no caso, ambos os planos apresentam uma pessoa sentada e olhar rebaixado. Esse tipo de montagem, assim como a anterior, pode ser denominada de associação (Idem, p. 97-99). Ela produziria um conceito que nasceria do encontro destes planos, mas que não se encontram isoladamente em cada um deles, no caso, a sugestão de uma similaridade entre os personagens do primeiro e do segundo plano. É importante notar que esses casos de conflitos organizados por Eisenstein não são excludentes, mas na maioria das vezes coexistem (Ibidem, p. 90). Assim, entre os planos 05 e 06, há tanto um conflito gráfico entre as linhas de força, quanto uma homogeneidade gestual das mãos. Na terminologia de Eisenstein, esses vários tipos de conflitos gráficos produzem uma dinamização na percepção do espectador (EISENSTEIN, 2002a, p. 64). Esse processo baseia-se no efeito destes arranjos formais na percepção do espectador, servindo como meio de aguçar emocionalmente uma situação


63 servindo como meio de aguçar emocionalmente uma situação (EISENSTEIN apud ALBERA, 2002) de criação de um produto que não pode ser reduzido à somatória de suas partes, mas sim a uma síntese. Assim, levando em consideração estes vários conflitos gráficos discutidos e propondo uma apreensão global desta sequência, podemos inferir, dos planos 01 ao 08 e do 10 ao 13, o reforço de uma postura corporal vertical e uma gestualidade das mãos contidas entre linhas diagonais que entram em conflito de comportamento com o plano 09. O único da sequência cuja figura encontra-se em pé e com o corpo e as mãos em movimento. Esse plano, além de romper com certa lógica entre os planos que o precederam, é seguido por planos já utilizados anteriormente. Isso reforça um movimento geral que graficamente sintetiza o destaque de Hitler discursando pela sua verticalidade e agitação em relação à horizontalidade dos outros planos, em que as pessoas, incluindo aquela que momentaneamente se diferencia do restante, são mostradas sentadas e de mãos recolhidas, reforçando a horizontalidade e imobilidade da maioria. Sobre a representação e a imagem em Eisenstein

O conflito gráfico discutido acima é apenas um dos elementos da teoria da montagem de Eisenstein. O processo básico que subjaz sua teoria, a capacidade da percepção humana em operar uma síntese de elementos distintos, permeia também a maneira com que ele pensa a relação entre representação e imagem. Considerando que para Eisenstein a cinematografia é, em primeiro lugar e antes de tudo, montagem (EISENSTEIN, 2002a, p. 35), relembremos que o cineasta acredita que o conflito é a base dessa montagem. Assim, discutimos de que maneira o conflito gráfico no trecho destacado em Sonata para Hitler possibilita uma leitura formal gráfica de cada plano em relação ao outro. A seguir, abordaremos esta mesma sequência do ponto de vista da imagem (óbraz) que, na teoria de Eisenstein, relaciona-se com a síntese fruto do conflito das representações parciais.

(9)http://www.kinoruss.com.

No artigo Sokúrov e Eisenstein: sobre a montagem em Vida Humilde (Smiriênaia Jizni, 1997) (MORITA, 2012), publicado no volume anterior deste caderno (9), foi abordada a relação entre representação e imagem na teoria da montagem de Eisenstein, reforçando que:

br/#!anteriores (SOKUROVIANAS Oriental, n. 2, 2012). (N. da E.)

[para ele] imagem não se refere exclusivamente a uma figura em um suporte, como, por exemplo, aquela inscrita na película fílmica. A imagem também é considerada como fruto da atividade perceptiva, uma totalidade imaterial que surge no interior do espectador como contrapartida a estímulos exteriores, ou seja, como aquilo que uma obra de arte deve ser capaz de suscitar. (...) [Para isso, Eisenstein] argumenta que cada elemento visível e sonoro justaposto deve ser escolhido como estímulo ao aparelho sensório do espectador em função


64 cada elemento visível e sonoro justaposto deve ser escolhido como estímulo ao aparelho sensório do espectador em função de suas capacidades de construção de uma óbraz (MORITA, 2012, p. 34).

Este esclarecimento assenta-se sobre dois conceitos de Eisenstein, em russo, izobrajénie e como já visto na citação, óbraz. No referido artigo, foram apresentadas algumas considerações sobre suas traduções e acepções por parte de dois teóricos: Arlindo Machado e François Albera. Em Eisenstein: um dialogismo radical (1981), Machado aponta que normalmente izobrajénie é traduzido para o português como representação e óbraz como imagem, mas que ambos referem-se a diferentes atributos da representação imagética. Izobrajénie referindo-se a seu aspecto parcial, isto é, enquanto fragmentos de sentido com os quais se constrói a obra , e óbraz, mais generalizador, no sentido de que é uma relação, não uma figura (1981, p. 28). Trata-se, desta forma, de diferentes abordagens a respeito da representação imagética. Albera, em Eisenstein e o construtivismo russo (2002), refere-se a isso como um duplo regime, declarando-o como parte essencial do cinema: O cinema funciona em conformidade com um duplo regime de imagens, as imagensrepresentações (izobrajénie) e as imagens-conceitos (óbraz), e as primeiras são apenas o alimento, o combustível destinado a produzir as segundas fora do cinema (2002, p. 247).

Podemos notar, em ambos os autores, que a izobrajénie (representação) é uma espécie de elemento parcial, provocador de um conjunto sintético, a óbraz (imagem). No cinema, este princípio pode tomar várias expressões, uma delas, por exemplo, a montagem entre planos, em que a junção de dois planos distintos faz surgir um terceiro elemento, fruto de sua combinação, na percepção do espectador. Este procedimento, deslocando o foco do plano para a imagem, foi formulado por Eisenstein da seguinte maneira: A representação A e a representação B devem ser selecionadas entre todos os aspectos possíveis do tema em desenvolvimento, devem ser procuradas de tal modo que sua justaposição isto é, a justaposição desses próprios elementos e não de outros, alternativos suscite na percepção e nos sentimentos do espectador a mais completa imagem do próprio tema (2002, p. 18).

Assim, analogicamente a esta concepção, analisaremos a mesma sequência inicial de Sonata para Hitler, com foco nas representações mobilizadas por cada um dos planos escolhidos e ordenados por Sokúrov. Sobre a representação e a imagem em Sonata para Hitler

O primeiro plano do filme apresenta a figura de Hitler. Com seu uniforme militar, ele é enquadrado frontalmente, sentado, com os olhos baixos e esfregando as mãos. Outras pessoas também aparecem no plano, ao seu redor, mas o enquadramento, com sua figura centralizada, o evidencia. Este plano, de cinco segundos, será recorrente no filme e é o mesmo que encerrará a sequência escolhida. O plano seguinte possui um enquadramento semelhante de um homem cuja expressão corporal remete ao anterior: também sentado, cabisbaixo e retraído. Além dessas semelhanças, não há entre os planos 01 e 02, qualquer elemento que denote uma continuidade espacial. Assim, o conflito entre esses planos, um seguido ao outro, possibilita uma alusão entre um homem historicamente conhecido, Hitler, e outra pessoa que, em relação ao primeiro, poderíamos chamar de desconhecida.


65 conhecido, Hitler, e outra pessoa que, em relação ao primeiro, poderíamos chamar de desconhecida. Em seguida, os planos 03, 04 e 05 possuem semelhanças plásticas quanto à escala de planos, são todos primeiros planos, e, na matéria filmada, todos mostram um par de mãos unidas sobre um fundo escuro. Conforme pode ser visto na decupagem, o elemento mais destoante entre os planos 03, 04 e 05 são os ângulos de filmagem, um obliquamente pela esquerda; outro, frontalmente e outro, obliquamente, pela direita. Em seguida, no plano 06, mostra-se uma série de pessoas com vestimentas parecidas, umas ao lado das outras formando uma grande linha diagonal, reforçando os elementos marcados nos planos 01 e 02 com pessoas sentadas; e nos planos 03 a 05. Importante notar que o enquadramento deste plano relega, para o fora de campo, as cabeças das pessoas. Assim, do plano 03 ao 06, não vemos rosto nenhum, reforçando a ausência de uma personalidade e, em contrapartida, reforçando uma imobilidade geral. Nos planos 07 e 08, repete-se um primeiro plano que enquadra homens do meio do peito ao topo da cabeça. No primeiro deles, não há ângulo oblíquo e sequer movimento de câmera, e, no seguinte, ocorre um movimento de câmera para direita que enquadra, primeiro um homem e, em seguida, outro. Nenhum desses enquadramentos mostra a mão desses homens, mas a apatia deles é reforçada pelos planos anteriores. Recapitulando, os planos 01 e 02 mostram planos médios de pessoas sentadas; 03, 04 e 05, primeiro planos de mãos unidas e nos 07 e 08, primeiros planos do rosto de pessoas, praticamente imóveis. Considerando as relações entre representação e imagem, propostas anteriormente, e considerando cada um desses planos como representações parciais de uma imagem geral, o conflito entre os temas dos planos pode indicar a noção de apatia, da falta de uma força produtiva. O próximo plano é o primeiro que mostra alguém em pé e com as mãos gesticulantes, quebrando a imagem (óbraz) da ociosidade que argumentamos até então. Esta figura, a mesma que inicia a sequência, é de Hitler. A performatividade do corpo, no plano 09, entra em conflito com a imagem construída pelos planos anteriores. Sua expressividade, enquanto representação parcial, destoa em relação às outras. Nos planos seguintes, do 10 ao 12, Sokúrov retoma a sequência dos planos 04, 05 e 06, encerrando a sequência com o mesmo plano que a iniciou, aquela que mostra Hitler sentado esfregando as mãos. Nesta sequência, segundo os elementos destacados em nossa análise, constrói-se a imagem de um Hitler ambíguo. Ora é colocado como semelhante aos demais, por exemplo, na montagem dos planos 01 e 02, e dos planos 11 ao 13; em que ele compõe, enquanto representação, uma imagem geral de apatia. Ora como alguém cujo comportamento o diferencia, como na montagem dos planos 08, 09 e 10, em que o plano do meio monta a figura de Hitler em conflito com as demais. Assim, sua imagem constrói-se também por meio do conflito entre duas imagens: dele, enquanto semelhante, figurando entre aqueles que se encontram cabisbaixos e desocupados; e dele, como a figura que oferece outra direção, colocando-se em outra posição em relação aos demais. Encaminhamentos

Relembrando o percurso do artigo, nos propusemos a investigar a sequência inicial de Sonata para Hitler considerando seus pontos de contato com a concepção da montagem cinematográfica de Serguei Eisenstein. O conflito, enquanto estratégia de construção, surge como elemento de confluência entre os dois cineastas e permite que analisemos o trecho do filme de Sokúrov por meio da sua linguagem cinematográfica.


66 Lotman ainda nos trouxe o cinema como reconstituição activa [sic] em processos de conhecimento intensos, por vezes, dramáticos da vida (1978, p. 14), abordagem bastante próxima do pensamento de Serguei Eisenstein, que acredita na arte, incluindo seu cinema, como conflito entre representação e a compreensão do fenômeno representado. Noções essas que podemos aproximar das suas considerações a respeito dos conceitos izobrajénie e óbraz. Realizamos alguns apontamentos sobre a análise introduzindo as características de plano, conflito e montagem para Serguei Eisenstein, e, dessa maneira, demonstramos alguns dos conflitos gráficos no trecho inicial de Sonata para Hitler. Enfim, discutimos os conceitos representação e imagem em Eisenstein, para, na sequência, aproximá-los do trecho escolhido do filme de Sokúrov. Mais uma vez, o conflito se mostrou enquanto estratégia de construção em outras camadas que não apenas gráficas. Consideramos profícua a aproximação da teoria cinematográfica de Eisenstein com a obra de Sokúrov, o que parece indicar um campo fértil de pesquisa. Levando em conta que este artigo se constitui em uma espécie de ponta de iceberg em meio à escassa pesquisa sobre cinema russo no Brasil, procuramos trilhar um caminho entre a pertinência das teorias eisensteinianas e a produção de um cineasta que nos é contemporâneo e que também possui uma obra complexa e merecedora de investigações.


67 Anexo | Decupagem

Legenda A.: áudio | M.C.: movimento de câmera | S.M.: sem movimento de câmera | E.P.: escala de plano | P.M.: plano médio| P.P.: primeiro plano | D.: duração

Plano

plano 0

Fotograma

Descrição

A:

Coral

em

Linhas de força

baixa

intensidade; soam alguns sinos e inicia a sonata de Bach. M.C.: S.M. D: 00'28” a 00'34” observações: surge a moldura plano 1

A: Bach. M.C.: S.M. E.P.: P.M. D: 00'34” a 00'40”

plano 2

A: Bach M.C.: S.M. E.P.: P.M. D: 00'40” a 00'41”

plano 3

A: Bach M.C.: S.M. E.P.: P.P. D: 00'41” a 00'42”


68 plano 4

A: Bach. M.C.: S.M. E.P.: P.P. D: 00'42” a 00'43”

plano 5

A: Bach. M.C.: S.M. E.P.: P.P. D: 00'43” a 00'44”

plano 6

A: Bach M.C.: S.M. E.P.: P.M. D: 00'44” a 00'45”

plano 7

A: Bach. M.C.: S.M. E.P.: P.P. D: 00'45” a 00'48”

plano 8

A: Bach. M.C.: Panorâmica para direita E.P.: P.P. D: 00'48” a 00'50” Primeiro movimento de câmera do filme


69 plano 9

A: Bach M.C.: S.M. E.P.: P.M. D: 00'50” a 01'03” Primeiro

plano

com

alguém em pé

plano 10

A: Bach M.C.: S.M. E.P.: P.P. D: 01'03” a 01'04” Repetição do plano 4.

plano 11

A: Bach M.C.: S.M. D: 01'04” a 01'05” E.P.: P.P. Repetição do plano 5.

plano 12

A: Bach M.C.: S.M. E.P.: P.M. D: 01'05” a 01'07” Repetição do plano 6.

plano 13

A: Fim da música de Bach início da de Penderecki M.C.: S.M. E.P.: P.M. D: 01'07” a 01'19” Repetição do plano 1.


70 Bibliografia ALBERA, François. Eisenstein e o construtivismo russo: A dramaturgia da forma em Stuttgart (1929).Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2002. Título original em francês: Eisenstein et le constructivisme russe - Stuttgart, dramaturgie de la forme. AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. 2. ed. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. Campinas: Papirus, 2006. Título original do francês: Dictionnaire théorique et critique du cinéma. MORITA, Breno. Sokúrov e Eisenstein: sobre a montagem em Vida Humilde. In. cadernos de pesquisa kinoruss, v. 2, p. 26-40, 2012. Disponível em: <http://www.kinoruss.com.br>. EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. Título original em inglês: Film Form. __________________. O sentido do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. Título original em inglês: Film Sense. __________________. Towards a theory of montage. Trad. Michael Glenny. Nova Iorque: I. B. Tauris, 2010 [Coleção Selected Works volume 2] LARRY, Nikita. Film. In: RZHEVSKY, Nicholas (Org.). The Cambridge Companion to Modern Russian Culture. Cambridge: Cambridge University press, 1998. LOTMAN, Yuri. Estética e semiótica do cinema. Lisboa: Editorial Estampa, 1978. MACHADO, Arlindo. Eisenstein: Um dialogismo radical. In. Revista Polímica. São Paulo: Ed. Moraes Ltda., n. 3, 1981, p. 23-44. SOKUROV, Aleksandr. The foundations of film art: An interview with Alexander Sokurov. Cineaste, Nova Iorque: Cineaste Publishers, v. 26, n. 3, jul. 2001. Entrevista concedida a Kirill Galetski.


71

ao lado

Sonata para Hitler. (SOKĂšROV, 1979-89, 00:09:20)


72



This essay discusses aesthetic procedures that

Este ensaio discorre sobre procedimentos estéticos

reveal the "story varnished", forged by art of

que desvelam a “história envernizada”, forjada pela

Socialist Realism in the former Soviet Union. It

arte do Realismo Socialista, na extinta União

explores this possibility through photography of

Soviética. Explora-se tal possibilidade através da

Taurus, film of Aleksandr Sokurov, where

fotografia de Taurus, filme de Aleksandr Sokúrov,

manipulation

onde a manipulação de cores desvia associações

associations

of to

color new

deviates

habitual

interpretations.

It

is

habituais para novas interpretações. Investiga-se

investigated how Sokurov puts in check the power

como Sokúrov coloca em cheque os jogos de poder,

plays, signaling critically the ethical implications in

sinalizando criticamente as implicações éticas na

the production aesthetic of the Soviet period.

produção estética do período soviético.

Taurus: um filme onde a cor é procedimento para reconhecer a História Neide Jallageas No livro Os escombros e o mito - a cultura e o fim da União Soviética, editado pela Companhia das Letras, em 1997, Boris Schnaiderman nos remete à lembrança de duas palavrinhas , por ele qualificadas como mágicas , que surgiram a partir de 1985 com seu característico acento russo: pierestróika e glásnost. Mágicas, penso eu, porque todo o regime político que sustentara até então a União Soviética foi questionado publicamente nesse período, através das ações que tais palavras anunciavam. Até então, parecia impossível haver qualquer alteração radical no governo mantido na Rússia e demais países do bloco soviético desde 1917, o que na linha do tempo correspondia, já, a setenta anos. Pierestróika tem a acepção de reconstrução, de reestruturação, que caracterizou a proposta política de mudança. Sobre este termo, o professor Schnaiderman não se detém muito. É glásnost a palavrinha para a qual ele chama nossa atenção e também me deterei nesta palavra inicialmente. Como sabemos, glásnost, passou a integrar o vocabulário político em todo o mundo, traduzido do russo como transparência . Seguindo o percurso etimológico oferecido por Schnaiderman, no primeiro capítulo do referido livro, temos que o vocábulo russo glás é a forma arcaica de golós, que é voz". E glás, assim se conservou, em linguagem elevada, dando origem a palavras como glásnos que significa o estado em que tudo é anunciado, em que nada pode ser escondido (SCHNAIDERMAN, 1997, 15). Continua o professor explicando que, ao substantivo glásnost corresponde o adjetivo glásni, que significa o 'que é público', 'posto ao alcance de todos' . Quando se faz uso do prefixo russo para a negativa - que é nie -, forma-se a palavra nieglásni que tem a acepção de secreto", confidencial". O exemplo dado pelo professor - para o uso com o prefixo nie - é o adjetivo nieglásni enquanto qualificativo do substantivo comitiét (comitê, agrupamento). Assim, a expressão nieglásni comitiét, traduzida para o português como sendo comitê secreto , historicamente, refere-se ao nome dado a um conjunto de amigos do tzar Aleksandr I que, no início do século XIX, se reunia para discutir medidas de abrandamento do regime imperial, quando era grande a esperança de abertura na Rússia. Com esse exemplo, Schnaiderman nos demonstra que a palavra utilizada em um século foi transportada a outro, ainda na esfera política, estando intimamente ligada ao percurso histórico da Rússia. Esse percurso merece ser aqui enfatizado, pois é indispensável para o que iremos tratar. Seguindo o raciocínio do professor, é possível observar que a opressão cultural na Rússia, em diversos períodos, imperial ou não, foi perpassada por movimentos de revitalização, ainda que breves, e esses movimentos se caracterizaram por atividades relevantes em vários campos da arte. No entanto, na maioria das vezes, as obras de arte

74


75 Rússia, em diversos períodos, imperial ou não, foi perpassada por movimentos de revitalização, ainda que breves, e esses movimentos se caracterizaram por atividades relevantes em vários campos da arte. No entanto, na maioria das vezes, as obras de arte assim geradas permaneciam nos porões, gavetas ou arquivos por anos, até que pudessem ser mostradas no momento em que o poder instituído afrouxasse o rigor da censura. Foi o que aconteceu, por exemplo, com as telas, esculturas, gravuras e textos gerados no período das, assim denominadas, vanguardas russas. A maior parte dessa produção só voltaria a ser exibida e publicada, no início dos anos 1990.

(1)Andriêi

Rublióv

foi

concluído em 1966, mas só recebeu autorização para ser exibido, tanto na Rússia quanto no exterior, em 1971. (2) GULags [Glávnoie upravliénie ispravítelnotrudovikh lageriéi i kolonii — Administração Campos

e

Central dos Colônias

de

Trabalho e de Correção] eram campos

de

trabalhos

forçados onde foram presos milhões de russos, boa parte dos quais foi sumariamente executada.

(3) Igor Golomstock (1929-), crítico e historiador da arte de origem russa, radicado no Reino Unido.

O que conhecemos hoje como Glásnost foi precedido, portanto, de uma longa fase caracterizada por forte censura a todos os campos das artes, a partir dos anos 1930. Logo após a morte de Iósif Stálin (1879-1953) houve um movimento de abertura, conhecido como degêlo , durante parte do governo de Nikita Krushóv (1894-1971). Foi um período curto durante o qual Andriêi Tarkóvski (1932-1986) produziu o seu primeiro filme, A Infância de Ivan (1962), com o qual ganhou o Leão de Ouro e ficou conhecido internacionalmente. Mas, poucos anos depois, seu segundo filme, Andriêi Rublióv, amargaria anos sob a proibição de ser exibido, pois nova e pesada mão da censura recaiu sobre os artistas (1). Assim como ocorreu com Tarkóvski, durante o degêlo , outros artistas tiveram suas obras exibidas e alguns dos escritores até então proibidos puderam ter parte de seus livros publicados, ainda que com cortes e restrições. Um bom exemplo é Aleksandr Soljenítsen (1918-2008) cuja obra, dentre outras alegações, denunciava os GULags (2). E mesmo esse escritor logo passou a ser vedado e o fato de ter recebido o Prêmio Nobel de Literatura, em 1970, não impediu a sua expulsão da Rússia em 1974. Enquanto o regime soviético durou, toda e qualquer produção cultural deveria pautar-se por um conjunto de regras autoritárias, que norteavam o que se nomeou, sob o governo de Stálin, de Realismo Socialista. Apesar das regras sofrerem algumas variações de acordo com a pessoa e o grupo que detinha o poder, uma dentre as características dessas determinações merece aqui ser destacada. Citada também por Schnaiderman, tratava-se de uma característica tão peculiar e marcante que mereceu dos russos uma outra palavrinha para nomeá-la que é lakiróvika (proveniente de lak, que é verniz). Tal palavra era utilizada para traduzir a ação de envernizar , embelezar a história, dar-lhe cores que não se encontravam no cotidiano russo, mas, quando transportada para telas do cinema ou a óleo, gravuras, desenhos, fotografias, contos, romances e peças de teatro, atingiam um brilho, contraste e nuances que faziam crer a quem as apreciasse que os russos viviam nos melhores dos mundos, felizes e confiantes no futuro e, em um presente, por si só, próspero. Tal procedimento em discussão é característico do que Igor Golomstock (3) conceitua como Arte Totalitária. Ao estudála no contexto da União Soviética, do Terceiro Reich, do Fascismo Italiano e da República Popular Chinesa, Golomstock busca as implicações éticas dos artistas na produção estética em regimes totalitários. O teórico defende que, para modificar a


76 Fascismo Italiano e da República Popular Chinesa, Golomstock busca as implicações éticas dos artistas na produção estética em regimes totalitários. O teórico defende que, para modificar a ideologia, os regimes totalitários necessitam transformar os novos conceitos em imagens e mitos facilmente compreensíveis, conferindo-lhes autenticidade. Por essa perspectiva, a arte ascende a um relevante papel que é o que a reveste da característica totalitária: o papel de transformar a matéria dos princípios ideológicos em imagens e mitos destinados ao consumo de massa, ou seja, cabe à arte o papel de reformulador do imaginário de um povo, não deixando espaço à livre interpretação (GOLOMSTOCK, p. 12-13). Dessa forma, delineia-se um único ponto de vista para a história daquele povo.

(4) Boris Groys (1947-), crítico e filósofo nascido em Berlim, tendo realizado sua formação

acadêmica

em

No mesmo sentido, o filósofo russo-germânico Boris Groys (4), ao expor o início do Realismo Socialista e do que nomeia Estilo Stálin , assinala a metodologia gerada por decreto, colocando sob o regime do terror todos os artistas que dela se afastassem:

matemática, linguística e filosofia em Leningrado (hoje São Petersburgo), Moscou e Münster, respectivamente.

As atividades independentes dos grupos das vanguardas tornaram-se definitivamente impossíveis depois da resolução tomada em 23 de abril de 1932 pelo Comitê Central do Partido sobre a dissolução de todos os agrupamentos artísticos; de acordo com essa resolução, todos os 'trabalhadores criadores' soviéticos deveriam ser reunidos em 'uniões de criadores' únicas de acordo com o gênero de suas atividades: união de escritores, de artistas plásticos, de arquitetos, e assim sucessivamente. Este decreto do Partido que tinha como objetivo colocar fim à luta das facções à frente da arte e da cultura e submeter toda a prática cultural soviética à direção do Partido, inaugura formalmente uma nova etapa - a stalinista - na vida cultural do país (GROYS, 2008, p. 79). (5)

(5) Todas as traduções para o português, de citações em língua estrangeira, presentes neste

ensaio,

foram

realizadas pela autora.

Daí resultaria uma cultura que se orientava pela automatização da consciência, a sua sistemática condução de seu meio, sua base, seu inconsciente (Idem, p. 97). Ao discutir o que nomeou Estilo Stálin", Groys afirma que a época stalinista, precisamente, não produziu nenhum estilo próprio, claro, facilmente reconhecível. Ao invés disso, utilizou os mais diferentes estilos para criar, a partir deles, a obra de arte única, total, que era a própria realidade soviética. O homem soviético não viveu esses anos dentro da realidade, ele viveu dentro da arte" (GROYS, 2008, 13). A partir dessa afirmação de Groys, podemos afirmar, hipoteticamente, que a Glásnost teria promovido política e publicamente a ação de retirar e/ou colocar em evidência as camadas excedentes, cujo verniz construíra uma visão hegemônica da vida soviética através da arte, para revelar o que estaria abaixo delas. Porém, no território da arte, ainda que distante do público geral e de forma não oficial , esse movimento já vinha sendo realizado há longa data, ou, melhor dizendo: sempre existiu, em menor ou maior grau. Para tanto, sabe-se que os artistas colocavam em risco suas próprias vidas.


77 sabe-se que os artistas colocavam em risco suas próprias vidas.

(6)

Sots-art:

termo

que

remete a Socialismo Realista, do qual retira a primeira parte do nome, Sots (em russo Socialismo

Realista

é

Социалистический реализм/

sotsialístitcheskii

realism),

e

movimento

à

arte

artístico

do que

surgiu nos anos 1950, na Inglaterra e que ganhou grande força nos Estados Unidos, denominado Pop-art.

(7)

Discuto

alguns

dos

procedimentos, em especial o uso da perspectiva inversa no cinema de Tarkóvski, em minha tese de doutorado, Estratégias de construção no cinema

de

Tarkóvski:

a

perspectiva inversa como procedimento, defentido na PUC-SP, em 2007, onde também abordo alguns dos aspectos

do

cinema

de

Eisenstein e da obra de Shostakóvitch,

em

contraponto ao Realismo Socialista.

Em meus estudos, sejam do cinema ou das artes visuais em campo russo, tenho observado o esforço de vários artistas russos em desgastar essas camadas de verniz para colocar em questão o que elas estavam recobrindo. O Sots-art (6), por exemplo, ganhou força nos anos 1970, agregando artistas visuais, poetas, filósofos e teóricos por meio dos quais é possível entender a força desse movimento que se iniciou subterrâneo, contrapondo-se à arte oficial pautada pelo Realismo Socialista, e ganhou o mundo, articulando o gesto que nomeio de glásni, a partir das considerações anteriores sobre o significado dessa palavra. Da mesma forma, o gesto glásni pode ser observado na produção cinematográfica, caracterizando um cinema que coloca a público, através de procedimentos que articulam em linguagem o que até então se encobrira ou, ainda, se encobria. Utilizarei a palavra kinoglásni (lembrando que kino é a palavra russa que traduz o que nomeamos cinema, em português) para me referir a esse tipo de estratégia de construção cinematográfica de desvelamento de uma história envernizada que pode ser observada em cinemas como os de Tarkóvski, Serguei Paradjanov (1924-1990) e Kira Murátova (1934-), apenas para citar alguns cineastas cuja produção teve início entre os anos 1950 e 1960. Em um artigo breve como esse, não é possível abordar os diversos procedimentos observáveis como integrantes do gesto glásni, de desvelar, de retirar tais camadas de uma história contada segundo a conveniência e a determinação daqueles que ocupavam o poder em determinado período (7) e que definiu a Arte Totalitária na União Soviética. Aqui me deterei em apenas um único procedimento (dentre os vários), utilizado por Aleksandr Sokúrov em Taurus, filme que realizou em 2000. Buscarei demonstrar como o cineasta, de forma um tanto sutil e sofisticada, coloca a público um contraponto a procedimentos forjados pela estética totalitária na União Soviética. A memória russa recente com a qual Sokúrov se defronta e é justamente essa, urdida pela estética totalitária. O cineasta, em seu gesto kinoglásni, desvelador, vincula estratégias de reescritura do passado recente, colocando em cheque a história oficial. O envernizamento da memória russa pré-soviética iniciado já por Vladímir Lênin (1870-1924) talvez tenha ultrapassado todas as suas expectativas quando Stálin assumiu o poder e decidiu recontar ao seu modo a história, tanto a mais recente quanto a mais remota, objetivando a construção de um novo mundo, de um novo homem. Assim, o líder dirigia os seus contemporâneos, através da arte, para sonharem o que ainda não existia, mas que existiria, ou seja, a dirigirem o seu olhar, o seu pensamento, para aqueles que haveriam de sucedê-los e que seriam os verdadeiros homus soviéticus. Pode-se pensar que a produção de Sokúrov já estava distante do período stalinista e, portanto, distante das convenções do Realismo Socialista ou do que estamos aqui


78 distante do período stalinista e, portanto, distante das convenções do Realismo Socialista ou do que estamos aqui tratando como estética totalitária. Não é assim. É certo que as fórmulas canonizadas estavam cada vez mais desgastadas, mas ainda prevaleciam. De acordo com a historiadora de arte russa Ekaterina Degot (1958-), ainda na década de 1980, o Estado, portanto o poder instituído, realizava severo controle da produção cultural na União Soviética. Degot afirma que: Imagens em superfícies verticais - planejadas para consumo de massa- originavam-se de uma única fonte, oculta do consumidor - a fonte da autoridade artística e ideológica que durou todo o período soviético. Ainda nos anos oitenta, o Estado mostrava controle total sobre tudo o que era mostrado em superfícies verticais: controlava filmes, outdoors, cartazes, painéis, anúncios, jornais de parede. Isso sem contar que o Estado também continuava controlando a pintura tradicional que era exibida em museus, ainda que as pinturas tenham se tornado nesse momento, pouco mais que outdoors ideológicos (DEGOT, 2005, p. 366).

E, no mesmo sentido, escreve Boris Groys, entre 1987 e 1988, pouco antes da dissolução da União Soviética: [ ] a doutrina do Realismo Socialista continua sendo hoje, como antes, oficial, obrigatória para toda a arte soviética, e conserva todas as fórmulas originadas nos anos de Stálin (GROYS, 2008, p. 32). Por outro lado, a biografia de Sokúrov nos informa que um grande conjunto de seus filmes, produzidos no final dos anos 1970 e nos primeiros anos de 1980 ficaram retidos, impedidos de ser exibidos, a começar daquele realizado como seu filme de formatura, em 1978, A voz solitária de uma pessoa, e outros que se seguiram quando o recém-formado diretor foi convidado a trocar Moscou por Leningrado e lá deu início a uma série de filmes classificados como documentais , que só seriam finalizados e exibidos justamente quando se iniciou a Glásnost. Não foi esse o caso de Taurus, filme do qual iremos nos aproximar agora. Produzido para integrar o que hoje conhecemos como Tetralogia do Poder, o filme foi realizado em 2000, singularizando-se por ter o próprio cineasta como diretor de fotografia. E é justamente um aspecto dessa fotografia que passarei a apresentar, deixando para outra oportunidade a complementação de outros procedimentos que caracterizam esse filme, não apenas no campo da fotografia, mas também do som, da direção de atores, da própria narrativa e, fundamentalmente, da montagem, no escopo do que está sendo compreendido como kinoglásni.

ao lado

Boris Eremeevich Vladimiski. Lenin no amanhecer vermelho, 1949


79 Sokúrov articula um franco embate com o Realismo Socialista. E o faz corpo a corpo, entendendo-se aqui esse corpo enquanto o corpo da arte, tela com tela, do cinema com o cinema, do cinema com a pintura. (8) Viktor Shklóvski foi um dos fundadores do OPOIAZ (em russo: Óbchchestvo izutchéniu poetítcheskovo iaziká, ou seja, Associação para o Estudo da Linguagem Poética),

um

pesquisas

centro

de

“formalistas”,

fundado em 1914, por jovens investigadores da linguagem. É

dele

o

conceito

de

estranhamento (ostraniênie), que,

resumidamente,

c o n s t i t u i - s e

e m

procedimento artístico para combater o automatismo perceptivo.

Para alcançar esse gesto, Sokúrov se aproxima do pensamento de Viktor Shklóvski (8) para quem o propósito das imagens é dar ao objeto um nome novo (SKLOVSKI, 1971, p. 36). E como fazer isso? O próprio Shklóvski afirma que apenas dessa maneira o objeto será arrancado da sequência de associações habituais, oferecendo ao espectador a possibilidade de desautomatizar a percepção habitual. Em Taurus, Sokúrov resgata os últimos dias de Lênin em luxuosa datcha nas cercanias de Moscou, em Górki Lenínskie, onde, historicamente, residiu ao lado de sua esposa, Nadéjda Krúpskaia (1869-1939), seu médico e sua guarda pessoal. O cineasta perscruta quais teriam sido as últimas inquietações do grande revolucionário frente à inevitável perda do poder e do controle sobre os rumos da Revolução; diante da doença, da morte, do fim. A figura de Stálin se faz presente, em breves, mas decisivos momentos. E Sokúrov reconstitui, com requintes cirúrgicos, as imagens dessa estranha e terminal relação na vida dos dois líderes bolcheviques em um momento crucial, tanto para suas vidas quanto para o destino da Revolução. Se pensarmos essa reconstituição em termos de sequências de associações habituais , podemos confrontar a imagem visual, a fotografia, propriamente dita, que nos é apresentada em Taurus, com os documentos históricos que conhecemos e, assim, poderemos constatar, dentre outros aspectos, os que pontuaremos a seguir. Primeiro, a locação, uma rica mansão, propriedade privada que foi nacionalizada pelo poder soviético, em Górki Lenínskie. Nesta casa, Lênin residiu nos últimos anos de sua vida. Segundo, a caracterização das personagens confere assustadora verossimilhança, identificável pelas fotografias históricas de personalidades conhecidas: Lênin, Krúpskaia e Stálin. Terceiro, os objetos de cena, automóveis, móveis, utensílios e mesmo a câmera fotográfica, presentes em várias cenas, estabelecem forte associação semântica a um período, dos primeiros decênios do século XX. Poderíamos seguir com outros elementos, mas esses já são suficientes, por enquanto.

ao lado

Andreev K. Lenin, 1968 Stepan Mikhailovich Karpov. Lenin, 192? Isaac Brodskiy. Vladimir Ilyich Lenin, 193?

Diante do exposto acima, parece-nos que tudo está de acordo com o que poderia se constituir em associações habituais , ou automatizadas . E se pensarmos, seguindo Shklóvski, que o que produz o efeito de estranhamento (ostraniênie) é o que nos desvia da semelhança, do reconhecimento imediato, o que se abre como diferenciação, notaremos que há um procedimento no campo da fotografia, dentre outros (como já assinalamos acima) que gostaria de acentuar aqui, como um desvio das associações habituais . A interferência que Sokúrov realiza na fotografia, em Taurus, confere a este filme, literalmente, um colorido especial. Porque Sokúrov retira, subtrai do filme, no todo ou em parte, uma camada de cor: a cor vermelha. Justo a cor que, automaticamente , se associa habitualmente , ao período soviético, a Lênin, à Revolução.


80 automaticamente , se associa habitualmente , ao período soviético, a Lênin, à Revolução. Explico. É característico da arte do Realismo Socialista, ou, como quer Groys, do Estilo Stálin", que seguiu, em termos, o que já vinha sendo praticado pelo seu antecessor, as cores vivas, luminosas, vibrantes e, principalmente o uso do vermelho. Lênin e Stálin foram retratados inúmeras vezes cercados de flores, lenços, bandeiras, tudo vermelho. As ilustrações abaixo oferecem alguns bons exemplos:

(9)

Faz-se

necessário

estabelecer as distinções no significado desses fatos para os russos. A nomenclatura “Segunda Guerra Mundial” é disseminada

nos

países

europeus e americanos (norte e latino-americanos), mas para os russos e demais povos que integravam a União Soviética, essa guerra é conhecida como “Grande Guerra Patriótica”, e o “Dia da Vitória” é comemorado como o maior acontecimento na História Russa recente.

No campo do cinema, examinemos alguns frames de A Queda de Berlim (Padiênie Berlina), realizado em 1949, por Mikhail Tchaureli (1894-1974). Este filme foi uma encomenda dos dirigentes do Partido para retratar a vitória dos russos sobre os alemães, na Segunda Grande Guerra, narrando, principalmente, fatos heróicos que concorreram para alcançar o Dia da Vitória , em Berlim (9) e, de forma alegórica, opondo as figuras de Stálin e Hitler. Sabe-se, hoje, que, apesar das qualidades de Tchaureli, o diretor artístico foi o próprio Iósif Stálin.




83 Mikhail Tchaureli foi um cineasta da Geórgea, país que integrava a União Soviética e onde nasceram Vladímir Maiakóvski (1893-1930) e o próprio Stálin. Tchaureli pertenceu a mesma geração de Serguei Eisenstein (1898-1948), sendo este apenas quatro anos mais jovem; da mesma geração de Dziga Viértov (1896-1954). Mas seu lugar está garantido entre os maiores representantes da estética soviética stalinista no cinema. Sobre esse filme, o verbete que faz referência à Tchaureli, do Historical Dictionary of Russian and Soviet Cinema, comenta: [ ] este panorama histórico monumental foi caracterizado, mais tarde, como um dos principais exemplos de vergonhosa falsificação da história e deixou de ser distribuído após a morte de Stálin (2009, p. 141). Se por um lado, Mikhail Tchaureli realizou A Queda de Berlim submetendo-se ao Estilo Stálin , à arte domesticada e normatizada sob a intervenção direta de Stálin, de outro, Sokúrov empenha-se por retirar camadas de verniz da suposta realidade (histórica) depositadas pelos artífices do realismo socialista em torno da vida de Lênin, sublinhando sua ambígua relação com Stálin. E essa camada corresponde, em Taurus, à cor vermelha. Ainda que não caibam aqui explicações técnicas detalhadas sobre manipulação de imagens, no terreno da óptica, sobre cores, matizes, saturação, intensidade e outros, não

páginas anteriores

A queda de Berlim. (TCHAURELI, 1949)


84 podemos seguir sem que se compreenda, ainda que minimamente, os fundamentos do procedimento utilizado por Sokúrov para se desviar das associações habituais através do deslocamento semântico da cor, em Taurus. Pois bem, sabe-se que na escala cromática das cores-luz (utilizadas em monitores, telas, etc), as cores primárias são o vermelho, o azul e o verde e que, da junção dessas resultam o ciano, o magenta e o amarelo. E dessas seis cores unidas obtém-se o branco. Assim como demonstra a ilustração a seguir. Na próxima página, podemos compreender melhor como, como da variação dos pontos vermelhos, em uma imagem eletrônica, pode resultar no verde, com maior ou menor intensidade de azul. Os pontos que compõem as cores estão ampliados para que se possa observar o procedimento em discussão. Assim, temos que quanto maior for a porção de vermelho retirada de uma imagem, através de filtros ou programas de manipulação, maior será a predominância de ciano, com mais ou menos matizes de azul ou de verde. Vejamos como ficariam as imagens de Lênin com menor incidência do vermelho. Trata-se de um exemplo ainda grosseiro, sem trabalhar outros elementos que Sokúrov elabora e afina à perfeição em sua paleta de mestre da luz e da cor. Porém são exemplos esclarecedores do que está em discussão.


85

E agora observemos, ao longo das próximas páginas, algumas imagens de Taurus. Durante todo o filme, há variações de matizes em torno do verde e do azul, porém as cores são sempre contidas, não permitindo que o vermelho sequer se exponha. O cineasta utiliza este e outros recursos do plano estético para discutir a ética histórica, ou, como já enunciado, retirar camadas do verniz depositado pelos anos de Realismo Socialista e sua ação se constitui em adentrar camadas de códigos estéticos para transgredi-los. O verniz, nesse caso, retomemos, pode também ser entendido enquanto artimanha para esconder o que não convém ao regime mostrar, ou para realçar o que se deseja. Pautando-se por esse desdobramento ético no cinema de Sokúrov, é possível observar, também de forma ligeira, a título de complementação do que foi exposto a respeito do desvio da cor, ainda com o intuito de provocar e instigar a reflexão do leitor, um outro procedimento de deslocamento e reescritura crítica da História, no mesmo filme. Refiro-me à última sequência de Taurus onde o cineasta apresenta Lênin retido em uma cadeira de rodas, impossibilitado de andar e de falar. Sokúrov ensaia o que poderiam ter sido os últimos momentos daquele que, através da ação, promoveu a maior e mais abrangente revolução no mundo, da qual, talvez, ainda hoje, sequer tenhamos noção do verdadeiro alcance. E eis que o cineasta refaz a lembrança daquele que é considerado o mais grandioso e inolvidável líder revolucionário assim: preso, imobilizado, não tendo nada melhor a fazer senão, com grande custo, estender a sua cabeça senil em direção ao espaço celeste.


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91 Alguém que já tenha visto as inúmeras fotografias, desenhos, pinturas e filmes que representam o grande líder russo consegue imaginá-lo olhando para o céu como que a pedir uma resposta? O que sempre observamos nessas representações é o líder entranhado na luta humana, em seu país. É Lênin que está sempre acima da multidão e para essa é ele o céu, o líder máximo, o condutor e é, em direção a ele, que a multidão sempre eleva o olhar. Mas não podemos nos esquecer de que se trata de Aleksandr Sokúrov e que, embora tenhamos abordado, neste ensaio, a fotografia e, portanto, o que pode ser visto, estamos diante de um artista que elabora um cinema que não se refere apenas ao plano do visível. O cinema de Sokúrov remete ao plano dos segredos por revelar. Assim, finalizar o filme sobre o maior dos símbolos revolucionários, para quem o horizonte era a prática terrena da revolução, fazendo-o olhar para o céu, parece inconcebível, ao menos para aqueles que se habituaram a ver em Lênin uma espécie de deus inalcançável: enquanto vivo, envolto na chama vermelha da revolução, sempre inquieto e lutando, para o qual todos erguiam os olhos e, mesmo quando morto, embalsamado no Mausoléu de Lênin (Mavzoléi Lênina), foi exposto para ser reverenciado na Praça Vermelha, há quase um século, para onde todos continuam dirigindo os olhos, desde que o referido Mausoléu, é na voz corrente, o local mais visitado da Rússia. Mas essa foi a opção de Aleksandr Sokúrov. Além de buscar que o espectador mergulhe em uma profusão de verdes e azuis, afastando da figura de Lênin o vermelho, a chama ardente que norteou a sua vida e a vida de tantos povos, conclui seu filme entregando o olhar do líder aos céus como se aguardasse uma resposta, logo ele que era ateu. Talvez seja essa também uma forma provocativa de Sokúrov, em mais um gesto kinoglásni, de remeter o final do filme ao trajeto inicial e histórico de tão mítico protagonista, remontando ao período entre 1901 e 1902, quando Lênin escreveu O que fazer? (Chto delat?). Pois, eis que, frente à perda de suas funções motoras, isolado de todos, impotente diante da certeza de sua morte e da incerteza dos rumos da Revolução, seria possível que o herói que parecia invencível e imortal esperasse dos céus a resposta sobre o que fazer?

páginas anteriores

Taurus. (SOKÚROV, 2000)


92 Bibliografia DEGOT, Ekaterina. Official and unofficial art in the USSR: the dialectics of the Vertical and the Horizontal. In KRENS, Thomas. Russia ! Nine hundred years of masterpieces and master collections. New York: Guggenheim Museum, 2005. 426 p. Catálogo de exposição. GOLOMSTOCK, Igor. Totalitarian Art in the Soviet Union, The Third Reich, Fascist Italy and the People's Republic of China. New York: HarperCollins. 1990. GROYS, Boris. Obra de Arte Total Stalin. Trad. Desidério Navarro. Valencia (Espanha): Pre-Textos, 2008. Original russo. KRENS, Thomas. Russia ! Nine hundred years of masterpieces and master collections. New York: Guggenheim Museum, 2005. 426 p. Catálogo de exposição. ROLLBERG, Peter. Historical Dictionary of Russian Soviet Cinema. Lanham, Maryland. Toronto. Plymouth, UK: The Scarecrow Press, 2009. SCHNAIDERMAN, Boris. Os escombros e o mito. A cultura e o fim da União Soviética. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. SKLOVSKI, Viktor. Cine y lenguaje. Trad. Joaquin Jordá. Barcelona: Editorial Anagrama, 1971. Original russo. TUCHINSKAYA, Alexsandra. Annotation about Taurus (Telets). Filmography. Features films. The Island of Sokurov. A official website of Aleksandr Sokurov. http://www.sokurov.spb.ru/island_en/ flm.html (acesso em 09.08.2011).





INTERSECÇÕES



98

Sokúrov e seu Fausto autoral Jerusa Pires Ferreira Prevalece, no filme, a ideia do amor como uma explosão de luz, um sol, parte do deslumbramento que põe em destaque a grande aventura da Vida e do Conhecimento, a busca de todos, inclusive, aquela do doutor pactário. Na tela, os rostos de Fausto e de Margarida saltam do ambiente escuro e propiciam ao espectador um verdadeiro delírio visual. Breve luz com a intensidade capaz de derrotar as trevas. Aliás, o amor, a juventude, o conhecer, suas várias formas de conquista e da repressão a que estão sujeitos, e, na sequência, o poder são os pilares da grande narrativa, que percorre as eras e, em seu tecido lendário, vai encontrando diferentes formas de dizer, em gestos e tempos diversos. Mito e História aí andam juntos. Por isso, nos falaria Fernando Pessoa, em seu Fausto, da procura e do horror de conhecer como face e contraface da mesma demanda inquieta. Um dos mais importantes criadores do cinema dos séculos XX/XXI, Aleksandr Sokúrov, no seu Fausto (Faust, 2011), nos permite acompanhar aquilo que persiste em muitos autores e versões e nos mostra o que se faz premente no entendimento do tema. Vencedor do Leão de Ouro 2011, em Veneza, assistir ao filme, cujo roteiro foi escrito por e l e

ao lado

Fausto. (SOKÚROV, 2006, 00:39:41)


99

(1) Cf. Aleksandr Sokúrov. Álvaro Machado (Org.). São Paulo: Cosac Naify, 2002.

e ainda Marina Kóreneva e Iuri Arábov, nos leva a mapear o horizonte faústico e a entender as razões das preferências. Para a Academia e para o público, contam muito a originalidade da máquina visual, a grandeza e importância que o drama faústico ali assume. Inquirições sobre o poder e suas armadilhas se adensam na tetralogia em que Sokúrov consegue relacionar História, Política e cogitação filosófica. Já se disse que o autor busca o centro corruptivo do poder para configurar a explosão daquilo que se chama a alma humana (1). Lembremos que sua obra, intensa e contínua, povoada de experimentos diversos, tem, no documentário, um pilar resistente. Curioso é o fato de ele chamar Elegias os seus pequenos filmes documentais. Segundo suas palavras, estão aí visões do desejo e do abismo. O Fausto é, por enquanto, o último da série. A anatomia do poder vai se ligando a outros fragmentos da obra deste cineasta, que tem a obsessão da experiência e da intensidade criadora. Numa interessante entrevista que acompanha a filmografia, anotada por Kirll Galett, publicada na revista Cineste (2001), e a ele concedida em São Petersburgo, diz Sokúrov que os temas estudados, em geral, não são os únicos a interessar e que vida e morte são questões de arte. Por isso, aponta para linguagens e seus detalhes. E aqui evoco a famosa cena de O Sol (Solntsié, 2004) filme anterior da tetralogia do poder, em que o imperador japonês espera que o general lhe abra a porta. Tomada grandiosa em que há um teatro de hierarquias e uma conjunção do personagem, da tradição e da história, em espantosa síntese. O cineasta afirma mais uma vez sua vinculação com a literatura e a música clássicas, coloca no artista pontos para uma nova sinceridade e lembra, por exemplo, no seu Fausto, a importância da pintura flamenga que repercute em cenários, aproximações visuais, e configuração de ambientes. Aliás, o Fausto nos oferece um tesouro de imagens, fazendo-se o cineasta um pintor destas. E é então, e a seu lado, que vão correr as escolhas morais. O filme russo, falado em alemão, iniciado na República Tcheca, utilizando em suas locações bairros antigos e castelos da espantosa cidade de Praga, viaja também por espaços da Alemanha e culmina com as tomadas feitas na Islândia. A difusão espacial, em seus locais e circunstâncias, nos levam a acompanhar a extensão do tema em tempo/espaço, e é um equívoco pensar que ele se assenta no século XIX. Em verdade, há uma transtemporalidade e também uma alusão bem clara aos saberes, práticas e situações do Renascimento. As espantosas cidades ganham uma dimensão própria, aquela onde o Fausto, corporificado no século XVI, teria nascido e a outra onde se deu a sua morte. Pude visitar Knittlingen onde o famoso doutor teria morrido. Naquele espaço, habitado pelo drama, os sinos, em seus toques diversos, nos convidavam a ver que a lenda sobrevive.


100 É dessa maneira e ainda com outros parâmetros que somos levados por Sokúrov para entrar nos porões da Medicina e da Anatomia, de duro desempenho, e revelada em toda a crueza, num desafio sem fim. Com a dissecção e a exibição de órgãos humanos, a sordidez dos porões do conhecimento. Sua leitura humanista passa pelos filtros do Iluminismo, pelo encontro com Goethe, que imortalizou o drama para a Literatura e outras artes, e que é de fato um dos autores mais difundidos do grande texto faústico (Fausto no Horizonte, São Paulo, Hucitec/EDUC, 1995). Nele, a complexa discussão sobre a Ciência em geral, e no caso, as naturais, avança de modo a propor uma experiência que pode ultrapassar situações de perdição e de salvação. Trazendo então outro tipo de saber, aquele da descoberta do corpo humano e animal, ressurgem alusões à velha lenda cabalística do Goléme, do mesmo modo, prefigurações que apontam para o futuro. Tudo isto nos faz deparar com a perturbadora criação do homúnculo. Neste filme russo, a imagem da criatura é mostrada num hiperrealismo bizarro. Diante de mais esse Fausto, o pesquisador atônito se defronta com os materiais inesgotáveis de sua recolha e se posiciona numa leitura que não se pretende interpretativa, mesmo sendo este um Fausto fortemente autoral. Escrever sobre a obra de Aleksandr Sokúrov, visando o seu Fausto, é percorrer caminhos tão intensos quanto perturbadores, e é como se de repente nos situássemos diante de um monstro de sete cabeças. Mas há um convite feito por nossa própria pesquisa para ir preenchendo tantos detalhes ao buscar conexões desse repertório temático, do Volksbuch, de Spiess, ao Fausto, de Marlowe, às artes contemporâneas. Como o filme se desenrola colado ao Fausto de Goethe, comparecem o espanto, a adolescente angélica, a taberna, a morte do irmão, a mãe gananciosa, a loucura. Mas não convém dizer que seria este uma versão do texto do poeta alemão. A música do filme é sinfônica e esteve a cargo de Andrei Siegle. O espelho é uma referência permanente nos Faustos de Marlowe, de Goethe, e está aí uma alusão a Tarkóvski. A preocupação com a natureza, a tempestade, os raios, o sobrevoo nos evocam cenas do insuperável clássico de Murnau, e até mesmo daquele extraordinário incêndio que se dá num bosque, retratado por Manoel de Oliveira, no seu Fausto, que recebe o nome de O Convento. Quanto aos ofícios da medicina, o lidar com os intestinos, as vísceras, que escorrem, os mistérios do corpo e da alma, a sujeira e a limpeza, temos a dor do mundo enquanto dor da alma. Nos subsolos da Ciência, tantos impasses e constatações a causar perplexidade e a figura do Médico e mestre como o cientista pobre. Em meio ao horror de cenas de brutalidade e crueza, o médico é mostrado como um homem faminto e miserável, e o Dr. Fausto vai mesmo penhorar a pedra filosofal; neste momento, tempo e arte já não valem. No episódio do aprendiz, a palavra morre antes de sair da caneta. Wagner, o aprendiz e seu incontido amor pelo mestre. De cada texto ou citação, ele pede mil explicações, protege e emula, e Iduberga, a criada, conhece cada objeto, os venenos e a cicuta.


101 Mefisto

Mefisto é sempre um mediador que toma um lugar muitas vezes central na apresentação do drama. Já o encontrei no cinema, no teatro e na literatura, apresentado das mais diversas maneiras. No teatro barroco de Erlangen, na Alemanha, e quando da apresentação de um Urfaust, já o presenciei, em sua condição dançarina, irônica de uma leveza sem par. Suas formas de apresentação implicam sempre em transgressões de domínios e transformações inusitadas de figuras. Assim, nos impressiona, no filme Demência, de Carlos Reinchenbach, a persona mefistofélica de uma senhora loira, que transita nos espaços do centro de São Paulo. Quanto a Mefisto, de suas transformações e poderes resulta uma grande variedade, uma coincidência de opostos, mas sempre lhe é atribuído um papel central na trama. Dizem que o diabo fica onde há dinheiro e, no Fausto, de Sokúrov, o dinheiro cai sobre a mãe de Margarida, vira uma chuva de ouro, numa menção à mitológica Danae. Porém, um dos pontos mais contundentes do filme é mesmo a chegada deste Mefistófoles. Sua máscara teatral é tão impressionante que, para além da paródia, consegue inocular de saída tragédia e desespero. Mefisto vai cagar perto da igreja e, perguntado sobre o fato, ele confessa que o chamam de diabo, mas que ele perdeu o olfato. Em sua caracterização, sua figura não apresenta órgão sexual, um leproso, um bode velho, em que transparecem a velhice e a castração. Além disso, em seu corpo tão deformado, mostra-se um rabinho. Ao colocar ênfase na figura e na maquiagem de Mefisto, que dá sentido a este papel de mediador e perdedor, faz-se acrescentar o de mago que consegue transformar água em vinho. Estaremos diante de uma situação prototipada, daquilo que se chamou o demônio logrado, de quem se diria um pobre diabo. Mas a figura do ator, no filme, confere tamanha intensidade ao papel, à sua presença que, por muito tempo, percebemos como se enreda em tudo a generosa maldade. A cena do banho das operárias, de onde emerge a beleza de Margarida, concentra e presentifica toda intensidade de uma figura ambígua, esquiva, atuante e desesperada. Dele não escapam as cogitações sobre o trabalho que mutila e reduz as criaturas a um destino inglório, aos dedos tortos de esfregar lençóis. De fato, para se fazer um filme desses tem-se de passar a vida estudando o tema, percebendo os atalhos e labirintos que ele propicia. Ninguém imagine que tudo começou nos tempos modernos. Vem de muito longe, a perder de vista e já com grande força no texto bíblico. Difícil e prazeroso é seguir tudo isso, mais difícil e quase impossível será explicar, a partir dos grandes poetas que o trouxeram, e de uma complexa rede textual que organiza e conduz utopias e desacertos. São muitas as formulações para o entendimento da Ciência, da narrativa; da teatralidade que torna presente o grande Pacto e seus objetos concretos. Estão em cena os impasses da Vida e da Morte. E tanto se pode falar de um boneco do teatro popular quanto de um grande escritor, cuja obra é traduzida e retraduzida muitas vezes. De um cineasta que recebe prêmios ou alguém como Thomas Mann, que num livro explica as razões e a construção do seu Fausto. Daí o desafio de considerar-se Mito e História numa alternância sem tréguas. Apareceram as nações, os diferentes sotaques, a presença de Faustos alemães e ingleses


102 de todo tipo, por exemplo, aqueles que foram recebidos pelos sistemas literários e os que foram expulsos, nem chegando a eles. Mas o grande texto permanece veiculando um dos temas fundantes da humanidade.

(2) Cf. Pires Ferreira, Jerusa. “Cultura e Memória”. In: Armadilhas da Memoria. São Paulo, Ateliê Editorial, 2003.

Fausto e o mundo seria explícito demais para falar de como o Dr. Fausto se transforma num texto de cultura (2), na acepção de Iuri Lotman, e, portanto, o modo de encará-lo é sempre uma emergência, um inesperado que traz a marca persistente, que, ao mesmo tempo, transita dos registros solenes aos paródicos, fazendo-nos entender a materialidade do presente e a eternidade entrevista como promessa. Retornando ao Dr. Fausto e a Mefisto, seu grotesco e assíduo companheiro, no filme de Sokúrov, veremos as incursões pela natureza, em acordo ou em fúria, percebemos o enigma do grande final. É a água que brota do centro da terra, lugar de onde não haverá retorno. E sob essa inquietação entendemos o quanto será preciso procurar no desafio dos limites humanos, na decifração da arte que jamais cessará. Como nos lembra Valéry e em suas palavras: faz parte do meu destino fazer o percurso completo das opiniões possíveis, sob todos os pontos de vista, conhecer sucessivamente todos os gostos e desgostos, fazer, desfazer e refazer os nós que são os acontecimentos de uma vida (3).

(3) Fausto de Paul Valéry. Paris, Gallimard, 1946, p. 25. Tradução livre de JPF.

ao lado

Fausto. (SOKÚROV, 2006, 00:40:50)



The article describes and evaluates some links between the

O artigo descreve e avalia algumas aproximações entre os

themes and historical concepts and work of Alexander

temas, conceitos históricos e a obra de Aleksandr Sokúrov.

Sokurov.

Ao rever criticamente formulações da historiografia sobre o

In

reviewing

critically

formulations

of

historiography about the director, in assessing the

realizador, na sua apreciação da temática histórica, o artigo

historical theme, the article dwells on the representation of

detém-se sobre a representação da figura do militar,

the figure of the military, assessing how this representation

avaliando como esta representação ocorre em filmes de

occurs in films of fiction and nonfiction. The text suggests

ficção e não ficção. O texto sugere que o estudo da

that the study of the representation of the military may be

representação do militar pode ser útil tanto para criticar a

useful to criticize the division fiction / nonfiction

divisão ficção/não

ficção, na classificação

da obra

classification of the work, as well, mainly to suggest an

sokuroviana, quanto, principalmente, para sugerir em

aesthetic sensibility in Sokurov specific filmic treatment of

Sokúrov uma sensibilidade estética específica para o

the relationships between historical and political themes.

tratamento fílmico das relações entre temas históricos e políticos em sua obra.

O Sonho do Soldado: incursão histórica e estética

em torno da figura do militar na obra de Sokúrov Marcos Kahtalian I. Introdução

Este artigo pretende apreciar a obra de Aleksandr Sokúrov, observando criticamente a presença das figuras militares na obra do realizador. O que se objetiva é demonstrar, através da apreciação analítica de obras emblemáticas e à luz do diálogo com a tematização histórica do poder e do militarismo na historiografia cinematográfica russa, as transformações e inversões de sentido que Sokúrov realiza no correr de sua obra, oscilando entre os pólos mais vivamente históricos para aqueles mais alinhados com uma história interna, particular ou familiar. No desenvolvimento deste artigo, começarei com uma exposição sintética das principais visões da crítica, especificamente sobre os cruzamentos entre história e poder na obra de Sokúrov. Em seguida, abordarei particularmente a presença do contexto do militarismo em sua filmografia e dos possíveis alinhamentos com a vasta tradição da cinematográfica russa sobre o tema, contextualizando historicamente esta presença em termos de história soviética e russa. De forma conclusiva, na terceira parte deste artigo, apontarei para uma hipótese investigativa sobre a possível especificidade da presença do militar na obra de Sokúrov, detendo-me sobre o desenvolvimento das relações familiares nesse contexto. Para tanto, como objeto de análise, deter-me-ei sobre dois filmes do realizador: Aleksandra (Aleksandra, 2007) e O Sonho do Soldado (Soldatski Son, 1995), mas também sobre outros filmes que apontam para a figura do militar. Na análise desses filmes, observarei tanto a tematização do filme, quanto, principalmente, os desenvolvimentos estéticos desse tema militar em termos de recursos narrativos e apontamentos estilísticos. Ao final, procurarei sugerir possíveis encaminhamentos para uma compreensão mais aprofundada do militar e das relações de poder, dentro da cinematografia de Sokúrov.

104


105 (1) Não pretendo elencar aqui

II. Aproximações entre a obra sokuroviana e a História

todos os filmes em que esta presença ocorre devido à extensão e diversidade da obra sokuroviana. Basta, no entanto, para justificar a asserção,

apontar

os

seguintes títulos onde o elemento

histórico

evidencia-se imediatamente na tematização do discurso: em obras longas ficcionais, a assim chamada tetralogia do poder,

(especialmente,

Moloch

(Molokh,1999),

Taurus (Téliets, 2000) e o Sol (Solntsie, 2004), Arca Russa (Russki Kovtcheg ,2001) e Alexandra

e

em

obras

documentais: Sonata para Hitler (Sonata dlia Glítera, 1979-1989), Elegia Soviética (Sovietskaia Eléguia, 1989), Vozes Espirituais (Dukhóvnie Golós, 1985), Diálogos com Soljenítsin

(Besiedi

Soljenitsinin, 1998), O Sonho do Soldado, e Lemos o livro do bloqueio

(Tshitaiem

Blokadniu Knigu, 2009). A esse respeito ver interessante reconstituição do período in: CONDDE, Imperial

Nancy.

Trace.

The

Oxford:

Oxford Press, 2009. p. 161163. É desse período o filme que seria considerado depois seu primeiro trabalho de não ficção: Maria (Mária, 1978). A título de curiosidade: Ainda atualmente, 2012, a VGIK divide suas graduações em duas

áreas,

graduação

sendo de

a

filmes

didáticos mais acessível, do ponto de vista financeiro, e com

menor

tempo

de

estudos. (2) VGIK( Vsiorossiski gosidárstveni universitiét kinematógrafi imeni S. A. Guerasímova, Universidade de Cinematografia do Estado Russo S. A. Gerassímov) é a mais antiga escola de cinema do mundo, foi criada em

É possível observar a presença dos temas históricos em Aleksandr Sokúrov em obras de ficção e não ficção, em formatos curtos, médios e longos, seja para o cinema ou televisão (1). A própria gênese do realizador aponta também para o percurso histórico: é notável registrar que Sokúrov iniciou sua formação acadêmica graduando-se em história, na Universidade de Górki. Depois de um início trabalhando na televisão, Sokúrov transferiu-se para a conhecida VGIK (2), onde, aos 24 anos, graduou-se também em realização de filmes, porém escolhendo como área de habilitação não a direção de filmes de ficção, mas de filmes pedagógicos , ou, como eram chamados no período, os filmes científicos destinados à proposição de temas educativos e de instrução. Estes filmes eram normalmente passados nas salas de exibição como primeira parte dos programas, e concentravam muitos filmes educativos de interesse do governo soviético, películas sobre animais, pragas no campo entre outros temas (3). Este início técnico teria sido marcante para Sokúrov, não apenas por sua grande dedicação a filmes documentários o número de filmes ditos de não-ficção é quase o dobro dos seus filmes considerados de ficção - mas também, como aponta o estudioso de cinema russo François Albera (ALBERA; ESTÈVE, 2009, p.14), pela indistinção que realizaria Sokúrov entre os dois grandes gêneros, inclusive, filmando em suportes de Vídeo e exclusivamente para a Televisão. Este cruzamento entre a obra sokuroviana e elementos de temática histórica não passou despercebido pela crítica tradicional e pelos estudiosos de cinema russo em geral. A seguir, aponto aqui para algumas das principais aproximações já desenvolvidas pelos pesquisadores. Nancy Condee, professora de estudos eslavos e cinema da Universidade de Pittsburgh, coeditora do periódico Studies in Russian and Soviet Cinema, apresenta o cinema de Sokúrov como também (mas não apenas) indiciário daquilo que ela denominou o traço imperial. Este traço imperial seria a manifestação fílmica, do ponto de vista temático, dos elementos que constituem o substrato histórico cultural do império russo mesmo que este império apresente-se sob a forma da impositiva onipresença do estado, como foi o período soviético e mesmo o período atual, pois o que caracterizaria o império russo seriam sua sequência, duração e contiguidade (CONDEE, 2009, p. 2022). Este traço imperial, portanto, elemento constitutivo da identidade russa, segundo a autora, e com forte reflexão crítica, sobretudo nos estudos eslavos de literatura em língua inglesa, poderia ser estendido como elemento notável na obra de alguns


106 1919, em Moscou. (3) A lista de críticas à baixa historicidade de Sokúrov e mesmo alienação é rica e antiga, datando mesmo dos tempos de estudante de cinema. Para uma visão crítica da diversidade de avaliação crítica de Sokúrov, no contexto russo e soviético, remeto

a

BRASHINSKY;

HORTON. Russian Critics on the Cinema of Glasnost. Cambridge:

Cambridge

Univ.Press, 1994, à avaliação de Dias de Eclipse (1988) e a meu próprio texto, centrado nesta

questão,

sobre

a

avaliação de Arca Russa, ver: KUJUNDZIC KAHTALIAN

(2003)

e

(2012).

realizadores cinematográficos, entre eles Sokúrov. Particularmente a autora se detém em Moloch, Taurus, O Sol e Arca Russa demonstrando como a tríade morte-impériocultura, encontram-se entrelaçadas. Essa tríade, nos últimos trabalhos do autor, estariam relacionadas nos tropos da igreja, do museu e do militar, em que a igreja seria o espaço espiritual, o museu como espaço da arte, e o militar como espaço do império e do poder (CONDEE, 2009, p. 178-179). Guardo especialmente esta noção do militar como figura importante na obra sokuroviana, pois sobre ela pretendo me deter na parte final deste artigo, notando também que mais de uma vez Nancy Condee refere-se a essa figura como central em sua tese de permanência do traço imperial, seja no centro, seja nas bordas de um império que se esfacela e arruína-se, como sugerido pela Arca Russa. Sokúrov, segundo a autora, teria sido o primeiro e principal cineasta a denunciar o colapso do império e sua irrealidade (idem, p. 182). Com relação ao poder, François Albera, por sua vez, destaca o grotesco e a degeneração física e mental de Lênin em Taurus, figura obviamente central na história e iconologia soviética e russa, e aponta que, em Sokúrov, haveria uma espécie de genealogia fílmica sobre aquilo que ele nomeia O Homem de Poder (ALBERA; ESTÈVE, 2009, p.119). Esta genealogia teria começado com curtas metragens (Sonata para Hitler) e englobaria Hitler (Moloch), Hirohito (O Sol), além de naturalmente o filme Taurus. A esses filmes, Albera ajunta ainda outros títulos, enfatizando que: Em todos os casos, tratase de fazer sentir o homem público, espécie de super-homem todo poderoso, o monarca, o ditador em sua nudez de homem ordinário, que a doença, a morte, ou ainda a intimidade, autorizam a apreender . (ALBERA; ESTÈVE, 2009, p. 119). Nestes filmes, o grotesco alia-se ao sublime para apresentar uma progressiva degeneração do poder como elemento simbólico, ruindo em sua representação de estado, força e mesmo poder incomensurável. Creio ainda que, ressalvadas diferenças sutis de análise e, sobretudo, observações importantes sobre os desdobramentos estilísticos e nuances temáticos nas obras da assim chamada tetralogia do poder , é bastante comum verificar essa tematização da decadência do poder em vários outros pesquisadores, como André Labarrère (LABARRERE, 2009), Bruno Dietsch (DIETSCH, 2005, p. 49), Yannick Lemarié (LEMARIÉ, 2009) e Stephen Hutchings (HUTCHINGS, 2011), que aponta, ainda, o interessante tema da alienação, manifestada nos integrantes do poder. Em todos os casos, portanto, ocorre uma leitura basicamente metafórica ou alegórica dos filmes da tetralogia alegoria que seria inscrita nos próprios nomes dos filmes -, em que a pesquisa detém-se sobre uma maior ou menor inconsciência do líder sobre os processos históricos que e l e


107 (4) Professora de História na Universidade de Vermont, autora de diversos textos sobre

cinema

soviético.

russo

Obras

e

mais

recentes: Russian War Films: on the cinema front -19142005 (2007) e Cinematic Cold War: The American and Soviet Struggle for Hearts and Minds (2010).

(5) Youngblood faz referência ao

texto:

ROSENSTONE,

Robert. The future of the past:

films

and

the

Beginnings of Postmodern History. In. Vivian Sobchack (Org). The Persistence of History: cinema, television, and the Modern Event. New York:

Routledge,

1996.

p.201-218. (6) Ver por exemplo, entre tantas obras: FERRO, Marc; MANDRILLON, Marie-Helène (Org): Russie, Peuples et Civilisations.

Paris:

Découverte, 2005.

La

mesmo, como homem, liderou. É como se a história, sempre violenta e grotesca, houvesse ultrapassado o homem, tornado mito em escombros e aqui me permito uma digressão e cito o paralelo com a análise de Boris Schnaiderman (SCHNAIDERMAN, 1999) sobre, justamente, a dissolução dos mitos com a falência do império soviético. Naturalmente, do ponto de vista da recepção das obras e mesmo especificamente avaliando-se a leitura historicista, é notável observar que Sokúrov conjuga análises críticas radicalmente distintas sobre a pertinência, ou, ainda, sobre o caráter político da sua visão histórica. É desnecessário, para os objetivos deste artigo, lembrar todos os contornos das reações positivas e negativas ante as obras mais históricas de Sokúrov. Mas, de modo geral, as análises negativas insistem no baixo ou nulo caráter crítico das obras, inclusive por, de alguma forma, humanizar tiranos ou ignorá-los (como a não citação de Stálin ou do período soviético no filme Arca Russa) (4). Contudo, termino esse breve levantamento apontando para a avaliação do cruzamento entre história e o cinema de Sokúrov, feito pela professora Denise Youngblood (5), pois creio que ele pode ser interessante por indicar uma interseção entre a leitura historiográfica e o texto fílmico nas obras de Sokúrov. A autora detém-se também sobre a tetralogia do poder, porém aplica a ela o conceito de história pós- moderna. Para Youngblood, os filmes de Sokúrov poderiam ser entendidos de forma exemplar como ilustrações do paradigma da historiografia pós-moderna (YOUNGBLOOD, 2011). Para a pesquisadora, os filmes do poder tematizam a representação de figuras históricas e eventos, distorcendo o tempo e o espaço. Tomando de empréstimo as teorias de Robert Rosenstone (6), sobre o relacionamento entre cinema pósmoderno e história pós-moderna, segundo o qual, na história pós-moderna, haveria uma suspeita radical da lógica, linearidade, progressão e completude dos fatos históricos como chave interpretativa do passado, a autora cita os onze elementos que caracterizariam o cinema histórico pósmoderno. Entre essas características, que, segundo Youngblood, o cinema de Sokúrov seria uma espécie de quintessência (YOUNGBLOOD, 2011, p. 123), estão os seguintes aspectos, entre outros: autorreflexividade, irreverência com o passado, recusa do desenvolvimento linear e narrativo tradicionais, colocação de elementos contraditórios, parcialidade e invenção de incidentes ou personagens, recusa de focar ou totalizar o significado dos eventos passados, entre outras características. Mais do que, contudo, destacar aqui a análise de Youngblood, o que gostaria dé apontar para a produtiva


108 observação realizada para o fato de que, se o cinema de Sokúrov pode ter um caráter de reflexão histórica, este será menos como documento de uma análise programática e pragmática sobre este ou aquele personagem e evento histórico e mais uma espécie de estranhamento do passado cujo conceito ostraniênie (YOUNGBLOOD, 2011, p. 133) não passa despercebido da autora. De alguma forma, o passado histórico é revisitado por Sokúrov como uma espécie de reflexão fantasmática cujo sentido é difícil de conciliar com as chaves interpretativas usuais, o que pode inclusive ser a razão de algum desconforto, para não dizer, rejeição, de sua obra de caráter mais histórico. E do mesmo modo, é curioso notar como, frequentemente, as análises sobre os filmes históricos e de poder esquecem ou desconsideram os filmes de família ou de personagens de Sokúrov, ou os filmes mais caracteristicamente ficcionais. Como se não ocorressem empréstimos poéticos de uma e outra forma, como se, enfim, os grandes temas do autor não se interpenetrassem, para além do caráter mais ou menos histórico de um filme realizado. Assim, nesse sentido, gostaria de apontar para uma possível contribuição que aproximasse a leitura histórica do universo poético de Sokúrov, dentro desta visão de uma história pós-moderna. E penso que a figura essencial para avaliar o aspecto multifacetado da visão histórico-poética de Sokúrov pode ser a representação do militar. III. Representação do Militar nos filmes de Sokúrov

(7) No sentido desenvolvido por Umberto Eco. Ver: ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação.

São

Paulo: Martins Fontes, 2005. (8) O título повинность (Povinost) denota “encargo” ou “obrigação”, pressupondo uma sujeição a alguém. Também contém a ideia de culpa (вина), na raiz do vocábulo, e, talvez, por isso, tenha sido traduzido como Confession em inglês. Para uma adequação a língua portuguesa, optamos por Obrigação.

É notório que a figura militar ocupa posição de destaque em toda história russa e soviética, sendo a Segunda Guerra Mundial e o aniversário da vitória temas centrais de vastíssima iconografia e historiografia contemporâneos (7). Sokúrov, ele mesmo filho de militar, e tendo convivido em bases espalhadas pelo território soviético, mais de uma vez retratou militares, chefes e soldados, em várias de suas obras. Além da tetralogia do poder já citada, são destaques os filmes para cinema e televisão, documentários e ficção: Sonata para Hitler, Dias de Eclipse (Dni Zatmienia,1988) Vozes Espirituais, O Sonho do Soldado, Obrigação (Pavinnost, 1998) (8), Pai e Filho (Atiets i Sin, 2003), Alexandra, Lemos o livro do bloqueio. Em todos esses filmes, a figura do militar, como personagem em posição de liderança ou subalternidade, é representada na tela e parece-me bastante evidente que tal escolha, por parte do autor, pareça subsidiar uma visão na qual se condensam os aspectos propriamente históricos com aqueles de sua visada poética. Dizendo de outra maneira, a representação do militar


109

acima

Aleksandra. (SOKĂšROV, 2007, 00:31:41 a 00:31:44)


110


111 de alguma forma, faz um duplo movimento: de um lado, circunscreve a narrativa sokuroviana em um tempo histórico e em uma geografia narrativa localizável (por exemplo, as fronteiras do império em Dias de Eclipse, a Guerra da Tchetchênia em Alexandra); ao mesmo tempo, Sokúrov dilui esse tempo histórico e essa geografia localizáveis pela prevalência, na narrativa, do conflito existencial. O militar oscila, portanto, entre um tempo histórico e determinante aquele de sua situação concreta e um tempo para além da história, um tempo de sua mitologia, para um momento em que a história só existe como ruína do passado. Um tempo em que o onirismo condensa e satura o tempo histórico, descaracterizando-o. Mikhail Iampolski (2011), talvez o mais importante comentador russo da obra sokuroviana, entende mesmo que os filmes propriamente políticos de Sokúrov devem ser lidos nesta contrapartida com os filmes familiares, posto que aquilo que os pode unificar é a desintegração do simbólico. Fazendo uma leitura analítica, assumindo de Lacan a noção de mundo pré-edípico, em que ocorre a crise do nível simbólico, do nome do pai, em que a autoridade do líder ou do pai é posta em questão, Iampolski observa como Sokúrov opera nos filmes familiares em dualidade: Mãe e Filho, Pai e Filho, Avó e Neto (Alexandra). Esta desintegração das relações familiares, em termos alegóricos, representaria também a desintegração do poder e então a figura do familiar condensaria exemplarmente a volta a um estado pré-edípico, de sensualidade difusa, sem o interdito inclusive do incesto. Naturalmente a análise de Iampolski observa justamente aí o mal entendido inclusive com as cenas de suposto erotismo familiar em Sokúrov, quando o que estaria sendo representado é justamente o estado anterior à decadência do simbólico, e da vitória da carícia sem desejo (IAMPOLSKI, 2011, p. 111-115). Essa análise de Iampolski interessa aqui, sobretudo, por enfatizar a imbricação da figura do militar que representaria grosso modo, a lei, o estado, a proibição - com os aspectos de humanização do soldado, isto é, alguém com um corpo, uma vida e uma morte. Sobre este aspecto, gostaria de iniciar esta análise da representação do militar em Sokúrov a partir do curta metragem O Sonho do Soldado. Trata-se de um excerto, da obra documental bem mais extensa, Vozes Espirituais. O curta metragem inicia-se com a apresentação de nuvens em uma atmosfera que sugere o onirismo nuvens que lentamente se dissipam, sob um fundo monocromático, em tons cinzas e ocres. Quase nada se escuta, salvo, de forma distante e episódica, alguns murmúrios, risadas femininas, fragmentos de disparos. Na segunda sequência, e nas posteriores, pouco se vê além de um jovem soldado que dorme. O jovem soldado, com um leve ferimento na orelha direita e na mão, repousa dentro de um veículo militar semidestruído. Vemos, através da janela, em primeiro plano, seu rosto, sua respiração e nada mais. De bruços, divisa-se a nuca e traços do rosto. Aos poucos, os planos são colocados em perspectivas maiores, dando a revelar o espaço diegético propriamente dito: uma ravina deserta, onde o soldado deitado como que se funde com a paisagem. A banda sonora, de forma delicada, intercala leves oscilações de voz, das quais não se distingue nada, pois o único som persistente é o do vento. Este soldado que dorme, em diversas posições, dentro e fora do veículo, na ravina ocre e acinzentada, aos poucos, recebe em seu rosto a sobreimpressão de uma imagem de uma gravura: um anjo branco, de feições também jovens e iconicamente cristãs, sendo carregado por dois jovens soldados em uma padiola de campanha. Nesse momento, a


ao lado

Voz espiritual. (SOKĂšROV, 1995, 01:18:37 a 00:20:43)


113 música de caráter elegíaco do compositor japonês Toru Takemitsu irrompe na cena, e então a gravura, lentamente, dissolve-se nas imagens das nuvens iniciais. Este pequeno curta metragem, espécie de super condensação dos cinco longos episódios de Vozes Espirituais, documentário feito para televisão sobre a vida de jovens soldados nas fronteiras do império, em seus últimos suspiros, nas guerras perdidas das terras do Afeganistão e Tadjiquistão, é exemplar pela concisão do tema: o isolamento do homem, a magnitude avassaladora da natureza, o tempo histórico como tempo alienado e incompreensível, a perspectiva elegíaca da vida.

(9) No sentido desenvolvido por Umberto Eco. Ver: ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação.

São

Paulo: Martins Fontes, 2005.

Naturalmente que não se trata aqui de um exercício meu fugaz de superinterpretação (9), atitude tão comum para avaliação dos filmes de Sokúrov. Observa-se o sonho de um soldado, em que este ser anônimo, mais um homem na guerra, é individualizado, e pela superimposição do onírico, espiritualizado. Na verdade, esta é a exata operação que Sokúrov realiza com os soldados: sua espiritualização. Não por acaso, em Vozes Espirituais, todo o primeiro episódio, de quase 40 minutos é registrado sob a única perspectiva de uma paisagem, em plano geral, que sofre as modificações do tempo, enquanto ouvimos a voz de Sokúrov discorrer longamente sobre a vida de Mozart, enquanto escutamos um concerto de piano do compositor. Sokúrov comenta sobre os aspectos físicos de Mozart: magro, quase raquítico, um metro e cinquenta, pálidos olhos azuis, rosto marcado pela varíola, e capaz de elevar uma voz para além das circunstâncias do seu tempo. A seguir, comenta sobre outro compositor, agora contemporâneo, Oliver Messiaen, cujas notas, atuais, soam como se isoladas, desprendidas de uma harmonia. Nada se vê além da paisagem, apenas, episodicamente, revoadas de pássaros, uma fogueira que queima, lentamente, no limiar do quadro, um homem quase sombra que cruza a paisagem. Esse quadro imóvel, cuja exposição saturada reduz mesmo a noção de perspectiva e a aproxima de um processo bidimensional de composição plástica, monocromática, em tons cinzas e ocres, aos poucos, dissolve-se no final da longa sequência exatamente para um soldado dormindo. Não o mesmo soldado do curta metragem, naturalmente, mas o sono do soldado, como se enfeixasse todo o processo de espiritualização da paisagem, como se todos os significados de intensa absorção musical, pictórica e mesmo cultural se projetassem, naquele soldado comum, que agora, como outros indivíduos, o filme acompanhará nas fronteiras áridas e avassaladoras de uma paisagem causticamente incompreensível para aqueles que estão naquela guerra.


114 Assim, penso que enquanto o soldado em Sokúrov possui uma representação espiritualizada, o exato traço oposto, isto é, a humanização radical, é comumente associada à representação dos solitários homens de poder, como mais de um comentarista já apontou. Os líderes políticos humanizam-se pela apresentação do seu cotidiano, de forma grotesca até, enquanto os soldados, cujo anonimato é a regra, espiritualizam-se pelo mesmo cotidiano. Trata-se de um cotidiano feito de rotina, sono, cansaço, espera dos conflitos, camaradagem militar, angústia, medo, trivialidades de contingências militares cujo sentido lhes escapa e talvez seja até desnecessário explicar: a história, no sentido dos grandes feitos e batalhas, grandes narrativas, como alienação, como catástrofe, cujo sentido trágico é evidente, perdidos que estão os soldados em espaços e tempos distintos, em fronteiras de terras que não conhecem, em processos cujo pressuposto latente é a morte.

(10) Como, aliás, já observou Nancy Condee, Alexandra “bagunça” a divisão arbitrária entre filmes familiares e filmes políticos. In: CONDEE, Nancy. The Imperial Trace. Oxford, 2009, p. 166.

Esta espiritualização do soldado é ainda mais evidente em outro longo documentário para televisão. Obrigação focaliza a vida de jovens marinheiros em serviço obrigatório, nos confins do império russo. A vida desses marinheiros é retratada pelos olhos e o diário de um capitão, que conduz a narrativa, refletindo sobre a vida, a arte, o trabalho e o sentido de suas ocupações no gélido mar Ártico. Há uma evidente sensualização dos corpos e um sentimento geral de lassidão aspectos que mais de um comentador já notou (10) - cujo aspecto erótico pode lembrar outra dupla de soldados, a de Pai e Filho, no filme propriamente assim chamado e que Iampolski (2011) reputa ser menos da ordem do desejo pelo interdito propriamente dito, do que a erotização da intimidade, do companheirismo, da carícia despida de conteúdo erótico e sim como símbolo, segundo o autor, de uma autoridade não constituída, indistinguível, cujo simbolismo evidente pode ser representado pelos processos hierárquicos, base da disciplina militar. Assim, Iampolski, em outro momento, em artigo específico sobre história (2009, p. 41) vai mesmo argumentar que o cinema histórico de Sokúrov procura exatamente: Tirar a personalidade histórica do tempo e a colocá-la em um contexto capaz de paralisar seu oportunismo temporal . Creio, portanto, que esta exata espiritualização do soldado, retirado de suas circunstâncias definidoras, em um espaço e tempo fronteiriços e ignorados que solapam a relação causal cronológico-histórica, pode ser um interessante indicativo de como Sokúrov realiza esta representação.


115 Ocorre, então, uma aparente contradição entre a situação alienada do soldado e sua espiritualização. Como se as vozes espirituais dos homens transcendessem sua situação histórica e seus condicionantes sem, contudo, eliminá-los. Isto é, existe um soldado, existe uma guerra atual ou suposta, existe uma hierarquia, existe uma necessidade de obediência, existindo, portanto, toda a grande estruturação condicional do presente. Mas, por outro lado, existe a intimidade, a espera, o sono, o desejo, o medo e a angústia daqueles que estão naquele contexto que lhes escapa mas não escapa, naturalmente ao comentarista e ao artista seja o capitão reflexivo em Obrigação, seja Sokúrov, ele mesmo, como narrador dos documentários.

(11) Conforme a conhecida frase de Klausewitz, a guerra é apenas continuação da política por outros meios.

Nesse sentido, e para finalizar, talvez seja um equívoco a própria consideração taxonômica de Sokúrov, segundo a qual ele teria filmes familiares e filmes históricos. Filmes como Pai e Filho e como Moloch seriam emblemas dessa taxonomia dura, articulariam o privado, o íntimo de um lado com o histórico, o emblemático, de outro. Do mesmo modo como se percebeu já que os filmes históricos humanizam e saturam a intimidade dos grandes líderes, os filmes assim chamados familiares ocorrem em um contexto cujo simbolismo e mesmo historicismo são evidentes: Pai e Filho, como emblemas de militares e de um processo de aprendizagem, e sobretudo, Alexandra (11), cuja relação Avó e Neto prodigaliza a família no meio da guerra. Convém, portanto, avaliar Alexandra, onde, de forma exemplar, se cristalizam alguns procedimentos estéticos para a representação do militar. Em Alexandra, o contexto histórico é o da guerra da Chechênia. Em linhas gerais, o filme mostra a visita de uma avó ao seu neto, em um acampamento militar no território checheno ocupado. Versão invertida dos filmes que tematizam a visita em um dia do soldado, à sua família, cujo epítome talvez

ao lado

Voz espiritual. (SOKÚROV, 1995, 00:08:24 a 00:08:28)


116 seja Balada de Um Soldado (Ballada o Soldate,1960) de Grigori Chukhrai (1921 - 2001), em Alexandra, é uma avó sozinha e desamparada que vai às franjas do império russo visitar o único neto que lhe restou, para viver um pouco sua vida, acompanhar a trajetória do soldado que agora é capitão do exército russo. Em um ambiente onde apenas existem homens, em um contexto de disciplina e militarismo, a avó reencontra o neto, conhece um pouco da rotina do acampamento, procura realizar recomendações carinhosas ao neto, exortando-o a se casar e se aproximar dela. A avó, interpretada pela famosa cantora de ópera Galina Vishniévskaia, arrisca-se a conhecer então, sozinha, um vilarejo próximo ao campo, onde trava amizade com outras mulheres, igualmente sozinhas; especialmente, apegando-se a uma senhora de idade aproximada à sua, que vive também sozinha, sendo ela uma muçulmana. As duas se comunicam, passam uma tarde juntas, tentam entender um pouco da vida de cada uma, e, no final do filme, se despedem, prometendo reverem-se, numa espécie de lamento solitário das mulheres que ficam, as mulheres que não vão para a guerra, mas apenas lamentam suas perdas. Novamente há aqui a toponímia da margem, do deslocamento e da paisagem cáustica e estranha, como em Dias de Eclipse e mesmo no já citado Vozes Espirituais. Isto é, o soldado está em um ambiente que lhe é estranho à sua idealização pátria, em uma guerra ou missão cujo sentido não consegue compreender, mas que lhe cabe obedecer. David Gillepsie (GILLEPSIE, 2003, p.142), historiador de cinema russo, observa que o cinema póssoviético frequentemente aborda esse tropo, como símbolo do esfacelamento do império. Observação que também a historiadora do cinema russo Birgit Beumers (2009) realiza. Nesse quadro de distância pátria, desenvolvem-se relações de amizade e companheirismo masculinos, em meio a uma rotina entediante e dura, onde lapsos de solidão e onirismo permeiam a vida de alguns personagens: seja pela reflexão ou mesmo projeção de sonhos, que em Alexandra ocorrem pelas lembranças da Avó, quase sempre envoltas em certo torpor, sonolenta. Esta Avó, no correr do filme, sempre desperta de alguma visão, quando dorme o que quase sempre está em vias de fazer -seja no trem, no quarto de campanha, em um banco, recostada no pátio do acampamento. A família do soldado aparece nessa moldura, sempre em uma situação de rememoração de uma perda, sempre como uma família fraturada (sem o pai, ou a mãe ou ambos) Iampolski chama as famílias de Sokúrov, de famílias duais e dá-se por natural que a guerra e a vida militar


117 sejam apenas ocupações cuja lógica política, econômica ou a disputa de poder é algo inapreensível pelos personagens. É, como afirmei antes, uma tentativa de espiritualização do soldado, de sua individualização, destacando-o numericamente da massa de homens, procurando elaborar um sentido para a vida, à luz dos registros familiares, do sonho, da delicadeza dos gestos cotidianos, dos pequenos rituais corporais de asseio e beleza. Não é sem razão que a avó Alexandra preocupa-se o tempo inteiro com o cheiro e com o banho dos soldados e do seu neto, com seus cuidados corporais, sendo que o que primeiro observa no neto, quando o encontra (também dormindo!), são algumas feridas nos pés vale recordar, assim como em o Sonho do Soldado, este dormindo, encontra também algumas leves escoriações na orelha e nas mãos. Estas cenas se repetirão algumas vezes, no filme, e quando o neto retribui esse carinho da avó, desfazendo e refazendo suas tranças, antes de dormir, ele está também humanizando a avó. Alexandra chora a saudade e a distância, quando os dois se abraçam, trocando carícias que exprimem igualmente o afeto e a impotência daquela situação onde a morte é o horizonte inevitável: da avó que está no fim de sua vida, e do neto que parte para mais uma incursão de guerra. Desta forma, finalizando este artigo, gostaria de ressaltar, à luz de ulteriores investigações que se fazem necessárias, que talvez a representação do soldado, tão evidente na filmografia de Sokúrov, possa ser um comentário interessante, dentro da sua concepção representativa, do papel destes personagens secundários que, contudo, fazem a rotina da grande história, levada a cabo pelos grandes líderes político militares. Pois se o líder é o homem destituído de humanidade pela abstração de uma ideia, o soldado é o homem destituído de espírito pela própria abstração do seu corpo. Dar corpo a líderes e soldados é, a um só tempo, humanizar uns e espiritualizar outros. O laço parental tão presente na vida dos soldados representados em Sokúrov destaca o individual do coletivo, ressaltando valores transcendentes para além da guerra e da sua política. Sokúrov dá voz ao sonho do soldado e lhe dá a lembrança do amor idílico, quando a morte é o que restou da vida, e cabe ao soldado apenas obedecer para, talvez, também seguir vivendo, entre seus camaradas e suas esperanças. E se certa aparente despolitização, no sentido mais latente da palavra, pode, eventualmente, ser atribuído ao realizador, talvez não se possa eludir a visão de Sokúrov sobre o que é essencialmente o quadro militar que retrata, nem o dignificando sobremaneira, como na clássica cinematografia soviética, nem o constrangendo como a cinematografia propriamente mais crítica. É o que talvez possa ser depreendido da triste voz de Galina Vishniévskaia, quando, assim que chega ao acampamento militar, toma como primeira atitude conhecer o local de trabalho do neto e as fainas militares. A avó entra com o neto no interior de um tanque de guerra. Alexandra, no interior do tanque, olha para o conjunto claustrofóbico de engrenagens e armas que a cerca, perguntando-se quantas pessoas devem compartilhar aquele espaço comprimido que vai para a morte. Enquanto o neto lhe concede algumas explicações, a avó então sussurra de forma inequívoca a seguinte asserção: Sim, é terrível . E creio não restar muita dúvida sobre o que isso possa significar.


118 Bibliografia ALBERA, François; ESTÈVE, Michel. Alexandre Sokourov. Paris: Editions Charles Corlet, 2009. BEUMERS, Birgit. A history of Russian cinema. New York: Berg, 2009. BRASHINSKY e HORTON. Russian Critics on the Cinema of Glasnost. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1994. CONDEE, Nancy. The Imperial Trace: Recent Russian cinema. Oxford: Oxford Press, 2009. COUREAU, Didier. Elégie de la Traversée: les voix spirituelles du temps. In ALBERA, François; ESTÈVE, Michel. Alexandre Sokourov. Paris: Editions Charles Corlet, 2009. DIETSCH, Bruno; BUACHE, Freddy. Alexandre Sokourov. Lausanne: L'age d'homme, 2005. ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ESTÈVE, Michel. L'arche russe, ou le musée immortel. In: ALBERA, F; ESTÈVE, M. Alexander Sokourov. Paris: Charles Corlet, 2009. p. 146-149. LABARRÈRE, André; Moloch, Le Soleil: portraits de families au petit pied: Hitler, Hirohito. In: ALBERA, F; ESTÈVE, M. Alexander Sokourov. Paris: Charles Corlet, 2009. p. 150-157. LEMARIÉ, Yannick. Moloch: cétait un homme. In: ALBERA, F; ESTÈVE, M. Alexander Sokourov, Paris: Charles Corlet, 2009. p. 112-119. FERRO, Marc; MANDRILLON, Marie-Helène (Org). Russie, Peuples et Civilisations. Paris: La Découverte, 2005. GILLESPIE, David. Russian Cinema. London: Pearson, 2003. HUTCHINGS, Stephen. History, Alienation, and the (Failed) Cinema of Embodiment: Sokurov's Tetralogy. In: BEUMERS, Birgit; CONDEE, Nancy (Org). The Cinema of Alexander Sokurov. London: Tauris, 2011. p. 138-154. IAMPOLSKI, Mikahil. Un cinéma de la disparité: Kairos et Histoire chez Sokourov. In: ALBERA, F; ESTÈVE. M. Alexander Sokourov. Paris: Charles Corlet, 2009. p. 39-48. ____. Truncated Families and Absolute Intimacy. In: BEUMERS, Birgit; CONDEE, Nancy (orgs). The Cinema of Alexander Sokurov. London: Tauris, 2011. p. 109-121. _______. History and elegy in Sokurov. Critical Inquiry, vol 33, Autumn, 2006. KAHTALIAN, Marcos: Arca Russa, Arca de Contradições. In. Revista Galáxia, São Paulo, n. 23, p. 98110, jun. 2012. KUJUNDZIC, Dragan et al. Sokurov. After after : The Arkive Fever of Alexander Sokurov in :Roundtable on Alexander Sokurov's film "Russian Ark". Disponível em: <www.artmargins.com>, publicado em 5 de maio de 2003. Acesso em: julho 2010. In:< www.artmargins.com/index.php/6-film-a-video/274roundtable-on-alexander-sokurovs-film-qrussian-arkq>. MACHADO, Álvaro (org.). Aleksandr Sokúrov. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. ROSENSTONE, Robert. The future of the past: films and the Beginnings of Postmodern History. In. Vivian Sobchack (Org). The Persistence of History: cinema, television, and the Modern Event. New York: Routledge, 1996. p. 201-218. YOUNGBLOOD, Denise J. A. Day in the Life: Historical Representation in Sokurov's Power Tetralogy. In: BEUMERS, Birgit; CONDEE, Nancy (Org). The Cinema of Alexander Sokurov. London: Tauris, 2011. p. 122-137.



O presente artigo faz uma análise da série Retrospectiva

120

de Leningrado (1957-1990), de Aleksandr Sokúrov. Apresentada pelo diretor como uma compilação dos cinejornais produzidos pelos Estúdios de Filmes Documentários de Leningrado (EFDL), a série realiza digitalmente algumas interferências no material de arquivo, sobre as quais este artigo se concentra. Nossa hipótese é de que, ao criar a imagem de uma página na iminência de ser virada, Sokúrov tenha tentado dar uma forma visual para a transição de regime político e para o fim dos cinejornais de Leningrado.

Retrospectiva de Leningrado (1957-1990), de Aleksandr Sokúrov :

a busca por uma forma transitória, ou a nostalgia do presente Lúcia Ramos Monteiro (1) Uma versão deste texto foi apresentada no XVI Encontro da Sociedade Brasileira de Estudos

de

Audiovisual

Cinema (Socine),

e em

outubro de 2012. (2) GHEZZI (2003), p. 5 (minha

Não mais a 'nostalgia' de um mundo, de uma vida ou de uma obra 'passada' e perdida, ou perto de morrer, desaparecer. Mas uma nostalgia literal pelo presente e, mais ainda: a capacidade de ouvir e sentir o próprio presente como algo fora de lugar, atormentado e gerado pela nostalgia; o presente como nostalgia. Enrico Ghezzi (2)

tradução). (3) Niney a define assim: “uma prática

documentária

do

cinema como máquina de remontar o tempo, que faz com que as imagens retornem e sejam relembradas por meio da montagem, do som e da voz de hoje, de acordo com uma visada ao mesmo tempo analítica e poética”. NINEY, 2009,

p.

148

(minha

tradução). (4) Em seu texto L'éloignement des voix répare en quelque sorte la trop grande proximité des plans (NINEY, 2002, pp. 101-110), François Niney escreve: “o comentário em off abre o caminho de volta em direção às

origens

capturada,

da

imagem

através

do

presente de minha visão, como uma imagem tomada

Qual um historiador cheio de imaginação, o cinema, às vezes, examina imagens do passado à luz de um saber no presente e nele encontra sinais de acontecimentos que ainda estavam por vir. Valendo-se da operação que François Niney chama de retomada de vistas (em francês, reprise de vues (3)) , a (re)montagem (res)suscita imagens passadas, as faz dialogar com o mundo contemporâneo e lhes confere interpretações que seriam impossíveis (ou, ao menos, improváveis) no momento de sua fabricação. Niney atribui a Chris Marker (1921-2012) e a Alain Resnais (1922-), autores de As Estátuas Também Morrem (1950), o papel de inauguradores do trabalho de revisão da história pelo cinema. De fato, a retomada e o retorno de imagens estarão no coração de uma grande parte da filmografia de Marker. Suas idas e vindas temporais são constantes. Elas estão impressas nos títulos dos filmes (2084 - 1984, Lembrança de um Futuro - 2003), conjugadas no futuro do pretérito (4) (Descrição de um Combate - 1960, Sem Sol - 1983, Uma Jornada de Andriêi Arsiénevitch - 1999), ou, na origem de alguns projetos cinematográficos, como as múltiplas versões de O Fundo do Ar É Vermelho (1977, 1993, 2008) (5). Igualmente habituados à navegação transtemporal, Godard e Farocki se juntam a Marker e a uma geração inteira de cineastas

(1)


121 no passado e remontada no futuro

do

pretérito

(da

montagem e, em seguida, da exibição)”

(Idem, p. 101).

Mais tarde, a respeito de Sem Sol, que ele qualifica de “documentário

de

ficção

científica”, Niney dirá que esse filme nos faz “ver o devir-souvenir

de

nosso

mundo presente, como se ele já fosse visto no futuro do pretérito de uma memória futura”

(Idem,

p.

105).

(5) Em sua tese de doutorado, Emi

Koide

cita

outras

(aparentemente numerosas) versões

intermediárias,

encontradas na produtora ISKRA (KOIDE, 2011, p. 28). (6) Sobre a primeira versão de Retrospectiva de Leningrado (1957-1990), Aleksandra Tutchinskaia escreve que “a composição do autor se evidencia

pelo

processo

de

próprio

seleção”,

TUCHÍNSKAYA, 2012. (minha tradução). (7) Engenheiro de som em cerca de vinte filmes de Sokúrov, Vladimir Piersóv figura na ficha técnica da primeira versão do filme como “responsável do som”. Na nova versão, seu papel nos créditos é de produtor. No entanto, a mesma delicadeza e a precisão demonstradas por Piersóv nomeadamente na banda sonora de Elegia da Rússia (Eléguia iz Rossia, 1992)

podem

ser

reconhecidas na série de 2008, com Moshkóv e Siegle.

juntam a Marker e a uma geração inteira de cineastas experimentais (Pelezian, Gianikian & Ricci Lucchi etc.), para interrogar arquivos cinematográficos compreendidos em um sentido amplo, que inclui imagens produzidas para a televisão, exércitos, filmes de ficção e documentários. Em suas estações de montagem, tecem-se ligações entre elementos visíveis na imagem e catástrofes ocorridas em um tempo posterior. Por duas décadas, Aleksandr Sokúrov debruçou-se sobre os arquivos dos cinejornais de Leningrado, produzindo duas compilações, ambas intituladas Retrospectiva de Leningrado 1957-1990 (Lieningrádskaia Rietrospéktiva 19571990). A primeira data de 1990 e a segunda, de 2008. Nos dois casos, a interferência do realizador sobre as imagens parece mínima: não há comentários em off, intertítulos, mudanças na velocidade, reenquadramentos ou alterações de cor, alguns dos procedimentos mais utilizados pelos cineastas citados no parágrafo anterior em suas remontagens. Além disso, Sokúrov mantém a banda sonora e a montagem originais. Assim, à primeira vista, o realizador dá a impressão de contentar-se em fazer uma seleção (6) entre as centenas de horas de cinejornais e os créditos estariam corretos ao indicar concebido e compilado por Aleksandr Sokúrov e não um filme de ou dirigido por . Dessa maneira, sua abordagem do material de arquivo estaria mais próxima dos filmes de Esfir Shub (18941959), que não acrescentava comentários sobre as imagens originais, do que alinhado com a tradição inaugurada por Marker e Resnais. No entanto, para além da seleção operada no vasto conjunto de cinejornais, Sokúrov realiza, na versão de 2008, uma série de operações sutis de remontagem, contando com a colaboração de seu assistente, o cineasta Aleksei Iankóvski (1968-). Em primeiro lugar, novos elementos sonoros são acrescentados à banda original, trabalho executado pelo engenheiro de som Serguei Moshkóv e pelo compositor musical Andrei Siegle (7). Além disso, a banda de imagens ganha duas incrustações: uma linha do tempo indicando os anos de início e de fim dos cinejornais de Leningrado e o efeito digital de um canto de página levantado, sob o qual uma segunda imagem é entrevista. Quais seriam as consequências estéticas, epistemológicas dessas duas (aparentemente) discretas intervenções? A pesquisa formal do projeto de Sokúrov parece querer criar uma figura para a transição. Seria ela a visibilidade encontrada para compensar a ausência de imagens do fim de Leningrado? Mais do que uma compilação, Retrospectiva de Leningrado (1957-1990) produziria, por meio da retomada de vistas e do retorno de imagens, uma leitura anacrônica dos cinejornais da época soviética, à luz do presente da realização/futuro das imagens.


122 Lieningrádskaia kinokrônika

Mais antiga estrutura estatal de produção de documentários na Rússia, os estúdios fundados em Petrogrado, em 1918, receberam diferentes nomes ao longo de sua história, assim como a própria cidade.

(8) O histórico resumido do organismo está disponível no site

<www.cinedoc.ru>.

Acesso em: 15 de out. 2012. (9) Composto de imagens filmadas

no

front

por

operadores dos EFDL, durante a Segunda Guerra Mundial, E Nada Mais foi considerado “inaceitável” autoridades

da

pelas televisão

central e só saiu da gaveta durante a Pierestróika – por isso o filme aparece com duas datas.

A produtora Sankt-Peterbúrgskaia Stúdia Documentalnikh Fílmov/Estúdios de Filmes Documentários de São Petersburgo continua em atividade, conhecida internacionalmente como Saint Petersburg Documentary Film Studios (8). Na década de 1960, o organismo, então chamado de Leningrad Documentary Film Studios, ou Estúdios de Filmes Documentários de Leningrado (EFDL), tornou-se o principal produtor de documentários do país. Reconhecidos por sua competência, os diretores e técnicos filmavam não apenas em Leningrado, mas em toda a região. Entre 1970 e 1990, os EFDL produziram uma dúzia de documentários de Sokúrov, entre os quais Maria (Mária, 1978-1988), Elegia (Eléguia, 1986) e E Nada Mais (I Nitchevó Bolshe, 1982-1987) (9). A instituição conserva em seus arquivos 500 horas de documentários e 900 horas de cinejornais, incluindo as Lieningrádskaia kinokrônika, ou Cinejornais de Leningrado, filmadas entre 1957 e 1990 e exibidas exclusivamente em salas de cinema, em sessões pagas e independentes dos filmes de ficção. É sobre esse material que Sokúrov se debruça para realizar Retrospectiva de Leningrado (1957-1990), antes de mais nada, uma homenagem a diversas gerações de técnicos e diretores que trabalharam nos EFDL, tendo que lidar com a censura. Com financiamento da televisão italiana RAI 3 e apoiado pelo crítico e filósofo Enrico Ghezzi, a primeira montagem de Sokúrov sai em 1990 e inclui números do cinejornal filmados naquele mesmo ano, o último dos Cinejornais de Leningrado. Contava dezesseis episódios e 13 horas de duração. Quase vinte anos mais tarde, em 2008, Sokúrov lança uma compilação da compilação , realizada com a colaboração de Aleksei Iankóvski. A série fica assim com quinze episódios, totalizando quase 11 horas. Seis episódios ganharam legendas em inglês e foram exibidos no ciclo Alexandre Sokourov des pages cachées, organizado por Danielle Hibon, no Museu do Jeu de Paume, em Paris, entre outubro de 2010 e fevereiro de 2011. De 1990 a 2008, foram mantidos os princípios centrais da remontagem, entre os quais a ordem cronológica dos episódios (o primeiro reúne cinejornais de 1957 e 1958, enquanto o último dedica-se a 1989 e 1990). Surgem, no entanto, importantes modificações. A primeira delas é a linha do tempo, sobreposta às imagens, na lateral direita do quadro. Nela, o ano de 1917 figura em preto, no alto, acompanhado de uma foice e um martelo vermelhos; 1991 aparece embaixo,


123

(10) Antes de Retrospectiva de Leningrado (1957-1990), Sokúrov havia usado o efeito de uma página sendo virada em seu documentário dolce... (1999), um retrato elegíaco do escritor japonês Toshio Shimao, de sua mulher Miho e da filha do casal. No início de dolce...,

enquanto

o

comentário em off narra a história shakespeariana do

Nela, o ano de 1917 figura em preto, no alto, acompanhado de uma foice e um martelo vermelhos; 1991 aparece embaixo, também em preto. Entre eles, o ano do episódio reproduzido aparece, em branco. A segunda interferência se situa no canto inferior esquerdo do quadro: um canto de página levantado foi criado digitalmente. Assim, cada imagem é dupla, composta de uma grande e uma pequena imagem (10). Os acréscimos na banda sonora constituem a terceira intervenção de Sokúrov no material original. A música de Siegle é repetida a cada início e fim de episódio, contribuindo para a unidade da série. Ao longo do filme, cordas e metais tocam algumas notas, sublinhando passagens e intensificando momentos dramáticos. Foram criadas ainda vinhetas de abertura e de fim para cada episódio. Na abertura, uma imagem se ergue até ocupar todo o quadro; inversamente, ao final, a imagem cai e então sobrevêm os créditos (imagem abaixo). Nesse momento, ouve-se um tiquetaque, parecido com o de uma bomba-relógio.

casal, o quadro toma uma forma vertical e as transições entre as imagens passam a ser feitas por meio de um virar de páginas. Trata-se de um tipo de split-screen, forma fílmica que também já havia aparecido no cinema de Sokúrov anteriormente – ele a utiliza, por exemplo, em Elegia à Vida (Eléguia Jizni, 2006), sobre o violoncelista Rostropóvitch e a cantora Galina Vishiniévskaia.

Estratos de montagem

acima

Retrospectiva de Leningrado 1957-1990. (SOKÚROV, 2008, créditos finais) ao lado

Retrospectiva de Leningrado 1957-1990. (SOKÚROV, 2008, imagens de desfiles militares no episódio de 1972)

A compilação proposta por Sokúrov contém diferentes estratos de montagem. Em primeiro lugar, há a divisão do quadro em pequena e grande imagens. A imagem do canto dialoga com o restante do quadro, segundo modalidades e intensidades variáveis. O enxerto olha, interpela, comenta, critica, ironiza ou contradiz a imagem principal, impondo-lhe o diálogo com uma temporalidade distinta, seja através de um aporte de memória ou de uma profecia de futuro.


124 As duas imagens disputam a atenção do espectador o tempo todo. No que concerne a imagem principal, as informações parecem claras: Sokúrov conserva os créditos dos cinejornais, com o título, o ano e o nome dos responsáveis; a banda sonora é mantida, restituindo o discurso original, bem didático. Já com relação à pequena imagem, há poucas certezas. Amputada de seu som, ela interpela o espectador, que quer saber sua origem e seus porquês. Mesmo sem tais informações é possível notar os efeitos da montagem no interior do quadro. A própria plasticidade das imagens faz com que surjam rimas e ironias. Para quem a reconhece, a pequena imagem representa um aporte da memória de outros filmes ou de outros episódios da mesma série. Sokúrov trabalhou com Iankóvski e com uma equipe de colaboradores para preencher o canto da página , colocando ali sequências provenientes de diferentes produções suas Maria, Sonata para Viola. Dmítri Shostakóvitch (Altovaia Sonata. Dmítri Shostakóvitch, 1981), E Nada Mais, Vozes Espirituais (Dukhóvnie Golós, 1995), Obrigação (Povinost, 1998) além de filmes de Iankóvski Un jour en moins (1993), The Little Red Tram (2002). Foram também inseridas imagens dos cinejornais que aparecem na grande imagem, mas submetidas à defasagem de tempo, ao reenquadramento e, às vezes, à inversão (180º). Nos episódios dedicados a desfiles militares, torna-se particularmente visível uma ironia por contraste, que poderia se aparentar à montagem eisensteiniana. Em um deles, enquanto a parte principal do quadro reproduz o cinejornal de junho de 1972, mostrando a parada da juventude leninista, veem-se, no canto, pintinhos na gaiola, provenientes de um número do cinejornal sobre a indústria agroalimentar (figura a direita); quando o público aplaude o desfile, surge, no canto, um desfile de moda de crianças (figura a esquerda). Em outro momento, a passagem de veículos militares tem como contraponto um parque de diversões em que crianças dirigem carrinhos de brinquedo. O procedimento adotado por Sokúrov oferece um contraponto às imagens oficiais, como se fosse possível entrever uma verdade mais profunda, para além da superfície da tela. Assim, no primeiro episódio, os cinejornais de 1957 e 1958 ganham relevo no contato com a memória de imagens da Segunda Guerra Mundial, provenientes de E Nada Mais, inseridas no canto. As duas partes do quadro se interpelam mutuamente, separadas por fatos históricos que se tornam quase visíveis, como o início da Guerra Fria, em 1947, e a morte de Stálin, em 1953. A imagem dos trigêmeos que nascem com o ano novo, em 1957, pode ser encarada como um comentário irônico do encontro de Churchill, Roosevelt e Stálin, na Conferência de Ialta, em 1945 (figura da próxima página).


125 direita

Retrospectiva de Leningrado 1957-1990. (SOKÚROV, 2008, os trigêmeos no berço, no episódio de 1957. Na pequena imagem, o rosto de Churchill) esquerda

Retrospectiva de Leningrado 1957-1990. (SOKÚROV, 2008,diferentes representantes discursam em apoio ao Partido Comunista da Tchecoslováquia)

Em outras circunstâncias, o canto da página está completamente branco ou negro, sem que se possa ver nele qualquer forma reconhecível. Tal situação se reproduz com frequência no episódio 6, contendo o cinejornal de agosto de 1968 (figuras ao lado). A grande imagem exibe discursos de apoio aos esforços do Partido Comunista da Tchecoslováquia, tentando conter investidas de contrarrevolução ; o canto é completamente preto ou cinza, cores obtidas por reenquadramentos que privilegiaram tetos e paredes, de acordo com a explicação que me foi fornecida por Aleksei Iankóvski. É como se certas imagens não permitissem contraponto. Depois de ver diversos episódios da série, outro nível de montagem emerge para o espectador. Além do encadeamento linear dos planos, conservado da montagem original, e da confrontação criada pelo split-screen, verifica-se o retorno de certas imagens de um episódio a outro, ou do início ao final de um mesmo episódio. Como se a série tivesse criado um vocabulário próprio para, em seguida, colocá-lo no trabalho. Dentre as imagens que retornam, está a dos trigêmeos em seus berços, a do casamento coletivo e a do jantar de ano novo, todas de 1957, aplicadas no canto de diversos episódios. Há ainda outro tipo de retorno de imagem: temas e figuras de montagem reaparecem, não necessariamente com a reprodução dos mesmos planos, mas pela repetição dos recursos empregados na filmagem. Clichês dos cinejornais de Leningrado são assim postos em evidência. É o caso das enquetes sobre as expectativas para o Ano Novo, que parece ter sido uma obrigação anual para as equipes dos Cinejornais de Leningrado. Se há repetições, há também variações. Códigos de um otimismo de propaganda aparecem no episódio de 1957, em que o operário Gueorgui Bugróv, sua mulher e seu neto compensam com muita esperança e alegria a escassez da ceia de Ano Novo, e, em 1971, quando o Réveillon é comemorado um mês mais cedo, pois os objetivos do plano quinquenal haviam sido atingidos desde o início de dezembro. Já no último episódio (19891990), as imagens de Ano Novo são outras. No início desse número, é entrevistado o atleta Vladímir Shádrin (figura da página 128), cujas pernas haviam sido amputadas depois da explosão de uma bomba durante o Réveillon de 1989. Em seguida, as expectativas para 1990 dos entrevistados, filmados sem o cenário habitual de pinheiros, soam mais modestas quero que minha família fique bem (...) e que todos estejam em melhor forma do que agora e até mesmo sombrias não espero nada de positivo .


126


127 Os clichês cinematográficos das promessas de futuro (casamento, nascimento, festa de Ano Novo) são consequentemente revistos e reavaliados, tornando-se prefiguração da ruína. Evidentemente é a Pierestróika que permite a mudança de tom e autoriza certa liberdade de expressão, desobrigando as equipes de filmagem das restrições anteriores. Para o espectador, a experiência desse último episódio é dupla: de um lado, comemora-se a ausência da propaganda e da censura; por outro lado, a desolação é quase insuportável e acaba por contaminar a memória dos episódios precedentes. A vontade, então, é de desfazer retroativamente o otimismo sentido diante da imagem de Gueorgui Bugróv (figura ao lado a direita), o avô do Ano Novo de 1957 (afinal, faltavam dentes em seu sorriso, nós tínhamos notado, mas não dissemos nada) e da vendedora modelo de 1971 (será que suas afirmações eram sinceras?). A imagem do desaparecimento, o desaparecimento da imagem

(11) STEINLE (2011), p. 13.

(12) ROLLET (2011), p. 7. (13) SJÖBERG (2001). (14) LEYDA (1964).

(15) A esse respeito, cf. POZNER (2006), pp. 91-104.

A prática de Sokúrov é herdeira de Esfir Shub. O trabalho de ambos revela o amor comum pela aventura que une o trabalho arquivístico ao poético. Shub indexou quilômetros de bobinas, transformando velhas imagens, sem qualquer valor heurístico até então em imagens de arquivo no sentido atual do termo (11). A montagem de imagens de A Queda da Dinastia Románov (Padiênie Dinasti Románovikh, 1927) oferece uma compreensão ao mesmo tempo 'intelectual e emocional da história' (12). Matthias Steinle lembra que, se Shub é amplamente conhecida como pioneira do filme de montagem , alguns pesquisadores, a exemplo de Patrik Sjöberg (13), preferem o termo compilation film , usado por Jay Leyda (14) e reivindicado por Sokúrov para caracterizar seu próprio trabalho. No início da década de 1920, na União Soviética, muitos cineastas defendiam a importância de realizar documentários, postura ligada à consciência de estarem vivendo um momento histórico (15). Tal consciência se revelava através da produção de imagens cinematográficas do período em que viviam fabricar documentos de sua época lhes parecia fundamental e também pela conservação e reutilização de imagens de arquivo, igualmente consideradas como documentos preciosos da história. É dessa maneira que se pode entender a atitude de Shub, ainda que ela tenha realizado cortes nos negativos, como nota Valérie Pozner. A postura de Sokúrov segue o mesmo sentido. Shub e Sokúrov examinam imagens que precederam a queda de dois regimes políticos distintos, dois tipos de império a queda da dinastia Románov e a ruína do regime soviético. Tanto em A Queda da Dinastia Románov como em Retrospectiva de Leningrado (1957-1990), o gesto estético deles transparece,


128 Tanto em A Queda da Dinastia Románov como em Retrospectiva de Leningrado (1957-1990), o gesto estético deles transparece, porém, muito mais no contraste entre as imagens mostradas do que em um texto; não tentam explicar as causas do fim de um ou outro regime, diferentemente do que faz, por exemplo, Chris Marker, comentando as imagens contidas em A Queda da Dinastia Románov, retomadas por ele em O Túmulo de Alexandre (1993). Sobre a sequência do desfile em comemoração ao 300º aniversário dos Románov, em 1913, o comentário de Marker diz: Que filme não mostrou essa procissão de dignitários? Quem assistiu a ela? E esse gesto do homem gordo que bate na própria testa, o que ele diz? Que a audiência está rachada? Não, ele indica apenas que é necessário tirar os chapéus. Não se fica com a cabeça coberta durante a passagem da nobreza. Imagino o que um Maquiavel russo teria escrito para o uso dos poderosos. Dominar, explorar, eventualmente massacrar. Humilhar, nunca.

Muito mais sutil que o comentário de Marker, o gesto de Sokúrov e o de Shub são, no entanto, suficientemente fortes para fazer ver que a ruína da imagem já estava em curso no momento da tomada, ainda que tenha passado desapercebida. No caso específico de Retrospectiva de Leningrado (19571990), as interferências de Sokúrov sobre o material original permitem identificar em sua postura a procura por uma forma transitória para fazer frente à imagem do desaparecimento, ao desaparecimento em imagem. A página na iminência de ser virada é sua metáfora mais explícita, forma transitória por excelência. Sokúrov já havia buscado uma imagem para o desaparecimento nas elegias que realizou de 1989 em diante. Segundo Giorgio Agamben, para além da lamentação fúnebre que lhes é intrínseca, as elegias contêm uma ambiguidade, situadas na difícil interseção entre política e lamento (16). Para (16) AGAMBEN (2003), p. 111 (minha tradução).


129

(17) Em sua carta a Benjamin Halligan, Iankóvski fala da pulsão “necrorealista” de O Dia do Eclipse (Dni Zatmenia, 1988),

comum

diretores

a

do

outros

cinema

underground daquela época: “Esse interesse mais mórbido do que artístico tinha sua origem na ideia segundo a qual é impossível dizer a verdade sobre a vida sem dizer a verdade sobre a morte” (minha tradução). FRANCIA DI CELLE; GHEZZI; JANKOWSKI, 2003, p. 125.

ele, o lamento de Sokúrov não tem um objeto único, mas múltiplos: a União Soviética, a liberdade de Vílnius, a velha Rússia, a Europa... Desse modo, suas elegias contemplariam mais amplamente o vazio de poder instaurado em seu país a partir de 1989, ano da primeira elegia. Se a morte (17) não é o ponto de chegada, mas o de partida das elegias, o fim da era comunista, de Leningrado e dos cinejornais, se faz presente desde a primeira imagem do primeiro episódio, no mínimo, por conta da linha do tempo à direita do quadro. Porque ela está ali, e porque a sequência da história é conhecida, cada promessa de futuro torna-se objeto de dúvida e as palavras otimistas suscitam desconfiança. O ceticismo não diminui o respeito que Sokúrov nutre pela história e por suas imagens. Ele combate a repressão gerada pelo progresso e, assim como Shub defendia nos anos 20, que as figuras do tzarismo mereciam ser vistas, mostra, nos anos 2000, corpos soviéticos durante mais de 600 minutos. As numerosas imagens do cinema sendo feito equipes da Mosfilm e da Lenfilm em filmagem em Leningrado, um apresentador de cinejornais explicando sua rotina de trabalho etc. lembram que a obra é também uma história do cinema no cinema. Trabalhando com os arquivos dos Cinejornais de Leningrado, rodados e exibidos em película até 1990, Sokúrov homenageia gerações de operários do cinema, dotados de um savoir-faire e munidos de meios de fabricação hoje raros. O canto levantado da imagem, ou a página na iminência de ser virada, não responde somente à ruína soviética que o conjunto acaba por tornar visível. Outro desaparecimento ou nostalgia, como diria Enrico Ghezzi se faz notar: o da matéria que serviu de suporte ao cinema durante mais de um século.

página anterior direita

Retrospectiva de Leningrado 1957-1990. (SOKÚROV, 2008, o atleta amputado Vladimir Shadrin, no sombrio número de Ano Novo de 1989) esquerda

A queda da Dinastia Románov. (SCHUB, 1927, imagem do desfile em comemoração ao 300º aniversário da Dinastia Románov)

Agradeço a Aleksei Iankóvski. Sem sua colaboração este trabalho não teria sido possível.


130

ao lado

A queda da Dinastia Románov. (SCHUB, 1927, imagem do desfile em comemoração ao 300º aniversário da Dinastia Románov)


131

Cet article analyse la série Leningrad. Rétrospective, réalisée par Aleksandr Sokourov. Présentée par le réalisateur comme une compilation des actualités filmées produites par les Studios de Films Documentaires de Leningrad, la série opère numériquement quelques interférences sur les archives filmiques, sur lesquelles cet article se concentre. Notre hypothèse soutient l'idée selon laquelle Sokourov, lorsqu'il crée l'image d'une page dans l'imminence d'être tournée, cherchait une forme visuelle pour la transition de régime politique et pour la fin des actualités filmées de Leningrad.

Leningrad. Rétrospective (1957-1990), d'Alexandre Sokourov :

la recherche d'une forme transitoire, ou la nostalgie du présent Lúcia Ramos Monteiro (1)

Je

remercie

Alexei

Jankowski. Sans sa générosité l'écriture de cet article aurait été impossible. (2) Enrico Ghezzi, "Il cinema (che) non si vede”, dans Stefano Francia di Celle, Enrico

Ghezzi

et

Jankowski (sous la direction Elissi di cinema, Torino Film Festival, Turin 2003, p. 5 (c'est moi qui traduit). (3) Ainsi la définit-il : “une pratique documentaire du cinéma comme machine à remonter le temps, qui rappelle et retourne des images d'hier par le montage, le son, la voix d'aujourd'hui, selon une visée la

fois

analytique

et

poétique” (François Niney, Le documentaire et ses faux semblants, Klincksieck, Paris 2009, p. 148). (4)

Dans

son

“L'éloignement

Enrico Ghezzi (2)

Alexei

de), Aleksandr Sokurov –

à

Ce n'est plus 'nostalgie' d'un monde, d'une vie ou d'une uvre déjà 'passée' et perdue, ou sur le point de trépasser, mourir ou disparaître. Mais une nostalgie littérale du présent, et plus encore : la capacité d'entendre et sentir le présent même comme quelque chose de déplacé, tourmenté et généré par la nostalgie ; le présent comme nostalgie.

texte

des

voix

répare en quelque sorte la trop grande proximité des plans”, dans Philippe Dubois (sous la direction de), Recherches sur Chris Marker

Tel un historien imaginatif, il arrive que le cinéma examine des images du passé à la lumière d'un savoir au présent, et y trouve des signes d'événements qui étaient encore à venir. À travers l'opération que François Niney appelle reprise de vues , (3) le (re)montage (res)suscite les images passées, les fait dialoguer avec le monde contemporain et les confère des interprétations impossibles (ou du moins improbables) lors de leur fabrication. Niney attribue à Chris Marker et à Alain Resnais, les réalisateurs de Les statues meurent aussi (1950), le rôle d'initiateurs de cette démarche de révision de l'histoire par le cinéma. En effet, la reprise et le retournement des images constitueront le c ur d'une grande partie de la filmographie de Marker. Ses allers-retours temporels sont constants, s'imprimant dans les titres des films (2084,1984 ; Souvenir d'un avenir, 2003), se conjuguant au futur antérieur (4) (Description d'un combat, 1960 ; Sans Soleil, 1983, Une journée d'Andrei Arsenevitch, 1999), et motivant notamment les multiples versions de Le Fond de l'air est rouge (1977, 1993, 2008) (5) Également habitués de la navigation trans-temporelle, Godard et Farocki se joignent à Marker et à toute une génération de cinéastes expérimentaux (Pelechian, Forgács, Gianikian & Ricci

(1)


132 Théorème 6, Presses de la Sorbonne Nouvelle, Paris 2002, pp. 101-110, François Niney écrit : “la voix off ouvre la voie de retour vers les origines de l'image saisie, à travers le présent de ma vision, comme vue prise au passé et remontée au futur antérieur (du montage puis de la projection)”, (p. 101). Plus tard, à propos de Sans Soleil,

qu'il

qualifie

de

“documentaire de sciencefiction”, Niney dira que ce film nous fait

“voir le devenir-

souvenir de notre monde présent, comme s'il était déjà vu au futur antérieur d'une mémoire à venir” (p. 105). (5) Dans sa thèse de doctorat, Emi Koide cite d'ailleurs autres

(apparemment

nombreuses)

versions

intermédiaires, retrouvées à la maison de production ISKRA (Emi Koide, sous la direction de Iray Carone, Por um outro cinema Jogo da memória em Chris Marker, Université de São Paulo – Institut de Psychologie, São Paulo 2011, p. 28). (6) À propos de la première version

de

Léningrad.

Rétrospective,

Alexandra

Tuchinskaya,

dans

“A

Retrospection of Leningrad (1957-1990)”, The Island of Sokurov An Official Website, http://www.sokurov.spb.ru/ island_en/documetaries/len _retrospektiva/mnp_lre.html , dernier accès 20 juin 2011, écrivait que “la composition de l'auteur se montre par le processus

de

sélection

même” (c'est moi qui traduit). (7) Ingénieur du son dans une vingtaine

de

films

de

Sokourov, Vladimir Persov apparaît

dans

la

fiche

technique de la première version

de

Leningrad.

Rétrospective

comme

Lucchi, etc.), pour interroger des archives cinématographiques prises au sens large, comprenant des images produites pour la télévision, des armées, le documentaire et la fiction. À leurs tables de montage, se nouent des liens entre le visible dans l'image et des catastrophes survenues après-coup. Travaillant depuis deux décennies sur les archives des actualités filmées de Leningrad, Alexandre Sokourov en produit deux compilations sous le titre de Leningrad. Rétrospective. 1957-1990, dont la première date de 1990, et la deuxième de 2008 (5) . Dans les deux cas, l'interférence du réalisateur sur les images paraît minime : il n'y a pas de voix-off, intertitres, changement de vitesse, recadrage ou altération de couleur, quelques-unes des procédures les plus utilisées dans les remontages des cinéastes cités dans le paragraphe précédant ; la bande sonore et le montage originaux sont maintenus. Ainsi, à première vue, il semblerait que le réalisateur s'est contenté de faire une sélection (6) parmi les centaines d'heures d'actualités filmés et les génériques sonneraient justes lorsqu'ils indiquent conçu et compilé par Alexandre Sokourov plutôt que un film de ou réalisé par . Par conséquent, sa démarche serait plus proche de celle d'Esther Choub, qui travaille sur des images d'archives sans pour autant y ajouter des commentaires, que de celle de la tradition inaugurée par Marker et Resnais. Au delà du choix des numéros à conserver parmi l'ensemble des actualités filmées, Sokourov réalise dans la version de 2008 une série d'opérations subtiles de remontage, pour lesquelles il compte sur la collaboration de son assistant, le cinéaste Alexei Jankowski. Tout d'abord, des nouveaux éléments sont ajoutés à la bande sonore originale, à l'aide du travail de l'ingénieur du son Serguei Mochkov et de la musique d'Andrei Siegle (7). Ensuite, sur la bande-images, viennent se greffer deux incrustations : une ligne du temps signalant les années de début et de fin des actualités filmées de Leningrad et un coin de page soulevé, laissant entrevoir une autre image derrière. Quelles seraient les conséquences esthétiques, épistémologiques de ces deux discrètes interventions sur la bande-images originale ? La recherche formelle de ce projet semble vouloir créer une figure de la transition. Serait-elle une visibilité retrouvée pour répondre à l'absence d'images de la fin de Leningrad? Plutôt qu'une compilation, Leningrad. Rétrospective produirait alors, via la reprise de vues et le retournement d'images, une lecture anachronique des actualités filmées de l'époque soviétique : à la lumière du présent de la réalisation/futur des images.


133 responsable du son. Dans la

Leningradskaya kinokhronika

nouvelle version, son rôle dans les génériques est celui de

producteur.

Tout

de

même, on reconnaît dans la nouvelle

version

la

délicatesse et la précision dont

s'est

muni

Persov

notamment pour la bande sonore d'Élégie de Russie. (8) L'historique résumée de la structure est disponible sur le site internet www.cinedoc.ru, dernier accès 20 juin 2011. (9)

Composé

d'images

filmées sur le front par des opérateurs de la LSDF lors de la

Deuxième

Guerre

Mondiale, Et rien de plus fut considéré “inacceptable” par les autorités de la télévision centrale et n'est sorti du tiroir qu'au

moment

de

la

Perestroïka, d'où les deux dates.

Plus ancienne structure étatique dans la production de documentaires en Russie, la maison de production de documentaires fondée à Pétrograd en 1918 a reçu différents noms au long de son histoire, suivant les changements dans le nom de la ville. Elle est en activité encore aujourd'hui, actuellement comme Saint Petersburg (Leningrad) Documentary Film Studios (8). Dans les années 1960, l'organisme, alors nommé Leningrad Documentary Film Studios (LDFS), devînt le principal producteur de documentaires du pays. Reconnus par leur compétence, ses réalisateurs et techniciens filmaient non seulement à Leningrad, mais dans toute sa région. Entre les décennies de 1970 et 1990, la LSDF a produit une douzaine de documentaires de Sokourov, dont Maria, une élégie paysanne (1978-1988), Élégie (1986) et Et rien de plus (1982-1987) (9). L'institution conserve dans ses archives 500 heures de documentaires et 900 heures d'actualités filmées, dont les Leningradskaya kinokhronika , tournées entre 1957 et 1990 et projetées exclusivement dans les salles de cinéma, lors de séances payantes indépendantes des projections de films de fiction, plus chères. C'est sur cette collection d'actualités filmées que Sokourov se penche pour Leningrad. Rétrospective, avant tout un hommage à plusieurs générations de techniciens et de réalisateurs ayant travaillé à la LDFS, où ils devaient faire face à la censure. Financée par la RAI 3, le premier montage de Sokourov sort en 1990. Incluant des actualités filmées de cette même année, la dernière des Leningradskaya kinokhronika, il comptait alors seize épisodes, avec une durée totale de 13 heures. Le critique et philosophe Enrico Ghezzi était à l'origine de ce projet. Presque vingt ans plus tard, en 2008, Sokourov sort une compilation de la compilation , réalisé avec la collaboration d'Alexei Jankowski. La série compte désormais de quinze épisodes, presque onze heures. Six des quinze ont été sous-titrés en anglais et projetés pendant le cycle Alexandre Sokourov des pages cachées, réalisé par Danielle Hibon au Musée du Jeu de Paume, à Paris, entre octobre 2010 e février 2011. D'une version à l'autre, se maintiennent les principes centraux du remontage, dont l'organisation chronologique des épisodes (le premier réunit des actualités filmées de 1957 et 1958, et dernier est dédié aux années 1989 et 1990). Toutefois, la nouvelle version de Leningrad. Rétrospective contient des importantes modifications. Le premier changement de la version de 2008 en est une subtile ligne du temps, superposée aux images, à la latérale


134

(10)

Avant

Leningrad.

Rétrospective, Sokourov

Alexandre

avait

employé

l'effet d'une page qui tourne dans

son

documentaire

Dolce... (1990), un portrait élégiaque

de

l'écrivain

japonais Toshio Shimao, de sa femme Miho et de leur fille. Au

début

de

Dolce,

lorsqu'une voix off raconte l'histoire shakespearienne du couple, le cadre prend un format

vertical

et

droite du cadre. L'année 1917 figure en haut de cette ligne, avec la faucille et le marteau, en rouge ; l'année 1991 apparaît en bas. Entre les deux, l'année de l'épisode en question s'illumine. La deuxième et plus intrigante des modifications figure dans l'angle inférieur à la gauche du cadre : un coin de page soulevé laisse voir une autre image derrière. Ainsi, chaque image est double, composée d'une grande image et d'une petite image. (10) Les ajouts à la bande sonore constituent la troisième des interventions de Sokourov pour la nouvelle version de Leningrad. Rétrospective. La musique répétée à chaque début et fin d'épisode contribue à l'unité de la série et, au long du film, des notes de cordes et métaux viennent discrètement souligner certains passages, en intensifiant des moments dramatiques. Une ouverture et une clôture ont été créées : à l'ouverture, une image se dresse jusqu'à occuper entièrement le cadre ; à la fin, l'image tombe. Sur les génériques, des sons de cloche se mélangent au tic-tac d'une horloge, faisant penser à une bombe à retardement.

les

transitions entre les images

Strates de montage

se font par le moyen du tourner des pages. Il s'agit d'une espèce de split-screen, forme filmique qui n'est par ailleurs pas non plus nouvelle dans la filmographie de Sokourov – il l'avait utilisé notamment dans Élégie de la vie

(2006),

sur

le

violoncelliste Rostropovich et la

chanteuse

Vishnevskaya.

Galina

Différents strates de montage se retrouvent dans la compilation proposée par Sokourov. En premier lieu, il y a la division du cadre en petite et grande images. En effet, l'image du coin dialogue avec le reste du cadre, selon des modalités et intensités variables. L'insert vient regarder, interpeller, commenter, critiquer, ironiser ou contredire l'image principale, lui imposant le dialogue avec une autre temporalité, que ce soit un apport de mémoire ou une prophétie d'avenir. Dès le début, les deux images disputent l'attention du spectateur. Du côté de la principale, les informations semblent claires : Sokourov conserve les génériques des actualités filmées, avec leur titre, l'année, et le nom des réalisateurs ; la bande-son originale, conservée, nous restitue le discours original, assez didactique. La petite image est plus intrigante. Amputée de sa bande sonore, elle interpelle le spectateur, qui veut savoir d'où sont-elles issues, et pourquoi. Même le spectateur démuni de telles informations s'aperçoit des effets du montage à l'intérieur du cadre. Des rimes, des ressemblances et des ironies surgissent de par la propre plasticité des images. Pour ceux qui la reconnaissent, la petite image apporte le souvenir d'autres films et d'autres épisodes de la série. Sokourov, Alexei Jankowski et une équipe de collaborateurs ont « rempli le coin » avec des séquences provenant de différents films de Sokourov Maria, Sonate pour alto. Dmitri Chostakovitch (1981), Et Rien de Plus, Voix Spirituelles (1995), Confession (1998) et d'Alexei Jankowski Un jour en moins (1993), The Little Red Tram (2002). Ils y ont


135 apparaissent sur la grande image, mais décalées dans le temps, inversées (à 180º), recadrées. L'ironie par contraste, qui pourrait s'approcher du montage eisensteinien, devient particulièrement visible dans les actualités filmées consacrées à des parades militaires. Lorsque la partie principale de l'écran reproduit le numéro de juin 1972, montrant le défilé de la jeunesse léniniste, dans le coin l'on voit des poussins en cage, issues d'un numéro dédié à l'industrie agro-alimentaire; le public applaudi le défilé, et au coin apparaît un défilé de mode d'enfants. À un autre moment, le contrepoint pour les véhicules militaires de l'image principale sera une fête foraine, où des enfants conduisent des voitures en miniature. Le procédé de Sokourov offre un contrepoint aux images officielles, comme s'il était possible d'entrevoir une vérité plus profonde, au-delà de la bidimensionalité de la surface de l'écran. Ainsi, dans le premier épisode, les actualités filmées entre 1957 et 1958 gagnent du relief par la mémoire des images de la Deuxième Guerre Mondiale issues de Et Rien de Plus, dans le coin. Les deux parties du cadre s'interpellent mutuellement, séparées par des faits historiques qui deviennent presque visibles : le début de la Guerre Froide, en 1947, et la mort de Staline, en 1953. L'image des triplets qui naissent avec le nouvel an 1957 peut être vue comme un commentaire ironique à la rencontre entre Churchill, Roosevelt et Staline à la Conférence d'Yalta, en 1945. Dans d'autres circonstances, la petite image n'a que du blanc ou du noir, aucune forme reconnaissable n'y étant identifiée. Cette situation se reproduit assez fréquemment dans l'épisode 6, contenant le numéro d'août 1968 des Leningradskaya kinokhronika. Lorsque la grande image montre des discours de soutien aux efforts du Parti Communiste de Tchécoslovaquie, pour arrêter les essais de contre-révolution , le coin oscille du noir au gris, obtenus par un recadrage où le morceau choisi correspondrait par exemple à un plafond, ou à un mur, selon m'a expliqué Alexei Jankowski. Comme si certaines images ne permettaient pas de contrepoint, finalement. Après quelque temps de visionnage, un autre niveau de montage se fait visible pour le spectateur. En plus de l'enchaînement linéaire des plans, conservé du montage original, et de la confrontation simultanée créée par le split-screen, certains retours d'image se vérifient d'un épisode à l'autre, ou du début à la fin d'un même épisode. C'est comme si la série commençait par créer un vocabulaire, pour ensuite le mettre au travail. Parmi les retours d'images vues précédemment, on peut citer les triplets dans leurs berceaux, le mariage collectif et le dîner de nouvel an de 1957, réutilisés dans le coin à plusieurs reprises. Celle-ci n'est toutefois pas la seule possibilité de retour d'image instauré par Sokourov dans ce projet. L'on observe des répétitions de thèmes et de figures de montage, pas nécessairement à travers les mêmes images, mais à travers les mêmes recours employés par les différentes équipes de Leningradskaya kinokhronika. Des clichés des actualités filmées de Leningrad sont alors mises en évidence. Les enquêtes sur les attentes pour le Nouvel An, par exemple, semble être une obligation presque annuelle. S'il y a des répétitions, il y a aussi des variations. Des codes d'un optimisme de propagande sont posés notamment en 1957 (où l'ouvrier Georgi Bugrov, sa femme et son petit-fils compensent avec beaucoup d'espoir et de joie le peu de moyens de leur cène de Nouvel An), et en 1971 (où le Nouvel An est fêté un mois plus tôt, parce que les buts du plan quinquennal avaient été atteints dès début décembre). D'autres images de Nouvel An seront vues dans le dernier épisode (1989-1990). Premièrement, Vladimir Shadrin (fig. 5), dont les jambes ont été amputées suite à l'explosion d'une bombe pendant le réveillon de 1989, est interviewé; ensuite, au passage de 1989 à 1990, une série d'entretiens, sans


136 (11) Matthias Steinle, “Esther Choub et l'avènement du film-archive”, dans Christa Blümlinger, Michèle Lagny, Sylvie Lindeperg, François Niney et Sylvie Rollet (sous la direction de), Théâtres de la mémoire – Mouvement des images, Théorème 14, Presses de la Sorbonne Nouvelle, Paris 2011, p. 13. (12) Sylvie Rollet, “Théâtres de la mémoire – Mouvement des images”, dans Christa Blümlinger, Michèle Lagny, Sylvie Lindeperg, François Niney et Sylvie Rollet (sous la direction de), Théâtres de la mémoire Mouvement des images, Théorème 14, cit., p.

sapins dans le décor, nous fait part des attentes des interviewés, plus modestes « je veux que ma famille aille bien [...] et qu'on soit tous en meilleure forme que maintenant » et même sombres Je n'attend rien de positif . Les clichés cinématographiques pour les promesses d'avenir (mariage, naissance, fête de nouvel an) deviennent alors préfiguration de la ruine. Évidemment, c'est la Perestroïka qui permet le changement de ton, autorisant une certaine liberté d'expression, désobligeant les réalisateurs de quelques contraintes. L'expérience de ce dernier épisode est donc double : si d'un côté on peut commémorer l'absence de propagande et de censure, d'un autre côté la désolation devient presque insupportable, et finit par contaminer notre mémoire des épisodes précédents. L'envie alors est de défaire rétroactivement l'optimiste naïf qu'on avait pu ressentir face à l'image de Georgi Bugrov, le grand-père du Nouvel An 1957 (il avait le sourire édenté, on l'avait vu, mais on n'en avait rien dit) et la vendeuse modèle de 1971 (était-elle sincère après tout ?).

7. (13) Patrik Sjöberg, The World in Pieces: A Study of Compilation Film, Aura

Image de la disparition, disparition de l'image

Förlag, Stockholm 2001.

La démarche de Sokourov est sans doute héritière de celle d'Esther Choub. Tous les deux nourrissent l'amour de l'aventure qui unit le travail archivistique au poétique. Choub restaura et indexa des kilomètres de bobines, transformant de vieilles images, sans valeur heuristique auparavant , en images d'archive dans le sens actuel du terme (11). Le montage des images de La Chute de la Dynastie Romanov (1927) offre une compréhension tout à la fois 'intellectuelle et émotionnelle de l'histoire (12). En outre, Matthias Steinle nous rappelle que, si Choub est amplement connue comme pionnière du film de montage , certains chercheurs, dont Patrik Sjöberg (13), préfèrent le terme compilation film , utilisé par Jay Leyda (14) et revendiqué par Sokourov pour caractériser son propre travail.

(14) Jay Leyda, Film Beget Films. A Study of the Compilation Film, Hill and Wang, New York 1964. (15)

A

ce

notamment

sujet,

voir

l'article

de

Valérie Pozner, “'Joué' versus 'non-joué' : la notion de 'fait' d a n s

l e s

d é b a t s

cinématographiques

des

années 1920 en URSS”, in: Communications, 79, 2006. Des faits et des gestes. Le parti pris du document, 2. pp. 91-104,

disponible

sur

http://www.persee.fr/web/r evues/home/prescript/articl e / c o m m _ 0 5 8 8 8018_2006_num_79_1_241 4,

dernier

accès

le

7

septembre 2012, ainsi que le contenu d'un débat entre Choub et d'autres cinéastes soviétiques en 1927, dans Valérie Pozner, ”Débats du LEF

en

1927”,

in:

Communications, 79, 2006. Des faits et des gestes. Le parti pris du document, 2. pp. 105-120, disponible sur

Au début des années 1920, en URSS, toute une génération de cinéastes défendait l'importance de réaliser des documentaires, dans une démarche issue de la conscience de vivre un moment historique (15). Cette conscience se révélait d'un côté par la production d'images cinématographiques de la période qu'ils vivaient fabriquer des documents de leur époque semblait fondamental et d'un autre côté par la conservation et ré-utilisation des images d'archives, vues également comme des documents précieux d'autres moments de transformation de leur histoire. C'est de cette manière qu'on peut comprendre la démarche de Choub (malgré le fait qu'elle réalise des coupes dans le négatif, comme le remarque Valérie Pozner), et celle de Sokourov va dans la même direction.


137 http://www.persee.fr/web/r evues/home/prescript/articl e / c o m m _ 0 5 8 8 8018_2006_num_79_1_241 5,

dernier

accès

le

07

septembre 2012.

Choub et Sokourov effectuent l'examen commun des images qui précèdent la chute de deux régimes, deux sortes différentes d'empire la chute de la dynastie Romanov pour la première, l'effondrement du régime soviétique pour le dernier. Dans La Chute de la Dynastie Romanov comme dans Leningrad. Rétrospective, leur geste esthétique se fait voir plutôt par ce que montrent les images les unes au contact des autres, que par un éventuel texte ; ils n'essaient pas d'expliquer les causes de l'effondrement d'un ou d'autre régime, contrairement à ce qui fait notamment Chris Marker, en commentant des images contenus dans La Chute de la Dynastie Romanov, qu'il reprend dans son Le Tombeau d'Alexandre (1993). Sur la séquence du défilé en commémoration du trois-centième anniversaire des Romanov, en 1913, le commentaire de Marker dit : Quel film n'a pas montré cette procession de dignitaires ? Et qui l'a regardée ? Ce geste du gros bonhomme qui se frappe le front, que dit-il ? Que l'assistance est fêlée ? Non, il leur signifie d'ôter leurs bonnets. On ne reste pas couvert au passage de la noblesse. J'imagine ce qu'un Machiavel russe aurait du écrire à l'usage des puissants. Dominer, exploiter, éventuellement massacrer. N'humilier jamais.

(16)

Gi o r gi o

A ga mb e n,

“L'elegia di Sokurov”, dans Stefano Francia di Celle, Enrico

Ghezzi

et

Alexei

Jankowski (sous la direction de), Aleksandr Sokurov Elissi di cinema, cit., p. 111 (c'est moi qui traduit). (17) Dans sa lettre à Benjamin Halligan, Francia

dans

di

Stefano

Celle,

Enrico

Ghezzi et Alexei Jankowski (sous la direction de), Aleksandr Sokurov Elissi di cinema, cit., p. 125, Jankowski parle de la pulsion “nécroréaliste” de Le jour de l'éclipse (1988), commune à d'autres

réalisateurs

du

cinéma underground de cette époque : “Cet intérêt plus morbide qu'artistique avait son origine dans l'idée selon laquelle il est impossible de dire la vérité sur la vie sans dire la vérité sur la mort” (c'est moi qui traduit).

Plus subtile que le commentaire de Marker, le geste de Sokourov et de Choub est néanmoins suffisamment fort pour faire voir que la ruine de l'image était déjà en cours au moment de la prise de vues, quoiqu'inaperçue. Dans le cas spécifique de Leningrad. Rétrospective, les interférences de Sokourov sur le matériau original nous permettent d'identifier dans sa démarche une recherche d'une forme transitoire pour faire face à l'image de la disparition, à la disparition en image. La page dans l'imminence d'être tournée en est la métaphore la plus explicite, forme transitoire par excellence. Une image pour la disparition, Sokourov l'avait déjà poursuivie dans les élégies réalisées à partir de 1989. Selon Giorgio Agamben, au-delà de sa lamentation funèbre intrinsèque, l'élégie contient une ambiguïté, située dans la difficile intersection entre politique et lamentation (16). Pour lui, la plainte de Sokourov n'a pas un objet unique ; ils sont multiples, comprenant l'Union Soviétique, la liberté de Vilnius, la vieille Russie, l'Europe... Ainsi, ses élégies contempleraient le vide de pouvoir instauré dans son pays à partir de 1989, année de la première élégie. Si la mort (17) n'est pas le point final mais celui de départ des élégies, la fin de l'ère communiste, de Leningrad et des actualités filmées de Leningrad se fait présente depuis la première image du premier épisode, ne serait-ce que par la ligne du temps à droite du cadre. Parce qu'elle est là, et parce que la suite de cette histoire est connue, chaque promesse devient objet d'un doute, les mots d'optimisme suscitent de la méfiance. Cependant, ce scepticisme après-coup n'amoindrit pas le vrai respect dévoué par Sokourov à l'histoire et à ses images, combattant le refoulement généré par le progrès. Tout comme


138 Choub défendait dans les années 1920 que les figures du tsarisme méritaient d'être vues, Sokourov montre, dans les années 2000, des corps soviétiques pendant plus de 600 minutes. Les nombreuses images du cinéma en train de se faire une équipe de Mosfilm ou de Lenfilm en tournage à Leningrad, un présentateur des actualités filmées expliquant sa routine de travail, etc. nous rappellent qu'il s'agit par ailleurs d'une histoire du cinéma en cinéma. En puisant dans les archives des Leningradskaya kinokhronika, tournées et projetées en pellicule jusqu'en 1990, Sokourov rend hommage à des générations d'ouvriers du cinéma, porteurs d'un savoir-faire et d'un moyen de fabrication devenus rares. Le coin soulevé de l'image, ou la page dans l'imminence d'être tournée, ne répond pas seulement à l'écroulement soviétique que l'ensemble finit par rendre visible. Une autre disparition ou nostalgie, comme dirait Enrico Ghezzi est à l' uvre, celle de la matière ayant servi de support au cinéma pendant plus d'un siècle.



140

Aleksander Sokúrov: Fausto (Faust , 2011)

(1)

Nancy Condee traduzido por Breno Morita (1) A versão original deste artigo, em língua inglesa, foi lançada em julho de 2012, na revista eletrônica KinoKultura - New Russian Cinema (ISSN 1478-6567). A tradução em língua

portuguesa

gentilmente

cedida

foi por

Nancy Condee, autora do artigo, e por Birgit Beumers, editora da revista. O arquivo original está disponível em: <http://www.kinokultura.co m/2012/37r-faust.shtml>. (2) Cf. título original (N. do T.) (3) Cf. título original (N. do T.) (4) Enquanto o diabo é abstratamente

citado

constantemente, no Fausto de Sokúrov, o nome de Mefistófeles nunca aparece no filme e o personagem Maurício

nunca

é

explicitamente relacionado a Mefistófeles.

Sokúrov

é

peculiarmente irascível sobre o assunto de seu anti-herói. Veja Grinkrug: Grinkrug:

A

impressão

visual

segunda mais

arrebatadora é a visão de Mefistófeles se banhando.

A contribuição de Sokúrov, com o legado de Fausto, é um trabalho enigmático e desafiador. Soma-se à tradição de cerca de trinta filmes baseados amplamente na lenda e na peça em duas partes de Johann Wolfgang von Goethe (1806-31). Seus predecessores incluem Faust: apparition de Méphistophélès (2) (1897), de Auguste e Louis Lumière; Faust et Marguerite (3) (1926), de F. W. Murnau (seu último filme alemão); e, mais recentemente, o musical de rock psicodélico de Ansel Faraj (2009), apresentado em Venice, Califórnia. O Fausto de Sokúrov renova a esperança de que o assunto ainda não foi banalizado para além da redenção. As dramatis personae de Sokúrov preservam várias personagens familiares Fausto, o mefistofélico Maurício (4), Margarida, sua mãe e seu irmão Valentin embora poucos dos episódios canônicos sejam recapitulados. Consequentemente, para os aficionados por Fausto (com menor interesse em Sokúrov), é provável que o filme seja um exercício frustrante; para os aficionados por Sokúrov (com menor interesse em Fausto), o filme é uma rica oportunidade para traçar deslocamentos significativos na obra de Sokúrov. Fausto, de Sokúrov, é o último filme de sua, assim intitulada, tetralogia do poder, que inclui Molokh (1999), Taurus (2000) e O Sol (2004), respectivamente retratando os líderes políticos Hitler, Lênin e Hirohito. Apesar de todas suas reconhecíveis semelhanças com os outros filmes da série, Fausto marca uma ruptura formal, em relação aos precedentes, em três aspectos. Primeiro, duração: os anteriores têm uma duração entre 104 e 110 minutos cada; com 139 minutos, Fausto, de Sokúrov, é substancialmente mais longo. Segundo, tempo diegético: os outros três filmes têm em comum um


141 Sokúrov: De onde você tirou a ideia de que é Mefistófeles? [...] Esse nome foi falado, ao menos uma vez? Grinkrug: O personagem associado a Mefistófeles do Fausto tradicional – não se pode dizer isso? Sokúrov: Assim é uma outra questão;

assim

é

mais

preciso. (5) Pode-se compreender o episódio protagonizado após o enterro de Valentin como uma saída, análoga àquelas nos outros três filmes. Meu ponto aqui é diferente: a d í a d e

f u n d a n t e

(mansão/saída) é rompida. (6) Essa interpretação não surpreende: na entrevista com Olga Grinkrug, Sokúrov explica “[Fausto] é o final e – ou o começo. Uma tetralogia é um ciclo em que é possível a movimentação.”

Para

sustentar a argumentação, trago em consideração a astuta hesitação inicial de Sokúrov em escolher o herói do quarto filme. Também devo mencionar que a ordem original, que era para ter começado com Lênin, em Taurus (Savelev), antecipava uma

reação

doméstica

controversa. Por conta disso, os

produtores

estabeleceram

russos que

o

orçamento para produção seria

exclusivamente

fontes

de

domésticas

(Ogurtsov). Por conta de atrasos relativos a isso, Taurus foi finalizado apenas após Molokh.

ao lado

Fausto. (SOKÚROV, 2006, 01:50:19)

Fausto, de Sokúrov, é substancialmente mais longo. Segundo, tempo diegético: os outros três filmes têm em comum um pequeno trecho da vida do líder (vinte e quatro horas, discutivelmente); Fausto não leva em conta esses limites. Terceiro, espaço: nos trabalhos anteriores, o espaço fílmico opera como dois ambientes distintos; inicialmente palaciano, ainda que seja um interior claustrofóbico (para Hitler, o forte Kehlsteinhaus; para Lênin, a propriedade de Morozov; para Hirohito, o palácio imperial japonês); e, depois, a céu aberto, um horizonte exterior, a saída (Ausflug de Hitler; o piquenique de Krúpskaia de Lênin; a viagem pela cidade até MacArthur, de Hirohito). Cada um dos filmes precedentes estrutura-se em torno da ruptura visual e narrativa destes dois locais. Em Fausto, em contrapartida, a trama desloca-se constantemente de um lugar a outro, como se uma duração luxuriosa e uma eternidade diegética também permitissem a Sokúrov uma grande indulgência territorial (6). O que é assinalado em Fausto por essa grande luxuriosa mudança de direção de tempo e espaço? Várias linhas argumentativas são autossugestivas, mas acho uma delas mais convincente: Fausto sinaliza o ponto de desvio no ciclo, tanto no início quanto no fim. Podemos colocar seus quatro filmes na ordem em que foram pretendidos, começando com Taurus. Alternativamente, podemos colocá-los na ordem de sua real produção Molokh , Taurus , O Sol , Fausto. Ainda, alternativamente, podemos ordená-los quanto a sua diegése ficcional século XIX (Fausto), 1922 (Taurus), 1942 (Molokh), 1945 (O Sol). Apesar dessas estratégias, Fausto emerge como a pedra fundamental da tetralogia, seu maciço central. É a partir de Fausto que os outros três filmes mais curtos, mais leves e de âmbito e visão menos globais emanam sintomaticamente. Por último, menos relacionado com tempo e cenário, os grandes marcos conceituais de Fausto estão fixados no mundo errante da vida secular, enquanto tal, incluindo-se o próprio cinema.


142 (7) Até Fausto, os lugares sagrados

de

Sokúrov

poderiam ser traçados a partir de vários padrões recorrentes. O sagrado era f r e q u e n t e m e n t e representado, de maneira literal, por uma capela, mas também por dois outros cenários: o museu de arte e o ambiente militar. Enquanto o cenário

militar,

sagrado, forçado

possa

como parecer

demais

para

o

espectador ocidental, os textos apoiam essa hipótese: Vozes espirituais (1995) é, afinal de contas, um filme sobre a patrulha de fronteira militar entre Tajiquistão e Afeganistão;

Obrigação

(1998) é, inusitadamente, um filme sobre um navio de patrulha naval; Sacrifício da tarde – o cântico repetido nas cerimônias

Ortodoxas

vespertinas (“... que minhas mãos erguidas sejam um sacrifício

vespertino...”

[Salmo 141:2]) – é um filme sobre a parada do Dia do Trabalho que inclui tomadas repetitivas de uniformes e equipamentos

militares.

Podemos escolher outros exemplos desconexos destes três cenários (capela, museu e ambiente militar), mas todos estão reunidos no curta Elegia da travessia (2001), de Sokúrov, em que o itinerário inclui o Monastério de Santa Maria (Valdai), o museu Boijmans

van

(Roterdã),

e

Beuningen a

travessia

aduaneira na fronteira russofinlandesa. (8) Os estúdios Barrandov, com

seus

4100

metros

quadrados de estúdio de som, são considerados a “Hollywood do Leste”, mais conhecida

por

suas

colaborações com filmes de

No Fausto de Sokúrov, o secular nos é oferecido em sua forma mais rebaixada: um mundo em tela de flatulências, halitoses, movimentos peristálticos, quatis, guerra perpétua, ratos, fedor, aves domésticas em salas médicas, taverna imunda, um cometa reduzido a uma bola de gás ( um peido! , conforme entende o taberneiro), uma procissão funerária interrompida por porcos encaixotados, um funeral ao lado da vala invadido por cães ferozes, sacerdotes que há muito tempo assinaram pactos com o Diabo, paredes que de maneira infernal jorram vinhos baratos ( xixi de burro como o personagem nos lembra). Neste mundo, o Diabo um personagem caprichoso e epiceno entra na igreja como se essa fosse um clube particular: os sacerdotes, afinal de contas, estão sob contrato; é um local conveniente para defecar; a estátua da Virgem está disponível para brincadeiras sexuais. Esse Diabo, construído às avessas, na frente, uma barriga caída, como nádegas; nas costas, um pênis vestigial está confortável em tão invertida e pervertida igreja, ainda mais porque o Inferno não está distante.(7) Dessa maneira, pelos seus 139 minutos, o filme mantém o sagrado implacavelmente fora da tela, em uma instância em que as visualidades terrenas têm seu acesso negado. Até a delicada Margarida, no enterro de seu irmão, não é uma figura de salvação na tela. Sua face mamífera, selvagem, volta-se em direção ao lascivo Fausto, enquanto ela lentamente percebe o que move o mundo. Isso, eu argumentaria, é uma tela bem diferente daquela que temos encontrado, por exemplo, em Mãe e filho (1996) ou Pai e filho (2003), em que os personagens foram elaborados como ícones em movimento. Aqui, ao contrário, os corpos, em Fausto, são receptáculos da profanação humana. Como coloca o roteirista Iuri Arábov (com característico laconismo) fizemos um filme sobre a ruptura contemporânea do homem com a metafísica ( Faust bez mistiki ). A co-produção russo-germano-austro-tcheca foi filmada e produzida por um período de dois anos (17 de agosto de 2009, até sua estreia, em 08 de setembro de 2011) principalmente na Bohemia Central, na cidade de Kutná Hora, nos castelos de Lipnice nad Sázavou, Ledeč nad Sázavou e Točník, assim como nos estúdios Barrandov (8), de Praga. Outra locação que não pode ser expressa por uma mera descrição verbal é toda a região ao redor do vulcão Eyjafjallajökull, na Islândia, da magnífica cena final de Sokúrov. O inventário das locações é dirigido pela lógica abrangente de Sokúrov: seria de extrema retórica afirmar que Sokúrov é um cineasta global, mas ele não pode mais ser descrito como um cineasta russo, tampouco seu trabalho ser adequadamente descrito como cinema russo. Com trinta e oito países contribuindo com um orçamento para a produção de 9.3 milhões de Euros, com elenco predominantemente de falantes


143 Nikita

Mikhalkov,

O

sol

enganador 2 (2010), de Andrew Adamson, Crônicas de Nárnia: Príncipe Caspian (2008), e, de Martin Campbell, Cassino Royale (2006). Seu complexo, o maior

estúdio

sonoro

europeu, permanece sem concorrentes até em relação aos 3100 metros quadrados de

espaço

aberto

na

Glavkino, um complexo de estúdios nos arredores de Moscou,

inaugurado

em

junho de 2012 no 34º Festival Internacional de Cinema de Moscou.

Para

maiores

informações ver Skliarova e Shumova; Medetsky. (9) O pai de Fausto, encenado pelo ator islandês Sigurdur Skúlason, exceção

foi a

a

grande

este

elenco

predominantemente alemão. (10)“Adeus, Europa”.(N.do T.) (11) A mais interessante e recente exposição dessa terminologia

está

desenvolvida em Tarásov (2007), p.42-67. Estou grata a

Alexandra

Smith

correspondentes SEELANGS

por

comentários

sobre

terminologia

e de

seus essa

técnica

e

religiosa. (12) Parte da teologia que trata da salvação do mundo (N.do T.) (13) Weissberg, por exemplo, descreve Fausto como "... uma

enlouquecedora

narrativa

opaca

e

uma

cachoeira brutalizante de irrefreável verborragia. A superabundância de legenda não ajuda, impedindo a habilidade

do

olho

de

absorver a riqueza visual e dificultando a capacidade racional de conectar o que está acontecendo com as cenas

anteriores

posteriores."

e

países contribuindo com um orçamento para a produção de 9.3 milhões de Euros, com elenco predominantemente de falantes da língua alemã (9) , um diretor de fotografia francófono, uma equipe tcheca e um diretor que fala russo, esse conjunto poliglota retorna mais uma vez ao debate central de Arca Russa (2002): será a Rússia um país europeu? Arca Russa ofereceu uma resposta intencionalmente contraditória: sua última fala ( Adieu, Europe! (10)) sugere que a Rússia pós-1914 deixou de ser europeia; a produção do filme sugere a seu próprio modo que a Rússia reincorporou-se à comunidade. Continuando a lógica de Arca Russa, Fausto agora toma como certo seu status europeu, que se evidencia nas escolhas das locações, elenco e equipe, seu roteiro germanófono e seu universo diegético. Essa preocupação pan-européia é o primeiro de vários aspectos pelo qual Fausto de Sokúrov está em diálogo íntimo com Arca Russa. Um segundo ponto de contato com Arca Russa diz respeito ao status radicalmente diferente do sagrado nessas obras contrastantes. Certamente não é fortuito dada a atenção de Sokúrov ao título que ele tenha de antemão escolhido um termo [kovtcheg] referente não apenas a embarcação (para a família de Noé) ou para as tábuas sagradas, mas também (no sentido medieval de kovtcheg) ao espaço rebaixado do ícone em que era colocada a imagem sagrada (11). Dessa maneira, arca russa é simultaneamente quatro coisas: a embarcação russa; o Hermitage; o painel de ícone e a tela de cinema em que a herança sagrada da cultura é projetada. Na época de Fausto, a tela de Sokúrov não mais se oferece à função sagrada: a soteriologia (12) permanece fora da tela. Nesse contexto, a visível despreocupação de Sokúrov com o status europeu da Rússia aparenta ser menos uma questão de identidade ("a Europa reconhece a Rússia como europeia?") que uma questão das conquistas incertas da própria secularidade. "Em lugar algum", insiste Sokúrov, "cometeu-se tantos crimes como no território do Velho Mundo - nem na África, nem na América. Parece que mesmo que aqui tenha florecido a educação, o humanismo e o parlamento; ainda assim, os bombardeios continuam" (Grinkurg). Pode-se, como sempre, discutir a geo-política de Sokúrov, mas é vão discutir a grandiosidade de sua polêmica visual. Esse ceticismo em relação à secularidade europeia guia muitos dos episódios. Somos ensinados a achar Sokúrov obscuro, impenetrável, lúgubre e assim, cada novo filme satisfaz esse modelo sombrio (13). Na verdade, se esta ansiedade expectante puder ser suspensa, o filme torna-se relativamente lúcido quanto às críticas seculares, independentemente do corpus de Goethe: Fausto, um médico em busca (dentre outros projetos) da localização física da alma, precisa de dinheiro. Repelido por seu pai, também um médico, Fausto visita o agiota Maurício, com o qual inicialmente fracassa em conseguir dinheiro, mas encontra, ao invés disso, um


144 em conseguir dinheiro, mas encontra, ao invés disso, um valioso interlocutor. Suas loquazes peregrinações constituem o restante do filme: eles visitam um balneário, onde Fausto pela primeira vez vê Margarida de relance; depois uma taverna, onde Maurício arma para que Fausto assassine inadvertidamente o irmão de Margarida, Valentin; depois o funeral e enterro de Valentin; e assim por diante. Se alguém fosse bárbaro o bastante para ver Fausto de Sokúrov como um road movie (a pé), sua peripécia tornar-se-ia consideravelmente menos misteriosa. Este ponto revela um terceiro aspecto no qual Fausto de Sokúrov dialoga com Arca Russa: a relação de suas andanças com um implacável movimento alegórico. Em Arca Russa, dois personagens errantes (o ocidental e o russo) fazem seu caminho pelo Hermitage; em um registro interpretativo mais denso, eles encenam uma história cultural russa desordenada que serve como um alerta sobre os equívocos do ocidente. Em Fausto, dois personagens errantes (o Diabo e Fausto) abrem seu caminho pela cidade e campo; ao fazerem isso, eles dão forma a uma exegese aeróbica sobre a debilidade humana. De maneira análoga a Arca Russa, as deambulações sem fim dentro e ao redor da cidade medieval, na mata fechada do campo, e (de maneira mais vívida) pelas terras milenares próximas a Eyjafjallajökull são a encenação física da alegoria, isso é, metáfora distendida em uma narrativa morosa (o "templo transformado em labirinto" como Fineman coloca). Em ambos road movies, a consumação simultânea de palavras e espaço pode finalmente ser o que propõe este cinema conceitual.


145

(14)

Sokúrov,

“Moloch:

Interview with Alexander Sokurov”, entrevista para a cópia em DVD de Molokh (1999).

Na verdade, ao assistir Fausto, o denso diálogo de Iuri Arábov é o ajuste inicial mais difícil a ser feito. Seu palavreado exaustivo e reflexivo, emaranhado em um amontoado de legendas, vai na contra-mão da maior parte das tendências contemporâneas lacônicas, de filmes orientados pela visualidade (notavelmente na Rússia, os chamados Novos Silenciosos (Novye tikhie). Não surpreende, é claro, que Sokúrov resista à expectativa dominante da moda do cinema: "Isso incomoda o público, pois acreditam que o cinema é criado para o espectador," como uma vez ele, amavelmente, colocou (15). A esse respeito, o roteiro prolixo de Arábov conspira junto ao elenco e equipe pluri-lingual para criar uma Torre de Babel atual, uma provocação contumaz às tendências contemporâneas. Aqui, pode-se especular que ocorra uma quarta interseção com Arca Russa: o excesso de retórica (na tela), em Fausto, e a multiplicidade de línguas que são trabalhadas (fora de quadro) requer um virtuosismo linguístico equivalente à virtuosidade da tomada única em Arca Russa. Quanto ao trabalho de câmera em Fausto, Bruno Delbonnel pode parecer uma escolha um pouco estranha para o


146 estilo demasiadamente autoral de Sokúrov. O trabalho de Delbonnel, afinal de contas, inclui grandes sucessos como Harry Poter and The Half-Blood Prince [Harry Potter e o Príncipe Misterioso] (2009), de David Yate, e Dark Shadows [Sombras da Noite] (2012), de Tim Burton. Precipitadamente, no pior dos casos, pode-se achar que é um diretor de fotografia bem conceituado com um diretor mal conceituado. O encontro, inesperadamente, é bom: considerando o amplo escopo de caprichos visuais tomadas de aberturas parecidas com as da Disney, animações, lentes anamórficas, efeitos especiais Delbonnel não está de maneira alguma deslocado do espírito do filme. Enquanto a sublime tomada final de Eyjafjallajökull é certamente pouco desafiadora mesmo para um cameraman mediano, o talento de Delbonnel evidencia-se em um momento muito menos proeminente. Logo antes da crucial pergunta de Margarida ( Foi você quem matou meu irmão? ), a tela emudece; a iluminação transforma-se radicalmente, a textura superficial da tela torna-se palpável. A feição de Margarida torna-se translúcida; em sua expressão cresce cada vez mais um júbilo demoníaco, como se saboreando antecipadamente a resposta de Fausto; os limites entre inocência e perversão se dissolvem. Essa tomada em close-up, para além de qualquer roteiro, cenário ou figurino, o diretor a confia inteiramente à maestria de Bruno Delbonnel.

(15) Veja os comentários de Sokúrov em Carels: “Sinto como se houvessem duas personalidades dentro de mim.

Uma

muito

ativa,

versátil e exuberante; e outra sóbria,

forte

e

ascética.”

páginas anteriores

Fausto. (SOKÚROV, 2006, 01:04:30, 01:05:26)

quase

A exemplo do portfólio visual de efeitos inusitados, o design sonoro também é repleto de ousadias: suas distorções sonoras, duplicações de gravações, sobreposições auditivas que desviam nossos sentidos, lembrando-nos do status alegórico do texto. As prolongadas cenas na floresta após o sepultamento de Valentin, ao interligar os diálogos entre Fausto e Margarida com aqueles entre Maurício e a mãe de Margarida, sugerem um rico espectro de correspondências entre os pares. Essas correspondências são, por sua vez, enfatizadas pela autocitação de Sokúrov: a mãe de Margarida reproduz literalmente as observações de Eva para Hitler (Molokh) sobre a natureza da morte. Essa complexa orquestração, tanto auditiva quanto conceitual (entre Fausto-Maurício-Hitler e MargaridaMãe-Eva), encoraja uma leitura adjacente da obra de Sokúrov, de maneira mais abrangente, de filme a filme. Considerados em conjunto, esses elementos de design apoiam uma especulação mais ampla. A obra de Sokúrov, grosso modo, pode, frequentemente, ser dividida em dois tipos de cinema o ascético (por exemplo, A Pedra, o Ciclo Oriental, Mãe e filho, Pai e filho) e o ornamental (por exemplo, Arca Russa, Dolorosa indiferença, Salvai e protegei)(15). O exuberante e luxurioso design de figurinos de Lidia Kriúkova, que trabalhou com Sokúrov em todos os quatros filmes da tetralogia, assim como em Arca Russa e Aleksandra (2007), é uma boa combinação com o designer de produção de Elena Júkova, que, anteriormente, trabalhara em O Sol. Os interiores domésticos, os antigos e pequenos objetos ornamentais e o desordenado meio urbano de Júkova são visualmente


147 os antigos e pequenos objetos ornamentais e o desordenado meio urbano de Júkova são visualmente adequados ao denso diálogo de Arábov. No conjunto, a equipe prepara uma tela saturada que exala o aroma tanto das grandes danações dos graves pecados quanto dos rudes e pequenos pecados do cotidiano. Fausto, assim, desenvolve esta segunda linha na obra de Sokúrov. Por fim e de maneira compatível com a maior parte das versões da lenda de Fausto o herói de Sokúrov é um personagem notavelmente sem pecados é sim um lascivo degenerado, e ainda um pouco mais que isso. Esse Fausto não tinha intenção de matar Valentin; ele é incapaz (tanto quanto nos é permitido ver) de consumar sua paixão por Margarida; ele fracassa até em apedrejar o Diabo até a morte (como se isso fosse possível). Fazendo escolhas equivocadas em um local tão belo que pode ser confundido com o paraíso, o Fausto de Sokúrov é condenado à danação eterna não por assassinato, ou por um contrato satânico assinado a sangue, tampouco por fornicação, mas por encarnar a secularidade, essa busca errante por um conhecimento humano independente, apartado da espiritualidade.

(16)

A

Fédération

Internationale

des

Associations de Producteurs de Films (FIAPF) [Federação Internacional de Associações Produtoras de Cinema] uma organização internacional de produtores, creditou catorze Festivais Internacionais de Cinema

(anteriormente

conhecidos como Festivais A): Berlim, Cairo, Cannes, Goa, Karlovy Vary, Locarno, Mar del Plata, Montreal, Moscou,

San

Sebastián,

Xangai, Tóquio, Veneza e Varsóvia. (17) O quarto diretor russosoviético a ganhar o Leão de Ouro foi Nikita Mikhalkov com Urga em 1991.

Premiações de festivais raramente confluem para trabalhos artísticos de valor duradouro. Tal como ocorreu na Berlinale de 2005, quando O Sol de Sokúrov foi preterido pelo Urso de Ouro, que premiou, em seu lugar, o diretor sul africano Mark Dornford-May (U-Carmen eKhayelitsha). Para aqueles que seguem de perto o trabalho de Sokúrov, a notícia de que o júri do Festival Internacional de Cinema de Veneza de 2011, encabeçado pelo diretor Darren Aronofsky (Cisne negro), havia selecionado o filme de Sokúrov para o Leão de Ouro foi uma conquista bem-vinda. Ainda que o inventário de prêmios de Sokúrov até Veneza (2011) fosse longo e honroso, ele ainda não havia recebido nenhum grande prêmio internacional de festivais A (como reconhecido até recentemente) (16). Pai e filho (2003), de Sokúrov, foi premiado com o FIPRESCI no Festival Internacional de Cannes; de outra maneira, os grandes júris mantiveram uma distância preventiva da obra de Sokúrov, condecorando-o com prêmios em categorias ambíguas como vision e spiritual search . O prêmio de Veneza (2011) colocou Sokúrov em companhia de vencedores do Leão de Ouro como Andriêi Tarkóvski (1962, por A infância de Ivan) e Andriêi Zviangtsiev (em 2003, por O Retorno) (17). É uma honra bem merecida que reconhece a extraordinária habilidade de mobilizar talentos em direção a essa obra culminante da tetralogia de Sokúrov.


148

pรกginas anteriores

Fausto. (SOKร ROV, 2006, 01:55:28)



The purpose of this work is to present the poet,

Este artigo apresenta a trajetória do poeta, tradutor

translator and essayist David Vygodski, an

e ensaísta David Vigódski, um personagem pouco

intellectual not well-known by Russian studies. This

conhecido pela russística internacional. O texto

article discusses Vygodski´s biography as well as

comenta a biografia de Vigódski, a importância de

the importance of his personal archive and his

seu acervo pessoal e sua participação nas relações

participation on the cultural relations between the

culturais entre a URSS e a América Latina.

URSS and Latin America.

David Vigódski: A voz solitária de uma biblioteca

(1)

Bruno Barretto Gomide (1) Este artigo é uma versão preliminar do prefácio a um livro que se encontra em preparação,

reunindo

a

correspondência hispanoamericana

completa

de

Vigódski. A pesquisa no arquivo do escritor russo foi financiada pela FAPESP, em um

momento

inicial,

e

atualmente pelo CNPq, como parte de um projeto mais geral sobre a recepção da literatura russa no Brasil durante o Estado Novo.

O cerco alemão a Leningrado foi um episódio particularmente cruel da Segunda Guerra Mundial. Ele durou quase novecentos dias e custou a vida de centenas de milhares de pessoas. Tornou-se paradigma de tragicidade dentro de uma história permanentemente pontilhada pelo trágico. Compôs-se de narrativas de estrépito e de anonimato, e engendrou uma cultura específica. Ainda há muito o que se escrever sobre ele: novos personagens, unidos por novas amarrações teóricas e conceituais, para além da hagiografia soviética. O destino da biblioteca e do acervo pessoal de David Vigódski é um dos acontecimentos extraordinários e cotidianos do bloqueio. David Isaákovitch Vigódski foi um intelectual brilhante da cultura russo-soviética. Embora conhecido e apreciado em diversos círculos daquele período os Irmãos Serapião, os formalistas, os Oberiúti David Isaákovitch Vigódski não tem merecido a devida atenção dentro e fora da Rússia. Ele é uma das grandes figuras desconhecidas daquela cultura. Bastante respeitado nos meios culturais do entreguerras, na União Soviética, Vigódski, praticamente, não consta dos estudos contemporâneos sobre a vida intelectual daquela época atribulada. Na melhor das hipóteses, ele aparece citado como coadjuvante de seu primo Liev Semiónovitch Vigótski, em estudos, aí sim alentados, sobre esse autor (aliás, este é um daqueles casos em que o Google pergunta: o que você queria mesmo era buscar Liev Vigótski). Em certo ponto do começo do século passado, contudo, provavelmente, a situação seria a inversa: o sobrenome original da família, de origem bielorussa, era Vigódski , e o autor da Psicologia da arte dele se

150


151 diferenciou por decisão pessoal. Liev Semiónovitch teria trocado d por t justamente porque o primo David já granjeara certa fama na imprensa, e Liev, estreante nos meios literários, não queria se confundir com ele.

(2) FREIDIN, Gregory, A coat of many colors: Osip Mandelstam and his mythologies of selfpresentation. Berkeley, Los Angeles e Londres, 1987. (3) MURAV, Harriet, Music from a speeding train: Jewish literature in post-revolution Russia. Stanford, Stanford UP, 2011. O pesquisador Victor Kelner, da Biblioteca Nacional

Russa

Petersburgo,

é

um

em dos

poucos estudiosos russos que tem chamado a atenção para o trabalho de Vigódski, destacando a sua relação com temas judaicos. Cf., por exemplo,

o

artigo:

http://judaica.spb.ru/artcl/a 12/vygotsky_r.shtml.

O

maior estudo biográfico a seu respeito é o de Rimma Fatkhullina, publicado logo após

o

fim

da

URSS:

“Materialy k biográfii Davida Vygodskogo”.

In:

Litza.

Biografítcheskii almanakh, n. 1. Moscou – S. Petersburgo, Feniks-Atheneum, 1992, pp. 78-110.

A proximidade fonética dos dois nomes, que em russo pronunciam-se quase do mesmo modo, e a muito maior fama de Liev, tem ocasionado algumas curiosas oscilações, mesmo em publicações de editoras renomadas. Nos diários de Korniei Tchukóvski, por exemplo, publicados pela editora de Yale, tanto o corpo do texto quanto o índice criam um híbrido e trazem o nome David Vygótski . Em estudo de Gregory Freidin, editado pela Universidade da Califórnia, ele é mencionado de modo positivo como um crítico importante a propósito de uma resenha que fizera sobre poemas de Mandelstam, mas também aparece com o sobrenome do primo Liev (na bibliografia, porém, seu nome, em alfabeto russo, está escrito corretamente) (2). Salvo engano, a primeira tentativa mais pormenorizada de se tentar desenvolver aspectos de sua obra e tratá-lo como um interlocutor mais encorpado foi feita no recente livro de Harriet Murav sobre as relações entre literatura judaica e a Rússia pósrevolucionária. São poucas, mas sugestivas páginas em que Vigódski, posto no centro das preocupações linguísticas modernas, dialoga com nomes de peso como Walter Benjamin e Isaac Bábel, na busca das difíceis afinidades e cruzamentos do judaísmo e da cultura soviética (3). É necessário colocar o nome de Vigódski no mapa dos estudos de eslavística, reeditar-se os seus textos e preparar-lhe uma biografia intelectual. David Vigódski nasceu em Gómel, na Bielorrússia, em 22 de setembro de 1893. Seu pai, funcionário de um escritório, morreu quando ele tinha quatro anos. Foi educado na casa do tio, Semión Lvóvitch Vigódski, cuja família culta e rica biblioteca auxiliaram nas suas primeiras letras. Teve as dificuldades habituais para ingressar no ginásio, em função das restrições e cotas aplicadas sobre os judeus no sistema escolar do Império Russo. A partir de 1911, publicou os primeiros poemas e artigos sobre temas literários em jornais de Gómel. Apesar dos percalços, estudou na faculdade de letras da Universidade de S. Petersburgo com alguns dos mais importantes críticos e pesquisadores russos da época, como Semión Afanássievitch Vénguerov, Faddiéi Frántzevitch Zelínski e Baudouin de Courtenay. Era um período de incrível vitalidade na área de lingüística daquela instituição. Vigódski foi logo reconhecido como estudante excelente, com um talento muito grande para línguas, e recebeu todas as premiações e medalhas habituais da vida universitária russa. Ele publicou extensamente em periódicos russos e bielorrussos, durante o período da guerra e do imediato pós-revolução, inclusive nos gorkianos Liétopis ( A Crônica ) e Nóvaia Jizn ( Vida nova ), onde resenhou, de modo aguçado, obras poéticas de autores russos como Briússov, Blok,


152 (4) TIMIÉNTCHIK, Roman. Anna Akhmátova v 1960-e gody. Moscou e Toronto, Vodolei Publishers, 2005, p. 51.

FORCH,

Olga.

Sumaschédchi

(5)

Korabl.

Washington, 1964, p. 72 [publicado originalmente em 1930].

acima e ao lado

O Bloqueio. (LOTNIZA, 2006, 00:11:39)

Gumilióv e Khliébnikov, além de noticiar publicações acadêmicas e universitárias. Também se ocupou de arte e cultura da Europa ocidental (por exemplo, a escultura de Rodin, a literatura italiana do século XIX). Em meio a esses textos de juventude, produzidos no turbilhão revolucionário, destacamse os que lidam com as afinidades e diferenças entre as muitas correntes poéticas russas: Vigódski traçou uma sutil comparação entre textos de Maiakóvski e Akhmátova. Ele foi um dos primeiros intérpretes consistentes da obra da poeta (4), de quem recebeu um retrato autografado. Uma parcela dos anos ásperos da guerra civil Vigódski viveu em Gómel, pois ali as condições eram-lhe menos ruins do que na alquebrada Petrogrado. De volta em definitivo à capital do norte, em 1921, Vigódski passou a residir em uma instituição mitológica da cultura daquela cidade, a famosa Dom iskusstv, a casa das artes (sovietizada, parodicamente, pelos contemporâneos como Disk ). O prédio, situado na esquina do rio Móika com a avenida Niévski, reunia boa parte dos artistas e intelectuais que compunham (ou comporiam) os principais agrupamentos literários de Petrogrado-Leningrado, sendo que o contingente dos Serapiões ali era considerável. Alguns desses integrantes da incrível vitalidade artística do pós-1917 moravam em cômodos do prédio, em caráter mais ou menos permanente, outros o frequentavam em busca dos diversos concertos, exposições e seminários literários. Muitas das amizades que durariam até o fim da vida de Vigódski foram travadas naquele misto de alojamento e centro cultural, carinhosamente recordado nas memórias de muitos escritores nas décadas seguintes, a despeito da ausência de calefação, da comida racionada e das agruras urbanas e políticas generalizadas. Olga Forch, autora de um romance memorialístico em que o Disk ocupa lugar central, recorda-se de Vigódski como o filósofo David , dividindo a sua mesinha com materiais espanhóis e uma xícara de chá de cenoura bebida de tempos difíceis. (5)


153

Data dessa época seu primeiro e único livro de poemas, o pequenino Terra, por uma editora de Gómel. Nunca, todavia, deixou de escrevê-los, e seu acervo está repleto de versos não-publicados. Nos anos seguintes, Vigódski trabalhou em diversos órgãos soviéticos, multiplicando-se nas tarefas de revisor, editor, tradutor e articulista, no complexo trabalho de adaptação às novas instituições, cheias de possibilidades e de aspectos repressivos. Teve cargos no Instituto de Línguas e Literaturas do Ocidente, na Sociedade de Tradutores e Escritores, na Associação dos Amigos das Literaturas Estrangeiras, na Seção (de Leningrado) de Críticos e Historiadores da Literatura, nas editoras estatais Gossizdat a mencionada no poema de Mandelstam e Goslitizdat, Vsemírnaia literatura (Literatura universal) e Khudójestvennaia literatura (Literatura artística), entre outras, além de atuar na montagem da Enciclopédia soviética e de escrever regularmente para jornais como Rossía (Rússia) e Zvezdá (A estrela). Nessas atribuições, Vigódski traduziu mais de vinte romances de autores estrangeiros, revisou e prefaciou, no mínimo, o dobro de outros tantos, preparou textos sobre os deveres e direitos do tradutor, fez dezenas de resenhas e estabeleceu conexões com escritores do mundo inteiro. Teve também funções administrativas e organizacionais, inclusive a de auxiliar na preparação do famigerado I Congresso de Escritores Soviéticos, em 1934 ano fatídico para ele, no qual morrem, ainda muito jovens, o primo Vigótski e o irmão Liev Issáakovitch, este pouco depois de ter sido libertado (em boa medida pelos esforços de David) de trabalhos forçados na construção do canal Volga-Moscou. acima e ao lado

O Bloqueio. (LOZTNISA, 2006, 00:13:42, 00:14:54)

Em 14 de fevereiro de 1938, Vigódski foi preso, no transcurso de um processo habitualmente descrito como o Caso dos tradutores (Dielo perevôdtchikov há, contudo, certa polêmica em torno da especificidade desse expurgo), o


154

(6) O poeta se recordava de que Medviédev e Vigódski, que já estavam na cela antes dele,

ajudaram-no

arrumar-lhe

um

a

lugar.

ZABOLOTSKY, Nikita. The life of Zabolotsky. Cardiff, The University of Wales Press, 1994.

mesmo que levaria ao fuzilamento do poeta Benedikt Lívchitz, seu amigo. Transnacional por natureza, a classe dos tradutores previsivelmente não seria poupada no momento em que a perspectiva internacionalista que norteara parcela considerável da política soviética vinha sendo solapada. Vigódski ficou inicialmente preso em Leningrado, onde compartilhou cela, por certo tempo, com Pável Medviédev, o poeta Zabolótzki (6) e outros escritores, para depois ser enviado a cumprir cinco anos de pena em um campo no Casaquistão. Lá morreu, em 1943, aos quarenta e nove anos. Uma parcela de sua correspondência, especialmente emocionante, por razões óbvias, data desse período de encarceramento. O cosmopolita Vigódski foi um formidável ensaísta e tradutor de 20 idiomas: espanhol, português, catalão, inglês, italiano, francês, alemão, armênio, latim, bielorrusso, ucraniano, letão, uzbeque, azeri, grego antigo e moderno, hebraico, georgiano, sueco, esperanto. Em alguns momentos, chegou a traduzi-los não apenas para o russo, mas de um para o outro por exemplo, poemas de Heine traduzidos para o esperanto, e diversos poetas russos, de Tiútchev e Púshkin a Akhmátova e Maiakóvski, traduzidos para o espanhol. O esperanto ocupa um espaço considerável do seu corpus intelectual, sendo que alguns dos seus primeiros artigos e cartas lidam com problemas relacionados a essa linguagem universal a primeira das que buscaria e alguns de seus poemas também foram redigidos nele. Vale lembrar que o esperanto era um tema bastante em pauta, pois fora criado nas regiões ocidentais do Império Russo em fins do século XIX por um intelectual judeu, L. Zamenhof, que chegou a ser cogitado para o prêmio Nobel. No contexto soviético, Vigódski foi amigo e interlocutor de importantes escritores e críticos, tais como Iúri Tiniânov, Victor Shklóvski, Konstantin Váguinov, Benedikt


155 Lívchitz, Boris Eikhenbaum e Óssip Mandelstam. Ele aparece como personagem de destaque nas recordações de muitos escritores da época, como Elizavieta Polónskaia, Marietta Chaguinian e Mikhail Slonímski, os quais, especialmente a partir de fins dos anos cinquenta, depois da reabilitação política de Vigódski, dedicaram textos afetuosos ao Rei David , como era conhecido, à sua casa repleta de livros e à sua esposa Emma Iossifovna, que se tornaria uma respeitada autora de livros infantis. A marca dominante dessas memórias é a generosidade intelectual de Vigódski e seu desapego material, descritos com tintas tolstoianas e aspecto de sabedoria antiga, como se ele fosse um erudito saído de outros tempos.

(7) NKVD (Narodnii komissariat Vnutrennikh Diel, Comissariado Popular para Assuntos Internos), órgão criado, em 1918, para controlar

a

polícia

departamentos

e de

investigação criminal. (N. da E.).

(8) BARSKOVA, Polina. Paper apresentado no VII ICCEES Congress, Estocolmo, julho de 2010.

Uma mostra da simpatia com que Vigódski era tido é evidenciada pelo fato de que, quando estava preso, ainda em Leningrado, diversos intelectuais prestaram depoimentos, entre 13 e 21 de novembro, ao NKVD (7)tentando inocentá-lo: Shklóvski, Tiniânov, Fiédin, Zôschenko, Slonímski e Lavrenióv empreenderam o gesto que, desnecessário dizer, em fins daquele ano, era extremamente arriscado, mesmo após o arrefecimento da onda principal do terror. Seus amigos, estrategicamente, tentaram mostrar que ele era um entusiasta da revolução e enfatizaram sua participação nos periódicos editados por Górki. Grande parte do material necessário para estudar a vida e obra de Vigódski está no seu fabuloso arquivo, depositado na Biblioteca Nacional Russa, a Publítchka, em S. Petersburgo. Tratando-se de uma legítima representante do século-fera (segundo o verso de Mandelstam), de uma época e um país de tantos manuscritos perdidos e fabulosos, a história do itinerário desse acervo vale em si um livro. É um pequeno milagre que esses documentos tenham sobrevivido à prisão política de Vigódski e ao bloqueio de Leningrado. No caso do primeiro drama, era habitual que a detenção de intelectuais fosse acompanhada de apreensão de textos; no segundo caso, a situação trágica da cidade entre 1941 e 1944 dizimou inúmeras bibliotecas e coleções, para não se falar de metade da população (embora, como demonstra Polina Barskova, a vida literária da cidade sitiada tenha sido muito mais rica do que normalmente se supõe) (8). Há uma peripécia na preservação da Vigódskiana: segundo os compêndios sobre a história da Biblioteca Nacional, os livros de Vigódski foram encontrados depois que seu prédio, no centro de Leningrado, foi danificado por uma bomba alemã. A casa estava vazia: a esposa de


156 Vigódski fora evacuada da cidade e seu filho, Isaak, estava no front. As equipes da biblioteca foram chamadas, retiraram o material do prédio e armazenaram-no até a sua doação definitiva nos anos setenta, feita pela família, que então acrescentou outros textos. Esse arquivo, que certamente poderá gerar muitas pesquisas sobre a vida cultural soviética, contém um epistolário formidável, passivo e ativo, diários fascinantes, materiais iconográficos, documentos pessoais, textos publicados (resenhas, traduções, artigos), catálogos da biblioteca de Vigódski, livros enviados para ele do exterior, pastas com recortes e vários projetos de livros e artigos, além de materiais sobre o próprio Vigódski. Há também documentos do mesmo tipo pertencentes a Emma e Isaak. O arquivo mostra que David Vigódski foi um intelectual de interesses múltiplos. Entre suas centenas de artigos, à parte os mencionados anteriormente sobre poesia russo-soviética, há textos sobre Isaac Bábel, Kaviérin, Ehrenburg, James Joyce, literatura da Geórgia, literatura tártara, Pirandello, poesia proletária alemã, Eça de Queiroz, Tagore, Theophile Gautier e Engels. Há traduções de poetas americanos contemporâneos, de Hölderlin, Goethe, Ovídio, Calderón para citar apenas alguns poucos exemplos. Os temas judaicos ocupam lugar considerável, com muitas traduções, prefácios e artigos, sobretudo a propósito da poesia de autores judeus antigos e contemporâneos. E a própria tarefa e a posição do tradutor, na União Soviética, serviram-lhe de tópico para alguns textos, como o artigo polêmico O tradutor é um homem de letras. alguns poucos exemplos. Os temas judaicos ocupam lugar considerável, com muitas traduções, prefácios e artigos, sobretudo a propósito da poesia de autores judeus antigos e contemporâneos. E a própria tarefa e a posição do tradutor, na União Soviética, serviram-lhe de tópico para alguns textos, como o artigo polêmico O tradutor é um homem de letras (9). (9) Biblioteca Nacional Russa, Setor de Manuscritos, Fond 1169, Ópis D. I. Vygodskogo, diélo 120.

(10) SLONIMSKI, Mikhail, “Kamarada David Vygódski”. In:

Kniga

Vospominanii.

Moscou-Leningrado, Soviétski pissátel, 1966, p. 196.

Em meio a tantas possibilidades, o quinhão mais substancial desse acervo pertence aos temas hispanoamericanos entre um terço e metade dos artigos, resenhas, traduções e correspondência ativa e passiva com estrangeiros. Colocar Vigódski sob a rubrica exclusiva de hispanoamericanista talvez seja exagero, dada a incrível variedade dos assuntos com os quais ele lidava, mas é certo que a cultura daquelas regiões acabou por se converter, da segunda metade da década de vinte em diante, em um tema predileto. Que inclusive passou a fazer parte de sua identidade: os amigos chamavam-no de o espanhol e tratavam-no por Don ou Cavallero . Nas memórias de Slonímski, Vigódski inflamava-se feito vulcão quando a conversa versava sobre a Espanha, as Filipinas e a América Latina (10). De modo geral, esse é o aspecto da sua atividade mais destacado por aqueles que com ele


157 conviveram.

(11) Mais detalhes sobre essas

sociedades

e

os

estudos hispano-americanos na URSS do começo dos anos 30 podem ser encontrados no livro Sankt-Peterburg, oknó

v

Iberoamiériku.

Moscou, 2003.

(12)

Biblioteca

Nacional

Russa, Setor de Manuscritos, Fond 709, Ópis 1, diélo 44.

(13)

Biblioteca

Nacional

Russa, Setor de Manuscritos, Fond

1169,

Ópis

D.

I.

Vygodskogo, diélo 63.

(14)

Biblioteca

Nacional

Russa, Setor de Manuscritos, Fond

1169,

Ópis

Vygodskogo, diélo 58.

D.

I.

Vigódski fundou e codirigiu algumas das primeiras associações de estudos hispânicos da União Soviética, inclusive no âmbito acadêmico da Universidade de Leningrado. Foi um dos criadores, em 1929, da Sociedade Hispano-Americana, a ISPAMO, da qual se tornou presidente, em 1931 (11). A sociedade promovia encontros, cursos, publicações de artigos, intercâmbios culturais e traduções. Ajudava também na recepção a visitantes latino-americanos e espanhóis, inclusive Tarsila do Amaral e seu marido, o médico e escritor comunista Osório Cesar, na famosa viagem que fizeram à URSS. Conheceu também, em uma dessas viagens, o poeta peruano César Vallejo. Foi interlocutor próximo de escritores republicanos espanhóis, como Antonio Machado. Infelizmente, Vigódski não teve chance de fazer o caminho contrário e conhecer os países que tanto apreciava: em 1926, ele tentou ir ao mesmo México que atrairia Eisenstein e Maiakóvski, mas o pedido foi negado pelas autoridades. A viagem física foi substituída pelas literárias. Ele organizou, no começo dos anos trinta, antologias de autores latino-americanos, que aparentemente tiveram circulação razoável no contexto soviético (seu arquivo tem o esboço de uma resenha que Tiniânov elaborou para uma delas, Poetas da América Latina ) (12), e traduziu escritores brasileiros importantes como Mário de Andrade e José Lins do Rego. Alguns desses poemas (como O Rebanho, de Mário) chegaram a ser publicados em jornais soviéticos. A pasta intitulada Poesia brasileira, 1927-1932 traz cerca de trinta traduções de Guilherme de Figueiredo, Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho, Ribeiro Couto, Jorge de Lima, Álvaro Moreira, Murilo Mendes e Tasso da Silveira (13). Na mesma linha, eis uma pequena amostra de títulos de seus artigos da década de 1930, alguns publicados, outros apenas rascunhados: Blasco Ibañez, Um Venezuelano na Rússia de Catarina, Ruben Darío, 1867-1916, o maior poeta sul-americano, O teatro espanhol, Maiakóvski na Espanha e na América espanhola, Pio Baroja, A URSS e o México, Chólokhov na Espanha, e uma grande quantidade de resenhas sobre Blanco-Fombona, Pérez Galdós, Unamuno e muitos outros. Em muitos desses textos, Vigódski agia como um autêntico intermediário cultural, explicando termos e esclarecendo possíveis dúvidas do leitor russo, que, se hoje pouco sabe da América Latina, menos ainda o sabia na década de trinta, em que Ostap Bender corria solto. Ademais, Vigódski escreveu, em espanhol, artigos destinados à difusão da literatura russa no mundo hispanoamericano, como esta pequena resenha sobre Bábel, em que afirmava: La novela curta, novela de Maupassant y de Chejov no existia en literatura russa durante los ultimos veinte años y Babel la revivió (14). Talvez o caso mais extremo do alcance da


158

(15) BURMÍSTROVA, Liudmila M. Rossía i Brazília: 200 liet znakómstva. Moscou, V s e r o s s í i s k a i a gossudarstvennaia bibliotieka inostrannoi litieratury. In. M. I. Rudomino,

2004;

e

“Iz

arkhiva Davida Vygodskogo”. Latínskaia Amiérika, n. 2, pp. 119 a 130 e n. 4, pp. 74 a 93, 1983.

A

antologia

de

Burmístrova traz a maior parte da correspondência brasileira. Os textos da revista

incluem

também

muitas cartas de outros latino-americanos, mas não é uma

versão

integral.

O

presente livro é a primeira transcrição da totalidade das cartas

no

original

(em

espanhol, português, catalão e francês). Curiosamente, o texto de apresentação da revista Latínskaia Amiérika, de autoria de B. V. Lukin, afirma

que

entre

os

correspondentes de Vigódski está Jorge Luis Borges, mas esse documento formidável, até onde pude verificar, não se encontra em seu arquivo. A tese de doutorado de Zoia Ribeiro Prestes faz menção à importância

de

Vigódski

(talvez o primeiro comentário sobre ele publicado no Brasil) e traz dois anexos com a tradução de um poema de Mário

de

Andrade,

a

reprodução de uma das cartas de Jorge Amado e sua tradução para o russo. Quando não é quase a mesma coisa: análise de traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil repercussões no campo educacional. Tese de doutorado apresentada ao programa de pós-graduação em educação da UnB, 2010.

atividade de Vigódski seja a sua publicação, em outubro de 1935, de poesias de Khliébnikov em um jornal das Filipinas (acho difícil pensar, naquele contexto, e provavelmente em qualquer outro, em um exemplo mais fantástico de troca cultural). Portanto, no meio de um material tão rico, uma boa maneira de se começar a estudar a obra de Vigódski é com sua correspondência hispano-americana, que forma um conjunto razoavelmente completo e proporciona um recorte que une a maioria dos interesses acima descritos. Ela ocupa a maior parte do seu epistolário com o exterior, que possui também cartas de e para a América do Norte e diversos países europeus. A sua correspondência com associações e intelectuais russos, pouco mais de uma centena de itens, é um capítulo à parte, e possui dados fundamentais para a reconstituição da trajetória de Vigódski no contexto soviético. Dentre os hispano-americanos (portugueses, espanhóis, brasileiros, argentinos, colombianos, venezuelanos, uruguaios, cubanos e mexicanos), são 48 remetentes e um total de 99 cartas. Incluem-se aí alguns dos que se tornariam nomes fundamentais da cultura latinoamericana, como Jorge Amado, Elias Castelnuovo e Otávio Paz, além de redatores de jornais de província, literatos estreantes, jovens bacharéis em direito, operários das vias ferroviárias, ilustradores de livros infantis, colecionadores de selos, remetentes anônimos e muitos esperantistas. O endereço de Vigódski, na rua Mokhováia, número 9, apartamento 1, tornouse um inesperado ponto de contato russo-hispânico. Uma parte pequena dessa correspondência foi traduzida para o russo e publicada em dois momentos: em dois números da revista Latínskaia Amiérika, na década de 1980, e em uma coletânea recente sobre relações russo-brasileiras publicada por Liudmila Burmístrova, da biblioteca de Literaturas Estrangeiras, em Moscou (15). Contudo, um documento derivado dessa correspondência é bastante conhecido pelos estudiosos da cultura espanhola dos anos 30: a carta aberta do poeta Antonio Machado para Vigódski, publicada no número 4 do Zvezdá, em 1937, em resposta a uma carta, de janeiro daquele ano, enviada por Vigódski a propósito dos poemas de Machado sobre o fuzilamento de Garcia Lorca. O texto de Machado, que faz uma típica mistura dos velhos temas da alma russa e da fraternidade cristã no estilo de Dostoiévski, de elogios à revolução russa e anseios por uma lírica comunista, difundiu-se, consideravelmente, no mundo hispânico e tornouse um dos testamentos do escritor republicano. A carta de Vigódski que gerou a resposta de Machado, porém, permanecia inédita, e está incluída neste livro. No acervo do autor, há vários esboços dela, com rasuras e alterações, sobretudo no que se refere a Stálin, que numa das versões aparece como o sábio


159 líder (múdryi vojd), passagem depois apagada na versão final. É a única menção a Stálin na correspondência hispano-americana de Vigódski. Podemos aventar algumas hipóteses para explicar o porquê de Vigódski ter permanecido à margem dos estudos russos. Em primeiro lugar, ele não publicou um livro decisivo, com amarração conceitual mais ousada, como Mikhail Bakhtin ou seu primo Vigótski, como ele, preocupados com questões relativas à pluralidade e circulação de vozes . Vigódski preferiu permanecer no universo da tradução, da produção jornalística dispersa e da atividade organizativa, operando principalmente naquelas áreas da cultura erudita que, por definição, são menos visíveis. Sua marca autoral, por isso, não é tão facilmente identificável. Para isso, em alguma medida, pode ter contribuído o seu temperamento proverbialmente discreto. Não por acaso, o pseudônimo com o qual assinara alguns dos primeiros artigos, em jornais de Gómel, era Líchni ( Supérfluo , palavra forte no imaginário russo). Mas suponho que o seu relativo sumiço das páginas da eslavística internacional se deve, sobretudo, ao fato de ter se especializado (se é que a palavra cabe para um intelectual de interesses tão variados) no estudo de temas hispanoamericanos, ou seja, pertencentes a regiões que, de um modo geral, permaneceram fora das correntes centrais da eslavística internacional. O esforço certamente valerá a pena. David Vigódski foi uma incrível conexão, talvez a única, entre o formalismo russo, as várias experimentações artísticas soviéticas, a vida intelectual de Leningrado e o mundo hispano-americano, em suas vanguardas políticas e culturais.

ao lado

O Bloqueio. (LOZTNISA, 2006, 00:11:13)


160


161

Elegia da travessia элэгия дороги


162

https://dl.dropbox.com/u/10179474/Sokur.mp3 Som para SokĂşrov, Rodolfo Caesar https://dl.dropbox.com/u/10179474/Sokur.mp3

clique aqui

https://dl.dropbox.com/u/10179474/Sokur.mp3 https://dl.dropbox.com/u/10179474/Sokur.mp3


163

Это мне показалось, что все этих людейя уже где-товидел. Конечновидел. Потом было лицо военного. Смотрел на меня и молчал.Нет, только смотрел мимо меня. Где я? Почему я здесь? Потом я видел его глаза.А покакому праву он меня так разглядывает? Потом были другие лица, другие глаза. Почему все онименя так разглядывают, a покакому праву?


164

Parecia que eu já tinha visto toda essa gente em algum lugar. Claro que tinha visto. Depois surgiu o rosto de um soldado. Ele olhou para mim e ficou em silêncio. Não, apenas me olhou de soslaio. Onde estou? Por que estou aqui? Depois eu vi seu rosto. E com que direito ele me olha deste jeito? Depois surgiram outros rostos, outros olhos. Por que todos aqui me olham deste jeito? E com que direito?


165


166


167


168


169



171


172 Neuilly s/Seine (Seine)

31.3.39

135, Bd de la Seine. France.

Caro Sr. Segall,

Novamente me dirijo ao Sr. com o pedido de que nos dê alguma informação sobre Victor Rubin. Há meses não temos nenhuma notícia dele e estamos muito preocupados. Não sei se o seu antigo endereço ainda é válido, e assim me vejo obrigado a pedir-lhe esta gentileza. Por favor, escreva-me logo! Eu lhe seria muito grato. Também gostaríamos muito de saber a respeito de sua vida e de sua simpática família. Escreva detalhadamente! O Sr. deve estar agora bem contente, por estar longe da Europa, desta tia velha que ficou louca. Como a natureza cuida das suas criaturas, providenciamos para nós uma couraça e não reagimos mais com tanta virulência às constantes 'surpresas', como talvez vocês reajam à distância. Ainda esperamos milagres, quer dizer evitar a guerra. Em todo caso, nós dois, eu e minha esposa, estamos plenos dessa esperança, que quase se torna uma certeza. E achamos muito bom que os países democráticos tenham resolvido agir, mesmo que seja muito tarde. Na sua galeria, isto é, naquela em que vimos a sua exposição, encontra-se agora uma exposição mexicana – alguns exemplos da arte antiga mexicana, da arte popular e finalmente muitas obras da mulher de Diego Rivera. Na vernissage, a própria artista estava presente e obscureceu pelo seu aspecto mexicano e suas vestimentas características as nossas damas de Montparnasse, que vieram para a vernissage. No momento, há também uma bonita exposição de Cézanne com Paul Rosenberg, e além disso muitas outras. Estamos sendo diretamente bombardeados com convites para vernissages. Mas não nos invejem, porque no meio dessa quantidade, a maioria das vezes não há muita coisa digna de ser vista. Para vocês deve estar começando o outono. Nós, porém, temos dias bonitos de primavera e apreciamos a fresca folhagem verde. No Bois, onde passamos hoje, é esplêndido. Quanto a nós, gostaríamos de ficar para sempre em Paris, inclusive agüentando todos os aspectos negativos. Questão de gosto! Não é verdade? Aguardo com muito interesse notícias suas, e nós dois mandamos para o Sr. e sua esposa saudações cordiais. Seu Kandinsky

Como vai Nora Rubin? Abraços para ela também!






171



179


180


181 São Paulo, 22 de abril de 1939.

Caro Kandinsky!

Censuro-me muito por não ter respondido à sua primeira carta, ainda mais porque ela me deu grande satisfação. Hoje recebo sua segunda carta e estou realmente feliz pelo fato do Sr., apesar de tudo, ter voltado a me escrever, agradeço-lhe muito por isso.

Pertenço infelizmente àquele tipo de pessoa que só consegue escrever com dificuldade, que fica adiando a resposta das cartas de um dia para o outro, até que chega uma certa vergonha em responder à querida carta. Gostaria muito de participar da aquisição de uma tela de Otto Freundlich para o Museu Jeu de Paume, porém não consegui daqui permissão para remeter o dinheiro. O Sr. precisa saber que daqui, somente em casos específicos, se pode mandar dinheiro para o exterior. Como terminou a exposição de Otto Freundlich? Sinto imensamente não ter podido ajudalo, por esse motivo tão menor; para certas pessoas, a vida torna-se cada vez mais complicada, principalmente para aqueles que a sensibilizam de um modo especial com as circunstâncias ao seu redor. O Sr., caro Kandinsky, é o mais feliz, o Sr. tem uma força para se fechar ao mundo exterior, e no seu próprio mundo, seu ateliê, dedicar-se com tranqüilidade ao seu trabalho, e considerar os problemas da arte como mais importantes do que os fatos do mundo de hoje, com os quais nós todos, querendo ou não, estamos estreitamente ligados e dos quais somos infelizmente, como pessoas e como artistas, completamente dependentes. Sou bem mais pessimista que o Sr. Talvez isso se deva ao fato de que eu, à distância, veja tudo através de uma lente colorida e opaca. O que aconteceu com a exposição 'Twentieth Century German Art', que deveria ter acontecido em Londres? E o Sr. pessoalmente teve sucesso com sua exposição em Londres? O Sr. também expôs nestes últimos tempos em Paris? Penso sempre em Paris, conheço bem o lado sombrio dessa magnífica cidade, e teria, no entanto, suportado isso para viver lá. Como seria bom passar uma hora no Louvre com nossos grandes e velhos amigos ou então com meus amigos nos ateliês, para ver seus trabalhos e para conversar sobre as muitas coisas que interessam a nós artistas. Paris é com certeza a cidade onde hoje o artista se sente com direito à existência. Tenho sabido das importantes exposições em Paris através de péssimas reproduções e artigos insignificantes. Trabalho sempre, com fazem as pessoas que levam a sério a arte e vêem nela seu projeto de vida e seu ideal. Fui convidado pela Sociedade Artística de Buenos Aires, que deve ter um magnífico espaço de exposição, para organizar uma mostra dos meus trabalhos. Isso me alegra muito. Buenos Aires parece ser uma cidade fabulosa e interessante, Paris em miniatura. É preciso contentar-se também com isso. Claro que você poderia dizer: 'Questão de gosto'.


182 Deixei Paris em 1938 com a séria intenção de lá voltar no final de 1939. Mas com as dificuldades gerais, que aparecem em qualquer iniciativa, vejo-m forçado a desistir de muitos de meus planos. Como vai o Sr. de saúde, tem trabalhado muito? Gostaria muito de ver novamente os seus trabalhos. Lembro-me com muita alegria da minha última visita ao seu ateliê, aos seus trabalhos fabulosos, quando estávamos junto com Kars. O Sr. se lembra ainda? Como está passando a sua prezada esposa? Minha esposa e eu, nós pensamos com satisfação nas horas felizes que vivemos junto com vocês, e gostaríamos que isto pudesse se repetir em breve. Minha esposa traduziu recentemente 'Esther' de Racine. Deve sair logo. De modo geral, vamos muito bem, fora o grande nervosismo causado pelos constantes acontecimentos políticos. Meus filhos crescem bem aqui no Brasil, nesta atmosfera feliz, talvez o único ambiente onde se pode ainda respirar livremente. De Victor Rubin recebi a última notícia há seis semanas. Parece que a situação dele continua inalterada, mas ele vive sempre na esperança de logo ter as condições para recomeçar uma vida profissional normal. Transmiti as suas recomendações a Nora. Ela é secretária de um professor americano na Universidade daqui. Ela ganha ainda muito pouco e parece não estar muito contente. Minha esposa e eu retribuímos cordialmente as suas saudações e desejamos para vocês dois tudo de bom. Ficarei grato, caro Kandinsky, quando o Sr. dispuser novamente de tempo para me escrever.





COMPLEMENTAÇÕES


187

Arlete Orlando Cavaliere

é brasileira. Livre-docente e professora titular do

Departamento de Línguas Orientais (FFLCH-USP) e professora convidada da Universidade Estatal Lomonóssov de Moscou. Pesquisa teatro, literatura e cultura russa além de publicar obras sobre a estética teatral. Traduziu e publicou, mais recentemente, os livros Teatro Completo de Nikolai Gógol (Editora 34) e Teatro Russo: Percurso para um estudo da paródia e do grotesco (Humanitas), resultantes de pesquisa realizada nos arquivos de Moscou. É supervisora do Projeto Serguei Eisenstein em confluência com o cinema e as artes na Rússia do Século XXI.

Breno Morita

é artista, pesquisador do GP E. XXI (Grupo de Pesquisa

Eisenstein no Século XXI), mestrando em Poéticas e Técnicas Audiovisuais na Escola de Comunicações e Artes da USP e bacharel em Artes Visuais. Como artista, apresentou seus trabalhos na Mostra Didática Sokúrov Oriental e em exposições nas galerias do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.

Bruno Barretto Gomide

é doutor pela UNICAMP, com estágio de doutorado CAPES

em Berkeley. Desde 2005, é professor de literatura russa na USP (atualmente coordena a pósgraduação da área). Foi pesquisador-visitante no Instituto Górki de Literatura Mundial, em Moscou, e na Universidade de Glasgow. Publicou os livros Da estepe à caatinga: o romance russo no Brasil (1887-1936), pela Edusp, e a Nova antologia do conto russo, pela editora 34.

Daniela Mountian

é editora da Revista e Editora Kalinka (especializadas em

literatura russa) e tradutora. Doutoranda em Literatura e Cultura Russa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É bacharel em História, pela Universidade de São Paulo. Participou, como uma das tradutoras, da Nova antologia do conto russo (Editora 34) organizada pelo pesquisador Bruno Barretto Gomide.


188 Erivoneide Barros

é professora, pesquisadora do GP E.XXI (Grupo de

Pesquisa Eisenstein no Século XXI), mestranda em Arte e Cultura Russa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e licenciada em Letras.

Fabiola Notari

é artista e pesquisadora do GP E.XXI (Grupo de Pesquisa

Eisenstein no Século XXI). É mestre em Poéticas Visuais pela Faculdade Santa Marcelina (FASM), na linha de pesquisa em Artes e Práticas Experimentais. Desde 2010, é artista associada do Estúdio Valongo (Santos) e em 2012 associou-se à AJA (Associação Jatobá de Artes Visuais). Leciona História da Arte e Fotomontagem no curso superior de Fotografia no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.

Jerusa Pires Ferreira

é livre-docente em Ciências da Comunicação

(ECA-USP), pós-doutora na Alemanha sobre o tema do Fausto, doutora em Ciências Sociais (FFLCHUSP), mestre em História (FFLCH-USP). Coordena o Centro de Estudos da Oralidade do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e do Núcleo de Estudos do Livro e da Edição (ECA-USP). É professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e do Departamento de Jornalismo e Editoração (ECA-USP). Tradutora da obra de Paul Zumthor e de Henri Meschonnic. Publicou, dentre outras obras, Fausto no horizonte: razões míticas, texto oral, edições populares (EDUC/Hucitec) e Armadilhas da Memória e outros ensaios (Ateliê Editorial).

José de Quadros

é artista plástico brasileiro. Na Alemanha, formou-se pela

Faculdade de Artes Plásticas de Kassel. Vive e trabalha entre São Paulo e Kassel (Alemanha) permanecendo seis meses em cada ateliê. Realizou exposições individuais em espaços como a Estação Pinacoteca de São Paulo, Paço das Artes (São Paulo), Museu Victor Meirelles (Florianópolis), Museu Lasar Segall (São Paulo) e Galerien Bittner & Dembinski (Kassel) dentre outros. Também participou de exposições coletivas na Bienal de Bangladesh, no Museu de Arte S. Catarina e Centro Cultural São Paulo.


189 Juliana Rosa

é artista, pesquisadora do GP E. XXI (Grupo de Pesquisa

Eisenstein no Século XXI), bacharel em Artes Visuais. Como artista, apresentou seus trabalhos na Mostra Didática Sokúrov Oriental e em exposições nas galerias do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.

Lúcia Ramos Monteiro

é jornalista e mestre em cinema pela Universidade Paris 3

– Sorbonne Nouvelle, onde foi professora assistente em 2010/2011. Redige, atualmente, sua tese de doutorado, em cotutela entre a Universidade de São Paulo e a Universidade Paris 3, sobre a relação entre cinema e catástrofe na obra de realizadores contemporâneos.

Marcos Kahtalian

é graduado em Comunicação Social pela UFF, mestre em

Multimeios pela UNICAMP, professor da FAE, em Curitiba. Realizando pesquisa de doutoramento sobre a poética de Aleksandr Sokúrov.

Mônica Berto

é artista, pesquisadora do GP E. XXI (Grupo de Pesquisa

Eisenstein no Século XXI), mestranda em Poéticas Visuais na Escola de Comunicações e Artes da USP. Em 2011, atuou como assistente pedagógica no curso Ações Multiplicadoras do PISC da Pinacoteca do Estado de São Paulo.


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Nancy Condee

é professora associada de Estudos Eslavos do

Departamento de Língua e Literatura Eslava (Universidade de Pittsburgh), membro do Programa de Estudos de Cinema (Universidade de Pittsburgh) e Ph.D. em Estudos Eslavos pela Universidade de Yale. Dedica-se à pesquisa sobre cultura russa contemporânea, cultura pós-soviética, políticas culturais e cultura popular. É autora de vários livros, dentre eles, The imperial trace: recent russian cinema (Oxford University Press) e organizou, em parceria com Birgit Beumers, o volume The cinema of Alexander Sokurov (I. B. Taurus).

Neide Jallageas

é pós-doutoranda, com bolsa FAPESP, junto ao Programa

de Pós-Graduação em Russo (DLO/FFLCH/USP) e estágio de Pesquisa no Centro Eisenstein de Pesquisa e Museu de Cinema Russo em Moscou. Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) com tese sobre Andriêi Tarkóvski. Mestre em Comunicação e Estética do Audiovisual (ECA-USP), traduziu um conto de Clarice Lispector para a linguagem do vídeo e da fotografia, trabalho que se encontra em acervos públicos (MAM-SP, Coleção Pirelli – MASP e SESC-SP). Coordena o GP E.XXI (Grupo de Pesquisa Eisenstein no Século XXI). Traduziu, com Anastassia Bytsenko, o livro A perspectiva Inversa, do filósofo russo Pável Floriênski (Editora 34).

Rodolfo Caeser

é compositor e doutor em música pela University Of East

Anglia (UEA – Inglaterra), professor da Escola de Música (UFRJ) e um dos fundadores do Estúdio da Glória, no Rio de Janeiro. Fundou e coordenou o laboratório de Música e tecnologia (UFRJ) até 2010. É autor do livro Círculos Ceifados (7letras/FAPESP).

Tieza Tissi

é atriz, pesquisadora do GP E.XXI (Grupo de Pesquisa

Eisenstein no Século XXI), mestre em Literatura e Cultura Russa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, na linha de teatro russo. Traduziu, diretamente do russo, as partituras de Stanislávski e pesquisa a relação entre as formas poéticas deste com as de Anton Tchekhov.


191

Conteúdo não creditado no texto

Fausto, 2011 (capa, 23, 73, 97, 139) Elegia da travessia, 2001 (2, 13, 162-169) José de Quadros, Jogos de Armar, 2008 (3-12) http://www.vogue.it/en/people-are-talking-about/music-theatre-cinema/2011/09/faust (15) E nada mais, 1982-89, (39, 119) Sonata para Hitler, 1979-89 (57) Taurus, 2000 (73) Lasar Segall, Caderno Visões de Guerra 1940-1943 (93-94, 169-170, 173-178, 183-184) Aleksandra, 2007 (103) Serguei Loznitsa, O Bloqueio, 2006 (149) Documentos e cartas de Lasar Segall, diversas datas (167-168, 171-172, 179-182 ) Tradução de Daniela Mountian (145-151)


192

Sobre

Os cadernos de pesquisa kinoruss são parte integrante do site kinoruss.com.br. Todo o material apresentado aqui tem por objetivo estimular a investigação e o estudo de cinema e vídeo na Rússia e nos países da antiga União Soviética. Este site contém informações de propriedade de outros indivíduos e entidades. O material apresentado aqui é feito para fins de arquivamento e informativas somente e não se destina a infringir os direitos de propriedade dos donos originais. kinoruss cuida dos direitos autorais dos trabalhos apresentados e oferece links para seus autores. No entanto, se houver uma falha, pedimos que entre em contato. Note que a doutrina do uso justo, estabelecido

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ISSN 2237-2105


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